terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Marginais, bárbaros, selvagens nos estádios: e nós?

O assunto é o da moda, e minha abordagem aqui, eu sei, não é nada original; mesmo assim escrevo sobre o evento entre atleticanos e vascaínos, na última rodada do campeonato nacional ludopédico. As imagens de brigões apanhando covardemente (porque não conseguiram bater covardemente) apenas coroou a face tida como aberração do esporte mais popular do planeta no país do futebol. Vale lembrar, contudo, que o conflito entre torcedores não é novidade no esporte, como não foi novidade neste campeonato. 

Teimando em tratar como excepcional o que é corriqueiro, em negar que isso é parte do esporte e reflexo da sociedade (o enorme contingente de policiais destacado para o estádio e arredores em dia de jogo apenas corrobora a violência inerente e não ritual do futebol-show), a imprensa arrota, verdadeiramente horrorizada e inconscientemente satisfeita (afinal, é notícia, é capa do jornal, é motivo fácil pra colunas), uma série de pretensos desqualificativos desse Outro, reflexo maldito de nós mesmos. De bandidos e marginais a bárbaros e selvagens, o espectro de adjetivos é amplo, mas me restrinjo a um breve comentário sobre esses quatro, muito utilizados.

Sobre bandidos, convém sempre lembrar que doentes e criminosos são crias da própria sociedade onde vivem – atiradores de escolas nos EUA, suicidas em universidades brasileiras de ponta, agressores sem motivos e policiais sádicos ao redor do mundo. Marginais, como o próprio nome diz, é porque há um núcleo do qual alguns – em geral muitos – foram excluídos. Àqueles que acusam o Outro de marginal sobra sempre auto-incriminações implícitas: ou crêem que os tais marginais se põem à margem por opção? Entre viagens pra Disney, baladas caras e carro importado, escolheram tráfico de drogas ou a vida medíocre em escritórios temperada com brigas em estádios.

É a mesma função de auto-comiseração, porém num plano mais ontológico e menos social, o uso do ajetivo bárbaro: vem da tradição greco-romana, quando os homens ainda não eram todos iguais, tratar o diferente não como um Outro, mas como uma sub-raça inferior. Se o Outro nos devolve nosso reflexo e nos obriga a repensar nossa condição no mundo, o bárbaro apenas serve para provar nossa superioridade narcísica frente sua ignorância e rudeza.

Por fim, o adjetivo selvagem, que tanto me agride: um pouco menos de etnocentrismo e positivismo nos cairia bem. Os selvagens, se guerreavam o faziam com fins mais nobres do que a violência gratuita que foi filmada em Joinville: a violência podia ser real, mas era também ritual, o adversário era um Outro digno de respeito – a tal ponto que o ritual de antropofagia significava incorporar as suas qualidades. O que se vê hoje em dia – nos estádios e fora deles, que o diga a internet – é o adversário como inimigo, um ser ignóbil (pelo elevado motivo de não concordar conosco) que merece ser destruído e aniquilado. Não é alguém que respeitamos e invejamos suas qualidades, é alguém que pequeno e que nos perturba por nos apresentar nossa pequenez. A violência gratuita dos estádios não é ritual nem auto-reflexiva, mas é um reflexo de nossa sociedade, em que as pessoas são reduzidas a um insignificante e facilmente substituível parafuso no sistema que tem por obrigação gerar lucro e crescimento econômico. Não é selvageria, é hiper-civilização.

E então abundam propostas de como conter tal violência: aumento do efetivo, fim das torcidas, prisão de torcedores, torcida única, jogo em estádio vazio. A cada proposta eu ouço a afirmação da falência de uma sociedade, de uma cultura em que um jogador de futebol mediano ganha mais do que um escritor ou um intelectual de ponta. E tudo isso é normal, porque violento são os outros.

São Paulo, 10 de dezembro de 2013.

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