terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pense antes de criticar (sobre o ministério da Dilma e certas críticas de esquerda nas redes sociais)

Acompanho a repercussão do anúncio dos ministros para o segundo mandato da presidenta Dilma na linha do tempo do meu Fakebook. Entre meus amigos virtuais, via de regra inclinados à esquerda, a tônica geral dos que se expressam é de indignação, pelo menos decepção - sentimento mais que compreensível. É como me sinto também - decepcionado, beirando o indignado. Porém há algo nesses comentários breves que me incomodam. Não sei exatamente o porquê, por algum motivo as críticas me parecem tortas. Passada uma semana, começo a entender um pouco meu mal-estar: um bom tanto porque são críticas superficiais, feita no calor da divulgação dos novos ministros, que pouco acrescentam. Ok, é o que se deve esperar numa rede social, porém há um adendo: são feitas por cientistas sociais, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, filósofos - alguns de renome na academia tupiniquim -, pessoas que foram ou meus colegas, ou meus professores, ou que têm trabalhos teóricos que admiro. O que esperava eu deles, então? Um tratado sobre o porvir do segundo governo Dilma? Uma tese revolucionária? Não, nada disso. Talvez o que tenha me incomodado seja a sujeição ao meio - e ver sua indignação ter a potência de um traque de criança...
O jornalista Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo, seguidamente fala do fim da mídia como a conhecemos: da perda de leitores dos diários e hebdomadários à perda de audiência de JN e novelas, que tem culminado com a dispensa de antigos pesos pesados da Grande Imprensa corporativa, como Cantanhêde e Xuxa. A internet e as redes sociais têm papel fundamental nesse rumo da comunicação - não me parece haver o que discutir quanto a isso, no máximo quanto à força e forma do impacto. Nessa senda, algumas perguntas que faço são: os donos do poder - no Brasil e no mundo - precisam seguir pagando para serem defendidos? Precisam distrair o distinto público para manter sua fatia de poder? A decadência da mídia tradicional fará realmente falta, ou o que vem no lugar supre satisfatoriamente os interesses do sistema e de sua minoria hiper-privilegiada? Por fim, um meta-questionamento a este texto: posso fazer a crítica e problematizar o pensamento de pensadores brasileiros a partir de postagens no Fakebook, ou estaria sendo desleal ao tratar como público algo que possui seu caráter privado (guardadas as nuances acerca do público e privado nestes tempos de capitalismo avançado)?

Debord e a crítica espetacular ao espetáculo: o imediatismo
Não tenho como não deixar de apelar ao autor que estudei, Guy Debord, e sua teoria da sociedade do espetáculo. Seu clássico de 1967 permanece atual, com nada a retificar quando ele fala que o sistema cria seus defensores mesmo entre os que o atacam - no máximo podemos acrescentar novas formas. A internet, em especial o Fakebook, tem assumido esse papel de neutralizador de críticas - ao mesmo tempo em que explodem disputas irracionais sobre pontos secundários. Se a forma de organização empresarial da mídia tradicional capenga, seu linguajar e seu modus operandi são mimetizados mesmo por pessoas que se pretendem críticas ao sistema.
Uma primeira característica copiada é a pressa, a emergência em emitir uma opinião, de estar up to date do último factóide, de se expressar just in time. O deadline do tema da moda costuma ser breve, não durar sequer vinte e quatro horas, logo atropelado por algum novo fato bombástico. Conseguir construir uma crítica consistente, baseada na razão e não na emoção, em um curto espaço de tempo é algo difícil de ser feito - grandes sacadas são possíveis em meio minuto, porém, via de regra, boas análises necessitam um pouco de ruminação prévia. Penso que quando se trata de um assunto realmente importante, faz bem ser retomado quando perdeu o impacto do primeiro momento e não deixá-lo submergir no oceano de notícias que nos afogam a cada segundo. Respeitar o deadline da sucessão alucinada de notícias é compactuar com essa velocidade que nos faz engolir notícias em doses cavalares, sem tempo para digeri-las, para meditar um pouco sobre o que foi divulgado - espectadores hipoativos, eventualmente reativos, que quando reagem o fazem com base principalmente na emoção e num impulso estilo comportamento estímulo-resposta. Virilio já comentava do fato da velocidade e da movimentação constantes serem atributos necessários à sobrevivência do sistema de guerra no qual nossa sociedade se baseia. Parar, esperar, respirar seria já metade da crítica.
Nem toda pressa, contudo, significa coadunar com o espetáculo. Entendo a necessidade de comentar, de falar da decepção, da indignação com algo que recém ficamos sabendo. Encaro essa necessidade como típica do homem moderno, cuja ontologia penso estar calcada no reconhecimento da identidade pelo Outro. Há uma diferença de meio, entretanto, que faz com que esse comentário ganhe outro significado, se comparado ao antigo hábito, do conversar à mesa de jantar, do bar, entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. Nestes casos estamos em um pequeno grupo e há condições propícias para refletir: em diálogo vivo, com a palavra proferida e necessariamente escutada pelo Outro, esse primeiro sentimento pode ser repensado (para não falar pensado), burilado - ou na discussão com esse Outro, ou na tentativa de justificação, ou simplesmente pelo impacto que dizer isso, de desafogar o que se sente. O efeito na linha do tempo do Fakebook ou do Twitter é diverso: não estamos nesse diálogo vivo - o diálogo, quando há, vem truncado, por questão de meio e de etiqueta -; os Outros alcançados pela mensagem muitas vezes são pessoas distantes, números de curtidas e não afetos que mobilizam. Conforme Dominique Wolton, "expressão e interação, por mais necessárias e úteis que sejam, não são sinônimos de comunicação", e o que menos fazemos nas redes sociais é nos comunicar.
O caso se agrava porque estou falando de comentários de especialistas - colegas desses que a mídia adora chamar para justificar seus preconceitos (quando não são eles os chamados, a depender da linha da publicação) -, são de "autoridades" na nossa sociedade hierarquizada, potenciais (quando não efetivos) formadores opiniões. A pressa em publicar tais "opiniões emocionais" impede uma auto (e hetero) reflexão que poderia ser muito útil para um enriquecimento da nossa precária discussão política - se o nível do nosso debate está baixo, não estamos trabalhando para revertê-lo, antes aprovando-o subrepticiamente.
Conseqüência do que recém-expus, ganha forma meu incômodo com os comentários sobre o novo ministério da Dilma. Pode ser preconceito meu, mas tive a impressão de que algumas pessoas da minha linha do tempo comemoravam a escolha de Kassab, Abreu e afins - algo como um grito de "eu já sabia". Pessoas do tal voto crítico na Dilma, que parece que deixaram a crítica junto com o voto.

Comentário raso é sempre raso, não importa a titulação
Qual a importância de comentários óbvios e rasos feito por pessoas tidas por especialistas na área, com formação acadêmica na área de ciências sociais e filosofia, que se põem (enquanto auto-imagem) à esquerda? Nessa hora sempre lembro de uma frase da minha mãe: "quem muito prega, pouco crê". Seria dúvida quanto à sua posição política, por isso a necessidade de reafirmar sempre, aos seus alunos, aos seus amigos, aos seus colegas, aos seus companheiros de partido, que são de esquerda, continuam sendo de esquerda, ainda não deixaram de ser de esquerda?
O pior, contudo, não é isso: as críticas parecem partir de dois pressupostos bastante preguiçosos (e hollywoodianos): de que o bem e o mal são facilmente identificáveis, e de que a escolha de ministros é um ato de pura vontade do governante - tal qual seria sua escolha do modelo de tênis na loja.
Falta um mínimo de análise de contexto: diante de uma vitória apertada, do cerco da Grande Imprensa e de um congresso conservador (que não se deixe de assinalar que Dilma e o PT têm sua bela dose de responsabilidade nesse quadro), a presidenta teria poder político para bater na mesa e dizer: "vai ser assim, ponto"? Não creio. No primeiro mandato Dilma pôs em prática o slogan de Alckmin de 2006, assumiu a presidência com a missão de ser uma gerente, se pôs acima das negociatas políticas. O modelo tecnocrático da presidente fazia sucesso, tanto que ela tinha aprovação superior à de Lula. Caiu com as chamadas "jornadas de junho de 2013", o demi-golpe dado por uma direita silenciosa e muito bem organizada (enquanto Jabores e Datenas se desdiziam tentando entender o momento, havia quem pensasse e se organizasse para aproveitá-lo).
Se houve um aprendizado de Dilma com as tais jornadas foi a de que a política segue indispensável na política institucional - é redundante, eu sei, mas não é tão óbvio. A guinada à esquerda durante a eleição e agora, com os novos ministros, mostram isso: aquele foi um aceno aos movimentos sociais, um pedido de mobilização política, este, o pedido de auxílio a nomes de peso político, algo que não houve no primeiro mandato, tão-logo ela se livrou dos restos do governo Lula (os políticos mais relevantes no seu primeiro ministério, tirando os remanescentes governo do Lula, eram Mercadante, Pimentel, Lobão e Alves). Fazer política, goste-se ou não, é negociar e tomar posição. Poderia ter tomado outra posição, com outros nomes? Poderia. Conseguiria governar com ministros técnicos competentes e pouco expressivos politicamente, eis a questão. Para quem vê de fora, é fácil fazer críticas baseadas nas purezas dos ideais - o próprio PT fazia isso antes de ser governo. Intelectuais não participarem dessa política pequena é uma coisa, recusarem a aceitar que ela funciona assim, é precariedade de raciocínio ou de formação. E o que fazer quando se assume o poder sem ter feito uma crítica consistente, que englobe as armadilhas desse aspecto nada nobre da política? Governar com os melhores, como verbalizou Marina Silva (e como pressupõe partidos de extrema-esquerda)? O que fazer quando os funcionários da burocracia estatal simplesmente se recusam a acatar os projetos do ministro ou secretário de turno, de modo que nada acontece - salvo a queda do secretário? Essa foi uma das questões que presenciei e não consegui responder nos breves três meses de experiência na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Campinas.
Não quero com isto dizer que política é assim e deve-se aceitar, e sim que formadores de opinião e pessoas pertecentes a partidos políticos e que se creem não-alienadas precisam ter os pés no chão para fazer suas críticas, precisam esquilibrar ideais - que devem ser buscados -, com percalços que precisam ser encarados sem idealismos. Slogans e críticas rápidas podem piorar o que já não está nada bom.

Brasil 2014 - Weimar 1930?
Cabe também contextualizar a crítica para entender que disparar contra o PT, sem nuançar, é fazer o jogo dessa direita mais retrógrada. Sim, esse é um argumento que petistas têm usado para calar críticas, como se qualquer uma fosse desestabilizadora do governo, como se o arranjo feito pelo PT fosse não apenas o melhor, como o único possível, e por isso devesse ser engolido com feijão. Uma direita organizada e que já se mostrou disposta a encabeçar um novo golpe não pode ser desprezada. Tampouco pode ser motivo para que se aceite o que o PT faz, com base no discurso do medo.
No Le Monde Diplomatique Brasil de dezembro de 2014, Tarso Genro (petista de quem tenho grande aversão) levanta um ponto que vem me incomodando desde antes das eleições, e que tem me feito estudar mais sobre o período, na ânsia de entender minimamente que movimento de direita é esse que presenciamos no Brasil atual, e se podemos fazer analogia com o fascismo ou o nazismo do início do século XX. Genro afirma que sim, e seu argumento não pode ser desprezado:
"O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país. A diluição da esfera da política com sua identificação absoluta com a corrupção, pela propagação de uma visão pervertida dos partidos, inclusive os conservadores e de oposição – embora estes queiram majoritariamente terceirizar suas funções –, e o esforço pela comprovação da impotência da democracia como processo para abater privilégios e reduzir desigualdades sociais são os esforços centrais dessa estratégia. Quando alguém, aparentemente fora da política, monopoliza a capacidade de produzir a agenda política de um país, a democracia, neste país, está em perigo.
É importante advertir, porém, que essa agenda é verdadeira (...). O que predomina, pelo menos na conjuntura atual – como ocorreu fartamente na Ação Penal 470 –, é uma suja tentativa de estabelecer uma identidade partidária para a corrupção, e não uma identidade com as pessoas que cometeram crimes ou se aproveitaram de brechas legais (como as causadas pelo financiamento empresarial das campanhas) para obter recursos para seus partidos ou para proveito próprio."
A crítica rápida parece servir, antes de tudo, para ajudar no desgaste à legimitidade da presidenta eleita - como se a vitória por margem estreita não fosse vitória. Há incautos muitos que movidos pelos slogans de junho de 2013, ainda tentam pôr em prática a mudança pedida, crendo que qualquer mudança é válida - são incapazes de pesar que há mudanças que são um passo atrás e pouco interessam à maioria da população do país.

Um ministério decepcionante
Antes de se indignar e lamentar boa parte dos nomes escolhidos por Dilma, convém se perguntar: foi ela a estelionatária eleitoral, ou há um processo mais subterrâneo, capaz de neutralizar os desejos expressos pelas urnas? Reconheço que "desejo expressos pelas urnas" é um termo também digno de questionamento, visto que teremos um legislativo dos mais conservadores - será que nosso sistema representativo representa os reais anseios da população? Por falta de medida outra, não arrisco nenhum palpite. De volta ao executivo: decepção igual tive (tivemos?) com o ministério de Lula I, no qual o discurso de mudança foi preenchido por um quadro conservador do PSDB. Agora em 2014, novamente, diante dos difusos pedidos de mudança das ruas, replicados nas eleições presidenciais, o primeiro passo da presidente no seu novo mandato foi retroceder. Que sistema político é esse que atropela projetos de governantes em nome não de governabilidade - porque Meirelles e Levy não foram imposições do congresso nem pedido das ruas -, antes de permanência no poder? Em algum Guia do Mochileiro da Galáxia talvez uma pista da resposta: presidentes não detêm o poder, eles apenas desviam a atenção do poder (os Estados Unidos já levaram ao paroxismo esse princípio, ao eleger um ator para a Casa Branca).
Quanto aos novos ministros, a esperança que sobra é que com a sua escolha, Dilma tenha certa margem de manobra no legislativo, consiga evitar arroubos golpistas e, principalmente, consiga avançar com pautas progressistas e urgentes em outras áreas - telecomunicações seria uma delas, a principal (e isso Lula sabia desde 1992, ao menos). Claro, é preciso também torcer para que esses nomes não façam o país regredir em áreas muito sensíveis - preservação de florestas, melhoria do aspecto humano das cidades, os avanços modestos na ciência e na tecnologia. Ao distinto público, outra vez posto em segundo plano por sabe-se lá quais conchavos, não nos cabe acatar passivamente, nem negar por completo o governo: mais inteligente é trabalhar a partir do que há - e não dos que poderiam ou deveriam ser -, e se organizar para pressioná-los de modo efetivo para que atendam uma agenda progressista. A direita sabe disso e já deve ter suas táticas prontas.


30 de dezembro de 2014.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Uma flor no viaduto Santa Ifigênia [Diálogos com a dança]

"Se eu falar, não acreditam", comenta o vendedor da loja de instrumentos musicais sobre o porquê estar gravando com seu celular o que se passa defronte a loja. Por um momento fico a me questionar ignorâncias: será que ele é de tão pouca confiança, ou será que seus interlocutores só conhecem a dinâmica previsível e pasteurizada dos shopping centers? Acima da loja, no primeiro andar do prédio, uma mulher surge na sacada, talvez apenas por rotina de ver o movimento da cidade, talvez atraída pela guitarra que não toca nenhum sucesso musical e ainda assim se destaca. Logo outras três pessoas estão com ela, assistindo. Pedestres passam, alguns indiferentes, outros observando sem diminuir o passo, outros param para tentar entender o que é aquilo - ou talvez não seja questão de entender, mas de apreciar, tão-somente -, um vendedor ambulante de carrinho de controle remoto faz oitos com a Ferrari - e assim seguirá, salvo quando o rapa passar -, um segundo se protege do sol escaldante na fina sombra do poste de luz, enquanto oferece água mineral, pouco adiante outro guitarrista toca, esse, sim, sucessos, clássicos do rock, na sua roupa prateada. É em meio a essa paisagem banal do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, que cinco dançarinos ocupam-no e interferem no caminhar de seus transeuntes.
Novos Experimentos, da iN SAiO Cia de arte, se insere muito bem naquele ambiente urbano, os protagonistas sabem lidar com a instabilidade de interagir com um público que não está ali para assistir a dança ou a qualquer manifestação artística. A inserção, entretanto, não é feita sem perturbar esse ambiente: ela pode ser sentida nos espaçosos átrios formados nos trechos em que os dançarinos se concentram: há algo especial, extra-ordinário acontecendo ali - a arte não está no quotidiano da cidade, das pessoas. Essa ruptura do ordinário traz reações as mais diversas, da ranzinza indiferença ao acompanhamento atento, apesar do sol e da pressa. Ranzinzice que eles muitas vezes são capazes de atenuar, pressa que eles conseguem estancar - logo no início, quando as duas dançarinas caminhavam lentamente uma em direção à outra, uma mulher claramente apressada não conseguia continuar sua marcha, na ansiedade de saber o que viria daquele encontro, dois passos, parava, outro passo, estancava, e as dançarinas em seu passo lento, ela se virava para assistir, até, enfim, ambas se encontrarem, a tensão se resolver e ela poder seguir seu rumo. Ou quando o carro de polícia teve de esperar o dançarino que não interrompia seu bailado para a passagem da ordem. Diferentemente da performance Os cegos, na avenida Paulista [j.mp/cG23dez13], Novos Experimentos pretende romper com o quotidiano num confronto com a banalidade, não com as pessoas que a vivem. Não se pretende agressiva, apesar de não deixar de ser crítica: acredita que os freqüentadores do centro são capazes de mais que olhar, são capazes de ver - basta um estímulo que os tire do cinza da rotina.
Foto: Fabiana Choi [fafayc.wix.com/fabianachoi]
O porém de sair com o intuito deliberado de assistir a uma apresentação dessas, a uma intervenção no espaço urbano, na ordem do dia, é não ser pego de surpresa, é não ser você a buscar alguém quem te explique o que se passa ali - é apresentação mesmo, já que não há nenhum círculo ou semi-círculo de espectadores, apenas cinco dançarinos espalhados, um guitarrista, quatro ou cinco fotógrafos e pessoas passando, algumas se detendo alguns poucos minutos? Me pego observando mais que meu habitual os espectadores, as pessoas que passam, os vendedores que comentam, o carrinho de controle remoto que faz oitos. Passa um rapaz numa bicicleta de entrega, distraído com seu celular - logo ele passará de novo, sem ser sugado pelo celular atentará para aquela estranheza e ficará um tempo a assistir à dança. Lembro do teatro da Vertigem, "A última palavra é a penúltima", apresentado na passagem subterrânea defronte o teatro Municipal - a diferença é que não estou preso em uma vitrine, e na minha frente (e ao meu redor) passam pessoas em seus trajes de todo dia, não atores.
Porém, não ser pego de surpresa pela dança não quer dizer que não pode ser surpreendido durante ela: uma mulher, já passada dos sessenta anos, acompanhada de uma criança, olhos cheios d'água, pede um abraço a uma das intérpretes. "Não tive como negar", comentou ela, ao fim da apresentação. Como não há como negar que para as pessoas que passaram pelo viaduto Santa Ifigênia ao meio-dia desta quarta-feira alguma coisa mudou, algum atrito no seu quotidiano aconteceu, algum colorido exótico elas tinham para reportar a seus próximos no fim do dia. Em que reverberará essa experiência? Impossível saber, pode morrer junto com o dia, mas pode ter sido uma flor que furou o asfalto.

São Paulo, 18 de dezembro de 2014.


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Transitar por Buenos Aires

O transporte de Buenos Aires, em seus vários modais, merece uma crônica. Começo pelos ônibus: a primeira impressão é de que são muito velhos, provavelmente causada pela pintura e seus adereços - mesmos nos novos. Reparando um pouco mais, creio ter visto alguns ônibus que no século passado eu já achava muito velhos - sinal que a impressão não é de todo equivocada. Pelos avisos, Buenos Aires parece estar ampliando (ou implementando) corredores exclusivos - inclusive não me lembrava do metrobus nas pistas centrais da Nove de Julho, mas pode ser que eu não reparara. E causa estranhamento também as pessoas fazerem fila nos pontos - e não apenas quando o ônibus pára, pela questão logística de que não pode entrar todo mundo pela porta do busão (tão logo chego no brasil, ainda no aeroporto, o motorista do ônibus mostra onde deve ser feita a fila, as pessoas seguem sua indicação, e na hora de estacionar para embarcarmos, o mesmo motorista pára no meio da fila).
Ciclovias, essas não vi avisos, mas espero estarem sendo ampliadas, pois há lugares em que a ciclovia se encerra do nada, num meio fio, após atravessar uma avenida movimentada. Em geral, elas me pareceram bem mal feitas, antes com efeitos cosméticos que efetivas - apesar de um número não desprezível de pessoas usar a bicicleta como transporte (e tomo como modelo as ciclovias implementadas em São Paulo por Haddad). Boa parte das ciclovias são apertadas, malemal passa uma bicicleta em cada mão e foram feitas próximas ao meio fio, sem nenhuma reforma e adaptação: algumas têm suas faixas ocupadas por lixeiras, muitas ficam na parte originalmente dedicada ao escoamento da água da chuva. Não é preciso ser gênio para saber que em dias de chuva não há ciclovias. Imagino, contudo, que isso não torne impeditivo o uso da magrela: impressão tive que os motoristas respeitam mais, ou melhor, respeitam (ainda que não tanto quanto creio ser o ideal), desde outros motoristas até pedestres - de onde não ver por que excluir os ciclistas. Esqueitistas vi poucos.
Buenos Aires não tem sinais que fecham todo o tráfego aos carros, para que os pedestres atravessem: sinal verde vale para ambos, e ao dobrar a esquina, a preferência é (de fato) do pedestre. O que talvez me irrite mais dos motoristas portenhos é que eles adoram buzina. Notei dois padrões de buzina: as que chamei de che, e as de boludo. As primeiras são aquele "pi" que eles soltam para qualquer coisa, como quando o sinal recém fica verde. A boludo estende-se no tempo, "piiiiiiiiiiiiiiii", quase vejo os motoristas gritando "boluuudo!" dentro seus carros, e são utilizadas para qualquer coisa, também, como, por exemplo, quando o motorista atrasa dois segundos depois que o sinal abriu. Parece que boludar na buzina alivia de prosseguir com ofensas - mas ajuda bastante na poluição sonora. Uma placa curiosa encontrei em Palermo: uma vaga na rua reservada especificamente para um carro, placa tal. Devia ser um morador com alguma deficiência de locomoção, ok, mas ter um lugar só seu na via pública, isso não lembro de acontecer oficialmente no Brasil
Porém, o que mais me motivou a esta crônica foi o metrô, aqui chamado mais acertadamente de subte - vale lembrar que o Metrô de São Paulo, só com as novas ampliações vai se tornar efetivamente metropolitano. Sem muito contato com o modal paulistano, e talvez sob efeito da comparação com os ônibus, não tinha registro de serem tão antigos assim. Havia os trens de madeira, que iam para a praça de Maio, mas esses eram propagandeados como propositalmente mantidos, serviam como ponto turístico. Para não caminhar tanto antes dos shows, vou de metrô até estação mais ou menos próxima do local do festival (uns quatro quilômetros, talvez). Entro na estação Avenida de Mayo. De lá me encaminho até a Diagonal Norte, troco de linha e vou até a Plaza Italia. Simples, pero no por completo. Além de funcionários mal humorados e pouco dispostos a dar informações (diferença grande para os funcionários do metrô paulistano, e não falo isso para puxar saco de amigos), sinalização ruim e caminhos bizarros tornam a troca de linha uma aventura, quase uma caça ao tesouro: é preciso se encaminhar para o fim da plataforma, onde diz saída tal, virar à esquerda, descer a escada, caminhar por um túnel razoável, entrar na segunda direita, caminhar um tanto mais, subir outra escada e pronto: estou do outro lado da estação, pronto para tomar o metrô de volta para a Avenida de Mayo. Mais uma caminhada pelos subterrâneos portenhos, sobe desce, desce sobe, túnel, vira, corredor, vira, túnel, corredor, salva a princesa, sobe, desce, magia, sobe desce, escada, escada, meia lua xis e, agora, sim, me encontro na plataforma certa para seguir viagem - em companhia de um casal formado por um italiano e uma venezuelana, que não economizou no dedo quando o funcionário nos deu a informação de como chegar aonde gostaríamos.
Por ser antiga (imaginava ser da década de 1920, uma amiga me contou que a rede é de 1913), as estação são apertadas, até um pouco claustrofóbicas, por conta do pé direito baixo. Azulejos as enfeitam e as diferenciam, dando um ar menos padronizado - soa estranho, mas não deixa de ser simpático. Falta um pouco de manutenção, contudo: paredes descascando, cheiro de mofo e grandes ventiladores para fazer o ar circular - para não falar nos trens um tanto antigos, dando aquele ar de modernidade de ontem, que comentei quando falei do nome da empresa que administra o Aeroparque (detalhe: os de madeira, me contou minha amiga, foram tirados por conta de reiterados problemas, talvez circulem de domingo). Entendi o porquê de precisar fechar toda a linha B durante o final de semana para implementar ar-condicionado: não parece ser tarefa simples, antes uma considerável adaptação. O terceiro trilho corre pelo alto, há pedra brita entre os trilhos - para não falar de lixo jogado pelos usuários e água da chuva da noite. Na estação, na plataforma de embarque, um ambulante vende doces em uma mala - tranquilamente, sentado no chão. No trem, um brasileiro abre seu teclado e toca Bob Marley, enrola um portunhês (estágio anterior ao portunhol) e pede uma contribuição. As cinco pessoas sentadas na minha frente dariam um curta: uma jovem com fone de ouvido masca chicletes displicentemente, uma mulher perto dos quarenta sentada rígida tem o olhar perdido, um senhor (desses cinematográficos que não são raros de encontrar em Buenos Aires) apoiado em sua bengala, traz o olhar entre o leve fastio e a leve irritação, e, por fim, dois adolescentes, um com óculos de aro grosso, aparelho, espinhas - visual meio nerd -, e outro com óculos escuros, boné aba reta e estilo mano, cantam empolgados junto com o artista de metrô. Atrás deles propagandas. Primeiro imagino que quase todas irregulares, por parecerem lambe-lambe, mas depois passo a achar que a de "canto y escena" é regular, enquanto a de "sevicio de jardinería", por estar colada muito aleatoriamente, é irregular. Agora já acho que as duas são irregulares. É feriado, o número de passageiros é tranquilo, prefiro nem imaginar como é durante a semana - ou, pior, durante a semana com greve dos ônibus, como dali a dois dias. Chego à Plaza Itália sem sobressaltos, pronto para os shows, depois de uma viagem que começou com a visão de um Jesus Cristo do Porta dos fundos do outro lado da estação.

Buenos Aires - São paulo, 16 de dezembro de 2014

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Um dia qualquer em Buenos Aires



No café da manhã do albergue lembro da viagem com meu irmão, em 2006: toca primeiro Manu Chao e a seguir Layla, do Oasis (foi depois de ouvir essa música, em Puerto Madryn, que decidimos assistir ao show deles, alguns meses depois, em São Paulo). Por falar em albergue, ainda não contei aqui: para entrar na hospedaria é preciso estar com o pulso devidamente equipado com uma pulseira azul clara que te dão, dessas de vip em festa. Me sinto quase uma criança trazendo no pulso o telefone de casa, para o caso de eu me perder dos meus pais. Depois de pensar um pouco, vejo que faz algum sentido: imagino um dos hóspedes, zero de conhecimento de espanhol, bêbado, perdido pela cidade, aquele telefone pode ser de grande valia. 
Vou até o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires. A mostra de Leon Ferrari e a inspirada em Sonia Delaunay me interessam. Nesta segunda um guia conduz um grupo com vários cegos. Ele tenta explicar as formas e as cores da obras - a primeira ainda é capaz de eles imaginarem (ou visualizarem, e aqui me vejo com uma dificuldade em fugir de metáforas visuais), as cores, se forem cegos de nascença, não faz sentido. Para além do guia falando, há obras em relevo ou bordadas - como a de Chiachio & Giannone. O guia conduz a mão de um por um pelas obras nas paredes. Em uma delas, um tapete no chão, autoriza que pisem-na, desde que sem sapatos. Tateiam a arte. Um deles se deita no tapete, a luz forte da obra a iluminar seu sorriso amplo. Uma cena bonita, digna das obras lá expostas. 
Perto do museu, uma "escuela de pasteleros". Nas ruas, crianças saem da aula com seus jalecos brancos - me lembro de Mafalda. Me dou conta que descubro as vestimentas escolares portenhas só nesta terceira viagem porque as outras duas eu viera em época de férias. Ainda em San Telmo, já perto da Casa Rosada, adolescentes passam pintados, roupas rasgadas, parecem os calouros de universidade no Brasil - falta o escárnio com a população mais marginal, o "pedágio" nos sinais. Um rapaz me explica que são os ingressantes do colégio Nacional. Cartazes das eleições do Racing estão por toda parte. Em uma parede, uma pichação pede a igreja fora do Estado. Acho reivindicação não apenas válida como anacrônica - por outro lado, penso que essa ligação com a igreja católica impede uma ascensão ao poder de uma extrema-direita evangélica. Na avenida de Mayo, uma manifestação logo no início da tarde. "Barrios de pie" eu já conhecida das outras vindas. Há bandeiras do MST, Movimento Sin Trabajo. Desta feita nenhuma do PSTU. Em uma rua do centro me deparo com uma "librería y juguetería": a associação da brincadeira com a leitura talvez ajude a explicar um pouco a discrepância quanto à leitura entre a Argentina e o Brasil. Numa banca, uma revista chamada Pensadores traz na capa Getúlio Vargas. Uma mulher tenta enfiar seu cachorro rebelde dentro da sua bolsa. No Café Tortoni, turistas fazem fila para visitar o original transformado em pastiche. Numa esquina da Florida escuto uma banda que não me é estranha - é a Roman Jazz, que eu vira na praça da figueira (que não lembro o nome), em Floripa, e até comprara seu disco. Reparo na mudança de vestuário: ainda que não estejam chiques, não se compara ao camiseta regata - bermuda - chinelo ou descalços. Por falar em roupas, aqui a moda é mais marca esportiva do que californianas - pessoas com roupas destas grifes, em geral são brasileiras ou estadunidenses. E eu com minhas camisetas próprias (uma das funcionárias do albergue elogiou a minha da 3rd Line Buterfly). E sapato feminino rasteiro na Argentina tem pelo menos cinco centímetros. Vou ao parque Las Heras, ler um tanto mais de Los jardines secretos de Mogador (e beber de um chá pronto, mistura de várias ervas, de um amargor muito gostoso!). Uma garota passa vendendo livros usados - recuso e logo me arrependo, mas ela já está longe. Passa também uma garota vendendo incensos - e como tem incenso para vender aqui. Apesar de estar no meio do parque, longe de ruas, a poluição sonora me alcança - Buenos Aires me parece bem mais barulhenta que São Paulo. Crianças treinam futebol nos campos de grama sintética do parque. Outras apenas jogam futebol e se divertem, na grama natural de campos improvisados por entre as árvores. Certa hora dois cachorros enroscam os bigodes, para desespero de um dos donos - o do cachorro menor. No hay peligro, diz o outro. Uma garota lê Cortazar perto de mim. Não sei porque, me vem à memória a francesa que estava no mesmo albergue que eu, em Lisboa, e coincidiu de estarmos no mesmo ônibus para Madri. Ela chorava por ter de voltar à realidade, dizia que tinha passado momentos ótimos na capital lusitana. A tarde cai, tomo o rumo do albergue. Alcanço a Nove de Julho. Levo um susto quando um homem sai da caçamba de lixo. Um cachorro o espera fora, abanando o rabo na espera do dono. Soou uma cena muito Beckettiana - Fim de jogo. O realismo fantástico latino americano ganha os tons sombrios do teatro do absurdo. O sol se põe atrás do congresso.

Buenos Aires - São Paulo, 09 de dezembro de 2014.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre cobras piercings e o nada

Encontrei o livro numa dessas queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha que Cobras e piercings, da japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu. Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -, que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida, a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui, a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por... por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto (senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado, enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo -, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens, auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a fuga do nada que a atrai.


São Paulo, 08 de dezembro de 2014.

domingo, 7 de dezembro de 2014

K-popers no CCSP

Passando pelo Centro Cultural São Paulo ouço gritos histéricos vindos da sala Adoniran Barbosa. Dão a impressão de haver ou um astro pop a la Michael Jackson, Beatles, ou uma gincana de colégio muito empolgante e disputada. Na entrada da sala, um cartaz me diz que é algo nesse meio termo: "K-Pop Tournament", torneio de danças cover de bandas e cantores e cantoras pop da Coréia do Sul. Não sei muito detalhes, se é monopólio como a brasileira, ou olipólio, sei que Coréia do Sul possui uma forte indústria cultural, com novelas com ótimo nível técnico exportadas para os países vizinhos, e uma série de boys e girls bands e artistas solos que cantam um pop super redondo, com clipes e coreografias que impressionam pelo rigor - e, a exemplo de Nova Iorque, essa indústria cultural forte acaba por criar uma cena independente interessante. O CCSP é um lugar que reúne pré-adolescentes e adolescentes empolgados com bandas de k-pop: diariamente é possível ver grupos ensaiando, e aos finais de semana é impossível não vê-los. Por mais que considere as danças (e as músicas, via de regra) do estilo antes ginástica hiper-coreografada e tenha torcido o nariz quando escutei, certa feita, uma discussão ao meu lado em que três rapazes já acima dos vinte anos se diziam artistas por dançar k-pop, acho interessante se reunirem para dançar - desde que não exagerem no volume da música. Nutro a esperança desses jovens serem menos homofóbicos (há muitos gays, alguns que tenho visto lentamente se montarem para dançar como mulheres) e num futuro se dedicarem a uma dança mais que técnica e bonitinha, mas significante e causadora de tensões no público.
Enfim, à competição, que acompanhei brevemente, cinco músicas incompletas. Coreografias (as coletivas) muito sincronizadas, de precisão coreana, a sucessão entre os competidores praticamente sem pausas - tempo para o anúncio (impossível de ouvir por causa dos gritos) da próxima atração e já está a música rolando, os adolescentes pulando, a platéia gritando. Mais interessante que os dançarinos é o público, que não apenas canta junto (em coreano), como acompanha a coreografia, sentados, com gestos contidos. Isso para não falar nos gritos histéricos, de homens e mulheres, nos momentos oportunos: notei que as músicas possuem uma ou duas pausas, em instantes propícios para os gritos dos fãs. E não é torcida: é quase todo mundo gritando para todas as apresentações (o que me leva a perguntar por que fazer uma competição, e não apenas um dia de apresentações). Às vezes alguns cartazes, feitos de canetinhas e folha de caderno, são levantadas. Quem se apresenta segue impassível a tudo isso, concentrados na coreografia. Um casal (piá e guria), ao que tudo indica, vai além da coreografia oficial e se beija ao fim da apresentação - o público alucina. Eu dou risada, volto para casa, além de já me dar por satisfeito, tenho coisas na mochila pra guardar na geladeira. Me pergunto como não deve ser um show de um astro do k-pop, como anunciado em uma mesa perto da saída da sala. Acho graça, mas ao mesmo tempo minha jugular crítica me faz ter um quê de profundo incômodo com tudo isso.

São Paulo, 07 de dezembro de 2014.

Ps: uma coisa que admito ser muito legal, mesmo estando nessa lógica de mercadoria é a t-girls band (isto é, transexuais), Lady (레이디)
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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Praça San Martín

Caminho até o fim da calle Florida e acabo na praça San Martin. Abro o mapa, estudo que rota seguir: não tenho ponto de chegada. Um homem chega oferecendo ajuda, muito simpático. Diz que o senhor da estátua é Dom Pedro I. "O do Brasil", pergunto intrigado. Não, mas seria o equivalente argentino, ele explica. Ora pois, ou é ou não é. Ensina que para um lado é a Recoleta, para o outro, San Telmo, fala rapidamente de um ou dois pontos turísticos de cada lado. Não consigo me desvencilhar, explicar que não estou perdido, nem em dúvida do que visitar: apenas estudo um caminho qualquer a seguir, um caminho que tenha me chamado a atenção no mapa por seus cruzamentos, suas curvas, ou seus ângulos de noventa graus em cada esquina. Depois disso, me pede ajuda para não sei que instituição - está até com um jaleco verde com uma cruz vermelha e um crachá. Lembro da história do meu irmão em Berlin, lembro das histórias quotidianas dos pedintes da estação Tatuapé, que tiveram ontem a mesma tragédia de anteontem - a morte da filha, a internação da esposa -, contadas pela Misson (minha favorita, depois das muitas dos valorosos moradores de calçada (e antes que alguém enxergue, não há qualquer ironia aqui) era a ceguinha que enxergava). Resisto, ele insiste, cedo. Vasculho moedas, mas lembro que na Argentina moedas valem quase nada e dou uma nota de cinco - valor de uma viagem de metrô. Ele pede pelo menos uma de dez, recuso, explico que trouxe pouco dinheiro e troquei no oficial. Só faltou me chamar de burro por não ter trocado no "negro", mas me deixa em paz. Recordo de quando esperava Camila, a moreninha da balada, em 2012, no cinema na Augusta, e um pedinte me pediu uma ajuda; dei-lhe uma moeda que tinha no bolso, cinqüenta centavos, ele reclamou: pó, dá ao menos um real! Eu já estava p da vida aquele dia, e não fosse o encontro nos próximos minutos, teria pego a moeda de volta. Depois disso, nunca mais dei esmola, saio com meu "hoje não rola". Pedintes aqui, há vários, em geral com crianças juno, o que muito me entristece e preocupa - já comentei sobre isso em outra crônica. Ao meu lado se senta um senhor bem cinematográfico, garboso em seus cabelos brancos, sua begala, paletó e sapatos azul marinho, um lenço vermelho. Atrás de mim, um homem vomita novamente. Cansarei de escutar seus despejos gástricos dentro de outras duas ocorrências - o porre ontem foi grande. Dou um giro pela praça. As construções que a circundam se harmoniza, dialogam entre si, apesar de serem de épocas e estilos muito diferentes: é antagônico ao cada um por si e foda-se a cidade dos prédios em São Paulo - do Martinelli e do Copan aos últimos apartamentos de kitnetes lançados na República. Há o museu nacional de armas, mas desconfio que ficarei deprimido em visitá-lo, melhor caminhar a esmo. Buenos Aires tem suas altas torres, banais edifícios pós-modernos de vidro verde que dão um ar de não-lugar aos grandes centros urbanos. Em Palermo, alguns prédios de alto padrão - na avenida Libertador, mas também na Coronel Díaz - já recusam a convivência em seus térreos: recuos frontais ao invés de comércio - e porteiros para garantir a segurança. Eis, talvez, um dos pontos mais decadente que vi de Buenos Aires.

Buenos Aires - São Paulo, 03 de dezembro de 2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não vá ao Caminito, vá à Califórnia

Devia ser por causa do sono, saí do albergue com a idéia de ir até La Boca, ver se achava uma lembrança do tipo que minha mãe gosta. Idéia fraca: poderia até achar, mas seria a um preço abusivo. Sem contar que o Caminito não me empolga: da primeira vez achei lindo: eu tinha dezesseis anos, era um ingênuo de mundo, de cidades, de leituras. A segunda, com meu irmão, saí com a sensação de tudo ali ser muito falso, montado para turista fotografar e consumir (ou então, pra que turista?). Desta vez, nem passei por lá: depois de entrar em algumas lojas dos arredores (descobri que a moda lá, agora, é show de tango nos restaurantes), só para confirmar o que eu já sabia, acabei me enveredando por ruas que não interessam aos turistas - até uma forma de não perder a viagem. E fiz bem! Segui pela beira do rio, na direção contrária a Puerto Madero - caminhões, pavilhões, guindastes, quase ninguém, a água cheia de lixo. Não adentrei muito, cansado estava e torrando sob o sol do meio dia. Sem escolher a rua pelo nome, entrei na California - havia "centro de integração comunitária" na esquina. Mais à frente, me deparia com uma grande propaganda da eleição no time do Racing, e numa praça, além de dois carros velhos, veria um adesivo de time outro que o Boca Juniors, no posto policial: do Barcelona - só no caminito parece que o Boca Juniors é uma total unanimidade na Boca. Mas, por via das dúvidas, melhor não aparecer por lá com camisa do River, ainda mais depois de uma derrota.
La Boca tem um cheiro diferente dos demais bairros da cidade por qual passei - não sei defini-lo bem. Na ida, virei na rua Brasil, e não sei se por meta-crítica, meta-citação, meta-coincidência, as calçadas começaram a se parecer com as brasileiras. Interessante que mesmo sendo um bairro popular, de calçadas estreitas, as ruas são arborizadas. Ainda sobre as calçadas do bairro, lembro de terem me chamado a atenção em 2006, por possuírem um enorme desnível para a rua, ou mesmo para a calçada da construção ao lado, coisa de um metro. Uma antiga fábrica de "bizcochos y talleres" teve mais que sua fachada preservada (a exemplo do esqueleto do pátio dos bondes, em São Paulo), toda a parte da frente e de trás permanecem, ao que tudo indica, utilizadas, enquanto no meio levanta um prédio moderno, envidraçado. 
Na rua Califórnia, enfim, encontrei casas como a do Caminito, as placas de metal fazendo as vezes de parede. Em geral são amareladas ou esverdeadas, porém estão muito longe das cores vivas da rua pros turistas. Quando conseguem, os proprietários dessas casas as substituem por alvenaria - há algumas em que apenas o térreo foi modificado, a parte de cima segue antiga. Sem mudar a casa, instala-se ao menos um ar-condicionado. Consegui espiar dentro de algumas. Há as que são casas normais, há também as que escondem pequenas vilas, com uma ou duas casas ao fundo. Numa casa de alvenaria, estilo antigo, colada à calçada, uma família está à mesa, almoçando. Pouco depois, uma comedoria escura com mesas e cadeiras muito antigas - lembram da cadeira que creio ser a mais velha da casa dos meus pais, atualmente elevada ao posto de elevação para colher frutas, quando a senhora minha mãe não se inventa de pegar escada ou trepar nas árvores. Meu passeio pela Boca termina na praça Almirante Brown, dos dois carros muito antigos, um deles com teias de aranha crescendo nas janelas. Próximo a eles, grupos de trabalhadores em horário de descanso jogam futebol, seus capacetes como demarcações do gol.

Buenos Aires, 28 de novembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Fotografo com palavras

Da primeira vez que vim a Buenos Aires, o posto de informações turísticas da cidade me entregou um mapa com uns duzentos pontos de interesse - principalmente construções e monumentos. Circulei pela cidade na ânsia de ver o máximo que o mapa apontava - e tirava foto de boa parte desses pontos. Em 2006, quando vim com meu irmão para cá, íamos aos pontos turísticos, tirávamos fotos (menos do que em minha viagem anterior), e eu arriscava algumas crônicas. Além dos pontos específicos (Caminito, Recoleta, Casa Rosada, etc), já me despertava interesse o caminho - eu seguia bastante preso à arquitetura. Um casal argentino que conhecemos nos Bosques Petrificados até tirou sarro da nossa cara, dizendo que fazíamos trekking urbano, quando contamos que fomos da Boca a Palermo à pé (por sinal, foi esse casal que nos sugeriu El Chaltén, parte mais legal da nossa viagem). 
Nesta minha viagem atual, pontos específicos são poucos, um ou dois por dia, e a parte mais importante é o caminho. Me prendo à arquitetura, mas também às questões urbanas, às pessoas, aos personagens anônimos do dia-a-dia. Quanto a monumentos, me tocou o monumento a Roca (que eu achei ser a Bolívar), que me surgiu com ares de De Chirico, mas não por ele, e sim pela evocação do pintor que ele e a cidade ao redor, na solidão de um fim de tarde de domingo, me trouxeram. Vendas, mercados, transeuntes me interessam mais. E volto quase a ser o turista desesperado por fotos de quinze anos atrás - a diferença é que agora fotografo com palavras, minha caderneta sempre à mão. Dizia Dominique Wolton que a fotografia está no olhar, não no dedo. Já eu dizia que toda escrita (escrita para além de palavras no papel ou no computador) começa pelo olhar. Agora penso o quanto do olhar não começa na escrita, em alguma narrativa que queremos contar - para nós e para os outros. Tiramos fotos como lembrança (pelo menos na época do filme se dizia isso), porém quantas vezes pegamos os albuns para rever as fotos, sem a companhia de alguém? Acontece, sim, mas vale perder todo esse tempo para guardar algo que poucas vezes vamos nos interessar em relembrar? Será que o mesmo vale para esta série de crônicas, ou ela serve para contar aos outros que estou viajando - assim como quem tira selfie de si em todo lugar? As crônicas de 2006, pensei em relê-las antes de vir. Não o fiz. A única vez que reli algumas foi quando mostrei para uma futura-ex-namorada. Mas me parece que a viagem perde algo se não tenho com quem compartilhar - não sei se a materialidade, o sentido, ou o quê. Na viagem com meu irmão a urgência de fotos e textos era menor, talvez porque o comentário soltávamos na hora. Ou talvez todas estas crônicas sejam força do hábito, uma forma de apreender o que se passa ao meu redor, de dar conta da lógica do choque imposta pelas metrópoles, o olhar ávidospor entender dinâmicas estranhas, reparar em detalhes insignificantes num primeiro momento, e a palavra para não me perder em meio a tantas informações. Enfim termino estes meus questionamentos com o óbvio: escrevo porque gosto, ainda mais diante desse deslumbramento que me causa Buenos Aires.

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014

Enfim portenhos em Buenos Aires

Enfim Buenos Aires em dia útil - termo que não me agrada, pois fim de semana está longe de ser inútil. Buzinas, carros, pessoas, trânsito. Nos calçadões há anúncios outros que de câmbio. Não sei se houve uma faxina social, me chamou a atenção praticamente não ter mais gente anunciando chicas dos inferninhos locais - me deparei com apenas um. Dólar rende mais que sexo? Também é curioso que, ao menos no centro expandido, não haja vendedores de dvds piratas - encontrei um na avenida Callao, apenas -, em compensação de adaptadores de tomadas... mostra da força do turismo na cidade. Colegiais vestidas de colegiais - saia plissada, meião e sapato. E eu achava que isso era coisa só de pornô japonês. Duas crianças jogam futebol com uma caixa grande na Lavalle. Por sinal, chama a atenção que boa parte dos pedintes do centro estejam acompanhados de crianças - noto isso com bem menos freqüência no Brasil, não sei se resultado das contrapartidas exigidas pelo Bolsa Família, ou da ação do conselho tutelar. Páro numa praça da Recoleta, retomo a leitura de "Los jardines secretos de Morgador". Cinco crianças brincam de esconde-esconde. Devem ter seus sete, oito anos. As mães, uma senhora em cadeiras de rodas e sua acompanhante se divertem ao assistir à brincadeira. Me lembram Mafalda (que sempre imaginei morar por estas quebradas, ao invés de San Telmo, como ficou consagrado, até por uma estátua dela), me lembram também do quanto praça, infância, brincadeiras antigas parecem estar ausentes de São Paulo e outras grandes e médias cidades. Mesmo as pequenas. Quando eu era criança, era comum brincar na rua, jogando futebol, em corrida de skate (sentados), construindo barragens de folhas em dias de chuva, jogando pinhas para os carros atropelarem, andando de bicicleta, riscando o asfalto com gesso... isso que eu era muito do video game. Atualmente, em minhas voltas pra casa, acho o máximo quando vejo um grupo de crianças andando juntas. E não adianta argumentar que estou num bairro rico de Buenos Aires, crianças em situação equivalente em São Paulo estariam ou na área de lazer do prédio, ou no shopping - porque a rua é perigosa, porque o diferente é perigoso e invejoso da nossa superioridade, porque o Outro é, de antemão, uma ameaça. Não adiantou o crescimento econômico e a diminuição das desigualdades da última década, seguimos pobres - de espírito. Sinto frio na sombra, calor no sol, desisto da leitura. Deixo o banco, a bituca de cigarro, a tampa de cerveja e os três pedaços de fio - um azul, um branco e um verde - que jaziam aos meus pés. Buenos Aires é muito mal servida de lixeiras. Cafés e bares aqui costumam ter jornais para os clientes. Páro numa cafeteria que oferece várias opções de café do mundo. No menu, avaliação de corpo, acidez e sabor; o preço é próximo de café em qualquer lugar, na faixa de trinta pesos. Tomo um indonésio, único nota cinco no quesito corpo. Acompanho um tempo o movimento na avenida. Atrás de mim, o garçom acompanha City e Bayern (descubro que perdi de assistir a dois gols no fim do jogo). Passa pela rua uma criança acompanhada por seu pai - deve ter a mesma idade das da praça. O garoto volta da escola, traz na cabeça uma coroa de papel e chora - um pequeno déspota de uma época que todo não é uma recusa ao ser? Talvez o pai não tenha aceitado parar em algum rede de fast-food: aqui os jovens, ao invés de se aglomerarem nos shoppings, parecem preferir redes internacionais de alimentação (sic). Por falar em redes internacionais, Armazém Dom Manolo muito provavelmente seria coisa do passado hoje: lembro de ter passado por apenas três mercadinhos que não eram ou de uma grande rede, ou de chineses - em um destes, mostra da ascensão social, atrás da vitrine em chinês, funcionários andinos. Mesmo os quioscos - que agora se denominam "drugstore", apesar de as únicas drogas vendidas serem alcóol e nicotina -, grandes redes dão a impressão de serem maioria. Buenos Aires segue com muitas livrarias e poucas academias - e os argentinos parecem ser mais magros que os brasileiros. Ler emagrece? Passo pela primeira vez por um restaurante japonês, na verdade demi-japonês, como também é comum no Brasil; a diferença é que aqui é um restaurante peruano-japonês. Faz sentido. E próximo ao Congresso, o Bar Revolucionário, talvez uma versão portenha para o Ecla. Diferentemente do esquerdista brasileiro, o bar vende livros e promove seminários - no caso atual, sobre periodismo y midia -; não sei se tocam tango. Pouco abaixo, outro bar no estilo, o MU, onde está na vitrine o livro "Brasil, ¿un nuevo imperialismo?". No fim do dia, me deparo com um protesto, que saíra do congresso em direção à Casa Rosada - uma cena banal para Buenos Aires, onde a rua, além de local de convivência é também lugar político. Banal não sei se é a participação brasileira nesses protestos. Vejo bandeiras do MST. Em alguns cartazes leio "izquierda unida", em outros, "esquerda unida", em meio a esses cartazes, bandeiras do PSTU - mas não é pela união das esquerdas?

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Um mergulho na avenida General Las Heras

Receoso de algum problema com a retirada do ingresso para o festival (o local que optei por retirá-lo estava fechado devido ao feriado), saio cedo do albuergue, em direção da praça Itália. Pelo que me lembro, gostaria de ter ido até lá em minhas outras passagens, mas algo me desviava do alvo. Desta vez cheguei, e consegui a entrada sem problema (soubesse e teria ido à trés da tarde, que já desceria direto para o show). No metrô vejo uma figura digna de ser protagonista do Portas dos Fundos como Jesus: um homem barbas e cabelos longos, sandália e túnica. Ingresso em mãos volto caminhando para o albergue: Buenos Aires é um convite a um sovina como eu economizar no transporte e caminhar pelas suas calçadas. Buenos Aires também tem a bela idéia de as ruas não mudarem de nome, só porque vereadores de turno querem homenagear alguém com um novo trecho. Saio do local de retirada e dou de cara com a avenida General Las Heras! De um lado, o jardim zoológico, do outro, o jardim botânico, e um quilometro adiante, duas viagens no tempo. Antes de chegar ao conhecido trecho, desvio até um shopping, para necessidades fisiológicas. Ao adentrá-lo, lembro do comentário de meu irmão: shopping é tudo igual? Um não-lugar é sempre um não-lugar, e ali me sobra uma lembrança pelo acaso de não sermos bem adequados ao ambiente. Não sei se foi nesse shopping que meu irmão se empolgou quando começou a tocar Beck, My summer girl - creio que sim, dada a seleção de músicas do pouco tempo que fiquei. Volto à Gral Las Heras. O parque parece menos inclinado do que tinha em mente, o restaurante do garçom que fazia caretas por termos pronunciado errado o prato, em 2006, mudou de nome, e o prédio onde fiquei, século passado, descubro agora, era de esquina. Lembro de, em 1999, ter aceitado o banho oferecido pelo dono apenas por não saber - assim como o aceitar descansar um pouco, eu que não estava cansado, apenas nervoso. Se não me errei, a cafeteria que fui depois desse meu descanso, Pilar, Sergio (era Sergio o nome dele?) e a mãe de Pilar, virou uma rede americana. Lembro de ter ficado horrorizado com o preço do suco de laranja - quatro pesos - e da mãe de Pilar ter dito que eu tinha mãos de pianista - ao que respondi que realmente tocava piano. Um casal de chineses passa por mim falando em castelhano com sotaque chinês (e no albergue, agora, ao meu lado um grupo de australianos fala um inglês difícil de acompanhar, do outro, um grupo fala não sei que língua, parecia francês no início, agora parece árabe, ou um alemão muito estranho. Um canadense se aproxima, pergunta se sou alemão). Passo pela faculdade de engenharia da UBA. Me lembro de um prédio pesado, escuro - talvez confundisse com a igreja há pouco deixada para trás? De qualquer modo não lembrava de um prédio tão imponente. Foi ali perto que numa das minhas primeiras andanças pelo bairro, no início da noite, um grupo de crianças, treze anos, por aí, perguntou minha idade, para me vender uma garrafa de uísque, e eu passei por eles com medo - como pode tanto medo? Acho estranho, quando passei por ali, oito anos atrás, algumas lembranças vieram, sim, mas não me afetaram desse modo. Volto ao albergue, me preparar para o show, tentar me aliviar de algo que me perturba desse passeio.

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014

Três bandas bastam

Três bandas bastam para fazer um bom festival - talvez não para trazer bons lucros. Três bons shows me parece um limite para todas serem bem aproveitadas. Radiohead, Kraftwerk e Los Hermanos, em 2010, por exemplo. Juana Molina, Yann Tiersen e Mogwai, no Music Wins, em 2014. O festival trazia outras bandas, que serviram só para cansar. Sim, havia quem gostasse de Pond, Tame Impala ou Erlend Øye and the Rainbows, mas eram públicos muito distintos.
Cheguei à Costanera Norte quando Pond tocava. Não me agradou, mas circular pela área, reparar no público, foi intetessante. Notei que uma das modas indie em festival argentino, ao menos para las chicas, é galocha ou coturno - muito práticas em caso de chuva e lama. Também que elas mentem na altura, ao usar all-star plataforma, por exemplo. Notei ainda - mas isso foi durante o show da Juana Molina - que argentinos são baixos, e ter um metro e noventa de altura te torna um dos mais altos da platéia, visão livre para o palco. Ponto negativo: você estar na direção da câmera e identificar sem sombra de dúvidas sua careca - e isso (a careca) é algo que me incomoda muito. Enfim, de volta ao festival. Após Pond, achei que viria Juana Molina, mas veio o tal de Øye, chatíssimo - de legal, só que parecia o Bill Gates recém saído da faculdade tentando ser pop. Oquei, eu estava entretido vendo las muchas chicas guapas - em especial uma bochechudinha nariguda, sardenta de olhos verde acizentados (sou daltônico, antes que me perguntem como não soube identificar a cor dos olhos da garota), encantadoramente apaixonante. Mas mesmo esse entretenimento passa a ser cansativo quando a banda não ajuda (porque também não vou ficar olhando fixamente, que seria deselegante, para dizer o mínimo, apesar da vontade de não tirar os olhos da referida guria). A banda seguinte era tão chata quanto. Anunciou uma nova música e tocou mais um The Smiths piorado. Segui a indicação de dois vizinhos de sombra, que saíram às pressas assistir a D.I.E.T.R.I.C.H., no palco para bandas menores. Banda interessante, um eletrônico com batidas meio indígenas, presença de palco marcante, principalmente por estarem todos com os rostros cobertos. Ainda assim, começava a me arrepender do festival.
Foi quando vieram as três apresentações que me interessavam, para tirar qualquer pensamento que soasse um "será?". Molina entrou no lugar de Beirut, e ornou muito bem com as duas seguintes. Conhecia apenas um disco e algumas músicas dela (e gostava), e vê-la trabalhando o som, com loops e distorções - numa delas com inusitadas palmas do público a se repetir com sua voz - foi muito interessante. Seu show acontecendo com o cair da tarde também ornou muito bem - deu um toque que as luzes de palco não dariam. Yann Tiersen fez outro bom show, tocou uma música da trilha da Amelie Poulain, algumas do disco novo, Infinity, e poucas do anterior, Dust Lane, meu favorito. A conclusão a que cheguei foi que o francês sempre faz um prelúdio um tanto etéreo antes de começar a música de verdade. Da estética de palco, luzes de descarga fazendo a frente - muitas vezes como únicas luzes, uma para cada músico - davam um clima interessante. Duro era o moving light (é o que dá ler crônica de estudante de iluminação) passando pela cara do público o tempo todo, cegando-o. Era bonito o efeito, visto pelo telão, daquelas silhuetas vermelhas de cabeças - não era legal a luz no seu rosto (na verdade, esse é um problema de ser alto em shows argentinos, quando me abaixei à altura média, a luz não incomodava tanto).
Enfim, o grande show da noite, para mim: Mogwai. O quinteto de Glasgow, assim como o de Oxford, superam o quarteto de Liverpool, na minha opinião - desconfio que polêmica, mas a mais acertada. O que me chama a atenção é como parece que a banda surgiu pronta: eles tocam músicas do primeiro ao último disco, percebe-se algumas diferenças, mas as antigas não soam datadas (diferentemente de Radiohead, por exemplo, em que Pablo Honey é praticamente dispensável) nem repetitivas. A forma como eles trabalham tensões e sua resolução (ou fim brusco) também impressiona: a música parece ocupar todo o espaço, mesmo em pianíssimos como New Paths to helicon pt 1 ou Mogwai Fear Satan. Por sinal, emendar 2 rights make 1 wrong com Fear Satan dava para ser o fecho do show, se eles não fizessem questão de encerrar com tudo, com Batcat (a exemplo do show no Sónar, em 2012) - até eu fui pra frente (quero dizer, mais para frente), fazer parte da roda de aloprados e alopradas que pulavam ensandecidos. Uma coisa muito legal de assistir a show na Argentina é a tradição de canto das torcidas, e poder acompanhar Rano Pano fazendo ôôô-ôôô-ô-ô-ôô e por aí vai (show do Iron Maiden deve ser um orgasmo geral). Talvez por ser festival, sem muito tempo para montar o palco, talvez por ser na América Latina, talvez porque seja assim mesmo, careceu um trabalho um pouco melhor com as luzes - algo que o show pede. Contras, fumaça e estrobo, por mim, poderiam ser a base.
Do festival, positiva a localização: perto do centro, longe de residências. Os aviões que partiam do Aeroparque, bem ao lado, até poderiam compor bem o cenário, não fosse o barulho (Juana Molina ora comentou o estranhamento de tantos aviões - ninguém deve tê-la avisado). Achei interessante o esquema de só ser autorizada a venda e consumo de cerveja em espaços reservados - em tese para restringir o consumo entre menores, mas só em tese. O negativo para o evento (não para o público) é que vende menos cerveja - ou os argentinos são menos desesperados para encher a cara. Péssima foi a organização: não havia panfleto, cartaz, aviso nos telões, nada, sobre que banda se apresentaria qual horas - fui pra frente do Øye esperando Molina, por exemplo. Houve também atrasos nos shows de Yann Tiersen e Mogwai (apesar de ter sido divertido ver os dois contra-regras como que diaputando quem levantava mais o público com Black Sabbath). E das coisas mais chatas, a passagem de som de um palco atrapalhar o show do outro, a ponto do público ter que pedir silêncio. Preciso admitir, em organização, o Brasil está bem melhor. Mas nenhum desses poréns fez eu me perguntar se valeu a pena ir para a Argentina encarar um festival - depois de já ter me dito várias vezes nunca mais ir a um. 

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014.

De madrugada

Findo o show da Mogwai, queria mais voltar pro albergue: os escoceses foram a cereja do meu bolo que começara com Juana Molina e Yann Tiersen. Fiquei para conhecer a Tame Impala, ver se valia ser a grande atração da noite: duas músicas já me cansaram (na verdade eu já estava cansado depois de aloprar no Mogwai, aprendi a freqüentar festivais de música como se freqüenta museu). Conforme a atendente do albergue, o táxi me cobraria cerca de duzentos pesos para me entregar no meu local de pouso. Fui com pouco mais que isso, e consumi metade em uma água, uma cerveja (que abandonei pela metade, porque havia uma área resteita para consumo etílico, de modo que eu não podia esquentá-la enquanto via um show) e um café. Me restou as alternativas de rachar um táxi (mas com quem? Até pedi a umas gurias que iam para endereço próximo ao meu, mas recusaram dividir a corrida em quatro, ao invés de três) ou voltar a pé. Optei pela segunda, mas com uma grande dose de receio: teria que passar por uma passarela onde na ida havia um morador de rua (uma figura que me tocou bastante), e várias praças. No Brasil, pelo senso comum (que tento quebrar, mas até que isso aconteça, também sigo), seria loucura. Para não me arriscar tanto, esperei até perto do fim do show, quando um número considerável saía - ainda muito longe da multidão que estava no local. Fui atrás de um grupo, poderia ser que estivessem indo para um ônibus de excursão. Não iam. Por sorte, pensei equivocdamente. Passei pelo mendigo, que dormia. A partir de então foi por ele que temi: isolado, dormindo, ao fim de um festival cheio de adolescentes, no Brasil, imagino, não seria difícil algum grupo resolver "zuar" com ele (talvez tenha acontecido aqui também, não creio). Vinham agora os parques e praças. No observatório, quase meia noite, vi flashes: uma família, com crianças pequenas, fotografava os patos dormindo. Isso me deixou bastante perplexo. Nos demais parque pelos quais passei (do outro lado da rua) estavam desertos, mas deles não exalava nenhuma sensação de perigo. Me perguntei se seria possível caminhar com tamanha tranqüilidade meia noite em São Paulo - nunca fui assaltado a sério, mas evito dar qualquer bandeira. Ok, estava eu num bairro rico, mas em São Paulo, amiga comentou que quando precisa voltar pra casa de madrugada, vai pela avenida Angélica, e já passou alguns apuros. Em ruas secundárias, quioques abertos funcionam atrás das grades do estabelecimento - nem tudo são flores, mesmo na parte "in" do sistema argentino de exclusão social, apesar de várias floriculturas abertas na Recoleta. Citei por alto na primeira série destas crônicas da violência simbólica de São Paulo - tinha em mente os apartamentos com seus muitos seguranças, o CCSP se limpando de povo, a polícia militar pedindo documento de pobre com arma na mão, o mendigo que humilha o andino, não me imaginava tão alvo de violências do tipo. Ao caminhar sozinho na madrugada portenha, sinto o quanto também sou vítima da violência simbólica paulistana - ainda que não faça nenhum sentido culpar aqueles que diretamente me amedrontam.

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

Cortázar, De Chirico e música indiana

Achei que o cano de esgoto que passa rente à minha cama e faz um barulho considerável fosse me incomodar mais - menos mal que estava equivocado. Após um café da manhã bom para os padrões de albergue (e o melhor, liberado), parti para minha pernada com a missão de achar uma casa de câmbio - nem que fosse legal, pagando 75% do que pagam no "negro". Eu tinha trinta e dois pesos na carteira, suficiente para comprar duas empanadas, e nada mais. Me encaminhei para a rodoviária, onde esperava encontrar um casa de câmbio aberta. Não precisava ter me preocupado tanto: alguma dúvida que o negro funcionaria durante o domingo numa região tomada por turistas? Por sinal, o microcentro de Buenos Aires no domingo me lembra um pouco Florença, na ocupação por turistas e por pessoas que trabalham em função deles. Saramago, em seu "Manual de caligrafia e escrita" dizia que Florença não pertencia mais aos florentinos - isso, imagino, não acontece com a capital argentina (tirarei a prova ao longo desta semana). De qualquer forma, melhor um centro vivo a um semi abandonado, como a região da Sé, em São Paulo. Mais calmo, fui para a feira de San Telmo. Buscava uma cuia nova e um souvenir para minha mãe. Encontrei Rayuela, do Cortázar. Me pareceu um pouco caro, resolvi pesquisar mais, só achei mais caros e não encontrei novamente o de noventa pesos. Paciência, ou melhor, pressa, porque o tempo passava e eu havia me programado assistir a um show de jazz de um japonês no meio da tarde, e a uma apresentação de dança contempôranea no início da noite (abri uma exceção à minha regra de não emendar atividades culturais). Bilhetes do metrô em mãos, descubro que a linha até esses eventos estava fechada. Desisto e vou a um concerto de música indiana, no centro cultural Borges, nas Galeiras Pacífico. O público argentino, preciso dizer, compete em pé de igualdade com o brasileiro: fotos, celulares tocando, papeis de bala, conversas, crianças chorando. A apresentação foi muito boa, apesar disso, e saí querendo tocar cítara ou aquela caixinha sanfona. Afora o público da apresentação, três coisas me chamam a atenção no shopping: brasileiros tirando foto em frente a uma rede internacional de café (ruim, mas admito que são bons em criar ambiente em que você não se sente pressionado a consumir ou sair), dois homens negociando no negro dentro do banheiro (no Brasil, até onde me consta, banheiro, nas suas hetrodoxias, serve no máximo para "banheirão"), e a árvore de natal fotografada pelos turistas que, ao invés de uma mensagem de feliz natal traz o nome do shopping: não há sequer a tentativa de disfarce de auto-promoção, é a apropriação crua do símbolo, Armazém Don Manolo vende baratíssimo, já anunciava o amigo da Mafalda. Sem meu programa inicial, vou atrás de um livro e uma praça. Encontro um livro intitulado "El placer sexual en el matrimonio" e penso com meus botões: um livro desse é um atestado de tendência ao fracasso do tal matrimônio. Outro livro que vejo é "El jugador", do Dostoievski. Lembro quando o li, aos dezoito anos, por aí, não ter entendido: porque o protagonista se afunda sabendo que vai se afundar? Uma doutoranda da psico, Cris, quem me explicou qe era isso mesmo, meu não entendimento era um entendimento. Acabo comprando "Los jardines secretos de Mogador", de Alberto Ruy Sánchez. Encontrar uma praça para lê-lo não foi difícil, e o livro estava bom quando me decido voltar à feira de San Telmo, comprar a tal cuia nova - a minha atual, ganha há quase quinze anos do meu amigo Celestino, ressente alguns tombos esses anos todos. Passo pelo Obelisco, um enorme grupo de adolescentes, entre doze e quinze anos, está lá, bebendo refrigerante e paquerando (admito estranhamentompor não estarem bebendo algo alcoólico e fumando). Um grupinho comemora o beijo entre dois deles - entendo essa reação, eu mesmo tenho vontade de gritar gol nessas horas, mas não faço para não assustar a guria. Compro a cuia, e resolvo percorrer novamente a feira - passo por uma capoeira em adagio e por um jazz meio latino. Eu que já havia notado com surpresa que não trombara com nenhum conhecido, tendo percorrido as feiras da Recoleta e de San Telmo, cruzo com um conhecido, que ficou um tempo hospedado na casa da minha amiga Misson - ele não me enxerga. Meia quadra depois, encontro a barraca com o Rayuela - livro favorito da Misson -, e ele segue esperando comprador. Outra daquelas coincidências que tratei em outra série de crônicas. Tomo o caminho de volta, um monumento (creio que a Bolívar, pela estação de metrô junto a ele) de um herói sob um cavalo desponta com a claridade do pôr do sol de contra-luz. As paredes de uma igreja de um lado, prédios do outro, enquadram a figura e parece que vejo um quadro de De Chirico. Chego ao albergue com uma agradável sensação de estar em casa.

Buenos Aires, 23 de novembro de 2014.

sábado, 22 de novembro de 2014

Entre lembranças e coisas caras



São Paulo amanhece sob garoa, um convite para ficar em casa, bebendo chimarrão e lendo, quem sabe conversando. No ônibus Tatuapé-Guarulhos, o motorista desfia alguns preconceitos moralistas paulistanos. Chego ao aeroporto junto com a delegação do Paraná Clube - não vejo o Ricardinho. No avião, seguro o sono para poder ver a decolagem: ver a cidade viva diminuindo logo abaixo sempre me emociona - identifico o Museu do Ipiranga em meio a selva de pedra.
Mi Buenos Aires querida! Lembro de ter ouvido isso de um passageiro quando nos aproximamos, no vôo da TransBrasil, em 1999. Eu olhava pela janela, apreensivo e meio arrependido: vai saber o que poderia acontecer comigo na cidade grande? A capital portenha, ao menos no trecho que o avião percorre - claramente de classe alta - tem árvores, nas casas e nas ruas, além de piscina em cada quintal. Desço no Aeroparque, o responsável pela sua administração é o Aeropuertos Argentina 2000 - dá a sensação de modernidade ultrapassada, quando 2000 era o futuro. Vou caminhando até o albergue, pouco depois do obelisco. Logo na saída, vejo barcos, veleiros (meus conhecimentos náuticos não me permitem discriminar com propriedade) no rio da Prata e várias pessoas pescando - na beira do rio há banquetas de cimento com suporte para a vara. Eis aí registros que eu não possuía das minhas vindas anteriores. Há também pessoas ocupando a orla, assim como adiante haverá muitas ocupando as praças, e demoro para visualizar o primeiro conjunto de mate rodando os amigos que desfrutam a tarde de sábado na cidade.
Pelo que se noticia no Brasil, imaginava uma cidade decadente, ao contrário, sou obrigado a desviar de obras de melhoria urbana. Em certa altura, tenho a impressão de reconhecer o lugar. Viro à direita e passo defronte um parque, pouco depois... Sim! Foi ali que um pastor alemão e um doberman vieram correndo na minha direção (e da amiga que se escondeu atrás de mim). Não mordem, avisou o dono pouco depois, passando de bicicleta. Veio tarde o aviso, já tínhamos pulado a grade de proteção e eu estava com o cóccix doendo - ou, como costumo simplificar, o dia em que quase quebrei o cu. De diferente, o parque com grades e moradores de rua sob a ponte do trem - Buenos Aires a cada visita ganha mais ares de América Latina. Decadência eu senti ao entrar no shopping, ali perto - shopping onde eu e meu irmão compramos bananas e saímos chocando a comunidade da Recoleta por comê-las em público e sem pudor. Porta de entrada quebrada, escadas rolantes não sei se sujas de graxa ou de ferrugem, piso antigo que, fosse no Brasil, teria sido trocado. Por um instante achei que o que sobrara do shopping fora apenas o mercado, mas não: segue firme e forte. Ali minha segunda grande decepção do dia: empolgado com o peso fraco, planejava torrar um grana, principalmente em livros, ao dividir tudo por três (e não por cinco, como quando fui a Bernardo de Irigoyen, durante a copa). Descobri que após essa divisão eu me deparia com preços de São Paulo, ou mais caros! Entre seis e oito reais um café, por exemplo. Passo por Recoleta e Palermo, apesar dos pesares, a cidade insiste no seu ar europeu. Após mais de duas horas de caminhada, chego ao albergue. Busco na internet dança contemporânea e descubro que perdi o horário.

Buenos Aires, 22 de novembro de 2014

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Buenos Aires Paradiso



Faz muito tempo que assisti ao filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Tanto tempo faz que não sei se as imagens que recordo do filme são realmente dele, ou são de minhas vivências desde então, confundidas nos confusos cafundós da minha memória. Se não me equivoco, a viagem do protagonista à cidade natal, para o enterro do antigo funcionário responsável pelas projeções do cinema local, é mais do que uma viagem no espaço: se dá antes no tempo. E na cidade, ele ainda pode assistir à demolição do seu passado, o cinema Paradiso.
É com a impressão de que farei uma viagem no tempo mais que no espaço que arrumei a mala para a semana que passarei em Buenos Aires.
Fui a primeira vez à cidade em mil novecentos e noventa e nove, no ápice da crise pós fim do plano Real, dólar a dois e pouco para um, peso a um para um. A Argentina ainda era modelo de sucesso para Mirians Leitões da vida. Eu era um adolescente com a cara cheia de espinhas, aparelho nos dentes e vasta cabeleira a me preencher a cabeça. Era minha primeira viagem para o exterior e Buenos Aires não era exatamente meu desejo: planejara de início a Escócia (e olha que na época eu não conhecia Mogwai e Belle and Sebastian), mudara a rota para Brisbane, Austrália, e acabara não saindo do cone sul da América do Sul. Havia um pouco de decepção, é certo, que foi superada pelo encanto portenho: eu, um caipira de Pato Branco, que havia ido três ou quatro vezes a São Paulo e morria de medo da cidade grande (e da pequena também), pude descobrir o prazer de flanar anônimo e a esmo. Por três semanas bati perna pelo centro expandido e alguns locais mais distantes (como a San Isidro da guia do curso de espanhol, Mariana), tirando fotos feito um turista japonês. Ao voltar ao Brasil, Buenos Aires se tornara minha Pasárgada - ainda que eu não fosse amigo do rei.
Voltei à cidade em dois mil e seis, quando meu irmão ganhou de aniversário uma viagem de mochilão até a Patagônia e eu fui junto como guia e intérprete - era também a primeira viagem dele ao exterior (Ciudad del Este, Puerto Iguazu e Bernardo de Irigoyen não contam). Abatida pela crise, a cidade ganhava ar de América do Sul, naquilo que, infelizmente, há de negativo no subcontinente: pedintes nas ruas, crianças cheirando cola, prostitutas se oferecendo a turistas. Apesar dos pesares (que, sete anos antes, não eram inexistentes, mas permaneciam longe das vistas dos turistas, do lado de lá da ponte da Boca), Buenos Aires seguia como minha Pasárgada: já visitara cidades no velho mundo, como Barcelona e Lisboa, que me encantaram também, porém não tanto.
E agora, me pergunto enquanto soco cinco camisetas, uma toalha e um chinelo na mochila, que será dessa viagem? Que 'eu' encontrarei lá, perdido na avenida General Las Heras, a andar e andar pela cidade? Há quase três anos Buenos Aires perdeu o posto de Pasárgada: desde que me mudei para São Paulo passei a amar esta cidade insana, de violência simbólica intensa, e não tenho vontade de morar em outro lugar - ao menos dentre as cidades que já passei: guardo em algum canto vontade de morar em uma Nova Iorque ou Tóquio imaginada de minhas leituras. Há um receio nesse reecontro, reconheço, um medo de descobrir algo que perdi e não notara. Assim mesmo deixo tudo preparado para não perder o vôo.

São Paulo, 21 de novembro de 2014

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cria cuervos (sobre a expulsão do repórter do CQC de uma manifestação)

Assisto ao vídeo da expulsão do repórter do CQC da manifestação contra o PT e a Dilma, e a favor da ditadura militar, dia quinze de novembro, na Avenida Paulista. O manifestante que gravava a cena tece comentários ao fim da ação anti-mídia: "achei é que foi pouco". E foi mesmo. Não que merecesse mais - ou mesmo isso -, mas para quem viu o cortejo das esquerdas na última manifestação chamada pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013, atacadas verbal e fisicamente por hordas de extremistas, achou a tal gritaria dos viúvos e das viúvas da ditadura nível iniciante: uns gritos, dedos em riste e a expulsão, sem ameaça séria ao repórter, que sequer precisou da ação dos policiais (que estavam do lado!) para conter o magote histérico. 
Como não sou jornalista não sou afetado pelo corporativismo (como atinge mesmo a excelentes nomes, como Paulo Nogueira), e tento evitar dois pesos duas medidas: por isso não condeno a ação contra o humorista. Já vi em greve da Unicamp, repórter da Folha de São Paulo tirar foto de papéis de divulgação publicitária, atirados por alunos numa ocupação da reitoria, para noticiar a perda de documentos importantes da instituição: se for para noticiar mentira (falo de fatos falsos, não se trata sequer de uma visão parcial), defendo que movimentos barrem a imprensa. Que a imprensa não se satisfaça com esse tratamento (por mais que muitas vezes mereça), acho do direito dela, e faz todo sentido não acatar cerceamentos - apesar de quando a polícia militar a impede de trabalhar, como no cerco aos manifestantes no hotel Linson, na Augusta, a Grande Imprensa no máximo solta uma nota de rodapé de pesar.
No caso dos manifestantes anti-PT e pró-militares de sábado, vale lembrar, antes de tudo, que o tal repórter é, antes de mais nada, um humorista, e o programa do qual participa tem como um dos seus expedientes principais, avacalhar com aquilo que estão acompanhando (eu ia dizer ironizar, mas para usar ironia é preciso um pouco de sofisticação intelectual e educação, algo que Marcelo Tas e seus pupilos, se possuem, não gostam de usar). Por mais boçais que sejam - talvez justo por isso -, os manifestantes na Paulista querem ser levados a sérios: o que esperavam que os manifestantes fizessem com quem chega para avacalhar em rede nacional com seu protesto? Que o receba com pompas de ser iluminado, só porque tem uma credencial de jornalista (se é que tem) e é acompanhando por um câmera? A situação é um pouco diferente no caso do repórter do Diário do Centro do Mundo, que cobria com intuito sério a manifestação - porém aqui trago o exemplo que vivi na Unicamp: se os manifestantes achavam que ele noticiaria inverdades, deveriam deixá-lo atuar, só porque jornalista se crê intocável? Jornalismo é uma profissão de risco, a depender de que linha o jornalista decidir seguir. Ser impedido de exercer seu trabalho por parte de um grupo de pessoas é um desses riscos, e isso não significa, necessariamente, cercear a liberdade de expressão - pode vir a ser, por exemplo, num caso de ameaças prévias ou agressões sistemáticas.
Aqui concordo, ainda que por um caminho diferente, com a análise de Paulo Nogueira, do DCM: a imprensa está criando seus próprios corvos. Pela sua incitação ao ódio, mas também pelo uso sistemático da mentira, ou da "desinformação", como preferem os mais pudicos. A recusa em contribuir, ou mesmo compactuar, com a imprensa se dá porque a população tem percebido - ainda que inconscientemente - que a imprensa não está ali para relatar os fatos, e sim para distorcê-los ao sabor dos seus interesses. E isso traz uma questão muito mais assustadora do que expulsão de jornalistas por extremistas: uma questão que atinge a população média, em tese longe de extremismos. Tratarei em uma próxima crônica.

São Paulo, 20 de novembro de 2014.

domingo, 16 de novembro de 2014

Abraçaço [memórias feitas de saudades]

Eu escrevia sobre política. Citava Comte-Sponville, Rancière, Rawls, Nelson Rodrigues - você talvez me chamasse de academicista, só para me provocar, e escutaria toda minha justificativa de que estou longe disso, para me responder, rindo, ao fim: "calma, Dalmorito, não se ofenda, gosto de você assim mesmo". No Face, Marcos pôs uma foto na qual antevi seu comentário: "hahahaha, aí, sim, Marcos!" Era um Pica-Pau de pelúcia defronte uma cachoeira - Chapada dos Veadeiros, se não me equivoco. Não perguntei, mas tenho certeza que o intuito dele foi o de fazer esse agrado para você - ele também deve ter antevisto seu comentário. Havia me deparado com um Pica-Pau assim na República ainda esta semana - me lembrei de você e a incompletude da vida tatuada no seu braço. Pica-Pau filosófico-existencialista - só você para subverter desse jeito! Tenho andado num período estranho: não é desânimo, não é a dor da tua ausência - o vazio segue, porém tenho conseguido a cada dia preenchê-lo de memórias e da alegria de ter te conhecido -, não sei ao certo o que é. Penso ser uma das minhas ecdises. Que pele nasce sob essa que, morta, tento me desvencilhar? Há você nessa pele nova, por mais que não esteja presente da mesma forma que nas minhas ecdises anteriores. Queria te perguntar "o que faço" diante das minhas pequenas dúvidas e angústias do dia a dia. Queria pedir seus conselhos sobre garotas - que raios se faz quando começa a tocar Pela luz dos olhos teus, que você cantarolava quando falava do Marcelo? Queria te abraçar para além do meu abraço simbólico que te dou toda vez que passo pelo Charm - você faz tanta falta, Misson! Queria palpitar nos seus dilemas quotidianos, existenciais, pequenos, grandes, bizarros - cadê suas histórias do Metrô? Ouço Miho Hatori, Ecdysis. Me recordo da vez que mostrei um clipe dela, tentando te convencer de que rock alternativo japonês e coreano não eram tão chatos assim - pela internet você sempre me dizia que não assistira ao que te enviara, pois tinha medo de clicar em links com caracteres que não conhecia. A produtora do clipe de Barracuda era uma Mariana Castro - rimos no QGinho. Muito tempo depois, Marcos daria um "checkin" no QGinho, pelo Face - estávamos Yane e eu também, foi dia dois de junho. Começava ali uma revolução? Começava, mas foi interrompida no meio do caminho. Ainda me lembro da terça-feira, vinte e sete de agosto, lá pelo meio-dia, em que encontrei Yane na Sé e perguntei se ele tinha te visto, conversamos sobre você, estávamos preocupados, mas esperançosos de que você já trilhava um novo caminho para a vida. Doze horas depois... você abandonava a "não-morte", como dizem os índios Bororo. Troco de disco, ponho Caetano Veloso, Abraçaço. Foi você quem mo mostrou pela primeira vez. Questionei se você apenas queria me mostrar a música, ou se queria falar por ela. Era a segunda opção. A música? Estou triste. Há tempos evito este disco. Sempre soube que me traria lágrimas: há uma coisa que há muito queria te dizer. Guardo isso como uma relíquia, como disse Débora. Esta carta que agora te escrevo, tenho ela escrita - o essencial dela - desde muito. Não que me faltasse coragem de dizê-lo, é que esperava falar pessoalmente - diante da impossibilidade... Sei que você sabe, que você sabia. Isso era claro e óbvio, eu apenas não dera conta de nomeá-lo. Esse sentimento ganhou nome com o disco do Caetano apresentado por você. Coincidência, não? Tantas. Estou triste, estou muito triste, o que será que existe, o que quer que seja. Me sinto vazio, mas não adianta estar farto: aprendi a aceitar certas coisas da vida. Perdi meu medo do porão, você viu? A Casuística talvez volte, eu assumiria seu papel de co-editor, Daisy como editora. Uma amiga sua, Daniela Nascimento, me perguntou de você esta semana - na verdade do seu livro, que eu pretendo ainda lançar um dia: seus cadernos estão aqui comigo, um tesouro. A Augusta não tem a graça de outrora, e não é porque ela mudou. Alberta, da noite do famoso "Fanoruti", reabriu. Conheci o apartamento novo do Djalma. Achei uma nova Ruth, a balconista. Semana que vem vou para Buenos Aires, cidade que você planejava conhecer. Tenho a impressão de que você passou por um sonho meu. São duas da manhã, chove lá fora. Vida sem utopia, não acredito que exista. A minha utopia está em reencontrá-la - para além dos reencontros diários por SP. Eu tinha tantas coisas pra te contar - imagino que você também. Poderia elencá-las aqui, mas seria apenas para fugir do essencial, como fiz outras vezes. Enquanto escuto Abraçaço me baixa um sentimento sutil de conforto, parece que estou em sua companhia - há algo a mais no ar de casa hoje. O dia e o disco se encaminham para o fim - toca Gayana. O amor que vive em mim/ vou agora revelar/ este amor que não tem fim/ já não posso em mim guardar/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ eu não vou mais me calar/ eu não vou mais esconder/ este segredo guardado/ bem lá no fundo do peito/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ não adianta fugir/ não adianta fingir/ já me cansei de sofrer/ por não poder lhe dizer/ eu amo muito você/ eu amo muito você. É Caetano, não sei para quem ele canta. Sou eu também, e canto para você, Missoneta. E por que escolhi dizer isso agora? Também não sei. Talvez para poder concluir minha ecdise, talvez para poder deixar você partir, talvez porque não coubesse mais em mim esse segredo (que todo mundo sabia, mas era segredo), talvez porque precisasse dividir essa minha relíquia. Você sabia, tenho certeza, isso era óbvio na nossa relação, mas mesmo assim eu precisava te dizer: eu amo muito você!

São Paulo, 16 de novembro de 2014.

Para Patrícia Misson, que eu tanto amo e tanta falta faz.


domingo, 9 de novembro de 2014

De utopias e memórias

Ao fim da fala da atriz que incorpora Heleny Guariba, morta pela ditadura civil-militar brasileira, o diretor convida os espectadores para um vinho fora da caixa preta do Espaço Sobrevento, no Belenzinho, zona leste de São Paulo. É a Cantata para um bastidor de utopias, adaptação da peça Mariana Pineda, de Federico Garcia Lorca, feita pela Cia do Tijolo, sob direção de Rogério Tarifa e Rodrigo Mercadante.
O intervalo é apenas uma meia pausa na ficção da peça que mistura a obra de Lorca, a guerra civil espanhola e a ditadura civil-militar brasileira: Federico Garcia Lorca seguirá incorporado por um dos atores, mas a atenção principal estará em alguma pessoa comum sentada à mesa - um qualquer como qualquer um ali, não fosse sua história. De peito aberto e cara à tapa, essa pessoa relatará um pouco da sua vivência nos porões da civilização brasileira - sempre fora da vista, mas não distantes o bastante para que não sejam ouvidos os gritos na Casa Grande -, o inferno de quem desafiou a ditadura - ou nem isso, apenas era amigo de quem contestava a "ordem". Um relato que não contará novidades ou detalhes desconhecidos: sua principal virtude, talvez, será a de deixar explícito que quem sofreu a violência do Estado não é alguma figura etérea de fotos em preto e branco dos livros de história ou que aparece na televisão percorrendo os corredores do poder - pelo governo e pela oposição -, que quem sofreu essa violência diretamente no corpo é alguém de carne e osso, uma pessoa comum, como os que assistem ao espetáculo. A quem resta algo de humanidade, se verá impelido a alguma reflexão - infelizmente não são todos que ainda possuem esse mínimo de sensibilidade para enxergar no Outro sua própria imagem.
As pessoas se levantam e seguem o breve cortejo até a entrada do espaço, ainda sem saber que o intervalo será tão ou mais pesado que a peça. Ao meu lado, um casal de idosos - setenta anos, talvez mais - se demora. Tardam a se levantar, e uma vez em pé se abraçam enquanto se esforçam para interromper as lágrimas que verteram abundantes durante a fala da atriz. Não sei quem são, não darão seu depoimento no intervalo, ao qual assistirão anônimos como os demais espectadores - mas as lágrimas me fazem imaginar que vejo ali sobreviventes que se não sofreram no corpo, sofreram na alma com as torturas dos militares. 
A quem acredita que a ditadura civil-militar é assunto encerrado, falta matar os sobreviventes e aqueles que ouviram suas histórias.

São Paulo, 09 de novembro de 2014.