domingo, 26 de janeiro de 2014

Um convite em aberto [memórias feitas de saudades]

Descubro que aquela tequila que Tânia (para você Tatiane) te convidara, diferentemente do que você imaginara, era mesmo sério. Entrei em contato com ela este sábado (fico pensando o que você diria disso, com um sorriso aberto e um certo tom de deboche). Lembrei do seu encontro com Tânia na sexta, quando ilhado com alguns colegas da iluminaçâo em uma lanchonete, por causa da chuva que alagava a rua em frente, um dos meus amigos pediu um todinho e me ofereceu. Fosse você ou algum de nossos amigos, tiraríamos sarro que o convite era para algo mais apimentado que um simples todinho. Tudo porque você teve sede depois do encontro com Tânia e a única coisa que ela tinha para oferecer era um todinho. Foi seu único encontro com ela, um encontro rápido, esporádico, que você achou que seria insignificante para ela - por mais que vocé tenha gostado e comentasse muto tempo depois sobre. Foi um encontro que te ajudou no seu processo de se livrar da síndrome de patinho feio, como você dizia, também com as mulheres (com os homens vocé se mostrava cada vez mais confiante). Penso que foi o início da sua guinada na forma de se relacionar consigo e com o mundo, interrompida a meio do caminho. Mandei no sábado uma mensagem para Tânia, sem saber muito o porquê,talvez na ânsia de te descobrir um pouco mais e fingir pra mim mesmo que essa auséncia irreal não é real. Tinha receio de que você estivesse certa e ela me respondesse grosseiramente que sequer lembrava de você e não queria saber de notícia de morte. Mas foi justo o contrário. Apesar de má fisionomista, disse que lembrava muito bem do seu rosto, e andava pensando em você, que sumira e nunca mais a procurara para tomarem a tequila combinada. Lamentou que sua ausência fosse mais definitiva do que um não dar notícias. E comentou que só lembrava de você sorrindo. Apesar de ter te visto chorando, pesarosa, angustiada muitas vezes, na maioria te via alegre, tentando não deixar que as interpéries da vida te deixassem para baixo, sempre atenciosa e disposta a ajudar os outros (até demais, como na metádora do cacto que justifiquei sua partida para sua irmã), são essas imagens da sua felicidade e da sua bondade que primeiro me vem. Com a conversa com a Tânia descubro que teu sorriso não faz falta só a mim e aos seus próximos, que sua  ausência é sentida por gente que você encontrou uma vez, mas na qual foi capaz de cativá-la. Não me surpreende.

São Paulo, 26 de janeiro de 2014.

Para Patrícia Misson, com suas surpresas e nossas piadas

sábado, 25 de janeiro de 2014

São Paulo, 460: a capital do choque.

Tem-se que os agricultores de antigamente, ou os pescadores, sabiam ler os sinais da natureza e eram capazes de dizer se iria chover ou fazer sol, se viria seca ou enchente, frio ou calor. Me sinto um pouco como esses antigos, mas a natureza que sei ler é a da urbe, a social, a de São Paulo. Feriado na cidade: aniversário de quatrocentos e sessenta anos da principal cidade do país, ano de copa do mundo e eleições, manifestações estavam programadas. Não fui atrás de saber sobre elas, fiquei em casa brigando contra a preguiça causada pelo mormaço. Que só foi superada quando minha amiga chegou, no fim da tarde, e decidimos sair um pouco, aproveitar que a temperatura serenava conforme o sol se escondia para dar um rolê pelo centro e comer uma açaí na avenida São João. Durante a tarde eu ouvira helicópteros: como não partiam dos hospitais ao redor do meu apartamento, desconfiei que havia protestos, mas a 23 de maio seguia seu fluxo normal. Teria eu errado, e aqueles helicópteros significavam outra coisa? Na Sé, grandes grupos de policiais indicavam que eu estava certo. Chegamos no viaduto do Chá no mesmo momento que chegavam os caminhões da tropa de choque da polícia militar. Enquanto eles se posicionavam, um morador de rua dormia na calçada, como se nada estivesse acontecendo. Minha amiga ficou, eu fui ver como estava o protesto, que seguia pela Xavier de Toledo, escoltado pelos militares, e o choque na retaguarda. Duas motos da polícia militar passam em alta velocidade, os manifestantes são obrigados a dar passagem; alguns deles tentam derrubar os policiais - é claramente o que os mantedores da ordem querem, para justificar o avanço da tropa de choque e o início do que datenas e bonners chamarão de baderna -, não conseguem. Volto para encontrar minha amiga e seguirmos nosso plano original - me recordo que na "quinta terror" de junho eu havia saído após o início da pancadaria da polícia para encontrar minha amiga Misson e irmos tomar um mate ao lado da casa de mate que fui hoje. No Theatro Municipal, em algumas horas haverá apresentação do Balé da Cidade de São Paulo. Na São João, a "feirinha do rolo" junta várias pessoas, enquanto em frente a lanchonete rola uma baladinha. A segunda parte do nosso plano era voltar pela Augusta - a qual imaginamos ter algo da continuação dos protestos. A praça da República está cercada por policiais - impressiona. No palco montado para a comemoração do aniversário da cidade, um show de samba-rock, o clima é muito ameno. No caminho, os cinemões da República, vendedores ambulantes, transeuntes passando como se nada excepcional estivesse acontecendo. Pouco antes da Consolação, outra balada - são oito horas da noite. Na entrada do Minhocão, um fusca queimado atrapalha o trânsito. Antes, uma agência bancária quebrada e pixações contra a polícia. O protesto já passou por ali. Na Augusta, alguns poucos rastros dos protestos - que ou foram amadores ou, mais provável, não tiveram muita chance contra o avanço dos militares. A Augusta está interditada pelo choque: parte dos manifestantes, encurralados pelos dois lados, se refugiou dentro de um hotel. Me estico para ver: parece cena de terrorismo, soldados todos paramentados, com capacetes e armas em punho, fazendo revista em um hotel. Fico a imaginar se, durante alguns dos grandes eventos que o Brasil sediará, acontecer algo nessa linha - atentado sério, e não jovens revoltados que usam paus e pedras e vinagre - o tamanho despreparo de nossas forças ditas de segurança. Meus olhos ardem: há restos de bombas de efeito moral no ar. Damos a volta na quadra. Na Frei Caneca, estamos no meio de um grupo que explica que teve que arrebentar a grade de um estacionamento para que as pessoas pudessem fugir da polícia militar, que os encurralava. Várias viaturas passam nessa hora. Não olha, não olha, diz um deles, e então reparo que estamos no meio de um grupo de jovens todos de preto, com mochilas e demais equipamentos necessários para ação direta. Minha amiga fica temerosa, eu acho graça - faltavam achar que meu visual praia poderia ser disfarce black bloc. A Augusta segue interditada, mas a fila para a balada já se forma, ao lado da fila de policiais que desviam o trânsito e, em certo momento, um comboio de "night bikers". A primeira quadra após o bloqueio, direção Paulista, ainda há movimentação de todos em função da presença maciça de policiais, na quadra seguinte, a rua ferve como todo sábado à noite: adolescentes descem, os bares cheios, os maître de inferninho convidando pra tomar cerveja com a mulherada, mendigos catam latinhas, pedem moedas, dormem. A mesma coisa na Paulista, com seus adolescentes, skatistas, artistas de ruas, mendigos, famílias estátuas vivas. Protesto? São Paulo é a cidade do choque.

São Paulo, 25 de janeiro de 2014.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os novos vizinhos

Ao voltar das férias, descubro que tenho vizinhos novos, um casal e seu pimpolho. Ainda não vi o garoto, mas já percebi que é um piá bastante ativo, que gosta de gritar, cantar, correr pelo corredor, batucar no hidrante, tamborilar nos vidros. Se os pais ajudarem, sorte dele ter o Centro Cultural São Paulo e aquele simpático gramado no teto logo em frente de casa - pode não ter parquinho, mas dá para pular bastante. O que estranhei mesmo foi a forma de educar o filho, baseado na conversa, é certo, porém um pouco rude, me pareceu. Eu estava em casa, lendo, o moleque havia entrado há pouco nos trinta e cinco metros quadrados que lhe servem de lar. Algum tempo depois escuto o pai esbravejando: "é pra fazer aqui! Aqui! Ouviu? É pra fazer aqui, e não lá! Precisa que eu repita?", e repetia indignado que era pra fazer aqui e não lá, uma, duas, três vezes, aqui, não lá, ouviu? Pela indignação, imaginei o que o garoto não devia ter feito: algum desenho com ácido úrico na parede da sala, como eu na minha infância fazia no muro de casa - lembro que me divertia bastante com isso, era mais divertido que procurar formas em nuvens, e às vezes saía uns desenhos tão bons, tão parecidos com sombra de pessoas, por exemplo, que eu lamentava que logo viria o sol para apagá-los (na época não havia máquina digital para registrar minha arte efêmera, e meu pai não me emprestaria sua semi-profissional para isso. Quem sabe hoje eu não fosse um Vik Muniz, enfim). O garoto não voltou a correr pelo corredor pelo resto da tarde - imaginei que estivesse de castigo. Hoje encontrei o vizinho no elevador (o pai). Não animado em conversar sobre o tempo (diga-se de passagem, depois de Jaraguá do Sul e Pomerode, o calor de São Paulo é até tranqüilo) e querendo se mostrar um vizinho preocupado em não perturbar os outros, me perguntou se eu passava o dia em casa, se não estava incomodado com eventuais barulhos, e explicou: "a cachorra é novinha, e não sei se ela não fica latindo quando não tem ninguém em casa". Respondi que nunca havia ouvido qualquer barulho que indicasse um quadrúpede no apatamento ao lado. Ele se disse aliviado, e ressaltou que se ela viesse a incomodar, eu podia falar. Um cachorro? Fiquei mais aliviado em saber (desconfiar, na verdade) que aquele método de educação não era pro filho. Mas fiquei sem graça em dizer que o dono, sim, estava incomodando um pouco com seus urros irados de que era pra fazer aqui, aqui, e não lá - e repetir isso trocentas vezes.   

São Paulo, 22 de janeiro de 2014

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sensibilidades extras

É algo que me admira, e tento entender o que faz com que uma pessoa tenha uma sensibilidade extra, seja capaz de captar como que intuitivamente certas coisas que as demais levam tempo e/ou estudos para formular. Tempos atrás uma amiga fez com que eu recordasse que eu tinha um pouco dessa percepção, quando pré-adolescente (Mafalda já se questionava o porquê dos adultos insistirem em reconhecimento tardio). Meus amigos sempre falavam de carro, de qual iriam ganhar quando fizessem dezoito anos ou entrassem na faculdade. Lembro de um deles, com dez anos, me contando (estávamos sentados no meio-fio, num fim de tarde alaranjado) que ganharia um Kadett quando passasse em medicina. De minha parte, preferia uma moto. Não que preferisse moto a carro, pelo contrário, porém meu raciocínio era: com o dinheiro para comprar um carro popular dá para comprar uma moto mais simples da BMW, ainda assim uma BMW. Muitos anos depois fui entender o que eu dizia ali: carro não era para transporte (eu morava em Pato Branco, quase todo lugar que eu precisava ir, poderia ir "de a pé"), e sim para valorização da minha imagem: assim sendo, uma moto BMW me tornaria alguém melhor do que um Gol, um Uno, um Kadett. Enfim, minha amiga. Tempos atrás me contou que iria comprar um celular de mais de mil reais, porque assim ganharia respeito das demais pessoas. Um raciocínio tosco, sem dúvida, mas não por achar que seu valor como pessoa estaria num celular caro, e sim por dizê-lo abertamente, sem nenhuma desculpa cretina que inventamos para justificar uma compra que só se justifica pelo fato de não nos darmos valor e aceitarmos o discurso publicitário (aquele que diz que não valemos nada se não tivermos e ostentarmos). Não se troca de carro, celular, roupas, computador todo ano por causa de controle do rádio no volante, meio mega pixel a mais de resolução, um giga de memória ram, a gola em v. Troca-se porque aceitamos o discurso de que só existimos e somos alguém na medida em que consumimos, e tanto mais alguém seremos quanto maior o valor do penduricalho inútil que compramos, justificado por justificativas hipócritas e socialmente aceitas. Este caso me fez lembrar de minha primeira namorada, uma das pessoas mais sagazes com quem já tive contato. Sagaz e inteligente, sempre invejei sua percepção - desperdiçada no que eu entendia como um auto-boicote cruel. Certa feita seus pais a puseram para ler três revistas semanais, para ela "se informar" (não falariam em ficar "menos alienada", porque isso é discurso de esquerdista). Ela tinha dezoito anos na época, e quando começou a falar das impressões das reportagens e do que elas tratavam, fiquei embasbacado: sabia que nunca tinha lido Adorno ou qualquer outro teórico da indústria cultural, mas foi capaz de sintetizar muito do que esses figurões diziam com três revistas! Ah se eu tivesse metade da sua capacidade... Parece que esse tipo não se anima com a universidade e a pesquisa, e se cursa um curso superior é só à medida que necessitam para conseguir determinado emprego. E por falar em capacidades e ex-namoradas (faço aqui justiça às demais "RAS" que, apesar do gosto duvidoso, tinham todas inteligências e beleza acima da média, muitas que se auto-boicotavam também), não sei se é só comigo, mas me impressiona como percebo logo no primeiro encontro se o rolo é sério ou não - sempre com acerto (o que pode significar relacionamentos breves, ainda assim profundos). Deve ser algo da tal "postura corporal racional-pré-racional" que digo querer estudar num eventual doutorado. Para concluir este texto, que foi me abrindo recordações e reflexões inesperadas, volto à minha amiga e seu celular de respeito: menos de um mês depois foi assaltada e levaram justo seu celular; foi obrigada a voltar ao velho aparelho e tentar ganhar respeito um pouco por o que é.   

São Paulo, 21 de janeiro de 2014.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Rachel Sheherazade: a nova geração de falsos polemistas.

O título na internet me chamou a atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai. 

A reportagem que li é de Mônica Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos", segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres, quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião, pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões. É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack, Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que provavelmente será seguido por muitos.

Outro ponto do perfil que me chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que aceita desde a identificação de um partido com uma linha política até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances? Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!

A pretensa mudança de lado, na verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias, dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando. 

Sheherazade tem quarenta anos, creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação, nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.

Pato Branco, 12 de janeiro de 2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Mercados do tempo

Dia 31 de dezembro acompanhei meus pais na ida ao mercado, no meio da tarde. Apesar de ser terça, por se tratar de véspera de feriado, tinha movimento de sábado. Esse passeio foi um pouco passear no tempo. No século passado, na ausência de shopping center na cidade (ausência que persiste), o que havia de opção aos pré-adolescentes que atendesse ao binômio diversão-compras era o supermercado. Ao adentrá-lo, o que primeiro me chamou a atenção foi como o estabelecimento encolheu - de espaço, de tamanho, de altura. Certo, na verdade fui eu que cresci, meus horizontes que se ampliaram, mas foi estranho. A lojinha na entrada não há mais, o café foi para o canto e não há torresmo para degustação (não devia ser para degustação, mas eu degustava, meio com medo de não poder fazer aquilo e acabar tomando uma bronca). Meus pais, claro (estamos numa cidade pequena), encontram conhecidos, trocam duas três frases, perguntam notícias de algum terceiro. Eu empurro o carrinho - como fazia vinte anos atrás. Não vejo ninguém que conheço, o que não me aborrece. Reparo que há vários pré-adolescentes: estariam eles, como eu fazia outrora, paquerando no mercado? Empurrava o carrinho, chopinava pros meus pais comprarem um cereal ou um iogurte, degustava um torresmo, e reparava disfarçadamente nas gurias. Algumas reparavam de volta, disfarçadamente também - os pais em cima, comentando animados sobre a nova embalagem do creme de amendoim. No fim, era isso. E eu devia ser ruim de fisionomia, porque não lembro de ter paquerado duas vezes a mesma guria. O caixa, óbvio, tem leitura ótica - bem diferente de quando valor por valor era batido na caixa registradora. Não é mais tempo de inflação, mas meus pais acabam "fazendo o rancho" nessa ida ao mercado, como se diz por estas terras.
Dias depois, aproveitando o primeiro dia de sol e de relativo calor do ano, fui com minha mãe resolver qualquer coisa no centro. Ela seguiu suas andanças, eu voltei para casa. Para escapar do sol quente, fui por um corredor que dá acesso ao mercado próximo de casa. Outra viagem no tempo. Ah, a época que o mercado fechava do meio dia às duas, as pessoas sentadas esperando ele abrir. A locadora que ocupava o outro lado do corredor já havia sido reduzida a um quinto do seu tamanho e agora funciona uma sapataria nesse quinto restante - apesar da placa anunciando a locadora. Locadora cujos atendentes sabiam decor o código do cliente dos meus pais - 24 -, e que atendiam aos pedidos de minha mãe de dizer ao meu irmão que a fita de desenho só podia ser assistida duas vezes, ou tinha que pagar um valor extra - deixasse e meu irmão desgrudava da televisão o tempo de rebobinar o vhs. Subo a rampa que dá acesso ao corredor, onde eu fazia manobras com minha bicicleta vermelha (eu devia julgá-las radicais). No corredor, finalmente, as vitrines outrora cheias de brinquedos, que eu observava babando, agora estão tomadas por caixas da loja de roupas que funciona no local. Eu achava aquela passagem algo mágica, que me levaria a qualquer lugar especial - ela própria um lugar especial. Lembro do medo de entrar nela e ela ser fechada antes de eu chegar no outro lado. Não consigo me desvencilhar dessa sensação: há algo de mágico nesse pequeno trajeto, e não se trata exatamente do corredor.

Pato Branco, 07 de janeiro de 2014