sábado, 15 de fevereiro de 2014

Do trote ao garoto amarrado ao poste: dois momentos de um mesmo pensamento

É assunto de que já tratei várias vezes, e se me repito é porque ele também se repete, nestes tempos pseudo-cíclicos da produção capitalista-espetacular. A cena é a de todo início de período letivo das universidades: jovens sujos e cheios de tinta, pedindo dinheiro nos semáforos, supervisionados por veteranos - para não falar das brincadeiras e rituais que ocorrem até se chegar a isso. Este ano, os trotes que fui obrigado a presenciar na avenida Paulista e algumas imagens que vi na internet, me remeteram diretamente à do garoto preso ao poste por justiceiros, no Rio de Janeiro. Os princípios muito se assemelham: desrespeito, humilhação, violência. A principal diferença é que o trote é socialmente aceito por grande parte da população, enquanto a violência contra o menor ainda está em litígio. E o absurdo de haver quem defenda esse tipo de ação, creio, está estreitamente ligado à aceitação do trote acadêmico.

O que vejo na Paulista me faz lembrar da juventude hitlerista retratada no filme da Leni Riefenstahl. Os argumentos utilizados como justificativa me fazem lembrar ainda mais de parte da ideologia dos regimes totalitários da primeira metade do século XX: a tradição, o ritual de ingresso, o pertencimento, a submissão à hierarquia e à autoridade. É parte do nosso arcaísmo tecnicamente equipado - que por fim achamos natural, como natural achamos tantas coisas que até ontem nos eram absurdas. E se em algumas sociedades tradicionais esses ritos se justificam, no século XXI sua permanência na sociedade brasileira é justificada em nome de valores que não podem ser enunciados abertamente.   

As violências - físicas, muitas vezes, verbal e simbólica praticamente sempre - não são apenas de veteranos sobre calouros, essas violências são da instituição "Universidade brasileira" (e das classes que têm acesso a elas) sobre uma parcela da população. Afinal, quem é a figura que habitualmente fica nos sinais pedindo dinheiro se não uma população extremamente carente e sem quaisquer perspectivas, pouco importa a idade? Crianças, jovens, adultos e velhos são escarnecidos (quando não surrados, como aconteceu com alunos do Mackenzie Campinas anos atrás) por aqueles que em breve estarão em postos de poder. Há uma pseudo-inversão de papéis, simulacro de rituais encontrados em muitas sociedades tradicionais. Pseudo porque se os jovens têm um dia de mendigo, para à noite voltarem à normalidade, os mendigos não têm direito a um dia de classe média, com aulas, passeio no shopping para compras, refeições sofisticadas. Não apenas por isso, essa inversão também é falsa porque esses jovens universitários não são postos em contato com esse Outro que é o marginalizado: a humilhação inverte o sinal e se torna motivo de orgulho, se torna uma grande festa: a celebração da miséria e exclusão.   

O trote acadêmico, portanto, reafirma uma série de valores arcaicos que ganham outra significação no mundo moderno: reforça a hierarquia numa época em que empresas, partidos políticos, ONGs, fóruns virtuais, etc, têm se utilizado do discurso da horizontalidade (talvez não seja coincidência que as universidades sejam dos ambientes mais refratários a questionar sua hierarquia interna - que o diga o fato de professores e "trabalhadores" das universidades públicas paulista terem cada um seu sindicato); postula a homogeneidade entre as pessoas e apregoa a violência ao diferente, tido também por inferior - o ingressante e, principalmente, o marginalizado. Ele não integra, ao contrário do que imaginam alguns: ele submete. Um interage com as diferenças e descobre nelas suas riquezas, o outro as anula, amparado por um discurso do medo ou da superioridade. A universidade brasileira, ao não tomar atitudes para coibir o trote se torna cúmplice dele, e empresta sua legitimidade aos valores implícitos, difundidos e aceitos por toda a sociedade.   

Um jovem agredido e humilhado por um bando que se crê superior por qualquer motivo cretino, para "aprender seu lugar": pode ser um menor despido e preso a um poste, por ser pobre e negro; pode ser uma jovem de roupa rasgada, andando de "elefantinho", com uma placa humilhante presa pescoço, simulando sexo oral em uma banana, por ser caloura.     

São Paulo, 15 de fevereiro de 2014.

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