domingo, 30 de março de 2014

Da tensão ao tédio: "Colônia Penal", de Sandro Borelli e Cia Carne Agonizante.

No fundo do palco, à esquerda, cinco pessoas à mesa comem, bebem e conversam. São dois homens, duas mulheres e um boneco na ponta da mesa, todos muito masculinos em seus ternos. No centro do palco, um ventilador com três grandes pás projeta sua sombra intermitente. Entra outro bailarino, vestido de camiseta vermelha e moletom. Há um clima de tensão. Um dos homens da mesa se levanta e vai até ele. Entre agressões diretas, agressões à distância - em que o bailarino segue comandos de mão - e sugestões de violência sexual, em cinco minutos o espetáculo diz tudo o que tem a dizer. O que resta são pequenas variações em cima do mesmo - tautologias do óbvio. Resultado: o tédio - e a tortura do espectador por mais de uma hora diante de um som alto de teclas de piano sendo violentadas. Falo do espetáculo "Colônia Penal", do coreógrafo Sandro Borelli e da Cia Carne Agonizante.
Fui assisti-lo sem me inteirar sobre o que versava exatamente. O cartaz no CCSP fazia referência aos cinqüenta anos do golpe civil-militar de sessenta e quatro. O nome me aludiu imediatamente ao homônimo conto de Kafka. Ao ver o panfleto de apresentação, isso estava explícito: "da obra de Franz Kafka". A leitura do conto demonstrada na apresentação, contudo, é bastante precária, para dizer o mínimo: "O escritor Checo faz uma análise crítica sobre o instituto da pena, analisando os seus limites, a sinistra imposição de penas baseadas em castigos corporais pelo Estado e ilustra com clareza e precisão as barbáries que constituíam as técnicas medievais na aplicação desses castigos punitivos. É uma crítica aberta aos regimes despóticos nos quais o processo judicial e o direito de liberdade são subjulgados". Quase "Kafka um acadêmico da história das ditaduras" (para não falar na confusão de pena, Estado, Idade Média), ao invés de um artista desnudador das burocracias democráticas de direito. Por sorte a coreografia não segue esse mesmo caminho, tem um clima que remete à ditadura brasileira da segunda metade do século vinte.
Retomo a primeira cena. Estão os cinco à mesa - ponto alto do espetáculo -, chega o jovem de moletom. Um dos homens se levanta e começa a sessão de tortura, inicialmente com gestos que conduzem o torturado de longe, depois com contatos corporais, chegando a simulações de violência sexual - que não soam tão violentas assim, visto que o bailarino se põe de novo na posição inicial, como um cão de Pavlov acostumado aos choques. O bailarino não é inerte, porém de uma passividade que o deixa pouco acima da inércia. As agressões às vezes parecem fazer alusão a torturas, ao pau-de-arara, por exemplo; no geral parece que estamos diante de uma sessão de sado-masoquismo soft - cuja regra primeira é que toda prática seja "sã, consensual e segura". No meio do duo há tempo para o homem tirar o paletó, comer um pedaço de pão, antes de voltar à tortura. Os demais quatro seguem à mesa, comendo, bebendo, fumando e conversando, indiferentes ao que acontece ao lado.
Se após os vinte longos e cansativos minutos do primeiro duo engravatado-jovem de moletom a coreografia se encerrasse, eu diria que é uma dança boa, que abre questionamentos, uma série de interpretações: poderia ser a tortura acontecendo no porão das pessoas de bem que jantam despreocupadamente - e não porque não saibam, mas porque não se importam, mesmo -; poderia ser a tortura psicológica das classes superiores às classes subalternas; poderia ser uma alusão à educação: o jovem que se acerca à mesa sem a toalete e a etiqueta do momento, que vai aprendê-la no corpo, a respeitar a hierarquia, a obedecer, a ser passivo, a se submeter. Contudo, a repetição da cena um outras três vezes - com variações insignificantes - acaba com qualquer potência da obra: bem dizia Debord que o tédio é inimigo da revolução - eu diria que é também do questionamento.
Parece que Borelli tinha preocupações com o tempo de duração de sua coreografia - como se espetáculo bom fosse espetáculo longo -, mesmo que tivesse pouco, muito pouco a dizer (admito: antes isso que falar as abobrinhas do texto de apresentação). É no que ele peca: é demasiado sintético no que tem a dizer, excessivamente prolixo no dizê-lo. Pecado mortal, "Colônia Penal" é tortura para o espectador.

São Paulo, 30 de março de 2014.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Gyorgy L. [retratos feitos de memórias]

Ele bem tentava ir contra sua classe. Criado em condomínio fechado, tendo estudado em boas escolas e universidades particulares, havia feito uma série de bicos para viver por conta própria e por fim se estabilizara num emprego do qual não gostava, não pagava bem, contudo o suficiente para pagar as contas e sem as cobranças de uma empresa mais comprometida com resultados. As intenções podiam até ser boas, mas o resultado deixava a desejar: com as costas quentes de poder pedir ajuda para a mãe (que o ajudava mesmo quando não pedia), apenas brincava de pobre e fingia se rebelar contra a condição social na qual crescera - algo típico em muitos alunos de ciências humanas durante a faculdade, que ele prorrogava para depois de formado. Como é comum nesses alunos, cobrava dos outros adesão a suas teses, tanto da vida teoricamente simples e sofrida - apesar de morar nos Jardins -, quanto da sua pretensa liberalidade nos costumes. Mas não fazia abertamente, como os alunos: sabia ser sutil e criticar normativamente sem parecê-lo, fazendo com que seus interlocutores se sentissem culpados do que faziam - ele e sua namorada eram experts nessa arte. E mais do que se manter nessa vida ilusória de proletário, insistia numa visão absurdamente idílica das classes pobres: aplicava aos desvalidos o mito do bom selvagem com tamanha ingenuidade que era de se perguntar se fizera mesmo faculdade de filosofia. Claro, os desvalidos são pessoas distantes, como sempre foram, fosse quando morava em condomínio, fosse quando estudava na faculdade - um benevolente ente abstrato que sofre as agruras do abstrato capitalismo perverso. Discutia política, os assuntos do momento, acreditava na revolução, falava em construir um mundo melhor - amanhã. Sempre amanhã. Porque quando a realidade se opunha ao seu mundo idealizado, à sua imagem de proletário sofredor, fugia como se não tivesse responsabilidade alguma: era o mundo que era mal, como poderia ser ele culpado de qualquer coisa? O mesmo valia para suas relações próximas: se o desagradavam, se afastava, como se nunca tivessem sido amigos, namorados, pessoas íntimas, o que fosse: com isso colecionava uma série de desafetos, causados por sua omissão e descomprometimento. Mesmo nesses casos ele seguia se vendo como a vítima.

São Paulo, 20 de março de 2014.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Joana C. [retratos feitos de memórias]

Nunca fomos amigos. Fomos colegas alguns anos - não sei precisar quantos. Lembro que por um período não simpatizava com ela, creio antes por brigas entre grupos - fundão contra frentão e vice-versa - do que algo pessoal. Não consigo lembrar quem era do frentão quem era do fundão - porque eu por vários anos fui do fundão, um fundão heterodoxo, que exigia silêncio e tiravas notas boas, mas fundão. Além das antipatias de grupos, achava ela uma guria sem graça fisicamente, mirradinha. Mudei minha opinião ao reencontrá-la, anos depois, quando já não morava em Pato Branco: tinha uns olhos, um olhar muito bonito. Um amigo se surpreendeu que eu nunca tivesse reparado - acho que se embelezou com a idade, foi isso, eis o que respondi. Até ontem, a última notícia que havia tido dela era uma matéria do jornal da cidade, que meus pais guardaram para que eu visse. Falava de Joana despontando como artista, escritora e agitadora cultural em Curitiba. Fiquei contente por ver alguém saído daquela cidadezinha de pequenez classe-média fugindo dos caminhos certos e seguros, tentando agitar uma cidade também classe-média, mas com mais gente. Anotei o blogue ou site que havia na reportagem, planejava visitá-lo e, quem sabe, chamá-la para participar da Casuística, a revista de artes antiartes e heterodoxias que eu agitava. Não entrei em blogue algum nem fiz qualquer convite. A revista acabou (há promessa de uma última edição, a de 2013), desvitalizada com a perda da co-editora e minha melhor amiga (também uma agitadora cultural), a Patrícia Misson, vítima de um ataque cardíaco, aos vinte e oito anos. Descobri ontem que, ainda que a Casuística retorne qualquer dia, não haverá convite algum para Joana: como Misson, ela morreu jovem, quando ainda dava seus primeiros passos (nem por isso pequenos e descartáveis) e ensaiava grandes realizações futuras: parada cardíaca aos trinta e um.

São Paulo, 19 de março de 2014.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Quatro histórias a caminho do nada

Quatro cineastas de diversos estilos - o sucesso de bilheteria, o cult, o acadêmico, o amador. Quatro cineastas que, em algum momento, passam a fazer seus filmes a partir de suas vidas - tentam construir uma obra artística, não um produto da indústria cultural. Vidas que influenciam nas obras, obras que influenciam nas obras: o cenário de "Cineastas", do argentino Mariano Pensotti, apresentado no primeiro MITSP, é dividido em dois: na parte de baixo, a vida real; na de cima, o filme realizado por cada um dos cineastas. A divisão é clara e não permite mistura de ficção e realidade, por mais que se queira - a filha de um desaparecido político obrigada a filmar o roteiro de um desaparecido que retorna trinta anos depois não reencontrará seu pai morto; os objetos de um cineasta à beira da morte, uma vez filmados, não correspondem aos objetos em seu contexto. Personagens não descem, vidas reais não sobem. Em baixo a vida, em cima a representação, e a criação de um duplo, o ficcionar a partir do seu quotidiano, faz com que um ficção e realidade se influenciem, porém não se imiscuam.
O cenário de cima - o da ficção - desde o início é nu: precisa ser assim para poder ser composto com elementos de cena, postos e tirados ao sabor dos roteiros e de suas mudanças. O cenário de baixo, por seu turno, começa bastante carregado - mesas, cadeiras, caixas, poltronas, quadros, plantas - e vai se esvaziando conforme os quatro cineastas têm suas vidas abaladas, e junto com elas os filmes que estão rodando. O desnudar do palco pode ser uma alegoria do desnudar de cada um dos cineastas dos penduricalhos de sua vida, em busca do que realmente interessaria - seus ideais, suas origens, seus passados, seus futuros. No fim, cenário do filme e da vida real se equivalem: cenários nus iluminados por luz de serviço. A equivalência entre ambos deixa clara a invasão da ficção na realidade: o cenário nu não releva uma pretensa essência, antes uma verdade: a mentira de tudo, a espetacularização da vida, à moda do cinema. O um dia exemplo de bem sucedido gerente de McDonald's se dá conta de que é um Zé Ninguém facilmente substituível; a filha de desaparecido é obrigada a aceitar que seu pai está mesmo morto; o cineasta que vai até o cinema de sua infância se depara com um culto evangélico - pastiche de rituais de uma época que não existe mais -; a filha adotiva de uma família descendente de russos vai até a Rússia e encontra a vila de seus antepassados exatamente da forma como imaginava, exatamente como há um século, a mesma estrutura das casas, os mesmos rituais... para logo descobrir que é tão-somente um cenário de um seriado de época, e se ver em meio a uma festa eletrônica comemorando o fim das filmagens.
Por quanto entregamos nossos ideais? O quanto deixamos nossos sonhos serem ditados desde fora, por alguma espécie de deus ex-machina - mesmo sabendo da sua existência e do seu funcionamento? Nossa essência desnuda possui algo de nosso - possui algo? "Cineastas" pode ser vista como uma leve comédia para o fim de domingo. Pode ser vista também como um profundo questionamento do vazio de nossas vidas - de nossas vidas vazias -, preenchidas com ficções que não nos dizem nada.

São Paulo, 17 de março de 2014.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Larissa S. [retratos feitos de memórias]

Conhecia os cinco continentes, ainda que não considerasse passar uma semana em Bali como ter conhecido a Ásia. Achei curiosa sua noção conhecer: não que não fizesse mochilões, mas sabia que bater o pé em uma cidade, sem sentir minimamente o aroma do seu quotidiano, não era conhecê-la. Havia ido em trabalho voluntário para Botsuana. Havia trabalhado no Grajaú. Destinos que chocam o interlocutor, quando se sabe que ela estudou nas melhores e mais quadradas escolas da capital - imagino, então, as pessoas próximas, mais afim aos valores que tais escolas ensinam. Ao fim do ensino médio, sem idéia do que fazer ou do que gostava, seguiu uma carreira tradicional em uma faculdade tradicional, como a grande maioria dos seus colegas - administração na FGV. Só depois se deu conta de que gostava de trabalhar com crianças. Fez pedagogia em uma faculdade perto de sua casa. Começou em uma escola bilíngue, por saber inglês; hoje leciona em uma escola socio-construtivista - reconheci minha escola do básico em várias coisas que ela comentou do seu trabalho. Não tem o jeito de "tia", que muitas vezes vi nas estudantes de pedagogia. Não tem o amargor que a grande maioria dos meus amigos que foram ser professores têm depois de menos tempo de trabalho do que ela - talvez por ter tido a sorte de não acabar em uma escola moedora de carne e idealismos, seja pública, seja privada. Bem provável que se tivesse seguido sua primeira carreira, hoje estivesse ganhando melhor do que ganha - ainda que não aparente passar privações. Desconfio que essa mudança de rumo para uma carreira tão desprestigiada não tenha sido tão tranqüila para quem teve o histórico que teve - desde sempre uma aluna bem adaptada. Ela, porém, não contava sua história com o peso dos grandes abandonos. Contava com a leveza das pequenas descobertas. Contava com a tranqüilidade de quem agiu e não só teorizou, enfrentou o mundo, e agora quer dar continuidade à sua mudança. Me lembrou Mia Couto: “Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento”.

São Paulo, 10 de março de 2014.