sábado, 26 de abril de 2014

Black Star [Memórias feitas de saudades]

Não sei com o que sonhei hoje. Sei que sonhei porque acordei com a sensação dos sonhos tristes. Foi com sua ausência, novamente? Não sei, nem idéia. Que não tenha sido em sonho, tenho sentido ela acordado. Perdi a hora, desisti do café-da-manhã e de preparar o almoço. Castanhas com goiaba e chimarrão, um desjejum um tanto incomum (havia sementes de abóbora também). Pouco depois, adentra por baixo da porta sua lembrança. Uma carta da Daisy, namorada do Djalma (que, já disse, acho que você iria gostar muito). Achei curioso: eu bem te pedia uma carta no meu texto passado, um dia antes do carimbo do correio. Por um instante, ao abri-la, achei que fosse material seu, perdido e agora recolhido. Parecia um Trumbica. Uma versão mini do Arara Teresa? Era o Misión... Ainda me falta coragem para lê-lo. Como me faltou coragem para ver um arquivo que seu irmão me mandou, já há mais de mês. Coragem me falta também para encarar novamente seus cadernos, suas cartas (tantas destinadas a mim). Também não tenho coragem de escrever uma crônica dizendo o que gostaria. Você sabe o que é. Talvez soubesse desde antes de mim, que só descobri depois de você partir. Tenho ela escrita em minha cabeça já há muito tempo - e tenho evitado Caetano por causa dela. Meu medo é de que, ao dizê-lo, tudo o mais seja supérfluo e não haja mais nada a ser dito, que eu me convença de que a espera acabou - porque não há regresso. Então guardo esse essencial para mim, como se fosse segredo - um segredo que espera seu retorno impossível. Escuto Radiohead: "blame it on the black star, blame it on the falling sky, blame it on the satellite that beams [you] home". Queria um abraço seu.

São Paulo, 26 de abril de 2014.

Para Patrícia Misson, que voltou para casa.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

What are they doing in heaven today? [Memórias feitas de saudades]

Porra, Misson! Tanta falta sinto de você. Nunca havia pensado que sentiria tamanha falta quando estávamos juntos, e não me arrependo: tínhamos a vida pra viver, nossa companhia pra dividir, a morte era algo para um futuro distante e não fazia sentido deixá-la tomar conta da vida. Agora que é passado, tampouco faz sentido, eu sei. What are they doing in heaven today?, escuto agora. E então, muito ocupada para mandar uma carta? Quando recebi a ligação às três e cinqüenta e oito da manhã, sabia que você seria um enorme vazio. Mas o enorme é vasto demais pra gente ter idéia antes de vivê-lo. Assim como o vazio. Assim como sua ausência - ainda tão presente, como suas lembranças. Comentei hoje em terapia - infelizmente não pude contar da minha nova terapeuta para você, que teria muitas piadas para fazer -, dos silêncios que tenho vivenciado nos últimos tempos. Silêncios agradáveis em companhia de outras pessoas. Lembrei dos silêncios contigo, tantos e tão leves: não tínhamos a obrigação de lançar o tempo todo palavras umas atrás das outras para saber que o outro estava próximo. O espaço-tempo ao nosso redor não era um vazio rarefeito que precisava ser preenchido: havia nos interstícios nossos afetos, nossos pensamentos - e seu cigarro com café no sofá e meu chimarrão na cadeira. Nos compreendíamos tão bem. E se não nos compreendíamos, tínhamos a sintonia para entender qual era o ponto da questão que atormentava o outro e então problematizávamos em cima dele. Mas não é do que falávamos que sinto falta hoje, é do que não precisávamos falar. Dos olhares que já diziam a piada. Dos gestos que se seguiam às palavras. Eu te ensinando a desapegar; você me ensinando a me encorpar (imagine hoje, se soubesse que estou fazendo dança). Eu aprendendo a te pedir um abraço, aprendendo a te abraçar. Nós dois usando as costas das mãos como lenço das lágrimas alheias, sem pedir nada em troca no futuro. E eu não tinha dúvidas da pertinência de te pedir companhia. Assim como você sabia que era pertinente me escrever ou tocar a campainha de madrugada, se fosse preciso - seja porque estava mal, seja porque a balada acabara e estava satisfeita com a noitada. Silêncios. Tenho escutado você neles por estes últimos tempos. Tem horas que te vejo dizer: "é isso, Dalmoro! Vai lá", antes de outra tragada carregada de alegria. 

São Paulo, 23 de abril de 2014. 

 Para Patrícia Misson, de quem sinto falta também dos silêncios.

domingo, 20 de abril de 2014

Androgyne: a sagração da máquina, a resistência do fogo.

Um homem atrás de mim disse que sentiu angústia diante do que havia presenciado. Ainda que não seja exata, essa talvez seja a melhor palavra para explicar o aperto no estômago que me deu "Androgyne - Sagração do fogo", solo de Alda Maria Abreu, da Taanteatro Companhia. Pelo título da obra, era de se esperar uma discussão da questão de gênero, da indefinição entre o ser homem e ser mulher. 
E é essa a primeira impressão, quando Alda surge no palco em traje masculino, proletário, do início do século passado: calça terno e boina. Essa primeira impressão dura pouco: o olhar vidrado, o sorriso baço, o gestual rígido, a maquiagem nas mãos ampliam a questão daquela pessoa de difícil definição: homem ou mulher? Adulto ou criança? Humano ou boneco? Pessoa ou máquina? O som de bebê, distorcido, repetido, metalizado, enquanto a dançarina desaparecia no palco totalmente escuro, anunciava o nascimento do sujeito do futuro (ao menos para os padrões do século XIX, ainda vigentes, embora disfarçados): o homem-máquina. 
O humano a serviço da máquina (literalmente falando, mas também da "máquina social"), muito bem definido em seus papéis. Três projetores projetam trés sombras de ângulos diversos, sombras duras, muito bem definidas, em que é possível ver os fios de cabelo de Alda. Contornos precisos como precisos são os movimentos a serviço da máquinas; contornos rígidos como rígida é a moral exigida para o bom andamento da máquina (do organismo) social; triplo em seus papéis, mas todos delimitados, separados, divididos - ainda que advindos do mesmo sujeito. A formação do sujeito - a disformidade do humano. A criação de um monstro?
Em dado momento o duplo de Alda deixa de ser mera sombra: numa projeção em vídeo, vemos ela tirar seu paletó em meio a natureza. Ela acompanha o gesto do palco, adentra a tela e some. Alice através do espelho? Fuga para a fantasia? Alda sugada pelo espetáculo? Ou o contrário, ela para fora da máquina espetacular? No vídeo a ampliação do conceito de androginia para a androginia homem-máquina ganha outros aspectos: androginia homem-animal e homem-natureza. O clima tenso persiste, enquanto assistimos a essa perda de identidade humana: Alda se zoomorfiza, se desfaz do ser na lama. A impressão que dá é que o vídeo é longo, não por ser chato, mas por ser mais angustiante (aquele aperto no estômago) do que a dança. 
Alda volta. Nesse seu retorno não há mais polaridades, dicotomias, seja com a máquina, seja com o gênero, seja com a natureza. Seu corpo perde o fato sisudo e ganha cores pintadas pelas luzes. As sombras deixam de estar separadas, se misturam, perdem os contornos rígidos, e ganham elas também cores. Não chega a ser uma redenção - antes um existir livre de definições, de carapuças, de amarras, de correntes. Alda é tudo e por isso nada a define nesse estado. Por isso mesmo Alda é um perigo: o anti-cristo, como simbolizada na sua crucificação de ponta cabeça com uma cruz com Cristo projetada ao fundo. Um julgamento religioso-moral-social a tira dessa existência indefinida (mas plena). Ela só tem direito de existir enquanto definida, delimitada - a androginia homem-máquina. Voltam as luzes dos projetores, as sombras duras, porém falta o corpo dócil que se deixa definir. Há um corpo que se contorce e se retorce, incapaz de ser menos do que é, e não projeta mais do que a sombra de uma massa amorfa - um isso que um dia teve a potência de ser sujeito, mas que a sociedade sujeitou a ser uma forma dócil delimitada em fôrmas impostas. 
Numa constelação de possibilidades, a forma de não se entregar é se consumir como papel no fogo.

São Paulo, 10 de abril de 2014. 


Teaser Androgyne from Paulo Bueno on Vimeo.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Os que protestam e os que reprimem

São três e meia da tarde de uma terça-feira. Na avenida Paulista uma manifestação fecha uma das pistas ao reunir um número considerável de pessoas. São agitadas bandeiras que não conheço. Há retratos em preto e branco - parecem fotos da época da ditadura - e a maioria está vestida de vermelho. Imagino que seja protesto lembrando o golpe civil-militar de sessenta e quatro. Uma faixa que consigo ler mais ou menos fala em "ocupar criar". Não é contra a copa, não há black blocs, não há estudantes. As camisetas dos manifestantes me situam: é um protesto do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Ouço depois no rádio que, sim, protestam contra o golpe, entretanto protestam também contra a repressão policial, e reivindicam moradia digna. A Polícia Militar faz a escolta. Não vejo o choque. Tampouco vejo a "tropa do braço". Os soldados não estão com os habituais escudos, utilizados em dias de protestos habituais. Em compensação, estão todos com suas armas letais no coldre - uma diferença bem marcante para os dias de protestos classe-média. Passo pelo corredor polonês de policiais que espreme os manifestantes. Um dos militares me assusta com seu olhar vidrado, sangue nos olhos, a mão na arma, em busca de um inimigo que justifique sacá-la e apontá-la. Ao redor, nenhum sinal de tumulto ou perigo que justifique sua agressividade (ainda que então restrita à simbólica). No mini-carro-de-som uma mulher saúda os manifestantes e cumprimenta polícia militar - ela conhece quem os escolta e que gritos de provocação podem ter conseqüências bem mais pesadas do que nas manifestações contra a copa das pessoas brancas e com teto. Não é só isso que marca a diferença para os protestos-base que agitam o país desde junho e são noticiados com alarde pela imprensa e comentados em profusão nas redes sociais. A pauta é menos genérica, porque aquelas pessoas vestidas de camisetas vermelhas não reivindicam o impossível: elas ainda reclamam o possível e necessário. Uma mulher, filho no colo, comenta com um pedinte: "quero que meus filhos cresçam e sejam alguém na vida". É esse o desejo de fundo, a pauta genérica não explicitada por aqueles que protestam: ser alguém na vida. Porque só é alguém na vida quem trabalha ou, preferencialmente, quem possui dinheiro. O protesto que presencio não é por mudanças profundas, é por inclusão - e isso dá uma idéia do tamanho do nosso atraso. Para quem é sub-cidadão, cidadão de terceira classe, entrar no sistema produtivo, ser explorado, é um avanço na sua condição social - só pode gritar contra o trabalho quem tem emprego ou quem não necessita, por alguma feliz fortuna da vida. Mesmo assim a maioria chancela esse sistema que a suga e pouco lhe devolve. E é por isso que reivindicam os trabalhadores sem-teto e tantos outros movimentos de excluídos: serem chancelados por esse sistema que as exclui; ser alguém na vida, ter um emprego que os explore e os faça útil (sic) à sociedade; uma moradia que não custe caro e horas em trens e ônibus hiperlotados até o trabalho; algumas migalhas de direitos que a classe-média-demófoba vê como reivindicação de privilégios: saúde, educação, segurança pública de qualidade. Sim, porque aquelas pessoas de vermelho também reivindicam segurança - mas segurança de verdade, que a solução habitual brasileira, a de atirar antes, perguntar depois, só lhes traz mais insegurança. Em meio às camisetas do MTST passam três pessoas também de vermelho - porém no peito está estampada a logomarca de um banco. São alguém na vida, esses três. Ao menos assim diz a sociedade, assim devem se sentir, diante daqueles que protestam. São cidadãos de segunda classe - quem sabe tenham até férias. A miséria de vida que compartilham com os sem-teto é a mesma. A mesma miséria dos policiais militares que fazem a escolta, uns com cara de tédio, outros com olhar de raiva. O militar com a mão na arma sabe que seu emprego não lhe garante realmente ser alguém na vida. Sua vida a serviço do Estado o torna um respeitável homem de bem de segunda classe, pronto para ser humilhado pelos homens de bem de primeira classe, no primeiro deslize que cometam contra alguém de cima e não de baixo. E os de baixo - esses cidadãos de terceira classe que protestam - estão tão perto que a raiva que ele traz no olhar talvez seja para encobrir a descoberta terrificante de ser um deles. A mão na arma serve para lembrá-lo da sua insignificante superioridade. 
O protesto corre pacífico, noticiam no rádio.

São Paulo, 01 de abril de 2014.