sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Tonolec: de quando a cultura indígena não está morta

Uma coisa que aprendi logo que mudei para Sampa foi não me limitar ao consagrado - às vezes acabo por evitá-los por conta das filas ou dos valores -, e arriscar atrações desconhecidas, motivado pela descrição, pelo cartaz, ou por escolha aleatória. Às vezes - a minoria - me dou mal. Outras poucas, me dou muito bem. Foi este o caso nesta sexta, quando fiquei conhecendo a banda argentina Tonolec, dos músicos Charo Bogarín e Diego Pérez, que se apresentaram na Galeria Olido, na Avenida São João.
A proposta da Tonolec é arriscada: misturar música dos povos autóctones do norte argentino (toba, mbya guarani, etc) com música eletrônica. Calcados em mais de uma década de pesquisa e respeito não-museológico pela cultura indígena, o resultado é de alta qualidade: músicas envolventes - mesmo as mais diferentes do que estamos habituados pela indústria cultural -, cantadas pela bela voz de Charo - não só em castelhano, como nas línguas locais -, reforçadas pela presença de palco marcante dos músicos, principalmente de Charo.
Tonolec não se limita a trazer cultura exótica e música folclórica engessadas em alguma sacro-santa forma primeva para o consumo de turistas. À pesquisa da música tradicional segue-se o trabalho sobre esse material enquanto cultura viva - aberta, portanto, a mudanças, de onde a junção com a eletrônica. Cultura viva porque tampouco a mata ao encaixá-la em fórmulas prontas para pasteurizar o diferente em um produto para consumo rápido e descartável - a exemplo da Axé Music e Tchê Music, ou da música chaabi enformada (e deformada) em um dance-pop a la Festa no apê. (Parênteses: não sou grande entendido de música, mas numa puxada rápida pela memória, só me vem o disco Roots, da banda Sepultura, fazendo recentemente trabalho parecido, de incorporação e fusão com músicas indígenas).
Como Charo explica em certa altura do show, Tonolec é o nome em língua toba para uma ave local - a caburé -, famosa pelo seu canto hipnótico: não vejo nome mais apropriado! E tenho certeza que as pessoas presentes na Olido, sexta, assim como eu, esperam por um retorno breve por estas paragens.

São Paulo, 29 de agosto de 2014

Para saber mais: www.tonolec.com.ar ou no Fakebook

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Notas sobre o primeiro debate [eleições 2014]

Escutei apenas aos dois primeiros blocos do primeiro debate entre os presidenciáveis, organizado pela rede Bandeirantes de comunicação (sic). Pelo que conversei com meu pai e li alhures, não perdi muito ao preteri-lo por Norwegian Wood, do Haruki Murakami. Meu pai achou que Genro foi a mais clara nas suas falas, nas suas posições, nas suas críticas e propostas. Em algum canto da internet li um texto perplexo por Boris Casoy ter feito casoyzadas nas suas perguntas (desta feita não era sobre Deus, que quanto a isso todos os candidatos são ferrenhos religiosos). De minha parte, do pouco que acompanhei, não esperava nada de nível elevado, e não me decepcionei - o que considero positivo, dado o estado do debate político conduzido pela nossa Grande Imprensa. 
Levy Fidelix foi além do aerotrem e defendeu propostas fascistóides. Pastor Everaldo, acreditando ter alguma chance, evitou aplaudir a violência homofóbica (deveria considerar isso positivo, ou não há ponto positivo nesse tipo de hipocrisia?). Luciana Genro eu classificaria entre o insosso e o precário. Perdeu a oportunidade de apresentar e defender bandeiras de esquerda na pergunta sobre segurança pública - como desmilitarização da polícia e os direitos humanos - para se apresentar ao público, e quando quis fazer alguma piadinha a la Plinão - ao comentar que ninguém perguntara para ela - acabou soando uma criança mimada. Suas críticas - à predominância das finanças, por exemplo -, ainda que não as julgue inválidas, me parecem equivocadas, visto que, dado sua abstração, seu caráter demasiadamente macro, não geram qualquer reflexão ao eleitor, servindo tão-somente de discurso aos convertidos: favorecer os bancos é ruim por que? Se a vida do eleitor médio melhorou, e ele conseguiu até mesmo comprar um carro ou mobiliar a casa graças ao financiamento de algum banco ou financeira, o que há de ruim com eles? Os que já aceitam essa visão mas tem um pé na realidade, a questão é como fazer: Dilma tentou baixar os juros e se deu mal, sendo bombardeada por todos os lados. Enfim, se a partir do terceiro bloco Genro conseguiu mostrar seriedade na sua participação, foi por conta de mudança radical frente os dois primeiros blocos. O destaque nesses blocos, na minha opinião, foi Eduardo Jorge, do PV. Trazendo à tona questões micropolíticas de esquerda, como legalização das drogas (ponto fundamental para a redução da violência e criminalidade, segundo ele) e a legalização da interrupção da gestação. 
Dilma fez o que era de se esperar de quem busca a reeleição, é líder nas pesquisas e favorita, e está num cenário hostil a ela e ao seu partido: vestida com o figurino de gerente que a elegeu em 2010, cuspiu números tentando se defender. Aécio mostrou que como herdeiro de FHC, só defende seu legado à direita: quando questionado por Jorge sobre aborto, seguiu a linha do PSDB paulista e optou por disputar com Marina, Dilma e pastor Everaldo o voto mais reacionário. Perdemos todos com essa posição. 
Marina foi o outro destaque do trecho a que assisti. Para além do discurso publicitário, a candidata mostrou não possuir nada. A primeira coisa a ser notada na ambientalista que acha que o código florestal é secundário diante da tentativa de assumir o poder do PV, é que ela equivocou ao mudar para o PSB: nem de direita, nem de esquerda é o partido do Kassab, o PSD. A seguir, chama a atenção sua humildade: depois da "providência divina" que escolheu matar seu colega de chapa para que ela concorresse, se propõe a uma tarefa que Jesus não alcançou: agradar a todos e governar com os melhores - sejam seus amigos ou inimigos. Sua modéstia é perceptível quando fala em ser eleita e não ungida. Piadas à parte, o que me chamou a atenção nas três falas da candidata da providência divina foi que ela sempre se remeteu ao falecido companheiro de chapa: ficou claro que é sua estratégia explorar a desgraça alheia para angariar votos. Ademais, sua retórica se mostrou desprovida de plano de governo. Resta, então, a dúvida: quanto tempo ela consegue sustentar seus índices nas pesquisas com base no discurso de emoção e vazio de conteúdo? Não me surpreenderia um fenômeno a la Celso Russomano, que, em 2012, quando saiu da abstração retórica para propostas concretas caiu mais rápido que subiu. É certo que Marina não é Russomano, possui longo histórico de política e de propostas (majoritariamente vinculadas à questão ecológica, o que é ótimo para um representante legislativo, não para o executivo), mas engessada pelos acordos firmados por Campos, sua tentativa de não rompê-los com estardalhaço pode lhe custar caro - tanto quanto mantê-los ou rompê-los com alvoroço. Marina se pôs a difícil tarefa de explicar porque é a nova política quando seus acordos e seu séquito são da velha política.

São Paulo, 28 de agosto de 2014.

Hoje acordei leve [memórias feitas de saudades]

Chego em casa onze e cinqüenta e oito da noite, silêncio me habita. Nem leve, nem pesado: silêncio. Faz um ano. Seguimos nossas vidas, carregamos sua ausência. Sua mãe comentou: "geralmente levo bem, mas tem dias que bate uma tristeza, uma saudade". Imagino. Ou melhor: sei como é - porque a dor da sua família é a mesma que a dos seus amigos. Após as badaladas para o início da missa - na mesma igreja na qual você e seus irmãos foram batizados -, uma garoa fina começou a cair, acompanhando os olhos cheios d'água de Djalma e meus, relembrando aquele fatídico vinte e oito de agosto de dois mil e treze. Não faz sentido - é tudo o que consigo concluir do abismo que se abriu sobre meus pés depois daquele telefone no meio da madrugada. Sei que a sensação de Djalma, depois do telefonema no meio da manhã em Brusque, foi a mesma. Relembro agora de quando nos encontramos, no velório, no dia seguinte: foi o abraço dele - como de tantos outros amigos - que evitou que eu desabasse de vez. Mas a falta de sentido continua - e eu busco você nas coincidências surgidas depois da sua morte: o copo, os e-mails, Luis Gotardo. Na sua casa, a pizza não foi paga com seu VR (que eu não conseguia decorar a senha). Cigarro, café, Coca: cadê você? O QGinho povoado por recordações. As lágrimas me sobem. Seus livros não estão mais nele - sua mãe comprou uma estante nova para a sala. Vejo no mural uma nota de jornal que eu nunca reparara: Se Da Vinci fosse pop. É você na foto da matéria, dois mil e quatro. No elenco, seus amigos. Do curso de teatro surgiram, mas a impressão é que amigos eram desde antes, desde sempre: ali apenas se encontraram. Vocês encenaram Beckett. O absurdo, a falta de sentido (e me pergunto se algum dia te mostrei minha peça "O silêncio", um continuando Godot). Apago a luz, uma tênue claridade branca entra pela janela, o alumínio da escada se destaca: silêncio. Silêncio, apesar da conversa animada na cozinha. Há tristeza, tristeza de saudade - muita. Mas não é uma tristeza pesada. Eu havia notado ao despertar, ciente de que dia estávamos, que eu acordara leve - estranhamente leve. À noite, entendi o porquê, no "Porra, Marcos", do Marcos, no texto das intersecções da cidade e dos afetos do Yane, na conversa com Lauro, no abraço de Djalma, no acolhimento da sua família, no café na sua casa, no sorriso dos seus pais e seus irmãos, na foto sua com Matheus e Victória, sorrindo com língua de fora para a câmera: você nos povoa - você nunca partiu.

São Paulo, 28 de agosto de 2014.

Para Patrícia Misson, que me povoa, como a tantos outros.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Aécio Neves pode dar novo rumo à política brasileira [Eleições 2014]

Com a entrada de Marina Silva no lugar de Eduardo Campos para a disputa da presidência da República pelo PSB, Aécio Neves e o comitê de campanha tucano provavelmente mudarão o foco de suas preocupações de forçar um segundo turno para chegar ao segundo turno (Marina estará muito próximo dele nas pesquisas, se não superá-lo logo de cara). Como o projeto do senador mineiro é para 2018 (claro que ele não vai se incomodar em ser eleito agora, mas todos sabem que suas chances são, desde o início, reduzidas), ele tem a oportunidade mudar a trajetória do seu partido e, conseqüentemente, da política brasileira.
É fala recorrente entre os bons analistas políticos que com a polaridade PT-PSDB no plano nacional o primeiro passou a empurrar o segundo cada vez mais para a direita. De partido de centro/centro-direita com ideais progressistas, o PSDB foi se convertendo em partido de centro-direita/direita conservador/reacionário. Serra, no segundo turno de 2010, foi a coroação desse movimento, transformando o partido outrora alinhado com a tal "terceira via" de Clinton em uma versão light do Tea Party republicano. Para lembrar: na expectativa de atrair o eleitorado mais conservador, que no primeiro turno tinha em Marina sua representante natural, Serra mandou pelos ares o acordo entre PT e PSDB para não entrar em temas polêmicos em que ambos os partidos defendiam bandeiras progressistas, como aborto, maioridade penal, legalização das drogas, casamento homoafetivo. Como faz parte do grande jogo político, que visa a obtenção do poder estatal, o PT teve que se adaptar ao movimento de Serra e caminhar, ele também, mais para a direita, escamoteando bandeiras típicas da esquerda. A atitude de Dilma é criticável, mas o PT ficou ali numa aporia: ou ocultava sua pauta de liberalidade nos direitos individuais ou perdia o poder para um candidato que se pôs claramente contra essa pauta. Garantir o poder era a melhor forma de evitar um retrocesso maior - o discreto Marcelo Crivella é quase inofensivo no ministério da pesca e o tosco Marco Feliciano é peixe pequeno, bem menos perigoso que o pastor-coronel Silas Malafaia.
Como Marina entra como candidata natural dos votos dos mais conservadores, junto com o pastor Everaldo, Aécio tem a possibilidade de escolher se disputa com ela esses votos, reafirmando o conservadorismo da sociedade brasileira, ou dá uma guinada à esquerda, em direção às bandeiras que nortearam a fundação do PSDB e hoje (infelizmente) têm no PT seu único defensor (dentre os grandes partidos). Penso que qualquer que seja seu movimento, ele deve ter dificuldades para ir ao segundo turno - essa escolha é principalmente para os próximos quatro anos.
Se optar por assumir um discurso mais à esquerda, é capaz de capturar alguns descontentes com o PT, mas que votam nele pela questão dos direitos humanos. Com isso, forçaria o Partido dos Trabalhadores a caminhar mais para a esquerda, para manter esse eleitorado - ou para a direita, assumindo o papel agora do PSDB, e perdendo grande parte da sua base histórica. Se pondo à esquerda, a bancada evangélica pode ver seu poder de barganha diminuído, pois na tribuna do senado estará Aécio defendendo bandeiras progressistas, de olho em 2018. No âmbito interno do PSDB, esse movimento poria em xeque o poder dos caciques paulistas, o que pode enfraquecê-lo ou confirmá-lo como grande liderança tucana. O PSDB de São Paulo se transformou em herdeiro do malufismo para o eleitorado abastado mais reacionário e ferrenho crítico dos direitos humanos (ou defensor dos "direitos humanos para os humanos direitos"). Exemplos: rampa anti-pobre e defesa da criminalização do aborto por Serra, projeto de diminuição da maioridade penal por Aloysio Nunes Ferreira (quando o estado de São Paulo não consegue sequer atender suas próprias diretrizes nas fundações de ressocialização de menores infratores, e só consegue ter paz nos presídios porque estes são controlados de fato pelo PCC), exaltação e legitimação de assassinatos extra-judiciais por parte dos seus subordinados por Geraldo Alckmin ("quem não reagiu está vivo" é a versão Opus Dei para "bandido bom é bandido morto").
Há, contudo, uma série de questões que surgem ao se levantar essa hipótese de guinada à esquerda (pouco provável, admito). Primeiro: defender tais bandeiras significa se aproximar de FHC (lembre-se que este perdeu a prefeitura paulistana justo por conta desse eleitorado ultra-conservador e da Grande Imprensa partidária) e se afastar do resto do alto tucanato paulista - estado até hoje hegemônico na legenda. Teria eles força suficiente para tal movimento? Segundo: significa priorizar cálculo político e não publicitário, e é de se questionar se ele teria poder para contradizer seu marqueteiro. Terceiro: Aécio Neves e o PSDB acham mesmo relevante a defesa efetiva dos direitos humanos e ampliação dos direitos individuais?

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Uma pregadora na praça do Correio.

São Paulo, praça do Correio, nove horas da noite. Uma mulher dotada de equipamento microfônico, gerador e uma bíblia prega barbaridades a um pequeno grupo de deserdados da sorte. Depois de ler um trecho do livro explica ao seu pequeno e seleto público: "se você não venceu na vida, se você fracassou nos seus sonhos, é porque você não quis aceitar deus". Depois mandou todos se levantarem para pedir perdão. O leitor ou a leitora, antevejo, traz aquela cara de "que há de novo nisso?". É uma cena banal, eu sei, mas o sadismo da pregadora divina ganhou contornos mais fortes diante dos cobertores genéricos cinza que protegiam os ouvintes do termômetro que marcava onze graus Celsius. A estratégia é batida mas eficiente: afunda mais quem já está chafurdado e depois alça ao mesmo ponto que antes e manda agradecer (e pagar o dízimo, claro!) por tê-la salvado do pecado. A vida de pobreza material se torna vida de pobreza humana - quando não de pobreza material e humana. O mal é sempre culpa sua, o bem, nunca seu mérito. É isso o cristianismo, o amor ao próximo por ele defendido: ser sádico diante do mais fraco e sujeitá-lo aos poderosos, a um sistema que o exclui e discrimina? Assim sendo, só me restar me orgulhar de ser ateu e não-cristão! O leitor ou a leitora mais afim à filosofia alemã do fim do século XIX já deve ter feito a mesma cara de fastio que fez há pouco; reconheço: li pouco e há muito tempo Nietzsche, e desconfio que não chego a falar o mais básico do bom bigodudo. E sei que a exegese (que falar em leitura é exagero. Deturpação?) bíblica da pregadora da praça do Correio, apesar de predominante - afinal, está embasada nos valores hegemônicos de uma sociedade excludente (que se auto-denomina ideologicamente de meritocrática) -, não é a única. Li não faz muito o teólogo Jung Mo Sung, adepto da teologia da libertação. Seu livro - Sementes de esperança - não me fez acreditar em deus (que eu decididamente parei de acreditar - e mesmo de questionar sobre sua existência - depois de ler um artigo do Frei Betto sobre a páscoa), mas não me deixou desanimar na minha crença nos homens - até mesmo os cristãos.

São Paulo, 14 de agosto de 2014.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Sem Campos, como pode ficar a disputa presidencial? [Eleições 2014]

Para além da tragédia familiar e dos amigos próximo com o acidente aéreo que vitimou Eduardo Campos, a morte do candidato do PSB tem potencial para provocar grandes mudanças na corrida presidencial deste ano. Pela primeira vez vislumbro possibilidade real de segundo turno na campanha, se for Marina a substituir Campos (convém ressaltar que todas as pesquisas divulgadas até agora apontam vitória de Dilma no primeiro turno, sendo o tal segundo turno antes distorção dos números por parte de institutos de pesquisa (sic) e jornalistas (sic) da Grande Imprensa).
Eduardo Campos parecia ter alcançado algo próximo do seu teto de votos, sem possibilidades de grandes avanços nesta eleição - e seu projeto era para 2018. Marina, por sua vez, tem o nome consolidado nacionalmente: é de se imaginar que mantenha boa parte dos vinte milhões de votos da eleição passada (quase vinte por cento dos votos válidos), e ganhe alguns mais, por conta da comoção pela morte de Campos. Ademais, seu discurso se propõe o de uma via alternativa à forma de fazer política tradicional - a idéia de rede e não de pirâmide hierárquica -, e dada a saturação da polaridade PT-PSDB pode granjear o voto dos semi-descontentes com esses partidos ou dos muito descontentes com o sistema representativo nacional. E ainda que não seja "candidata evangélica", tal qual o Pastor Everaldo, por ser evangélica, já tem uma barreira a menos para vencer diante do eleitorado mais conservador - nem precisa defender abertamente redução da maioridade penal, manutenção da criminalização do aborto e temas afins daqueles que "são a favor da vida" (sic).
Se Marina Silva assumir a cabeça da chapa, trará preocupações para o bunker petista assim como tucano: Aécio Neves, por ter sido preterido na eleição passada, ainda não tem nome forte nacionalmente - diferentemente das suas adversárias -, e será obrigado a radicalizar sua apresentação como anti-governo - quando para boa parte da população não se trata de desfazer as conquistas petistas, mas aprofundá-las, mudá-las sutilmente de rumo. Dilma Rousseff, por seu turno, terá uma oposição moderada mais forte que a de Campos, e pode se ver obrigada a uma defesa incondicional do seu governo - sem mea-culpas para pequenas melhoras. Sem contar que Marina pode roubar votos tanto de Aécio quanto de Dilma e ainda animar eleitores indecisos ou que votariam nulo - a disputa pela segunda vaga no segundo turno seria acirrada entre os oposicionistas, e creio que a acreana seria favorita.
Há, entretando, um porém anterior às conseqüências da entrada de Marina: a aceitação do seu nome pelo PSB. O partido vem numa curva ascendente e cresceu muito na eleição passada, assumindo certo protagonismo nacional, a ponto de lançar um candidato ao planalto com intenção de votos expressiva - e longe de ser um oportunista-aventureiro, como Collor-1989 ou, em menor medida, Marina-2010, sem suporte no legislativo para conduzir o governo. Marina Silva e seu grupo entraram no PSB somente para esta eleição - após o pleito, terminariam de recolher as assinaturas e criariam o Rede. Os caciques do PSB estão nessa aporia: ou dão a cabeça da chapa para Marina, vislumbram ganhar a eleição, mas perder o poder logo em seguida - correndo o risco de ver o PSB diminuir e sem candidato "natural" para 2018 -; ou põem um nome menos conhecido, insistindo com Marina como vice, com vistas a ter maiores chances de disputa em 2018. O problema desta segunda alternativa: quem?
Pela legislação, o PSB tem dez dias para uma nova convenção. Até lá, várias alternativas serão avaliadas, prós e contras pesados, e a decisão menos onerosa tomada. Enquanto não se anuncia o novo cabeça de chapa socialista, Dilma e Aécio tentarão preencher possíveis espaços que Marina poderia ocupar - um centro moderado com críticas leves ao governo Dilma.

São Paulo, 13 de agosto de 2014.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Uma soneca às cinco

São quase cinco da tarde. O dia está quente e seco. Deitado de bruços, travessado na cama dos meus pais, interrompo a conversa com minha mãe para uma soneca rápida. Peço que me acorde em dez minutos, tempo suficiente para eu relaxar, dormir, sonhar - e babar, eventualmente. Tempo suficiente também para pensar no esboço desta crônica, enquanto ainda não havia dormido e os sons pareciam distantes, obrigando os ouvidos a ficarem mais aguçados. Minha mãe está sentada na cadeira de balanço que foi de seu pai, tira a pele de amendoins recém torrados. É o som mais forte que escuto, mas parece dividir o mesmo espaço que sabiás, bem-te-vis e pardais, que cantam no quintal. O barulho do tráfego ainda é pequeno e os operários das obras em volta já encerraram o bate-estaca. Diferentemente de São Paulo, não há sirenes (talvez porque em Sampa eu sempre morei próximo de hospitais?). Minha mãe assopra - não vejo, mas sei que ela se levantou e foi até a janela. Há um canto de pássaro que não reconheço - não sei se diferente ou apenas misturado em minha mente sonolenta. Logo mais aumentará o tráfego, logo mais o som predominante será o das curucacas se ajeitando no pinheiro para a noite. Logo mais a cidade irá dormir, e o som do tráfego será cada carro que passar pelas ruas desertas. Logo mais os filhotes de coruja, aninhadas no prédio ao lado, começarão seu choramingo estranho por comida. Logo mais elas pararão - como os operários, os carros, as curucacas. Logo mais pegarei o ônibus de volta para São Paulo. Logo mais. Então o que tenho são os sons se afastando, enquanto o sonho se achega - e ao longe, abafado pelo sono, pelo tráfego, pelos pássaros, pela cadeira do meu avô, ouço o sino da matriz bater as horas.

São Paulo, 12 de agosto de 2014.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O espelho - a pequena farsa entre policiais militares e ambulantes

Vejo algo de um patético respeitoso na forma como se dão as relações entre ambulantes e policiais militares no centro de São Paulo. Parecem entrar no mesmo registro do médico que desfila de branco (quando não com estetoscópio no pescoço) no shopping, exalando divindade, ou do crente evangélico no vagão do metrô, arrogante em seu terno de corte e tecido vagabundos. (Parênteses: sem dúvida esse patético respeitoso é mais saudável para ambos os lados do que na gestão Kassab, em que guardas-civis municipais prendiam tocadores de violão (apesar que tem uns que bem mereceriam) e corriam com arma em punho atrás de perigosos vendedores de capas para celular e bichinhos de pelúcia). Aos que não são de São Paulo ou nunca presenciaram a cena: estão os ambulantes com seus devedês, capas para celular, massageadores e o que mais tiver expostos na rua; policiais militares, em geral em dupla, vêm caminhando lentamente pela calçada. Há um corre-corre entre os ambulantes, que recolhem atabalhoados os produtos, como se corressem grande perigo. Alguns caminham até a próxima esquina, outros se escondem da visão dos policiais atrás de bancas de revistas ou de ambulantes regularizados. Mal passam os homens da lei, os vendedores voltam aos seus antigos postos. É óbvio que os militares em questão não estão fazendo o papel de rapa, não querem prender ninguém por comércio irregular. Mas me perguntei hoje, quando vi a cena no calçadão da Barão de Itapetininga, na República: e se os ambulantes ficassem quando os policiais passassem, seriam presos, teriam suas mercadorias confiscadas? Creio que sim. Não para mostrar serviço, nada disso. Oficialmente seria por comércio irregular, mas o motivador de fato seria o desrespeito pelos mantenedores da ordem: estamos cá passando, na autoridade de nossas fardas, e vocês acham que não valemos nada, nem dois minutos de interrupção dos seus negócios? O que resta, afinal, é uma pequena farsa do nosso processo civilizatório estancado a meio caminho: ambulantes se escondem fingindo preocupação autêntica, os militares desfilam como se sua autoridade fosse respeitada plenamente, os transeuntes assistem sem maior comoção. Me lembrei do conto do Machado de Assis "O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana", publicado em 1882 - antes da república, antes da abolição. Não acredito que Machado tenha sido um visionário, antes, nós que ainda não superamos aquela condição por ele retratada há mais de cem anos: um país que nunca viveu como uma comunidade (após a chegada européia) e cuja sociedade até hoje é constituída por castas e corporações, disfarçada numa pretensa mobilidade social - cujos exemplos máximos e quase únicos são o ex-metalúrgico que ascendeu à presidência e o ambulante que virou dono de emissora de tevê (semelhanças com espetacular concentrado e difuso é coincidência). O cidadão só tem direito a ser sujeito a partir do momento em que veste algum insígnia: médico, juiz, advogado, policial, fazendeiro, pastor, novo-rico ou, na ausência de um cargo com valor social, a ostentação da graça dos eleitos para o reino de deus (e congêneres). O fato de ser uma pessoa, sem maiores adjetivos, não dá valor nenhum ao indivíduo - seja padre, empresário ou pobre. E enquanto nossa sociedade admira exemplos burlescos de homens de sucessos, policiais militares desfilam o pouco de valor que suas fardas os imbuem para os desvalidos de tamanha sorte.


São Paulo, 06 de agosto de 2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Frida K. [retratos feitos de memórias]

Quando penso em sons da minha infância, há dois que me marcaram muito. Um deles é o de uma serraria que ficava a uns sessenta metros da minha casa (ao lado dela havia um terreno baldio com pínus, onde eu pegava pinhas para brincar de jogar embaixo dos carros). Aquela serraria, na minha memória, barulhava o dia todo, só dava um intervalo na hora do almoço (assim como os mercados, fechados do meio-dia às duas). O outro som é o de algazarra de crianças no meio da manhã, no recreio da escola que ficava na esquina da minha casa. Frida K. era sua dona. Ela imigrara da Áustria para o Brasil no entreguerras, quando jovem. Migrara para Pato Branco com seu marido quando jovem era a cidade. Mais do que simplesmente uma das pioneiras da cidade, foi organista da igreja matriz, professora de piano e fundadora da segunda escola da cidade, em 1954, que funcionava nos porões da sua casa. Casa na qual entrei poucas vezes, geralmente com minha mãe - numa delas até dedilhei qualquer coisa no piano. Recordo de uma vez ter ido sem minha mãe, se bem lembro, foi também a única vez que fui até a varanda, que dava para os fundos do terreno - o pátio da escola abaixo. Ela havia ido passear em sua terra natal, Viena, e na volta trouxera um presente: uma bola de assoprar, tipo bóia de piscina infantil. Brinquei bastante com ela, mas uma coisa me deixara intrigado: se ela havia ido para a Áustria, por que havia um "Made in China" na bola? (Eu era pequeno e o mundo era outro). Às vezes, de casa, ouvia ela tocar órgão. Mais comum era escutar seus alunos tocando piano quando passava em frente da sua casa. Mais comum ainda era encontrá-la na janela, olhando o movimento da rua. Com o tempo ela foi ficando com a memória recente prejudicada. Encontrei-a uma vez na janela, como de costume. Aquela vez parecia pensativa, olhava para longe, como se tentasse enxergar algo faltante. A cumprimentei, ela encetou conversa. Falou de como Pato Branco havia crescido, brevemente comentou como era antigamente, concluiu com um reticente "é... Pato Branco cresceu...", suspirou, olhou em direção ao centro, aquele olhar distante, e recomeçou a mesma história, exatamente igual. Se repetiu ainda outra vez, antes de eu me despedir e seguir para casa. Ainda não estava assim quando sua escola foi vendida pelo filho e mudou de endereço. Assim estava quando a casa foi vendida a um desses "homens do progresso" da cidade (que encheu as burras com especulação a imobiliária agressiva contra a urbe), no início deste século, que no lugar construiu um prédio - batizado de Residencial Dona Frida, veja que homenagem! Pato Branco deixou de existir para mim nesse momento - e Frida K. ainda viveria quase dez anos mais, se aproximando do centenário. Hoje sonhei que carregava tábuas da madereira da serraria para a casa dos meus pais - era para construir uma estante pros meus livros, e eu era o eu de hoje. Ao atravessar a rua que dava na casa da dona Frida, vi que ela estava numa janela da lateral da casa - que, na vida real, ela pouco freqüentava, por ser alta e numa rua de menos movimento de pedestres -, o olhar melancólico em direção ao centro da cidade (melancólico é um termo que não lembro de poder empregar para ela). A casa já estava pintada de verde, os novos moradores terminavam de arrumar sua mudança, já não havia nada da dona Frida lá, a não ser a própria, esquecida, contemplando uma última vez a cidade do seu canto, como fizera por cinqüenta anos. Ao acordar, lembrei da cena de Frida K., presa ao passado pelo Alzheimer, a repetir "é... Pato Branco cresceu..."


São Paulo, 01 de agosto de 2014.