domingo, 28 de setembro de 2014

Dark Rooms ao nosso redor, dentro de nós. [Diálogos com a dança]

Entre o provocante e o anestesiado. Entre o infantil e o adulto. Entre o lúdico e o violento. Qual meio é esse em que se situa as salas escuras onde pessoas se encontram e se penetram, sem saber quem é o Outro? Os sentidos à flor da pele - mas quem habita essa pele? Entre a obrigação de gozar e o desejo de dilapidação do corpo alheio, há um sujeito que age ou apenas um corpo que reage? Esses são alguns questionamentos que _DARK_ROOM_, montagem de Claudia Paula para a iN Saio Cia. de Arte, provoca no público.
O palco fechado dos quatro lados e vazio no seu interior é ocupado por cinqüenta espectadores, junto com seis dançarinos e dois técnicos. As cenas - se é que podem ser chamadas assim - ocorrem em algum lugar dentro desse limite, entre os espectadores, que se movimentam para onde a cena aparentemente chama, e também se movem livremente pelo espaço. Nesse espaço algo abstrato, algo familiar - a maioria ali conhece, se não dark rooms, baladas que se assemelham ao palco -, há uma certa dose de risco, tanto para os intérpretes - um homem na meia idade que resolve apalpar uma intérprete, ou algum espectador que decide se juntar aos seis corpos suados -, quanto para o público - um chute no joelho, uma cabeçada no ombro, para ficar nos exemplos que me tocaram. 
Uma dark room é - no imaginário, ao menos - um lugar para quebras. _DARK_ROOM_ também provoca as suas: pausas na música, silêncio para conversas, interrupções do movimento - espaços para o encontro com o Outro, ou apenas momentos de constrangimento? Fico com a segunda opção: a música do tempo infinito não pode parar.
Não raro as cenas começam com certa leveza: jogos infantis ou adolescentes por corpos já feitos - o puxar a roupa ou o tapa de brincadeira, a alegria abobalhada adolescente -, porém não tarda tais brincadeiras perderem sua graça e não resta delas nada mais que agressividade: o tapa na cara, o empurrão que derruba, o apalpar violento: a descoberta do corpo Outro se transmuta em dilapidação desse corpo, caminho e empecilho para o gozo.
Em que medida o mero contato de pele satisfaz nossos desejos de reconhecimento? Esses contatos são capazes de reverter o desejo de aproximação em aproximação do desejo? Há sujeito por trás daqueles corpos que dançam? Há sujeito dentro daqueles corpos que observam? Ignorar o Outro permite aprofundar em si? Em que medida em nossas dark rooms particulares não fugimos desse contato com o Outro e, conseqüentemente, do contato conosco? O narcisismo desesperado nosso de cada dia é capaz de produzir algo mais que excitação, insatisfação, violência ou apatia? 
_DARK_ROOM_ é mais que um exercício de questionamento, é uma afronta à nossa normopatia, nossa capacidade de adaptação e aceitação. Precisa nas perguntas, _DARK_ROOM_ nos abandona sem respostas.

São Paulo, 28 de setembro de 2014.

ps: impossível não lembrar de alguns livros após assistir ao espetáculo. Três pulularam em minha mente: A música do tempo infinito, do psicanalista Tales Ab'Saber; Mal-estar na atualidade, do também psicanalista Joel Birman, e Amor líquido, do astro pop da filosofia, Zygmunt Bauman.

sábado, 27 de setembro de 2014

Culpa dos astros

Amiga minha comentou, há alguns dias, que quando me conheceu a primeira impressão que teve foi que eu era uma pessoa séria, em alguma medida um pouco brava. Agradeci a sinceridade e lamentei a impressão (equivocada). Faz um tempo percebi que no curso que faço a primeira impressão - e as subseqüentes - não era muito diferente. Resolvi, então, pôr em ação um plano para que as pessoas percebessem que sou, na realidade, uma pessoa "fofa", vamos dizer assim. Tal plano incluiu camisetas da Amelia Poulain ou de borboleta (pintadas por mim), e o uso intensivo de "momentos poliana", sempre vendo os problemas pelo lado bom. Em vão: me avisaram ontem que não sou fofo - nem perto disso. Entre acusá-los de caluniadores ou achar que o culpado sou eu, lembrei de conversa que tive, faz um certo tempo, com outra amiga. 
A conversa dizia respeito sobre minha fama (injusta, ela também) de indeciso. Minha lógica é simples: se quero muito algo, digo; se não quero algo, também digo; se estou num pode ser como pode não ser, deixo para o outro decidir. Como é possível notar, não é indecisão, apenas tolerância ampla dentro da margem estreita do que gosto - ou não desgosto. Pois bem, estávamos eu e essa amiga empacados no centro de São Paulo, sem conseguir decidir que rumo tomar, diante de tantas opções interessantes, quando ela perguntou, como quem não quer nada, qual meu signo: Libra, respondi. Então é isso!, foi sua exclamação, como se eu tivesse dado a chave da compreensão do universo: não é que meu problema seja ser indeciso, meu problema é ser de libra! E tudo fez ainda mais sentido quando disse que minha lua é em escorpião, o ascendente no signo seguinte (que eu não sei qual é, e estou sem internet pra pesquisar), e que se tiver algo mais, signo descendente, signo progenitor, signo regente, spala, solista ou sei-lá-o-que-mais, estão todos nesses três, conforme mapa astral tirado por uma terceira amiga: é isso, meu problema é decididamente astrológico!
Desde então tenho pensado seriamente em trocar de signo, única alternativa que me sobrou para resolver essa proclamada indecisão que me persegue. Perguntei a essa amiga, mas ela disse não entender tanto para poder me aconselhar. Penso eu cá: não deve ser algo difícil de ser feito: tenho o original da minha certidão de nascimento na gaveta do guarda-roupa, um escorregão na caneta e, ops, nasci três horas depois do mês seguinte, de modo que perco minha librianisse e sua conseqüente indecisão.
Coincidentemente (seria o destino?), estavam hoje meus colegas discutindo sobre signos quando cheguei na sala - porque curso de teatro, ao menos nesse aspecto, é igual ao de psicologia: o que mais tem é gente que lê mão, tarô, faz mapa astral e quetais da vida. Fiquei ali de lado, apenas esperando uma brecha na conversa para perguntar se minha anti-fofura natural não seria exatamente minha, mas culpa de libra, e se mudar de signo não resolveria meus problemas. Antes de perguntarem o que eu queria, a última coisa dita era que pessoas com lua em escorpião eram boas de cama. Quando abriram para eu falar, calei, resolvi repensar: vai que essa coisa de libra com lua em escorpião e ascendente no signo seguinte não seja tão ruim - tem seus pontos positivos (coisa que minha amiga não sabia, ou não me avisou). Até segunda ordem, minha certidão segue dormindo quietinha na gaveta, sem nenhuma caneta passar por perto.

São Paulo, 27 de setembro de 2014.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Arte na rua num início de noite

Início da noite, caminho pela Paulista. Pessoas nas calçadas, carros na rua - muitas, muitos. Reparo em dois edifícios sendo terminados, erguidos na imponência de suas altas paredes de vidro, vazias de histórias e de significados - que não a marca da força grana que ergue e destrói coisas belas. Eis São Paulo, na poesia melancólica de suas ruínas, soterradas por quem tem mais. Passo por encoletados que pedem um minuto da atenção, oferecimentos de ingressos para teatro, santinhos de políticos e conselhos espirituais, por pedintes, vendedores de artesanatos e de milho verde, por artistas de rua diversos. Três deles tocam quase na esquina com a Brigadeiro Luiz Antônio. Bateria, teclado e violino. Tocam algo meio trilha sonora de filme, quase um Kenny G (sim, foi um juízo de valor) sem saxofone, menos grudento e mais melancólico. Poucas pessoas param para ouvi-los - três, para ser mais exato. Um deles, mais distanciado, tem no rosto as marcas da força da gravidade, de uma vida sem cosméticos. Traz entre os dedos um cigarro aceso, quase no final. Dedos grossos apontam uma vida de adversidade. Está sentado sobre sua carroça de recolher material reciclável, observa a banda com o olhar ausente, concentrado e distraído ao mesmo tempo, a música a pô-lo em algum outro registro de tempo - ou de espaço. Eu sigo a passos rápidos. Atravesso a rua.

São Paulo, 25 de setembro de 2014.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Dança de pequenos ruídos e amplas pinceladas

Uma dança de pequenos ruídos e amplas pinceladas, entrecortados por movimentos constritos e silêncios. Em Iki - Respiração, Toshi Tanaka obriga o público a se desfazer, temporariamente, da temporalidade fora da caixa preta da sala Paissandu, na Galeria Olido, centro de São Paulo. Obriga também a repensar não apenas a correria so nosso dia-a-dia, como qual a tônica desse universo apresentado por uma hora e quinze minutos. 
Silêncios, pausas, permanências, rompidos em um impulso - constrito -  para a pincelada de nanquim sobre o papel. Pincelada precisa - não no sentido de se expressar em um só golpe, mas de exteriorizar o necessário. Toshi golpeia o papel, ou apenas imprime nele a força criadora de sua coreografia? A relação agônica entre homem e meio vencida pela simbiose de ambos. 
Um mestre, quatro discípulos - leio na cena a força da tradição. Uma tradição que desconheço, não me diz respeito, mas me surpreende, com a qual me identifico - ao mesmo tempo que estranho. 
O som do vento, produzido guturalmente pelo artista, o nanquim, que escorre pelo corpo semi-nu antes de marcar o papel, a pincelada curva. As quatro telas pintadas são alçada no espaço - em uma delas, em seus amassados da performance, tenho a impressão de ver a silhueta de um corpo, suas dobras impressas antes da tinta. Será? 
O lento desdobrar do papel no chão, a ajudante tornada sombra, o reaparecimento de Toshi, corpo novamente coberto - e pintado. O cheiro de nanquim, o silêncio, os ruídos, o som gutural. A tradição, a performance, o estranhamento - a estranha sensação de se sentir diante de uma cena familiar que eu nunca vi, não entendo exatamente o que tenta fala, mas me toca.   

São Paulo, 24 de setembro de 2014

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Internet x imprensa nas eleições [Eleições 2014]

Li em algum formador de opinião da auto-proclamada Grande Imprensa que o impacto da internet nestas eleições está abaixo do esperado. Não sei quanto esperavam, mas me parece que esse impacto, se não é positivo, no sentido de construir uma candidatura, tem tido forte papel negativo, em desconstruir discursos, em especial os discursos da Grande Imprensa. Desde a ascensão do PT ao executivo federal, a mídia corporativa assumiu - velada mas explicitamente - o papel de partido oposicionista - como aponta Maria Inês Nassif. Veladamente nas suas capas e reportagens, explicitamente em discursos internos. 
Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes se transforma em uma verdade. A Grande Imprensa tupiniquim desde longa data tenta isso (as repotagens da Rede Globo sobre a eleição no Rio de Janeiro, em 1982, sobre a campanha das Diretas Já, em 1984, a edição do último debate de 1989, a crise quebra do país antes das eleições de 1998, por exemplo), e diante de recentes fracassos, aumenta a dose a cada eleição, atuando cada vez mais como sistema. Mesmo assim, sua tática não tem dado muito certo - não sei se errado estava o ministro nazista ou se nossa Grande Imprensa é que é de uma incompetência constrangedora.
Desde o mensalão o PT é acusado diuturnamente. Nos últimos dois anos e meio, a dose foi cavalar. Mesmo depois de longo período de fogo cerrado, diário, o PT segue forte, e Dilma Rousseff ainda lidera a corrida presidencial, é favorita, e já se volta a cochichar em vitória no primeiro turno (possibilidade que creio publicidade mal-feita por jornalistas de má-fé e bons salários). 
A campanha anti-petista nível hard, em que a indústria cultural agiu como sistema, atacando por todos os lados - imprensa editorial, televisiva, radiofônica, hebdomadária, diária, blog -, teve início em 2012, no julgamento do chamado mensalão, no STF, em cronograma feito sob medida para o veridicto sair na semana anterior às eleições municipais - não fosse uma pedra no caminho que o atrasou. Findo o julgamento, vieram os tais embargos infringentes, na ânsia de garantir direito posto inicialmente de lado, o de ampla defesa. Isso tomou todo o ano de 2013 e parte do 2014. Julgados os embargos, qualquer coisa virava notícia, de pacote de sanduíche no lixo da penitenciária a eventuais falsos laudos médicos, passando por depoimentos de vizinhos de parentes de conhecidos de carcereiros da Papuda sobre privilégios. 
Ao se dar conta que o discurso do mensalão não se convertia em mais votos à oposição, buscou-se novo bode expiatório, encontrado na Petrobras e nas acusações de irregularidades e perda de competitividade - vale lembrar que dependesse do PSDB e da Grande Imprensa se chamaria Petrobrax e pertenceria há muito tempo a algum grupo estrangeiro, ou ao amigo do rei Daniel Dantas. Mais de meio ano de capas, manchetes, notícias e reportagens sobre os eventuais desmandos na estatal. No rádio, nas principais notícias do dia a cada meia hora, ou de vinte em vinte minutos, onde tudo pode mudar (menos a ladainha contra o governo), ou no rápido giro de quinze minutos, sempre há algo a ser dito sobre o assunto, que seja notícia velha ou irrelevante, ou suspeita sem fundamento.
E aqui, imagino, possa ser sentido o impacto da internet nas eleições: mesmo ao se utilizar de todos os seus meios, a Grande Imprensa não tem mais o domínio da informação como tinha antigamente: portais alternativos de notícia, reportagens compartilhadas em redes sociais, blogs de analistas independentes, tudo isso permitiu que boa parte da população pusesse em suspeição as notícias divulgadas pelos Marinho, Civita, Saad, Frias, Mesquita e afins. O Jornal Nacional amarga perdas sucessivas de audiência. Diários e hebdomadários amargam vendas declinantes - vejo pelo edifício em que moro, sou o único assinante de jornal, a porcaria do Valor Econômico, e um dos cinco assinantes de revista semanal, a Carta Capital. 
É nessa quebra do quase monópolio da verdade e da mentira pelo Quarto Poder (que se sabe um, mas recusa se submeter ao guarda-chuva legal e de contra-poderes democráticos) que a internet têm tido relevância nestas eleições. Perde muito da efetividade manchetes nos jornais, capas nas revistas, notícias nos telejornais, se o eleitor menos interessado se fia pela notícia compartilhada por conhecidos que têm em alguma estima. Sim, a Grande Imprensa também está presente nesse espaço, com seus portais e versões on-line, porém não tem a força pré-internet.
Mas nesse ponto concordo com o tal formador de opinião que não me recordo quem é: o impacto da internet é pequeno, contudo demonstra a necessidade urgente de uma lei da mídia que desoligarquize os canais midiáticos tradicionais e submeta esse quarto poder ao crivo da lei e da democracia.

São Paulo, 22 de setembro de 2014

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Apenas outro momento da intifada brasileira.


Início da noite, me encaminho para a avenida São João, ao trecho que freqüento ao menos uma vez por semana, onde fica a Galeria Olido, um dos palcos da dança paulistana. Ficara sabendo do ataque militar - amparado pela justiça - aos trabalhadores sem teto no meio da tarde. Praticamente uma quadra antes da São João, na Ipiranga, carros dos bombeiros e da polícia ocupam a pista da esquerda. Alguns militares têm armas em punho, de guarda para abater algum maluco suicida que resolva atacar a tropa. Outros estão em rodas, como se fosse intervalo de trabalho, conversam, fumam e gargalham. A banalização do mal me vem à mente. Dou uma de joão sem braço e tento entrar na São João. "Está interditado, não está vendo?", fala um guarda, arma em punho. Obedeço e atravesso a rua. Havia visto imagens na tevê e fotos na internet. Justiça, reintegração de posse, ataque de objetos por parte dos sem-teto, revide da polícia militar - o roteiro é banal nestes tristes trópicos, tal como a cobertura da Grande Imprensa seguir a linha da polícia militar pacífica se defendendo de uma turba violenta. Era esse o discurso inicial sobre as manifestações do Passe Livre, ano passado - banderneiros, violentos, vagabundos. E onde estão aqueles milhares de homens-gado e mulheres-vaca a gritar "sem violência" e pedir mudanças? Ou o fato da PM não ter agredido aquela massa de chimpanzés mal-adestrados que gritavam "sem violência" é prova de que os sem-teto fizeram por merecer? Lembro dos manifestantes - "manifestantes" - vestidos com as cores do Brasil, tirando foto com os militares. Esse pessoal não veio para a São João, aqui estão só os chatos e os jornalistas. As imagens de mais essa intifada tupiniquim me dão mais que raiva, me dão vergonha: aqueles pobres-coitados fardados agem em meu nome. Não têm meu respaldo, mas têm o da maioria da população de São Paulo, que elege Maluf (estupra mas não mata), Alckmin (quem não reagiu está vivo), Aloysio (pela redução da minoridade penal, enquanto crimes de bilhões de reais são ocultados pelo seu partido), Serra (higienização social do centro de São Paulo) e tantos outros violadores dos direitos humanos, criminosos lesa-humanidade. Quando era ocupado por prédios abandonados, esperando valorização, e moradores abandonados à própria sorte pelo poder público, o centro era tido por um lugar sem vida, apesar da profusão de línguas, culturas, cores e sabores que o marcavam. Agora que pululam empreendimentos imobiliários e dinheiro floresce onde antes era quase um aterro social, as pessoas que nunca deixaram o centro morrer são tirados a bomba e balas de borracha para "revitalizar" com a vida de quem tem direito de viver. Na internet, fotos da depredação dos sem-teto: curiosamente, em mais de três anos que freqüento aquele local, à noite, com aquela e outras ocupações, nunca tive problema algum, nunca presenciei cenas de violência, que não a de seguranças privados e policiais militares. Dizem que a diplomacia é a guerra por outros meios, no Brasil, a justiça é a violência por seus próprios meios: que língua tão incompreensível falavam aquelas muitas famílias que não foi possível dialogar, negociar com elas? Por que a elas o único diálogo legítimo é o de obedecer as ordens dadas pela justiça, para favorecimento de um, em detrimento de muitos, em detrimento da cidade? Isso é diálogo? Resolver problemas na base da porrada é democrático? Os cinqüenta mil assassinatos por ano, as agressões gratuitas, por coisas pequenas, mesquinhas, insignificantes, a violência simbólica disseminada de alto a baixo da sociedade, tudo isso nos veio em mais uma epifania neste dia dezesseis de setembro, no centro de São Paulo. Vêm os carros do choque, já cumprida sua missão de garantir a propriedade. Reproduzo um gesto que os governantes do Estado mais rico da nação e seus eleitores fazem inconscientemente em suas salas de estar (e nas seções de votação): levanto o braço direito, em saudação nazista. Os carros passam, talvez por sequer entenderem o significado do meu gesto, talvez por não terem visto, talvez por estarem ocupados segurando suas armas, nenhum soldado me saúda de volta - assim como nenhum parece ter se sentido ofendido.

São Paulo, 16 de setembro de 2014.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O destino manifesto de José Serra: fundar e afundar o PSDB

Se de início não empolgava, a candidatura do tucano Aécio Neves agora definha - graças à entrada de Marina Silva na corrida eleitoral. Não creio que Aécio possa já ser excluído do segundo turno, porém é uma tarefa cada vez mais árdua, dificultada por cálculos estratégicos do PSDB, preocupado em não queimar pontes com a candidata da providência divina. Estar nessa situação incômoda - alguns analistas apontam a possibilidade do PSDB se tornar um partido médio no congresso após estas eleições - não deve ser posto na conta do mineiro, pelo contrário, ele corre o risco de pagar pelos erros alheios. Erros da cúpula do PSDB ao aceitar a candidatura de José Serra, em 2010. Tivesse disputado a presidência há quatro anos, como era seu intuito, Aécio seria conhecido nacionalmente e estaria próximo do patamar de votos de Marina. Isso para não falar na guinada à direita mais reacionária dada por Serra (em direção a Alckmin, é verdade, mas até então essa direção era mais aflorada no PSDB paulista e escamoteada no nacional), reforçada por Aloysio Nunes no senado federal - um desserviço não apenas para o partido como para o país.
Ocorre que o PSDB parece ser, diferentemente do PT, um partido que não aprende com seus erros. Deu a legenda para que Serra disputasse a prefeitura paulistana em 2012 e agora a vaga no senado.
Serra tem chances de vencer a disputa contra Suplicy: pesquisas dão empate técnico entre os dois - se é que pesquisas valem algo, em 2010 Aloysio Nunes teve um milhão de votos a mais do que apontavam as pesquisas -, e o tucano conta com a candidatura de aluguel de seu pupilo político, Kassab - que até então eu não entendia por que estava disputando o senado e não a câmara, muito mais importante para o futuro de seu partido. Ouço a vinheta do PSD: pergunta se o eleitor lembra de algum projeto de Suplicy voltado para São Paulo. Pergunta capciosa - eu mesmo não lembro, e olha que sou costumaz ouvinte da Voz do Brasil. Mas logo me dou conta: também não lembro de nenhum da Marta ou do Aloysio. Assim como não lembro de projetos para o Paraná propostos por Roberto Requião, Álvaro Dias ou Gleisi Hoffman. Pouco depois vem a propaganda de Serra, prometendo defender a grandeza de São Paulo no senado federal - só faltou a música do Ira! "Pobre São Paulo" como trilha sonora. O mais alarmante: seu discurso claramente fascistóide, de orgulho varonil do solo, encontra eco na população paulista - ao que tudo indica, principalmente numa classe média remediada e ignara (apesar de seu diploma da USP ou da PUC) e desiludida por não conseguir alcançar a parte rica da Belíndia, tendo que conviver com a rafuagem ascendente, seus iguais só que mais pobres (de grana): e se o Nordeste alcançar São Paulo?
Se vencer a disputa pelo senado, não me surpreenderia Serra insistir no seu destino manifesto de ser presidente do Brasil e concorrer em 2018. Entretanto, se perder, o estrago para o PSDB pode ser enorme - aí sim eu poria o PSDB sob forte risco de se tornar uma legenda média, se tiver sorte. A cada eleição majoritária que Serra concorre, portas são fechadas a possíveis novos nomes do partido. Se a disputa em 2010 tem custado a deste ano, a de 2012 custará a de 2016 e já dá para vislumbrar a conta destas eleições em 2018: supondo que Alckmin se reeleja, mais provável que ele dispute uma vaga no senado, junto com Aloysio, ou a presidência da República, se Aécio sair queimado e Serra não conseguir, outra vez, a vaga. Que outro nome de projeção estadual tem o PSDB para disputar o executivo? O campineiro Carlos Sampaio, que não ganha nem a prefeitura da cidade? O Matarazzinho, envolvido nos casos de corrupção do Metrô e da CTPM? Serra de novo? A disputa pela prefeitura de São Paulo, em 2016, seria a saída para fazer um novo nome para disputar o estado dois anos depois - porém esse nome teria mais força somente para 2022.
Quem me conhece sabe que não tenho qualquer simpatia com o PSDB, mas tampouco encampo o anti-tucanismo visceral. O que lamento é a guinada ao reacionarismo udenitsta dada pelo PSDB de São Paulo, especialmente por Serra, em 2010 (de onde a míngua do partido ser positiva), e a ausência - temporária, creio, espero, porém por quanto tempo? - de um interlocutor de peso com o PT federal. A incompetência do PSDB em defenestrar Serra pode custar mais do que ao partido: à própria democracia liberal burguesa tupiniquim.

São Paulo, 09 de setembro de 2014.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O homem sem resistência

(Livre interpretação de Black Out, da Plataforma Shop Sui)


"O homem sem resistência" - se eu precisasse resumir em uma frase a coreografia Black Out, de Fernando Martins, da Plataforma Shop Sui. Algo bastante pertinente, diante do que diz o programa, de que a obra "relata os demônios interiores que atormentam um ser nas últimas horas de sua existência": há como resistir ao indefectível? Minha leitura, contudo, não foi de alguém em suas últimas horas, mas de um indivíduo em seu dia-a-dia, alguém que vive a vida que lhe permitem, se adaptando ao que há, sem questionar o porquê, tentando poupar o peito para evitar a dor.
Diante de um trecho de música repetido exaustivamente, compulsivamente, presenciamos um corpo que parece não pertencer ao seu sujeito - o qual está mais preocupado em desviar das luminárias e seguir para o próximo foco aceso. Em um trabalho corporal de impacto, vemos o intérprete fazer alegorias a, citações de movimentos estereotipados. Movimentos executados com precisão, mas que não lhe pertencem. E nesse estranhamento do sujeito consigo, não só os movimentos se desfazem, como o próprio corpo se desfaz. Mais: se desfaz enquato pessoa, em quanto sujeito. De não resistir em não resistir, de foco em foco, de ordem em ordem, ao não encarar essas pequenas e banais violências mudas, não opôr resistência a elas, fugir do enfrentamento, da dor, o sujeito vai sendo reduzido e massacrado em sua humanidade, ele se zoomorfiza - em boi, em pavão. Não por acaso seu grito - amplificado por um megafone - é metálico, não-humano. Um grito de desespero de quem não é mais ouvido em sua aflição. 

São Paulo, 05 de setembro de 2014.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Picotes eleitorais


Ao que tudo indica, Marina Silva "russomanizou" mais cedo do que era de se esperar: tão logo saiu das generalidades abstratas para propostas concretas, tropeçou nas próprias pernas (e alheias, postas por seus aliados), e para quem já era vidraça, abrir a guarda pode ser mortal - pedras é o que não falta. Ao obedecer a ordem do pastor Malafaia, e voltar atrás na sua política sobre homossexuais, Marina viu sua credibilidade escorrer entre pessoas mais à esquerda, desiludidos com o petismo e críticos à imiscuição entre Estado e religião. Pior: para quem tenta vencer eleição para o executivo sem base legislativa, é importante o culto à personalidade (quer dizer, isso no Brasil é importante com ou sem base) e a demonstração de força, para garantir a aura salvacionista (Collor em 1989, Heloísa Helena em 2006 e Marina Silva em 2010). A hesitação da candidata do Rede vai refletir na confiança dos eleitores que ainda hesitavam se votariam mesmo nela. Não está perdida, mas terá trabalho para recuperar a imagem.
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Na segunda-feira, em sua coluna no Valor Econômico, o filósofo Renato Janine Ribeiro, entusiasta de Marina Silva, apresentava contradições do programa de governo da candidata, como quando esta falava em ampliar a participação popular na política e, na hora de indicar ações concretas, propôr unificação de todas as eleições, com mandatos de cinco anos: tamanho intervalo, comenta o filósofo, só ajuda a desmobilizar ainda mais a discussão política. Concordo com ele e desde muito defendo que as eleições deveriam seguir a cada dois anos, porém unificando eleições executivas em uma das datas e eleições legislativas na outra.
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A Grande Imprensa, por seu turno, age como biruta de aeroporto que tenta mudar a direção do vento. Primeiro dizendo do medo petista com vitória de Aécio no segundo turno, enquanto todas as pesquisas indicavam vitória da presidente no primeiro turno. Agora o PT teme Marina que, pelas últimas pesquisas ganharia no segundo turno (o detalhe é que as mesmas pesquisas indicam que três quartos dos votos de Marina ainda são influenciados pela comoção com a morte de Eduardo Campos). Raymundo Costa, precaríssimo colunista do jornal Valor Econômico (dos grupos Folha e Globo), fala que Aécio Neves e o PSDB cogitam renunciar à disputa para apoiar Marina Silva. Talvez ele tenha alguma informação privilegiada. E essa informação é algo como a decisão de acabar com o PSDB: não faz sentido renunciar à campanha para se juntar a uma ex-petista, simplesmente para derrotar o PT. O PSDB perderia credibilidade e boa parte do seu eleitorado fiel, e Aécio viraria, na melhor das hipóteses, um morto-vivo político.
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Brizola, que não deve ter um descanso muito tranqüilo na tumba, diante do que foi feito dos partidos nos quais fez história - o PTB de Vargas e seu PDT pós-golpe -, revolve-se ainda mais em tempos de eleição. Na propaganda do rádio ouço um candidato a deputado pelo PDT, coronel qualquer coisa, criticar o estado frouxo, a parcimônia com a criminalidade - justo no partido de quem foi acusado pela elite carioca de desrespeitar os desrespeitos aos direitos humanos pela polícia militar nas favelas do estado. Na rádio Estadão, em entrevista antes do debate do SBT, Brizola é citado pelo Pastor Everaldo. Definitivamente, a um dos personagens mais importantes - se não o mais importante - da política brasileira da segunda metade do século passado, nosso Cipriano Barata do século XX, ser citado por pastores, ver seu partido dar guarida a policiais raivosos e a representantes da rede Globo (Lasier Martins, no Rio Grande do Sul), não faz jus à sua luta.

Para relembrar:

São Paulo, 02 de setembro de 2014.