quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Uma vitória à esquerda [Eleições 2014]

 Finda a eleição presidencial e a contagem dos votos (sem direiro a recontagem), pipocam as interpretações dos dados - nada mais natural. Infelizmente, natural também é o preconceito que norteia algumas dessas análises - não que seja aceitável esse tipo de mentalidade, muito menos o espaço que ela ganha na Grande Imprensa corporativa, mas antes esse grave problema escancarado a seguir acreditando no mito do brasileiro cordial. Também eu cá arrisco meus palpites do porquê da vitória da Dilma por tão estreita margem, também eles calcados em preconceitos - menos movidos a ódio, quero acreditar.
 A Grande Imprensa nunca foi imparcial e sempre jogou sujo para derrubar candidatos à esquerda, não seria diferente agora. A tentativa de Veja de interferir na votação com acusações sem provas contra o ex e a atual presidente da república foi só um último ato de uma campanha anti-PT de longa data, que busca imprimir ao partido a pecha de O partido corrupto, deixando na entrelinha subentendido que nos governos tucanos não foi e não é assim: casos como o mensalão do PSDB mineiro ou a corrupção nas licitações de trens e metrô nos governos Covas, Serra e Alckmin são sistematicamente abafados ou ganham, quando muito, uma pequena nota na parte interna de algum caderno, enquanto mensalão do PT e desvios na Petrobrás são mais divulgados que os números da tele-sena. Outra tática a la Goebbels dos nossos Berlusconis foi fazer de um protesto que dizia respeito às esferas municipal e estadual virar manifestações contra a presidente, numa partidarização, ou melhor, anti-partidarização das chamadas jornadas de junho de 2013 (porque não havia partido sendo defendido positivamente, mas os de esquerda, PT, PSTU, PSOL, eram fortemente atacados, inclusive com violência física).
Um aspecto que também creio ter influenciado no resultado apertado é que Dilma desta vez venceu com um discurso à esquerda, bem diferente do de 2010, quando, pega de surpresa pelo Serra nas questões dos costumes, acabou disputando com ele o eleitorado mais reacionário. Talvez principalmente pela mobilização da comunidade GLBTTS depois do pastor Feliciano presidir a comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados, houve uma leve mudança de mentalidade, o que pode ter feito com que Dilma se sentisse mais à vontade para defender a criminalização da homofobia e a não redução da maioridade penal, por exemplo. É pouco, mas para um país conservador como o Brasil (não falei que ia eu despejar meus preconceitos aqui?), contestar esses posicionamentos mais retrógrados,  que vêm ganhando eco com o crescimento evangélico, não deixa de ser um avanço. Aécio, que poderia ter posto a esquerda nos costumes (como era bandeira do PSDB, ao menos em tese, até pouco tempo atrás) como predominante no debate, demonstrou que a guinada reacionária tucana extrapola São Paulo. Nas relacões internacionais e na economia também tivemos um confronto mais aberto entre posições de esquerda e direita - o neonacional-desenvolvimentismo e o neoliberalismo -, com Aécio assumindo uma menor dubiedade que Serra (mas não de todo clara).
 E, claro, ponto de maior destaque nestas eleições foi o baixo nível do debate, em especial entre os apoiadores das campanha, principalmente os de Aécio Neves. Movidos por preconceito e ódio, os simpatizantes tucanos - auto-proclamados ilustrados, contra a turba ignorante do norte-nordeste - acreditavam em qualquer boato contra o PT, acreditavam até mesmo na Veja, e mostravam desconhecer as propostas do próprio candidato, que tinha como uma de suas propostas tornar política de Estado o bolsa-família, ops, "bolsa-vagabundagem", um dos motivos de maior revolta de certa classe média e elite tupiniquim. Perderam, e desolados com a vitória a quem culpavam de dividir o país, reforçam a impressão de que nunca se incomodaram com a segregação entre casa-grande e senzala.

São Paulo, 29 de outubro de 2014

domingo, 26 de outubro de 2014

Medo do porão

 Aproveitando o ensejo de Ciro dos Anjos, Rubem Braga escreveu "Receita da Casa", crônica com a qual tive o primeiro contato com ele, por quem me apaixonei à primeira vista (é certo que isso não é tão raro em literatura, como o provam Saramago, Mia Couto, Kawabata, Leminski, Kundera e tantos outros). A primeira providência para uma casa, segundo o escritor de Cachoeiro do Itapemirim, é que tenha um porão. Ele dá as devidas especificidades, as funções na formação da criança, e ressalta que "convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragando em suas faces negras os sapatos da crianças, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança". 
 A casa dos meus pais, em Pato Branco, não segue exatamente as sugestões do cronista, mas graças ao engenheiro responsável pela obra possui um porão - um porão moderno, com luzes e organizado, mas um porão. Nele acumulam cadernos antigos, dos pais e dos filhos que lá habitam (pouco importa que apenas alguns dias por ano, ainda é minha casa), alguns brinquedos que resistem, esperando pela visita com filhos pequenos que os tirarão dos armários, coleções ou partes de - como a minha de latinhas ou a de pedras -, ferramentas quase nunca utilizadas, outras - as de jardinagem - empregadas com freqüência, graxa em uma lata de achocolatado do início da década de 1980, enfeites de natal (minha mãe cogitava jogar fora, porém não teve coragem, e eu mesmo me interessei em revê-los), bolas há muito murchas, madeiras que sobraram da construção da casa (anterior à lata de achocolatado), marcas na parede de um conflito entre a antiga cachorra e a antiga gata da casa, caixas vazias esperando para serem preenchidas elas também por entulhos ou por memórias.
 Sempre tive medo não exatamente do porão, mas de toda a parte de baixo da casa (ela segue o declive do terreno). Medo de algum ladrão escondido no banheiro ou no escuro do grande quintal, cercado de outros quintais grandes e escuros, e sem ser percebido pela cachorra; de alguém como o anarquista búlgaro de passagem pela cidade da crônica de Braga (não exatamente um anarquista, que esses nunca foram temidos em casa, apesar que os búlgaros também não), de uma aranha enorme ou um rato a me atacar, me obrigando a ser levado às pressas ao hospital, tomar injeção para não morrer de alguma doença terrível; de algum fantasma, apesar de eu não acreditar em fantasmas. 
 Havia motivos muitos, mas pode ser que fosse somente medo do escuro, uma vez que eu só tinha esses medos à noite, em especial quando me punha a subir pela escada, como se o perigo estivesse me observando o tempo todo e na hora em que eu abaixaria a guarda, já quase seguro no andar de cima - onde ladrões, aranhas, ratos, anarquistas búlgaros e fantasmas não entrariam -, me atacassem. Pior, confesso: ainda que não subisse mais correndo, e soubesse que aquele meu medo era besteira, até ano passado sentia um frio me correr a espinha no momento em que ia fechar a porta para o quintal e me preparar para subir. 
 Contudo ano passado esse medo passou, e não teve o que fizesse retornar: nem o rato a saltar sobre minha mãe, a aranha a me fazer um agrado, o braço a tentar roubar a mochila do meu irmão, o barulho de algo batendo na porta do porão na hora em que o abri: nada, nem um pingo de medo. Não sei dizer exatamente quando isso aconteceu, mas desconfio quando foi - mais ou menos quando passei a querer acreditar em fantasmas. Algo da criança, que ainda flanava por brinquedos velhos, coleções interrompidas e lições esquecidas, se perdeu, foi tragada para fora do porão. E então o homem de trinta anos, ainda que preocupado com as rugas e a calvice, começou a se irmanar com o Tempo.

São Paulo, 26 de outubro de 2014.

 ps: para Patrícia M., Dejanir D. e Marilda G.


sábado, 25 de outubro de 2014

O homem-panacéia e a mulher-burocrática-prepotente [Eleições 2014]

 O debate da rede Globo não teve nenhum golpe baixo da emissora contra a candidata petista. Não assisti ao jornal Nacional, mas pelo que vejo nas redes sociais, nenhum revival de 1989 - convenhamos, trechos de Veja sobre a Petrobrás são coisa pouca diante de seqüestradores de burgueses vestindo camisetas do PT (direção de figurino: Romeu Tuma). Isso não impediu de Aécio Neves trajar a plumagem collorida de salvador da pátria e caçador não de marajás, mas de bandidos (dentro da mais pura lógica "aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei"), traje usado com menos alarde por Marina Silva nas duas últimas eleições. 
 Provavelmente por um cálculo publicitário de tentar ganhar aquela parcela da população carente de um líder forte, Aécio buscou posar de homem-panacéia, determinado a sanar todos os problemas do país, pouco importa qual, se da alçada federal, estadual, municipal ou particular (parênteses: não deixa de ser curioso que os maiores defensores do estado mínimo estas eleições fossem justo os que mais pregam a interferência estatal máxima em assuntos de foro íntimo), se atribuições do executivo, legislativo, judiciário ou mercado. Dilma fez o contraponto dentro do seu estilo burocrático (afinal não era ela quem dizia, em eleição passada, que "o Brasil precisa de um gerente"? Ah, não, era o Alckmin), contestando as promessas tucanas com explicações sobre o desenho constitucional e as atribuições do executivo federal. 
 Espero que a candidata à reeleição tenha sido feliz em seu intento. O que não posso deixar de ressaltar, com grande preocupação, é o discurso de Aécio: homens firmes e salvadores da pátria, há uma razoável lista na história, sempre de amarga lembrança. Por exemplo: a face sombria do governo Vargas de 1930 a 1945: se criou a CLT e lançou as bases da industrialização do país, prendeu e matou uma série de opositores políticos. Ou os militares na ditadura civil-militar da segunda metade do século passado, instituição "forte" a curar as mazelas do país e pô-lo nos eixos.
 Em uma eleição caracterizada não por uma mera polarização, mas por encarar o outro não como adversário a ser batido, e sim como inimigo a ser aniquilado, com direito a conflitos de rua, o discurso de Aécio Neves, reverberando uma imprensa adepta de Goebbels, abre um perigoso paradeiro - um fantasma que anda a rondar o globo, ainda que com diferenças da sua versão original, da primeira metade do século XX. Para piorar, é endossado por um dos maiores partidos do país. Torço, no meu humanismo ingênuo, para que, passadas as eleições, o PSDB faça uma autocrítica e chegue à conclusão de que o mais importante não é seu projeto de poder, mas o futuro do país: que haja como oposição dentro dos limites aceitáveis, nas casas legislativas e nas ruas, pedindo investigações, barrando projetos, sem, contudo, desqualificar ou atropelar nossa constituição.   

São Paulo, 25 de outubro de 2014

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Faltam três dias - tempo demais para nossos Berlusconis tentarem mudar o resultado da eleição [Eleições 2014]

   Em 1993, um Lula ainda adepto da Política nos termos de Jacques Rancière, ou seja, política como conflito e inclusão de marginalizados na Ágora, dizia que se eleito uma das suas prioridades seria quebrar com o monopólio das Organizações Globo, império midiático porta-voz oficial da ditadura civil-militar que reinou sobre o Brasil entre 1964 e 1985. Está no documentário de Simon Hartog, Beyond Citizen Kane (Além do cidadão Kane), produzido para a televisão britânica e censurado no Brasil pela emissora que acusa de censura qualquer tentativa de pôr seu poderio sob o guarda-chuva legal, assim como demais poderes estatais e para-estatais, ou empresas de todos os demais ramos. 
 Em 2002, tão logo conquistou a presidência da República, qual o ato de Lula? Conceder com exclusividade à rede Globo a primeira entrevista. Era já o Lula adepto da tal "concertação", que abandonava o conflito por um pacto social menos retrógrado - progressista apenas para um país que ainda não se conforma com o fim da escravidão -, e incluía marginalizados não na Ágora, como atores políticos, mas nos mercados, como consumidores (de celulares e carros, mas também de saúde suplementar e educação privada).
 É certo que Lula tratou de diminuir o poder da Grande Imprensa, principalmente Globo, ao alterar regras de distribuição da publicidade oficial, suangrande galinha dos ovos de ouro. Teve a chance de enquadrar a revista Veja, quando esta publicou acusações falsas de contas do então presidente na Suíça - foi matéria de capa. Não é exagero dizer queno PT se acovardou diante da Grande Imprensa. 
 Dilma foi além, e devolveu a César o que a Grande Imprensa dizia ser de César, devolvendo-lhe a verba publicitária pulverizada entre outros veículos. Talvez tenha imaginado que seria capaz de comprar se não seu apoio, ao menos afagar a raiva dos barões da mídia contra o PT. Errou vergonhosamente, e agora paga por seu erro: há três dias das eleições, Veja deu o primeiro sinal para a tentativa do último golpe na decisão de voto, em uma capa que acusa Dilma e Lula de "saberem de tudo", e a crise hídrica de São Paulo ser culpa do aquecimento global, não do apagão local de planejamento. Amanhã, sexta, haverá o último debate, na rede Globo: um show de horrores pode ser esperado: MMA deve ter mais cavalheirismo. Sábado, os jornais da emissora falarão do tal debate. Um revival de 1989 não está descartado, e não por um apego à moda retrô, e sim por apego ao poder e ao golpismo. Que fique apenas na capa de Veja, que não tenhamos uma Dilma apática diante de um Aécio seguro de si, aclamado no dia seguinte como salvador da Pátria.
 O que me assusta é o PSDB, na sua ânsia de vitória a qualquer custo, aceitar toda espécie de golpe baixo - não apenas a ocultação da verdade, como em 1998, mas a mentira e a manipulação espúria. Nenhum partido ou político deveria aceitar atentar contra a democracia em nome de um projeto de poder. Diante desse udenismo tucano, não resta outra alternativa que torcer por uma vitória petista, ainda que os governos Lula e principalmente Dilma me soem pusilânimes, mesmo nos seus momentos de grandeza. Que a presidenta saia vitoriosa e aprenda com mais essa eleição: de que certo estava o Lula de 1993, e uma lei que regulamente a Grande Imprensa brasileira, nos moldes da estadunidense, por exemplo, seja a prioridade máxima - sem ela, uma reforma eleitoral será uma tentativa de tornar mais eqüânime um jogo de dados viciados.   

São Paulo, 23 de outubro de 2014.  

 Ps: análise das mais precisas sobre a Grande Imprensa e as eleições, do Guilherme Boulos: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilhermeboulos/2014/10/1533264-massacre-midiatico.shtml

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Picotes eleitorais (II) [Eleições 2014]

Assisto a um dia da propaganda eleitoral dos postulantes ao Planalto. O PT se centra na comparação entre seus mandatos e os do PSDB, aposta na polarização "governo para os pobres x governo para os ricos". Em um discurso que parece mais interessado em consolidar votos do que angariar mais, deixa o raciocínio pela metade, esquecendo de explicitar o porquê da melhora das condições de vida da base da pirâmide social trazer ganhos para o conjunto da sociedade - fator de diminuição de violência, pressão por melhorias nos serviços públicos, aumento nos salários. Já o PSDB recebeu não só o apoio de Marina Silva e do PSB, como teve seu discurso moralizante a la UDN repetido pela representante da nova política. Aécio, ao menos nesse programa, deixou passar a oportunidade de se apresentar como o candidato da uniâo contra o partido da divisão social. Além disso se focou em certo discurso da emoção - por conta do apoio da viúva de Campos -, próximo daquele usado por Marina durante o primeiro turno, uma tentativa, talvez, de ganhar o eleitorado pernambucano, ou de inflar a presumida onda que embala sua candidatura - Marina Silva foi uma mostra de que discurso da emoção não se sustenta por muito tempo. O mais deprimente foi vê-lo repetir discurso dos formadores de opinião da direita brasileira - essa que diz que o Brasil passou por uma "ditabranda" -, de que o país vive sob a hégide de um partido anti-democrático, uma quase ditadura (bolivariana): essa fala desligitima não só o processo de escolha como todo o sistema democrático! Que tenha sido um lapso, não um chamado ao "restabelecimento da ordem" (com Deus pela família?).
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Eduardo Campos tem sido alçado a político com legado para o Brasil - absurdo exagero. Tratava-se de um político hábil e com futuro, mas sem legado que garanta um lugar no panteão de políticos como Cipriano Barata, Rui Barbosa, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola - para ficar nos falecidos. Se não for esquecido tão logo se encerre a disputa eleitoral, seu presumido legado o tornará um grotesco espantalho para uso de ocasião pela Grande Mídia.
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Dois gigantescos desserviços dos eleitores ao Brasil: a substituição de Eduardo Suplicy por José Serra, como senador por São Paulo, e a de Pedro Simon por Lasier Martins, no Rio Grande do Sul.
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Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, Pastor Feliciano, José Serra, André Sanchez (até agora não vi cartola que não seja uma decepção: ou um fracasso ou um Eurico Miranda com sutis diferenças), Lasier Martins, Paulinho da Força, Pedro Taques, Fernando Collor, Renan Filho, Raimundo Colombo, Celso Russomano. Parece que ao se olhar pro lado, o nível dos eleitos é sempre horrível. Para a Assembléia Legislativa do Paraná, graças à votação de Ratinho Jr (começamos bem), o PSC (Partido Nacional-Socialista Cristão, do Pastor Everaldo, Pastor Feliciano e tantos outros Intolerantes Cristãos) será o maior partido da Assembléia Legislativa. Daria para ser pior?
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Xico Sá sofreu censura prévia da Folha de São Paulo - expediente que dizem há tempos ser aplicado também a um dos polemistas do jornal (que acata obediente, enquanto anuncia o PT como partido ditatorial). Motivo: a Folha repudiaria proselitismo político em suas páginas. Em um jornal que tem Reinaldo Azevedo, proselitismo político significa ser favorável ao PT, porque qualquer coisa contra o Partido dos Trabalhadores e a favor dos tucanos, desde que se vista com uma tosca roupagem de informação, é autorizado. Xico Sá (de quem este escriba é fã de longa data e o assume como uma de suas influências) soube se dar o devido valor, e dignamente pediu demissão.
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Nada contra o voto em Aécio Neves, quando se trata de uma escolha racional, como comentou Antônio Prata ou Gregório Duvivier. Problema é o voto de cabresto - ignaro, para não dizer preconceituoso - que quer tirar o PT do poder federal por ser O partido corrupto. Não se trata de defendé-lo dizendo que todos roubam, mas convém ressaltar que nenhum outro partido até agora, em qual nível for, deu tanto apoio e tanta liberdade às investigações sobre malversação de dinheiro público. Não é a corrupção que cresceu, foi seu combate: os crimes foram muito semelhantes, mas José Dirceu está preso e Fernando Henrique Cardoso ou Eduardo Azeredo, não.
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Muito se tem comentado sobre os impressionantes erros dos institutos de pesquisa. Falei sobre isso após as eleições de 2010, na qual o índice de acerto das três principais empresas de medição de pretensão de voto teve acerto de 0% (isso mesmo, zero porcento). Está em http://j.mp/cG151010e. Este escriba insiste na sua tese de que as pesquisas de opinião divulgadas pela Grande Imprensa são uma forma discreta de tentar influenciar o voto: há quem vote no candidato favorito para "não perder o voto", por exemplo, ou então um candidato chega ao segundo turno em uma "empolgante crescente", pronto para desbancar a murcha presidente candidata à reeleição.


Pato Branco, 14 de outubro de 2014.

sábado, 11 de outubro de 2014

Qual marca te habita?

Esperava o metrô quando chegou na mesma baia em que eu estava uma bela moça, que logo se pôs a mexer despreocupadamente no celular. O que primeiro me chamou a atenção foi que a bela moça não ficou atrás da faixa amarela, sequer em cima - depois que amigos meus metroviários contaram de casos como o do homem que perdeu a cabeça ou do homem-pião, por desrespeitarem a tal faixa, me tornei um fervoroso seguidor das indicações de nunca ultrapassá-la. Pensei em cutucar a tal bela moça e falar que seria mais prudente ela dar dois passos atrás, mas como ela estava de fone de ouvido, achei que seria trabalho muito para pouco tempo - logo o trem chegaria. Mais: a bela moça poderia achar que eu estava dando uma cantada de tiozão pra cima dela e, pior, aceitar a cantada!, me deixando perdido como um cachorro que late para roda e esta pára. Assim sendo, diante dessa possibilidade de ficar sem reação para com a bela moça que se insinuaria para mim atrás da faixa amarela, preferi ficar na minha, e observá-la à frente da faixa amarela.
O que segundo me chamou a atenção nela foi que era uma bela moça - como o leitor e a leitora mais atentos devem ter deduzido do parágrafo anterior -, acentuado por um visual que eu julgo golpe baixo, a saber: saia de tenista e camiseta que deixa um dos ombros de fora (me lembrei de Machado). Um terceiro ponto que me chamou a atenção - móbil desta crônica -, foi que seu tênis, sua mochila, sua saia eram todos da mesma marca esportiva - a camiseta eu não consegui averiguar, aparentemente não era.
Presenciei uma vez conversa nesse mesmo sistema de transporte de massa, em que um rapaz defendia uma marca contra a outra, quase como um corinthiano a justificar a superioridade do seu time sobre o Palmeiras: absolutamente irracional e sem sentido. Tênis, calça, camiseta, boné, tudo da mesma marca, como um torcedor ou um religioso fanático, como se aquelas marcas dissessem algo sobre ela, como se aquelas marcas dissessem tudo - ou ao menos o essencial - sobre ela. É certo que uma roupa dá sinais de qual tribo você gostaria de ser enquadrado, a qual clichê você quer ser reduzido - eu mesmo, ao usar um tênis Super-Star dou a deixa de que tenho um quê meio urbano-alternativo e bastante mão-de-vaca. Se identificar tanto a uma marca, contudo, me soa se reduzir de uma maneira ainda mais absurda: não é apenas um estilo no qual você se acomoda - que esse até permite certas liberdades -, é você subordinando sua identificação a uma marca, como se sua auto-estima não sustentasse sem tal logo - e isso vai além de roupa, tênis e acessórios, alcança também nossa vaca-sagrada, o carro, a marca de bebida (para quem nunca gostou de refrigerante de cola, por exemplo, as duas marcas principais são igualmente horríveis), o celular e o computador-fetiche, dentre outros, nos quais se inclui o já citado time de futebol. Quando vejo pessoas assim - ou então extremamente bem enquadradas em um estilo, tipo emo, patricinha, etc -, me pergunto o que sobraria delas se lhes tirassem os acessórios: haveria essencial? Elas suportariam mostrar o que há por baixo desses signos todos - o corpo falando por si próprio?
O trem chegou, a bela moça seguiu mexendo no celular enquanto eu li uma propaganda do Metrô em que convidava empresários a anunciar na rede, com garantia que a empresa tinha perfil detalhado do tipo de público atingido em cada linha e cada estação.

São Paulo, 11 de outubro de 2014.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Eleições legislativas, tinha isso? [Eleições 2014]

Se um estrangeiro tivesse acompanhado as eleições no Brasil apenas pelos grandes veículos de imprensa, teria uma grande surpresa ao abrir os jornais desta semana e descobrir, passado o pleito, que havia também eleições legislativas. Fora brevíssimos intervalos - a semana pós-eleitoral e o intervalo entre a troca de faixa no executivo, em janeiro, e a troca de legisladores, em março -, Câmara e Senado costumam só ganhar destaque quando há casos de corrupção, alguma CPI que interesse à Grande Imprensa para fustigar o PT, e uma que outra "grande votação".
Por conta dessa cobertura - ou ausência de, seria melhor dizer -, a imagem senso comum do congresso e senado é a de que se trata de um bando de parasitas, que pouco fazem, e melhor que seja assim, pois, como costumam dizer vários colunistas nos jornalecões Folha e Estadão, toda vez que um deputado age algo ruim acontece. Se alguém se dispor a escutar a segunda meia-hora da Voz do Brasil ou se informar pelos sites das casas legislativas, vai ver que a história é um tanto diferente: não é só de pastores e ruralistas, de projetos insignificantes e negociatas escusas que é feita a atividade legislativa no Brasil. Sim, é feito dessa baixa política também, mas há projetos outros, que influenciam positivamente a vida de milhões de brasileiros (como a proposta para transexuais poderem alterar o nome sem grandes burocracias, por exemplo), e debates qualificados - ou quando de baixo nível, servem como panorama da situação periclitante das nossas elites, no que se refere a capacidade intelectual.
Porém, mais importante que a Grande Imprensa para esse caráter subalterno do legislativo é o próprio desenho político: não apenas por causa do executivo com poderes desproporcionais, como pela coincidência entre calendários eleitorais, que faz com que o legislativo fique obliterado pela relevância dos cargos majoritários - para o executivo, mas também para o senado. Quando Tiririca faz piada dizendo que contará qual o papel do deputado, mais do que humor raso para incautos, ele faz troça de 95% da população brasileira, que não sabe para que serve um deputado, não acompanha os trabalhos das casas legislativas (lembro de estudantes de ciência política da Unicamp só descobrirem o básico sobre o legislativo tupiniquim no segundo ano de faculdade).
Uma possível reforma política é assunto desde as manifestações de junho de 2013 - encampada, inclusive, pela presidência da república -, contudo não vi até agora discussão séria sobre o papel do legislativo e das eleições para a escolha dos representantes. A discussão gira sempre em torno do executivo - reeleição ou mandato de cinco anos -, financiamento de campanha - em que usam argumentos das campanhas para o executivo -, ou concomitância da eleição para todos os cargos - a política de alta intensidade de Marina Silva, um passo para esvaziamento ainda maior do nosso já precário debate político. Vista como subalterna pelos donos do poder, seus empregados e por quem vê política só de longe, nossos legisladores parecem assumir esse papel - estariam confortáveis com essa disfunção de nosso sistema? A separação entre as eleições para os cargos executivos e os legislativos - a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, para ficar no caso mais famoso - é um primeiro passo para um debate político sério e consistente, para um maior equilíbrio entre os poderes e para que os representantes do povo possam, de fato, representá-los. Até lá, Tiriricas podem ser vistos como pontos positivos num congresso dominado por ruralistas, evangélicos e defensores de direitos humanos para humanos direitos.

São Paulo, 09 de outubro de 2014.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Defina "carne"

Quando morava em Campinas, na falta do que fazer me sobrava bastante tempo para pensar - algo que nunca me foi um incômodo. Não que pensar muito seja pensar bem, muitas vezes é exatamente o contrário. No meu dia-a-dia trata-se apenas da forma de gastar calorias que, segundo meu homeopata, justificava eu então ser peso-leve (caso gastasse essas calorias boxeando). 
Dentre minhas idéias mirabolantes, veio a de uma dieta que meus amigos chamavam de "dieta maluca", mas admitiam que fazia sentido. Arrazoava eu: há quem diga que comer carne faz mal; há quem diga que não comer carne faz mal; e muitos dizem que comer peixe faz bem. Pois, então, em três dias da semana (consecutivos ou não) eu não comia carne, comendo nos outros quatro, sendo um deles necessariamente peixe. Admito: essa diminuição na carne fez com que eu me sentisse mais bem-disposto. E admito também: em São Paulo, com várias coisas pra fazer, abandonei essa dieta, que durou uns sete anos. Conforme meus amigos o critério para decidir se era dia de carne ou dia de não-carne era simples: se eu fosse sair com eles para comer uma pizza, era dia de não-carne, se isso não fosse perturbar ninguém, era dia de carne - um evidente despautério!
Uma vez, diante da vitrine de salgados de uma cantina, perguntei se havia algum sem carne. O atendente foi rápido: este daqui; é frango com catupiry. Pedi um pão-de-queijo.
Pior foi um amigo meu, vegetariano sete dias por semana. Estava ele num restaurante vegetariano quando achou que tinha comido carne. Revirou a comida, separou, analisou, até achar o intruso: havia carne! Chamou o garçom, fez a reclamação. O garçom chamou o dono, meu amigo mostrou a prova do crime: olha aqui, é carne. O dono recusava veementemente: impossível! Este é um restaurante vegetariano, como é que vai ter carne na comida?! Chamou a cozinheira, para deixar tudo muito claro. Interrogada, a cozinheira garantiu que não havia carne na comida. Meu amigo mostrou o pedaço suspeito: ah, não? E isto aqui, o que é? Ela se manteve convicta: isso não é carne, é presunto!


São Paulo, 08 de outubro de 2014.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Brincou, caiu, machucou?


Saio do metrô nostálgico, e logo na primeira banca me deparo com uma máscara de plástico do Homem-Aranha, dois furos para os olhos. Lembro da minha de Changeman, mil novecentos e batatinhas: se não me falha a memória, a minha era vermelha, e a do meu irmão, azul (será por isso minha mania em usar vermelho, a ponto de uma amiga, quando sugeriu que eu usasse roupas coloridas, emendou a seguir: "vermelho não vale como cor pra você, é praticamente um intermediário entre o branco e o preto"?). E vestido com a máscara, lá ia eu salvar o mundo com minha espada do Thundercats, seguido pelo meu irmão, com sua máscara e sua espada, em nossas aventuras a la Don Quixote pelo quintal da casa - só não me recordo se algum dia ele conseguiu ser rei de uma ilha, bem possível que tenha sido e eu não prestei a devida atenção. Me questiono agora: por que a viseira tinha vários furos, ao invés de só dois? E por que não uma viseira de plástico transparente, por que aqueles furos todos? Com furos ou com viseira, azul, vermelha ou de outra cor, nenhuma dessas aventuras me deixou trauma.
Contrariamente à uma outra, cujo cartaz no metrô, alguns minutos antes, me fez rememorar. Esperava o trem e observava as propagandas. Numa delas, um anti-séptico, versão spray e versão "antiga". Só de ver o aplicador senti a dor de quase trinta anos atrás: estava eu na casa do meu amigo, o vizinho logo ao lado, e após (mais) uma briga, saio enfezado e tropeço num buraco que havia na calçada. Muito religioso, é bem capaz de ele ter dito que foi deus quem fez isso, para eu aprender, mas isso é suposição de agora, a partir de outras lembranças. Nessa ocasião específica, lembro de abrir um berredo e ser socorrido pela mãe dele, que ligou para a minha (ela estava no trabalho), e vir, então, a fatídica aplicação daquele desgraçado anti-séptico. (Antes de começar a escrever esta crônica, analisei meus joelhos, tentando adivinhar qual das cicatrizes seria desse tombo. Não sei). Lembro de ter tentado fugir, em vão. E se eu já chorava, com certeza depois dessa aplicação o negócio potencializou trocentas vezes: aquele remédio fazia a ferida latejar de ardência, ardia até a alma, arde até hoje! Parecia um castigo: brincou, caiu, machucou, chorou? Hora de passar o anti-séptico pra ver o que é dor de verdade. 
A propaganda no metrô avisa: não arde. Tenho a impressão de já ter ouvido isso antes.

São Paulo, 06 de outubro de 2014.

domingo, 5 de outubro de 2014

Junho x eleições [Eleições 2014]

A quatro dias das eleições, no vão do MASP, na avenida Paulista, alguns jovens fazem campanha para o PSOL, panfletam e discursam. O que primeiro me chama a atenção é que todos ali aparentam, no máximo, vinte e dois, vinte e três anos. A ausência de qualquer pessoa um pouco mais madura me fez lembrar da definição lapidar de Lula, em 2006, para a distribuição de papéis na sociedade do espetáculo: "se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problema. Se você conhece uma pessoa muito nova de direita, é porque também está com problema". Me pergunto se algum desses jovens será mais que carta marcada nessa encenação que parte da rebeldia sem causa, passa pela contestação legalista e acaba na assunção da inefabilidade do status quo. Se se tornarem conservadores de esquerda - a exemplo do PT ou dos "antigos" do próprio PSOL -, uma elite intelectual, sindical e política com preocupações sociais, que reivindica melhor distribuição de renda e oportunidades, desde que não se mexa no seu status quo, podemos considerar um ganho, dado o atual estado da arte política no Brasil,
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi a frase dita pelo adolescente ao microfone, que, no meu ver, aponta o quanto a política partidária e representativa está distante das reivindicações das chamadas jornadas de julho, e o quanto a esquerda tupiniquim organizada em partido é ou fraca ou conservadora (fico com a segunda opção). Dizia o jovem que o período de eleição presidencial era a época para a discussão de idéias para o país. Nada mais equivocado: eleição é época de síntese dessas discussões e apresentação de propostas de governo. A discussão de idéias deve ser feita todos os anos, todos os dias. Não é o que a esquerda partidária brasileira faz (menos ainda a direita): guiada por um calendário externo, ela encampa discussões postas pelo governo, pelo poder, e é incapaz de estabelecer uma pauta própria de discussões - mesmo que sejam discussões derivadas. Aí está a diferença de PT, PSOL e demais partidos para o MST na década de 1990, o MTST nos últimos quatro anos, em especial, e o Passe Livre, ano passado: esses movimentos foram e ainda são capazes de impôr uma agenda ao governo de turno, obrigam o poder a mudar sua rota para debater com o povo organizado, tendo que se pôr, muitas vezes, em situação delicada frente à uma pretensa sociedade organizada, que representa os de cima e tem seu status legitimados pelo poder. FHC não falou em debater a reforma agrária para o MST começar a se organizar, foi o contrário: a pressão do MST fez com que a reforma agrária não saísse da pauta do governo e da Grande Imprensa durante o tucanato. A mesma coisa o passe-livre e a questão da mobilidade urbana: posso estar errado, mas até junho a gestão Haddad investia nos corredores de ônibus e o modal bicicleta estava reduzido aos passeios de domingo - agora Higienópolis e Santa Cecília ameaçam pegar em armas para defender o direito da vaca-sagrada brasileira ir e vir e parar onde quiser.
Hoje tem eleições (escrevo domingo pela manhã), e independente do vencedor, os partidos que compõem nossa democracia devem seguir no seu caminhar de sempre: de costas para o povo, até que ele ocupe as ruas, grite e se faça ouvir. Se forem capazes de ouvi-lo e trazer essas reivindicações para dentro da arena institucional, sem ser pela via da criminalização, será pouco, mas já podemos nos dar por felizes.

São Paulo, 05 de outubro de 2014.