sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não vá ao Caminito, vá à Califórnia

Devia ser por causa do sono, saí do albergue com a idéia de ir até La Boca, ver se achava uma lembrança do tipo que minha mãe gosta. Idéia fraca: poderia até achar, mas seria a um preço abusivo. Sem contar que o Caminito não me empolga: da primeira vez achei lindo: eu tinha dezesseis anos, era um ingênuo de mundo, de cidades, de leituras. A segunda, com meu irmão, saí com a sensação de tudo ali ser muito falso, montado para turista fotografar e consumir (ou então, pra que turista?). Desta vez, nem passei por lá: depois de entrar em algumas lojas dos arredores (descobri que a moda lá, agora, é show de tango nos restaurantes), só para confirmar o que eu já sabia, acabei me enveredando por ruas que não interessam aos turistas - até uma forma de não perder a viagem. E fiz bem! Segui pela beira do rio, na direção contrária a Puerto Madero - caminhões, pavilhões, guindastes, quase ninguém, a água cheia de lixo. Não adentrei muito, cansado estava e torrando sob o sol do meio dia. Sem escolher a rua pelo nome, entrei na California - havia "centro de integração comunitária" na esquina. Mais à frente, me deparia com uma grande propaganda da eleição no time do Racing, e numa praça, além de dois carros velhos, veria um adesivo de time outro que o Boca Juniors, no posto policial: do Barcelona - só no caminito parece que o Boca Juniors é uma total unanimidade na Boca. Mas, por via das dúvidas, melhor não aparecer por lá com camisa do River, ainda mais depois de uma derrota.
La Boca tem um cheiro diferente dos demais bairros da cidade por qual passei - não sei defini-lo bem. Na ida, virei na rua Brasil, e não sei se por meta-crítica, meta-citação, meta-coincidência, as calçadas começaram a se parecer com as brasileiras. Interessante que mesmo sendo um bairro popular, de calçadas estreitas, as ruas são arborizadas. Ainda sobre as calçadas do bairro, lembro de terem me chamado a atenção em 2006, por possuírem um enorme desnível para a rua, ou mesmo para a calçada da construção ao lado, coisa de um metro. Uma antiga fábrica de "bizcochos y talleres" teve mais que sua fachada preservada (a exemplo do esqueleto do pátio dos bondes, em São Paulo), toda a parte da frente e de trás permanecem, ao que tudo indica, utilizadas, enquanto no meio levanta um prédio moderno, envidraçado. 
Na rua Califórnia, enfim, encontrei casas como a do Caminito, as placas de metal fazendo as vezes de parede. Em geral são amareladas ou esverdeadas, porém estão muito longe das cores vivas da rua pros turistas. Quando conseguem, os proprietários dessas casas as substituem por alvenaria - há algumas em que apenas o térreo foi modificado, a parte de cima segue antiga. Sem mudar a casa, instala-se ao menos um ar-condicionado. Consegui espiar dentro de algumas. Há as que são casas normais, há também as que escondem pequenas vilas, com uma ou duas casas ao fundo. Numa casa de alvenaria, estilo antigo, colada à calçada, uma família está à mesa, almoçando. Pouco depois, uma comedoria escura com mesas e cadeiras muito antigas - lembram da cadeira que creio ser a mais velha da casa dos meus pais, atualmente elevada ao posto de elevação para colher frutas, quando a senhora minha mãe não se inventa de pegar escada ou trepar nas árvores. Meu passeio pela Boca termina na praça Almirante Brown, dos dois carros muito antigos, um deles com teias de aranha crescendo nas janelas. Próximo a eles, grupos de trabalhadores em horário de descanso jogam futebol, seus capacetes como demarcações do gol.

Buenos Aires, 28 de novembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Fotografo com palavras

Da primeira vez que vim a Buenos Aires, o posto de informações turísticas da cidade me entregou um mapa com uns duzentos pontos de interesse - principalmente construções e monumentos. Circulei pela cidade na ânsia de ver o máximo que o mapa apontava - e tirava foto de boa parte desses pontos. Em 2006, quando vim com meu irmão para cá, íamos aos pontos turísticos, tirávamos fotos (menos do que em minha viagem anterior), e eu arriscava algumas crônicas. Além dos pontos específicos (Caminito, Recoleta, Casa Rosada, etc), já me despertava interesse o caminho - eu seguia bastante preso à arquitetura. Um casal argentino que conhecemos nos Bosques Petrificados até tirou sarro da nossa cara, dizendo que fazíamos trekking urbano, quando contamos que fomos da Boca a Palermo à pé (por sinal, foi esse casal que nos sugeriu El Chaltén, parte mais legal da nossa viagem). 
Nesta minha viagem atual, pontos específicos são poucos, um ou dois por dia, e a parte mais importante é o caminho. Me prendo à arquitetura, mas também às questões urbanas, às pessoas, aos personagens anônimos do dia-a-dia. Quanto a monumentos, me tocou o monumento a Roca (que eu achei ser a Bolívar), que me surgiu com ares de De Chirico, mas não por ele, e sim pela evocação do pintor que ele e a cidade ao redor, na solidão de um fim de tarde de domingo, me trouxeram. Vendas, mercados, transeuntes me interessam mais. E volto quase a ser o turista desesperado por fotos de quinze anos atrás - a diferença é que agora fotografo com palavras, minha caderneta sempre à mão. Dizia Dominique Wolton que a fotografia está no olhar, não no dedo. Já eu dizia que toda escrita (escrita para além de palavras no papel ou no computador) começa pelo olhar. Agora penso o quanto do olhar não começa na escrita, em alguma narrativa que queremos contar - para nós e para os outros. Tiramos fotos como lembrança (pelo menos na época do filme se dizia isso), porém quantas vezes pegamos os albuns para rever as fotos, sem a companhia de alguém? Acontece, sim, mas vale perder todo esse tempo para guardar algo que poucas vezes vamos nos interessar em relembrar? Será que o mesmo vale para esta série de crônicas, ou ela serve para contar aos outros que estou viajando - assim como quem tira selfie de si em todo lugar? As crônicas de 2006, pensei em relê-las antes de vir. Não o fiz. A única vez que reli algumas foi quando mostrei para uma futura-ex-namorada. Mas me parece que a viagem perde algo se não tenho com quem compartilhar - não sei se a materialidade, o sentido, ou o quê. Na viagem com meu irmão a urgência de fotos e textos era menor, talvez porque o comentário soltávamos na hora. Ou talvez todas estas crônicas sejam força do hábito, uma forma de apreender o que se passa ao meu redor, de dar conta da lógica do choque imposta pelas metrópoles, o olhar ávidospor entender dinâmicas estranhas, reparar em detalhes insignificantes num primeiro momento, e a palavra para não me perder em meio a tantas informações. Enfim termino estes meus questionamentos com o óbvio: escrevo porque gosto, ainda mais diante desse deslumbramento que me causa Buenos Aires.

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014

Enfim portenhos em Buenos Aires

Enfim Buenos Aires em dia útil - termo que não me agrada, pois fim de semana está longe de ser inútil. Buzinas, carros, pessoas, trânsito. Nos calçadões há anúncios outros que de câmbio. Não sei se houve uma faxina social, me chamou a atenção praticamente não ter mais gente anunciando chicas dos inferninhos locais - me deparei com apenas um. Dólar rende mais que sexo? Também é curioso que, ao menos no centro expandido, não haja vendedores de dvds piratas - encontrei um na avenida Callao, apenas -, em compensação de adaptadores de tomadas... mostra da força do turismo na cidade. Colegiais vestidas de colegiais - saia plissada, meião e sapato. E eu achava que isso era coisa só de pornô japonês. Duas crianças jogam futebol com uma caixa grande na Lavalle. Por sinal, chama a atenção que boa parte dos pedintes do centro estejam acompanhados de crianças - noto isso com bem menos freqüência no Brasil, não sei se resultado das contrapartidas exigidas pelo Bolsa Família, ou da ação do conselho tutelar. Páro numa praça da Recoleta, retomo a leitura de "Los jardines secretos de Morgador". Cinco crianças brincam de esconde-esconde. Devem ter seus sete, oito anos. As mães, uma senhora em cadeiras de rodas e sua acompanhante se divertem ao assistir à brincadeira. Me lembram Mafalda (que sempre imaginei morar por estas quebradas, ao invés de San Telmo, como ficou consagrado, até por uma estátua dela), me lembram também do quanto praça, infância, brincadeiras antigas parecem estar ausentes de São Paulo e outras grandes e médias cidades. Mesmo as pequenas. Quando eu era criança, era comum brincar na rua, jogando futebol, em corrida de skate (sentados), construindo barragens de folhas em dias de chuva, jogando pinhas para os carros atropelarem, andando de bicicleta, riscando o asfalto com gesso... isso que eu era muito do video game. Atualmente, em minhas voltas pra casa, acho o máximo quando vejo um grupo de crianças andando juntas. E não adianta argumentar que estou num bairro rico de Buenos Aires, crianças em situação equivalente em São Paulo estariam ou na área de lazer do prédio, ou no shopping - porque a rua é perigosa, porque o diferente é perigoso e invejoso da nossa superioridade, porque o Outro é, de antemão, uma ameaça. Não adiantou o crescimento econômico e a diminuição das desigualdades da última década, seguimos pobres - de espírito. Sinto frio na sombra, calor no sol, desisto da leitura. Deixo o banco, a bituca de cigarro, a tampa de cerveja e os três pedaços de fio - um azul, um branco e um verde - que jaziam aos meus pés. Buenos Aires é muito mal servida de lixeiras. Cafés e bares aqui costumam ter jornais para os clientes. Páro numa cafeteria que oferece várias opções de café do mundo. No menu, avaliação de corpo, acidez e sabor; o preço é próximo de café em qualquer lugar, na faixa de trinta pesos. Tomo um indonésio, único nota cinco no quesito corpo. Acompanho um tempo o movimento na avenida. Atrás de mim, o garçom acompanha City e Bayern (descubro que perdi de assistir a dois gols no fim do jogo). Passa pela rua uma criança acompanhada por seu pai - deve ter a mesma idade das da praça. O garoto volta da escola, traz na cabeça uma coroa de papel e chora - um pequeno déspota de uma época que todo não é uma recusa ao ser? Talvez o pai não tenha aceitado parar em algum rede de fast-food: aqui os jovens, ao invés de se aglomerarem nos shoppings, parecem preferir redes internacionais de alimentação (sic). Por falar em redes internacionais, Armazém Dom Manolo muito provavelmente seria coisa do passado hoje: lembro de ter passado por apenas três mercadinhos que não eram ou de uma grande rede, ou de chineses - em um destes, mostra da ascensão social, atrás da vitrine em chinês, funcionários andinos. Mesmo os quioscos - que agora se denominam "drugstore", apesar de as únicas drogas vendidas serem alcóol e nicotina -, grandes redes dão a impressão de serem maioria. Buenos Aires segue com muitas livrarias e poucas academias - e os argentinos parecem ser mais magros que os brasileiros. Ler emagrece? Passo pela primeira vez por um restaurante japonês, na verdade demi-japonês, como também é comum no Brasil; a diferença é que aqui é um restaurante peruano-japonês. Faz sentido. E próximo ao Congresso, o Bar Revolucionário, talvez uma versão portenha para o Ecla. Diferentemente do esquerdista brasileiro, o bar vende livros e promove seminários - no caso atual, sobre periodismo y midia -; não sei se tocam tango. Pouco abaixo, outro bar no estilo, o MU, onde está na vitrine o livro "Brasil, ¿un nuevo imperialismo?". No fim do dia, me deparo com um protesto, que saíra do congresso em direção à Casa Rosada - uma cena banal para Buenos Aires, onde a rua, além de local de convivência é também lugar político. Banal não sei se é a participação brasileira nesses protestos. Vejo bandeiras do MST. Em alguns cartazes leio "izquierda unida", em outros, "esquerda unida", em meio a esses cartazes, bandeiras do PSTU - mas não é pela união das esquerdas?

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Um mergulho na avenida General Las Heras

Receoso de algum problema com a retirada do ingresso para o festival (o local que optei por retirá-lo estava fechado devido ao feriado), saio cedo do albuergue, em direção da praça Itália. Pelo que me lembro, gostaria de ter ido até lá em minhas outras passagens, mas algo me desviava do alvo. Desta vez cheguei, e consegui a entrada sem problema (soubesse e teria ido à trés da tarde, que já desceria direto para o show). No metrô vejo uma figura digna de ser protagonista do Portas dos Fundos como Jesus: um homem barbas e cabelos longos, sandália e túnica. Ingresso em mãos volto caminhando para o albergue: Buenos Aires é um convite a um sovina como eu economizar no transporte e caminhar pelas suas calçadas. Buenos Aires também tem a bela idéia de as ruas não mudarem de nome, só porque vereadores de turno querem homenagear alguém com um novo trecho. Saio do local de retirada e dou de cara com a avenida General Las Heras! De um lado, o jardim zoológico, do outro, o jardim botânico, e um quilometro adiante, duas viagens no tempo. Antes de chegar ao conhecido trecho, desvio até um shopping, para necessidades fisiológicas. Ao adentrá-lo, lembro do comentário de meu irmão: shopping é tudo igual? Um não-lugar é sempre um não-lugar, e ali me sobra uma lembrança pelo acaso de não sermos bem adequados ao ambiente. Não sei se foi nesse shopping que meu irmão se empolgou quando começou a tocar Beck, My summer girl - creio que sim, dada a seleção de músicas do pouco tempo que fiquei. Volto à Gral Las Heras. O parque parece menos inclinado do que tinha em mente, o restaurante do garçom que fazia caretas por termos pronunciado errado o prato, em 2006, mudou de nome, e o prédio onde fiquei, século passado, descubro agora, era de esquina. Lembro de, em 1999, ter aceitado o banho oferecido pelo dono apenas por não saber - assim como o aceitar descansar um pouco, eu que não estava cansado, apenas nervoso. Se não me errei, a cafeteria que fui depois desse meu descanso, Pilar, Sergio (era Sergio o nome dele?) e a mãe de Pilar, virou uma rede americana. Lembro de ter ficado horrorizado com o preço do suco de laranja - quatro pesos - e da mãe de Pilar ter dito que eu tinha mãos de pianista - ao que respondi que realmente tocava piano. Um casal de chineses passa por mim falando em castelhano com sotaque chinês (e no albergue, agora, ao meu lado um grupo de australianos fala um inglês difícil de acompanhar, do outro, um grupo fala não sei que língua, parecia francês no início, agora parece árabe, ou um alemão muito estranho. Um canadense se aproxima, pergunta se sou alemão). Passo pela faculdade de engenharia da UBA. Me lembro de um prédio pesado, escuro - talvez confundisse com a igreja há pouco deixada para trás? De qualquer modo não lembrava de um prédio tão imponente. Foi ali perto que numa das minhas primeiras andanças pelo bairro, no início da noite, um grupo de crianças, treze anos, por aí, perguntou minha idade, para me vender uma garrafa de uísque, e eu passei por eles com medo - como pode tanto medo? Acho estranho, quando passei por ali, oito anos atrás, algumas lembranças vieram, sim, mas não me afetaram desse modo. Volto ao albergue, me preparar para o show, tentar me aliviar de algo que me perturba desse passeio.

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014

Três bandas bastam

Três bandas bastam para fazer um bom festival - talvez não para trazer bons lucros. Três bons shows me parece um limite para todas serem bem aproveitadas. Radiohead, Kraftwerk e Los Hermanos, em 2010, por exemplo. Juana Molina, Yann Tiersen e Mogwai, no Music Wins, em 2014. O festival trazia outras bandas, que serviram só para cansar. Sim, havia quem gostasse de Pond, Tame Impala ou Erlend Øye and the Rainbows, mas eram públicos muito distintos.
Cheguei à Costanera Norte quando Pond tocava. Não me agradou, mas circular pela área, reparar no público, foi intetessante. Notei que uma das modas indie em festival argentino, ao menos para las chicas, é galocha ou coturno - muito práticas em caso de chuva e lama. Também que elas mentem na altura, ao usar all-star plataforma, por exemplo. Notei ainda - mas isso foi durante o show da Juana Molina - que argentinos são baixos, e ter um metro e noventa de altura te torna um dos mais altos da platéia, visão livre para o palco. Ponto negativo: você estar na direção da câmera e identificar sem sombra de dúvidas sua careca - e isso (a careca) é algo que me incomoda muito. Enfim, de volta ao festival. Após Pond, achei que viria Juana Molina, mas veio o tal de Øye, chatíssimo - de legal, só que parecia o Bill Gates recém saído da faculdade tentando ser pop. Oquei, eu estava entretido vendo las muchas chicas guapas - em especial uma bochechudinha nariguda, sardenta de olhos verde acizentados (sou daltônico, antes que me perguntem como não soube identificar a cor dos olhos da garota), encantadoramente apaixonante. Mas mesmo esse entretenimento passa a ser cansativo quando a banda não ajuda (porque também não vou ficar olhando fixamente, que seria deselegante, para dizer o mínimo, apesar da vontade de não tirar os olhos da referida guria). A banda seguinte era tão chata quanto. Anunciou uma nova música e tocou mais um The Smiths piorado. Segui a indicação de dois vizinhos de sombra, que saíram às pressas assistir a D.I.E.T.R.I.C.H., no palco para bandas menores. Banda interessante, um eletrônico com batidas meio indígenas, presença de palco marcante, principalmente por estarem todos com os rostros cobertos. Ainda assim, começava a me arrepender do festival.
Foi quando vieram as três apresentações que me interessavam, para tirar qualquer pensamento que soasse um "será?". Molina entrou no lugar de Beirut, e ornou muito bem com as duas seguintes. Conhecia apenas um disco e algumas músicas dela (e gostava), e vê-la trabalhando o som, com loops e distorções - numa delas com inusitadas palmas do público a se repetir com sua voz - foi muito interessante. Seu show acontecendo com o cair da tarde também ornou muito bem - deu um toque que as luzes de palco não dariam. Yann Tiersen fez outro bom show, tocou uma música da trilha da Amelie Poulain, algumas do disco novo, Infinity, e poucas do anterior, Dust Lane, meu favorito. A conclusão a que cheguei foi que o francês sempre faz um prelúdio um tanto etéreo antes de começar a música de verdade. Da estética de palco, luzes de descarga fazendo a frente - muitas vezes como únicas luzes, uma para cada músico - davam um clima interessante. Duro era o moving light (é o que dá ler crônica de estudante de iluminação) passando pela cara do público o tempo todo, cegando-o. Era bonito o efeito, visto pelo telão, daquelas silhuetas vermelhas de cabeças - não era legal a luz no seu rosto (na verdade, esse é um problema de ser alto em shows argentinos, quando me abaixei à altura média, a luz não incomodava tanto).
Enfim, o grande show da noite, para mim: Mogwai. O quinteto de Glasgow, assim como o de Oxford, superam o quarteto de Liverpool, na minha opinião - desconfio que polêmica, mas a mais acertada. O que me chama a atenção é como parece que a banda surgiu pronta: eles tocam músicas do primeiro ao último disco, percebe-se algumas diferenças, mas as antigas não soam datadas (diferentemente de Radiohead, por exemplo, em que Pablo Honey é praticamente dispensável) nem repetitivas. A forma como eles trabalham tensões e sua resolução (ou fim brusco) também impressiona: a música parece ocupar todo o espaço, mesmo em pianíssimos como New Paths to helicon pt 1 ou Mogwai Fear Satan. Por sinal, emendar 2 rights make 1 wrong com Fear Satan dava para ser o fecho do show, se eles não fizessem questão de encerrar com tudo, com Batcat (a exemplo do show no Sónar, em 2012) - até eu fui pra frente (quero dizer, mais para frente), fazer parte da roda de aloprados e alopradas que pulavam ensandecidos. Uma coisa muito legal de assistir a show na Argentina é a tradição de canto das torcidas, e poder acompanhar Rano Pano fazendo ôôô-ôôô-ô-ô-ôô e por aí vai (show do Iron Maiden deve ser um orgasmo geral). Talvez por ser festival, sem muito tempo para montar o palco, talvez por ser na América Latina, talvez porque seja assim mesmo, careceu um trabalho um pouco melhor com as luzes - algo que o show pede. Contras, fumaça e estrobo, por mim, poderiam ser a base.
Do festival, positiva a localização: perto do centro, longe de residências. Os aviões que partiam do Aeroparque, bem ao lado, até poderiam compor bem o cenário, não fosse o barulho (Juana Molina ora comentou o estranhamento de tantos aviões - ninguém deve tê-la avisado). Achei interessante o esquema de só ser autorizada a venda e consumo de cerveja em espaços reservados - em tese para restringir o consumo entre menores, mas só em tese. O negativo para o evento (não para o público) é que vende menos cerveja - ou os argentinos são menos desesperados para encher a cara. Péssima foi a organização: não havia panfleto, cartaz, aviso nos telões, nada, sobre que banda se apresentaria qual horas - fui pra frente do Øye esperando Molina, por exemplo. Houve também atrasos nos shows de Yann Tiersen e Mogwai (apesar de ter sido divertido ver os dois contra-regras como que diaputando quem levantava mais o público com Black Sabbath). E das coisas mais chatas, a passagem de som de um palco atrapalhar o show do outro, a ponto do público ter que pedir silêncio. Preciso admitir, em organização, o Brasil está bem melhor. Mas nenhum desses poréns fez eu me perguntar se valeu a pena ir para a Argentina encarar um festival - depois de já ter me dito várias vezes nunca mais ir a um. 

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014.

De madrugada

Findo o show da Mogwai, queria mais voltar pro albergue: os escoceses foram a cereja do meu bolo que começara com Juana Molina e Yann Tiersen. Fiquei para conhecer a Tame Impala, ver se valia ser a grande atração da noite: duas músicas já me cansaram (na verdade eu já estava cansado depois de aloprar no Mogwai, aprendi a freqüentar festivais de música como se freqüenta museu). Conforme a atendente do albergue, o táxi me cobraria cerca de duzentos pesos para me entregar no meu local de pouso. Fui com pouco mais que isso, e consumi metade em uma água, uma cerveja (que abandonei pela metade, porque havia uma área resteita para consumo etílico, de modo que eu não podia esquentá-la enquanto via um show) e um café. Me restou as alternativas de rachar um táxi (mas com quem? Até pedi a umas gurias que iam para endereço próximo ao meu, mas recusaram dividir a corrida em quatro, ao invés de três) ou voltar a pé. Optei pela segunda, mas com uma grande dose de receio: teria que passar por uma passarela onde na ida havia um morador de rua (uma figura que me tocou bastante), e várias praças. No Brasil, pelo senso comum (que tento quebrar, mas até que isso aconteça, também sigo), seria loucura. Para não me arriscar tanto, esperei até perto do fim do show, quando um número considerável saía - ainda muito longe da multidão que estava no local. Fui atrás de um grupo, poderia ser que estivessem indo para um ônibus de excursão. Não iam. Por sorte, pensei equivocdamente. Passei pelo mendigo, que dormia. A partir de então foi por ele que temi: isolado, dormindo, ao fim de um festival cheio de adolescentes, no Brasil, imagino, não seria difícil algum grupo resolver "zuar" com ele (talvez tenha acontecido aqui também, não creio). Vinham agora os parques e praças. No observatório, quase meia noite, vi flashes: uma família, com crianças pequenas, fotografava os patos dormindo. Isso me deixou bastante perplexo. Nos demais parque pelos quais passei (do outro lado da rua) estavam desertos, mas deles não exalava nenhuma sensação de perigo. Me perguntei se seria possível caminhar com tamanha tranqüilidade meia noite em São Paulo - nunca fui assaltado a sério, mas evito dar qualquer bandeira. Ok, estava eu num bairro rico, mas em São Paulo, amiga comentou que quando precisa voltar pra casa de madrugada, vai pela avenida Angélica, e já passou alguns apuros. Em ruas secundárias, quioques abertos funcionam atrás das grades do estabelecimento - nem tudo são flores, mesmo na parte "in" do sistema argentino de exclusão social, apesar de várias floriculturas abertas na Recoleta. Citei por alto na primeira série destas crônicas da violência simbólica de São Paulo - tinha em mente os apartamentos com seus muitos seguranças, o CCSP se limpando de povo, a polícia militar pedindo documento de pobre com arma na mão, o mendigo que humilha o andino, não me imaginava tão alvo de violências do tipo. Ao caminhar sozinho na madrugada portenha, sinto o quanto também sou vítima da violência simbólica paulistana - ainda que não faça nenhum sentido culpar aqueles que diretamente me amedrontam.

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

Cortázar, De Chirico e música indiana

Achei que o cano de esgoto que passa rente à minha cama e faz um barulho considerável fosse me incomodar mais - menos mal que estava equivocado. Após um café da manhã bom para os padrões de albergue (e o melhor, liberado), parti para minha pernada com a missão de achar uma casa de câmbio - nem que fosse legal, pagando 75% do que pagam no "negro". Eu tinha trinta e dois pesos na carteira, suficiente para comprar duas empanadas, e nada mais. Me encaminhei para a rodoviária, onde esperava encontrar um casa de câmbio aberta. Não precisava ter me preocupado tanto: alguma dúvida que o negro funcionaria durante o domingo numa região tomada por turistas? Por sinal, o microcentro de Buenos Aires no domingo me lembra um pouco Florença, na ocupação por turistas e por pessoas que trabalham em função deles. Saramago, em seu "Manual de caligrafia e escrita" dizia que Florença não pertencia mais aos florentinos - isso, imagino, não acontece com a capital argentina (tirarei a prova ao longo desta semana). De qualquer forma, melhor um centro vivo a um semi abandonado, como a região da Sé, em São Paulo. Mais calmo, fui para a feira de San Telmo. Buscava uma cuia nova e um souvenir para minha mãe. Encontrei Rayuela, do Cortázar. Me pareceu um pouco caro, resolvi pesquisar mais, só achei mais caros e não encontrei novamente o de noventa pesos. Paciência, ou melhor, pressa, porque o tempo passava e eu havia me programado assistir a um show de jazz de um japonês no meio da tarde, e a uma apresentação de dança contempôranea no início da noite (abri uma exceção à minha regra de não emendar atividades culturais). Bilhetes do metrô em mãos, descubro que a linha até esses eventos estava fechada. Desisto e vou a um concerto de música indiana, no centro cultural Borges, nas Galeiras Pacífico. O público argentino, preciso dizer, compete em pé de igualdade com o brasileiro: fotos, celulares tocando, papeis de bala, conversas, crianças chorando. A apresentação foi muito boa, apesar disso, e saí querendo tocar cítara ou aquela caixinha sanfona. Afora o público da apresentação, três coisas me chamam a atenção no shopping: brasileiros tirando foto em frente a uma rede internacional de café (ruim, mas admito que são bons em criar ambiente em que você não se sente pressionado a consumir ou sair), dois homens negociando no negro dentro do banheiro (no Brasil, até onde me consta, banheiro, nas suas hetrodoxias, serve no máximo para "banheirão"), e a árvore de natal fotografada pelos turistas que, ao invés de uma mensagem de feliz natal traz o nome do shopping: não há sequer a tentativa de disfarce de auto-promoção, é a apropriação crua do símbolo, Armazém Don Manolo vende baratíssimo, já anunciava o amigo da Mafalda. Sem meu programa inicial, vou atrás de um livro e uma praça. Encontro um livro intitulado "El placer sexual en el matrimonio" e penso com meus botões: um livro desse é um atestado de tendência ao fracasso do tal matrimônio. Outro livro que vejo é "El jugador", do Dostoievski. Lembro quando o li, aos dezoito anos, por aí, não ter entendido: porque o protagonista se afunda sabendo que vai se afundar? Uma doutoranda da psico, Cris, quem me explicou qe era isso mesmo, meu não entendimento era um entendimento. Acabo comprando "Los jardines secretos de Mogador", de Alberto Ruy Sánchez. Encontrar uma praça para lê-lo não foi difícil, e o livro estava bom quando me decido voltar à feira de San Telmo, comprar a tal cuia nova - a minha atual, ganha há quase quinze anos do meu amigo Celestino, ressente alguns tombos esses anos todos. Passo pelo Obelisco, um enorme grupo de adolescentes, entre doze e quinze anos, está lá, bebendo refrigerante e paquerando (admito estranhamentompor não estarem bebendo algo alcoólico e fumando). Um grupinho comemora o beijo entre dois deles - entendo essa reação, eu mesmo tenho vontade de gritar gol nessas horas, mas não faço para não assustar a guria. Compro a cuia, e resolvo percorrer novamente a feira - passo por uma capoeira em adagio e por um jazz meio latino. Eu que já havia notado com surpresa que não trombara com nenhum conhecido, tendo percorrido as feiras da Recoleta e de San Telmo, cruzo com um conhecido, que ficou um tempo hospedado na casa da minha amiga Misson - ele não me enxerga. Meia quadra depois, encontro a barraca com o Rayuela - livro favorito da Misson -, e ele segue esperando comprador. Outra daquelas coincidências que tratei em outra série de crônicas. Tomo o caminho de volta, um monumento (creio que a Bolívar, pela estação de metrô junto a ele) de um herói sob um cavalo desponta com a claridade do pôr do sol de contra-luz. As paredes de uma igreja de um lado, prédios do outro, enquadram a figura e parece que vejo um quadro de De Chirico. Chego ao albergue com uma agradável sensação de estar em casa.

Buenos Aires, 23 de novembro de 2014.

sábado, 22 de novembro de 2014

Entre lembranças e coisas caras



São Paulo amanhece sob garoa, um convite para ficar em casa, bebendo chimarrão e lendo, quem sabe conversando. No ônibus Tatuapé-Guarulhos, o motorista desfia alguns preconceitos moralistas paulistanos. Chego ao aeroporto junto com a delegação do Paraná Clube - não vejo o Ricardinho. No avião, seguro o sono para poder ver a decolagem: ver a cidade viva diminuindo logo abaixo sempre me emociona - identifico o Museu do Ipiranga em meio a selva de pedra.
Mi Buenos Aires querida! Lembro de ter ouvido isso de um passageiro quando nos aproximamos, no vôo da TransBrasil, em 1999. Eu olhava pela janela, apreensivo e meio arrependido: vai saber o que poderia acontecer comigo na cidade grande? A capital portenha, ao menos no trecho que o avião percorre - claramente de classe alta - tem árvores, nas casas e nas ruas, além de piscina em cada quintal. Desço no Aeroparque, o responsável pela sua administração é o Aeropuertos Argentina 2000 - dá a sensação de modernidade ultrapassada, quando 2000 era o futuro. Vou caminhando até o albergue, pouco depois do obelisco. Logo na saída, vejo barcos, veleiros (meus conhecimentos náuticos não me permitem discriminar com propriedade) no rio da Prata e várias pessoas pescando - na beira do rio há banquetas de cimento com suporte para a vara. Eis aí registros que eu não possuía das minhas vindas anteriores. Há também pessoas ocupando a orla, assim como adiante haverá muitas ocupando as praças, e demoro para visualizar o primeiro conjunto de mate rodando os amigos que desfrutam a tarde de sábado na cidade.
Pelo que se noticia no Brasil, imaginava uma cidade decadente, ao contrário, sou obrigado a desviar de obras de melhoria urbana. Em certa altura, tenho a impressão de reconhecer o lugar. Viro à direita e passo defronte um parque, pouco depois... Sim! Foi ali que um pastor alemão e um doberman vieram correndo na minha direção (e da amiga que se escondeu atrás de mim). Não mordem, avisou o dono pouco depois, passando de bicicleta. Veio tarde o aviso, já tínhamos pulado a grade de proteção e eu estava com o cóccix doendo - ou, como costumo simplificar, o dia em que quase quebrei o cu. De diferente, o parque com grades e moradores de rua sob a ponte do trem - Buenos Aires a cada visita ganha mais ares de América Latina. Decadência eu senti ao entrar no shopping, ali perto - shopping onde eu e meu irmão compramos bananas e saímos chocando a comunidade da Recoleta por comê-las em público e sem pudor. Porta de entrada quebrada, escadas rolantes não sei se sujas de graxa ou de ferrugem, piso antigo que, fosse no Brasil, teria sido trocado. Por um instante achei que o que sobrara do shopping fora apenas o mercado, mas não: segue firme e forte. Ali minha segunda grande decepção do dia: empolgado com o peso fraco, planejava torrar um grana, principalmente em livros, ao dividir tudo por três (e não por cinco, como quando fui a Bernardo de Irigoyen, durante a copa). Descobri que após essa divisão eu me deparia com preços de São Paulo, ou mais caros! Entre seis e oito reais um café, por exemplo. Passo por Recoleta e Palermo, apesar dos pesares, a cidade insiste no seu ar europeu. Após mais de duas horas de caminhada, chego ao albergue. Busco na internet dança contemporânea e descubro que perdi o horário.

Buenos Aires, 22 de novembro de 2014

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Buenos Aires Paradiso



Faz muito tempo que assisti ao filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Tanto tempo faz que não sei se as imagens que recordo do filme são realmente dele, ou são de minhas vivências desde então, confundidas nos confusos cafundós da minha memória. Se não me equivoco, a viagem do protagonista à cidade natal, para o enterro do antigo funcionário responsável pelas projeções do cinema local, é mais do que uma viagem no espaço: se dá antes no tempo. E na cidade, ele ainda pode assistir à demolição do seu passado, o cinema Paradiso.
É com a impressão de que farei uma viagem no tempo mais que no espaço que arrumei a mala para a semana que passarei em Buenos Aires.
Fui a primeira vez à cidade em mil novecentos e noventa e nove, no ápice da crise pós fim do plano Real, dólar a dois e pouco para um, peso a um para um. A Argentina ainda era modelo de sucesso para Mirians Leitões da vida. Eu era um adolescente com a cara cheia de espinhas, aparelho nos dentes e vasta cabeleira a me preencher a cabeça. Era minha primeira viagem para o exterior e Buenos Aires não era exatamente meu desejo: planejara de início a Escócia (e olha que na época eu não conhecia Mogwai e Belle and Sebastian), mudara a rota para Brisbane, Austrália, e acabara não saindo do cone sul da América do Sul. Havia um pouco de decepção, é certo, que foi superada pelo encanto portenho: eu, um caipira de Pato Branco, que havia ido três ou quatro vezes a São Paulo e morria de medo da cidade grande (e da pequena também), pude descobrir o prazer de flanar anônimo e a esmo. Por três semanas bati perna pelo centro expandido e alguns locais mais distantes (como a San Isidro da guia do curso de espanhol, Mariana), tirando fotos feito um turista japonês. Ao voltar ao Brasil, Buenos Aires se tornara minha Pasárgada - ainda que eu não fosse amigo do rei.
Voltei à cidade em dois mil e seis, quando meu irmão ganhou de aniversário uma viagem de mochilão até a Patagônia e eu fui junto como guia e intérprete - era também a primeira viagem dele ao exterior (Ciudad del Este, Puerto Iguazu e Bernardo de Irigoyen não contam). Abatida pela crise, a cidade ganhava ar de América do Sul, naquilo que, infelizmente, há de negativo no subcontinente: pedintes nas ruas, crianças cheirando cola, prostitutas se oferecendo a turistas. Apesar dos pesares (que, sete anos antes, não eram inexistentes, mas permaneciam longe das vistas dos turistas, do lado de lá da ponte da Boca), Buenos Aires seguia como minha Pasárgada: já visitara cidades no velho mundo, como Barcelona e Lisboa, que me encantaram também, porém não tanto.
E agora, me pergunto enquanto soco cinco camisetas, uma toalha e um chinelo na mochila, que será dessa viagem? Que 'eu' encontrarei lá, perdido na avenida General Las Heras, a andar e andar pela cidade? Há quase três anos Buenos Aires perdeu o posto de Pasárgada: desde que me mudei para São Paulo passei a amar esta cidade insana, de violência simbólica intensa, e não tenho vontade de morar em outro lugar - ao menos dentre as cidades que já passei: guardo em algum canto vontade de morar em uma Nova Iorque ou Tóquio imaginada de minhas leituras. Há um receio nesse reecontro, reconheço, um medo de descobrir algo que perdi e não notara. Assim mesmo deixo tudo preparado para não perder o vôo.

São Paulo, 21 de novembro de 2014

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cria cuervos (sobre a expulsão do repórter do CQC de uma manifestação)

Assisto ao vídeo da expulsão do repórter do CQC da manifestação contra o PT e a Dilma, e a favor da ditadura militar, dia quinze de novembro, na Avenida Paulista. O manifestante que gravava a cena tece comentários ao fim da ação anti-mídia: "achei é que foi pouco". E foi mesmo. Não que merecesse mais - ou mesmo isso -, mas para quem viu o cortejo das esquerdas na última manifestação chamada pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013, atacadas verbal e fisicamente por hordas de extremistas, achou a tal gritaria dos viúvos e das viúvas da ditadura nível iniciante: uns gritos, dedos em riste e a expulsão, sem ameaça séria ao repórter, que sequer precisou da ação dos policiais (que estavam do lado!) para conter o magote histérico. 
Como não sou jornalista não sou afetado pelo corporativismo (como atinge mesmo a excelentes nomes, como Paulo Nogueira), e tento evitar dois pesos duas medidas: por isso não condeno a ação contra o humorista. Já vi em greve da Unicamp, repórter da Folha de São Paulo tirar foto de papéis de divulgação publicitária, atirados por alunos numa ocupação da reitoria, para noticiar a perda de documentos importantes da instituição: se for para noticiar mentira (falo de fatos falsos, não se trata sequer de uma visão parcial), defendo que movimentos barrem a imprensa. Que a imprensa não se satisfaça com esse tratamento (por mais que muitas vezes mereça), acho do direito dela, e faz todo sentido não acatar cerceamentos - apesar de quando a polícia militar a impede de trabalhar, como no cerco aos manifestantes no hotel Linson, na Augusta, a Grande Imprensa no máximo solta uma nota de rodapé de pesar.
No caso dos manifestantes anti-PT e pró-militares de sábado, vale lembrar, antes de tudo, que o tal repórter é, antes de mais nada, um humorista, e o programa do qual participa tem como um dos seus expedientes principais, avacalhar com aquilo que estão acompanhando (eu ia dizer ironizar, mas para usar ironia é preciso um pouco de sofisticação intelectual e educação, algo que Marcelo Tas e seus pupilos, se possuem, não gostam de usar). Por mais boçais que sejam - talvez justo por isso -, os manifestantes na Paulista querem ser levados a sérios: o que esperavam que os manifestantes fizessem com quem chega para avacalhar em rede nacional com seu protesto? Que o receba com pompas de ser iluminado, só porque tem uma credencial de jornalista (se é que tem) e é acompanhando por um câmera? A situação é um pouco diferente no caso do repórter do Diário do Centro do Mundo, que cobria com intuito sério a manifestação - porém aqui trago o exemplo que vivi na Unicamp: se os manifestantes achavam que ele noticiaria inverdades, deveriam deixá-lo atuar, só porque jornalista se crê intocável? Jornalismo é uma profissão de risco, a depender de que linha o jornalista decidir seguir. Ser impedido de exercer seu trabalho por parte de um grupo de pessoas é um desses riscos, e isso não significa, necessariamente, cercear a liberdade de expressão - pode vir a ser, por exemplo, num caso de ameaças prévias ou agressões sistemáticas.
Aqui concordo, ainda que por um caminho diferente, com a análise de Paulo Nogueira, do DCM: a imprensa está criando seus próprios corvos. Pela sua incitação ao ódio, mas também pelo uso sistemático da mentira, ou da "desinformação", como preferem os mais pudicos. A recusa em contribuir, ou mesmo compactuar, com a imprensa se dá porque a população tem percebido - ainda que inconscientemente - que a imprensa não está ali para relatar os fatos, e sim para distorcê-los ao sabor dos seus interesses. E isso traz uma questão muito mais assustadora do que expulsão de jornalistas por extremistas: uma questão que atinge a população média, em tese longe de extremismos. Tratarei em uma próxima crônica.

São Paulo, 20 de novembro de 2014.

domingo, 16 de novembro de 2014

Abraçaço [memórias feitas de saudades]

Eu escrevia sobre política. Citava Comte-Sponville, Rancière, Rawls, Nelson Rodrigues - você talvez me chamasse de academicista, só para me provocar, e escutaria toda minha justificativa de que estou longe disso, para me responder, rindo, ao fim: "calma, Dalmorito, não se ofenda, gosto de você assim mesmo". No Face, Marcos pôs uma foto na qual antevi seu comentário: "hahahaha, aí, sim, Marcos!" Era um Pica-Pau de pelúcia defronte uma cachoeira - Chapada dos Veadeiros, se não me equivoco. Não perguntei, mas tenho certeza que o intuito dele foi o de fazer esse agrado para você - ele também deve ter antevisto seu comentário. Havia me deparado com um Pica-Pau assim na República ainda esta semana - me lembrei de você e a incompletude da vida tatuada no seu braço. Pica-Pau filosófico-existencialista - só você para subverter desse jeito! Tenho andado num período estranho: não é desânimo, não é a dor da tua ausência - o vazio segue, porém tenho conseguido a cada dia preenchê-lo de memórias e da alegria de ter te conhecido -, não sei ao certo o que é. Penso ser uma das minhas ecdises. Que pele nasce sob essa que, morta, tento me desvencilhar? Há você nessa pele nova, por mais que não esteja presente da mesma forma que nas minhas ecdises anteriores. Queria te perguntar "o que faço" diante das minhas pequenas dúvidas e angústias do dia a dia. Queria pedir seus conselhos sobre garotas - que raios se faz quando começa a tocar Pela luz dos olhos teus, que você cantarolava quando falava do Marcelo? Queria te abraçar para além do meu abraço simbólico que te dou toda vez que passo pelo Charm - você faz tanta falta, Misson! Queria palpitar nos seus dilemas quotidianos, existenciais, pequenos, grandes, bizarros - cadê suas histórias do Metrô? Ouço Miho Hatori, Ecdysis. Me recordo da vez que mostrei um clipe dela, tentando te convencer de que rock alternativo japonês e coreano não eram tão chatos assim - pela internet você sempre me dizia que não assistira ao que te enviara, pois tinha medo de clicar em links com caracteres que não conhecia. A produtora do clipe de Barracuda era uma Mariana Castro - rimos no QGinho. Muito tempo depois, Marcos daria um "checkin" no QGinho, pelo Face - estávamos Yane e eu também, foi dia dois de junho. Começava ali uma revolução? Começava, mas foi interrompida no meio do caminho. Ainda me lembro da terça-feira, vinte e sete de agosto, lá pelo meio-dia, em que encontrei Yane na Sé e perguntei se ele tinha te visto, conversamos sobre você, estávamos preocupados, mas esperançosos de que você já trilhava um novo caminho para a vida. Doze horas depois... você abandonava a "não-morte", como dizem os índios Bororo. Troco de disco, ponho Caetano Veloso, Abraçaço. Foi você quem mo mostrou pela primeira vez. Questionei se você apenas queria me mostrar a música, ou se queria falar por ela. Era a segunda opção. A música? Estou triste. Há tempos evito este disco. Sempre soube que me traria lágrimas: há uma coisa que há muito queria te dizer. Guardo isso como uma relíquia, como disse Débora. Esta carta que agora te escrevo, tenho ela escrita - o essencial dela - desde muito. Não que me faltasse coragem de dizê-lo, é que esperava falar pessoalmente - diante da impossibilidade... Sei que você sabe, que você sabia. Isso era claro e óbvio, eu apenas não dera conta de nomeá-lo. Esse sentimento ganhou nome com o disco do Caetano apresentado por você. Coincidência, não? Tantas. Estou triste, estou muito triste, o que será que existe, o que quer que seja. Me sinto vazio, mas não adianta estar farto: aprendi a aceitar certas coisas da vida. Perdi meu medo do porão, você viu? A Casuística talvez volte, eu assumiria seu papel de co-editor, Daisy como editora. Uma amiga sua, Daniela Nascimento, me perguntou de você esta semana - na verdade do seu livro, que eu pretendo ainda lançar um dia: seus cadernos estão aqui comigo, um tesouro. A Augusta não tem a graça de outrora, e não é porque ela mudou. Alberta, da noite do famoso "Fanoruti", reabriu. Conheci o apartamento novo do Djalma. Achei uma nova Ruth, a balconista. Semana que vem vou para Buenos Aires, cidade que você planejava conhecer. Tenho a impressão de que você passou por um sonho meu. São duas da manhã, chove lá fora. Vida sem utopia, não acredito que exista. A minha utopia está em reencontrá-la - para além dos reencontros diários por SP. Eu tinha tantas coisas pra te contar - imagino que você também. Poderia elencá-las aqui, mas seria apenas para fugir do essencial, como fiz outras vezes. Enquanto escuto Abraçaço me baixa um sentimento sutil de conforto, parece que estou em sua companhia - há algo a mais no ar de casa hoje. O dia e o disco se encaminham para o fim - toca Gayana. O amor que vive em mim/ vou agora revelar/ este amor que não tem fim/ já não posso em mim guardar/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ eu não vou mais me calar/ eu não vou mais esconder/ este segredo guardado/ bem lá no fundo do peito/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ não adianta fugir/ não adianta fingir/ já me cansei de sofrer/ por não poder lhe dizer/ eu amo muito você/ eu amo muito você. É Caetano, não sei para quem ele canta. Sou eu também, e canto para você, Missoneta. E por que escolhi dizer isso agora? Também não sei. Talvez para poder concluir minha ecdise, talvez para poder deixar você partir, talvez porque não coubesse mais em mim esse segredo (que todo mundo sabia, mas era segredo), talvez porque precisasse dividir essa minha relíquia. Você sabia, tenho certeza, isso era óbvio na nossa relação, mas mesmo assim eu precisava te dizer: eu amo muito você!

São Paulo, 16 de novembro de 2014.

Para Patrícia Misson, que eu tanto amo e tanta falta faz.


domingo, 9 de novembro de 2014

De utopias e memórias

Ao fim da fala da atriz que incorpora Heleny Guariba, morta pela ditadura civil-militar brasileira, o diretor convida os espectadores para um vinho fora da caixa preta do Espaço Sobrevento, no Belenzinho, zona leste de São Paulo. É a Cantata para um bastidor de utopias, adaptação da peça Mariana Pineda, de Federico Garcia Lorca, feita pela Cia do Tijolo, sob direção de Rogério Tarifa e Rodrigo Mercadante.
O intervalo é apenas uma meia pausa na ficção da peça que mistura a obra de Lorca, a guerra civil espanhola e a ditadura civil-militar brasileira: Federico Garcia Lorca seguirá incorporado por um dos atores, mas a atenção principal estará em alguma pessoa comum sentada à mesa - um qualquer como qualquer um ali, não fosse sua história. De peito aberto e cara à tapa, essa pessoa relatará um pouco da sua vivência nos porões da civilização brasileira - sempre fora da vista, mas não distantes o bastante para que não sejam ouvidos os gritos na Casa Grande -, o inferno de quem desafiou a ditadura - ou nem isso, apenas era amigo de quem contestava a "ordem". Um relato que não contará novidades ou detalhes desconhecidos: sua principal virtude, talvez, será a de deixar explícito que quem sofreu a violência do Estado não é alguma figura etérea de fotos em preto e branco dos livros de história ou que aparece na televisão percorrendo os corredores do poder - pelo governo e pela oposição -, que quem sofreu essa violência diretamente no corpo é alguém de carne e osso, uma pessoa comum, como os que assistem ao espetáculo. A quem resta algo de humanidade, se verá impelido a alguma reflexão - infelizmente não são todos que ainda possuem esse mínimo de sensibilidade para enxergar no Outro sua própria imagem.
As pessoas se levantam e seguem o breve cortejo até a entrada do espaço, ainda sem saber que o intervalo será tão ou mais pesado que a peça. Ao meu lado, um casal de idosos - setenta anos, talvez mais - se demora. Tardam a se levantar, e uma vez em pé se abraçam enquanto se esforçam para interromper as lágrimas que verteram abundantes durante a fala da atriz. Não sei quem são, não darão seu depoimento no intervalo, ao qual assistirão anônimos como os demais espectadores - mas as lágrimas me fazem imaginar que vejo ali sobreviventes que se não sofreram no corpo, sofreram na alma com as torturas dos militares. 
A quem acredita que a ditadura civil-militar é assunto encerrado, falta matar os sobreviventes e aqueles que ouviram suas histórias.

São Paulo, 09 de novembro de 2014.

sábado, 1 de novembro de 2014

Ao perdedor, as cebolas [Eleições 2014]

O fim da contagem dos votos não encerrou o clima de saudável debate de alto nível que tomou o país, em especial as redes sociais. Uma amiga tratou logo de divulgar uma imagem dizendo que havia votado em Dilma por ela ser mulher (em letras pequenas complementava: por ter defendido os direitos destas). Fiquei com vontade de perguntar: e se o segundo turno tivesse sido entre Marina Silva e Eduardo Jorge, teria votado na Marina por ser mulher? Não o fiz, tentei não perder amigos por causa da eleições. E agora me centro no lamento dos derrotados - ao perdedor, as cebolas.
Discordo que as pessoas que saíram anunciando "luto pelo Brasil" não saibam perder - ao menos não por essa frase. Tivesse ganho o PSDB e muitos eleitores petistas estariam também em luto, por ver seu projeto de país interrompido. Enlutar por ver um projeto que julgava o melhor ser preterido me parece normal e dentro da normalidade democrática. O que não não está dentro dessa normalidade são os discursos que estão indo além - muito além - desse luto.
As diversas manifestações de preconceito contra nordestinos me parecem a face mais sombria destas eleições. A canção da banda Ira!, "Pobre paulista", que parecia ser peça do museu de horrores tupiniquim, talvez nunca tenha soado mais atual: "não quero ver mais essa gente feia/ não quero ver mais os ignorantes/ eu quero ver gente a minha terra/ eu quero ver gente do meu sangue" (sobre isso, recomendo o texto "Neofascismo à paulista", na página 24 e 25 da edição 12 da Casuística [www.casuistica.net]): a idéia lançada por formadores de opinião (sic) da Grande Imprensa (sic) corporativa, de separação do Brasil pró-Aécio do país pró-Dilma, mostra desrespeito com a democracia, com os dados e com nortistas-nordestinos (mas também com sudestinos-sulistas-centro-oestistas): contrariamente ao mapa a la delegados estadunidenses, a vitória da petista só ocorreu por conta dos votos que ganhou no país todo - e a maioria tucana no sul-sudeste não implica em unanimidade, bem longe disso.
Veja apontou Aécio Neves como grande ganhador do pleito deste ano. Informação correta, se da análise forem excluídos Dilma Rousseff e o PT. De qualquer forma, o mineiro sai fortalecido dentro do partido, o partido e ele é que saem enfraquecidos de um dos seus principais discursos: o de ser o partido da união, em contraposição ao partido que dividiu o país. Se assumir o discurso do ex-professor da Sourbonne, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, primeiro a levantar a vitória petista no grotões do nordeste como conseqüência da ignorância do povo local, comprado num esquema neocoronelista pelo bolsa-família - levado ao paroxismo por seus apoiadores, principalmente da Veja -, o PSDB se tornará partido de força regional em no máximo duas eleições nacionais - rota que só não inaugurou em 2014 por conta do acidente que vitimou os planos de poder de Eduardo Campos e do PSB.
Curiosidade da análise de FHC: ao falar sobre a ignorância, ele ignorou que os governos petistas ampliaram o acesso à educação, inclusive à superior, e acabaram com a principal causa do voto de cabresto: a fome (ao fim desta crônica, oporei ao doutor tão sabido outro grande intelectual brasileiro). Pior: se bolsa-família é tão pernicioso assim à democracia, por que o candidato do seu partido defendia institucionalizá-lo como política de Estado? A ignorância fernandista sobre Aécio é a mesma de boa parte dos seus eleitores, que defendiam o voto no PSDB para acabar com as "bolsas-esmolas" petistas. Ou contra a corrupção, como se fosse problema de um partido e não de um sistema - inclusive deixado impune durante os oito anos de tucanato. Bem dizem: a ignorância é uma benção - principalmente àqueles que dirigem uma massa que se presume ilustrada!
Não que votar no PSDB fosse indefensável, razões razoáveis haviam. Uma política à direita, por exemplo - de que com o crescimento do bolo os mais pobres ganhariam mais migalhas. Ou a institucionalização da bolsa-família - proposta de Michel Candessus e Enrique Iglesias, do Bird e FMI, em meados da década de 1990. Outro ponto defensável, que vi no Facebook de um empresário, era a maior confiança dos agentes econômicos em Aécio. Verdade, porém pela metade: a confiança maior em Aécio se dá antes por predileção dos donos da grana e não o contrário, como sói a quem se informa com a Grande Imprensa (sic). Também no facebook, uma ex-amiga virtual (me excluiu durante as eleições - quase chorei), dezoito anos, se perguntava como iria arranjar um emprego com a crise econômica em curso - usava Veja como fonte. Poderia ser uma preocupação justa, se não fosse equivocada: tendo estudado em escolas particulares e fazendo cursinho, sua preocupação atual deveria ser antes a de entrar em uma universidade e conseguir levá-la até o fim - coisa que, por caminhos em muitos pontos criticáveis, o governo petista dá boas perspectivas. Por fim, nascida no Japão, deveria olhar para o país natal e ver que, apesar de um quarto de século de estagnação, segue em situação de pleno emprego e boa qualidade de vida - o índice de desigualdade social que não vai tão bem. A economia crescer é imprescindível... para a economia crescer. Para as pessoas, essas que não são agente econômicos plenos, que lidam com dinheiro e não com capital, e precisam fazer contas para salário e mês fecharem juntos, para essas, emprego, renda e qualidade de vida são mais importantes - e há muitos que, ao observar o Japão, questionam a necessidade do crescimento econômico pelo crescimento econômico.
E para ajudar a entender a ignorância do nordeste, nestes tempos de seca em São Paulo, um autor que não cita Marx, nem Weber, nem foi professor com uma teoria cheia de palavras difíceis:

"Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece,
Nunca sôbe quem sou eu,
Nunca viu minha paioça,
Minha mué, minha roça,
E os fio que Deus me deu.

Se não sabe, escute agora,
Que eu von contá minha histora,
Tenha a bondade de uví:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasí.

Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De cinco mês em seguida
Sem comê carne uma vez.

Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação,
Pra sustentá a famia
Só tem dereito a dois dia,
O resto é para o patrão.

Sou o que no tempo da guerra
Cronta o gosto se desterra
Para nunca mais vortá,
E vai morrê no estrangêro
Cumo pobre brasilêro,
Longe do torrão natá.

Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasí fica mió;
Mas o Brasí continua
Na cantiga da perua:
Que é: - pió, pió, pió...

Sou o mendigo sem sossego,
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem dereção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.

Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado,
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataque de sezão.

Senhô dotô, não se enfade,
Vá guardando esta verdade
Na memora, e pode crê
Que eu sou aquele operário
Que ganha um pobre saláro
Que não dá para comê.

Sou ele todo, em carne e osso,
Muntas vêz não tenho armôço
Nem tombém o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhero,
Cantado por Juvená.

Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele geno,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Munto sentido cantou.

Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro munto e corro estreito,
Inda tou no mêrmo jeito
Que Juvená me deixou.

Sofrendo a mesma sentença,
Tou quage perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasí,
E o meu nome é Ceará!"

"Seu dotô me conhece?", de Antônio Gonçalves da Silva, poderia mas não foi escrito ao doutor Fernando Henrique Cardoso. É anterior ao PT, e ao PSDB também - mas desconfio ter tido mudanças significativas no quadro cantado apenas na última década. A quem não conhece, está no livro Inspiração nordestina, assinado com o nome artístico de Patativa do Assaré.


São Paulo, 01 de novembro de 2014.