domingo, 16 de novembro de 2014

Abraçaço [memórias feitas de saudades]

Eu escrevia sobre política. Citava Comte-Sponville, Rancière, Rawls, Nelson Rodrigues - você talvez me chamasse de academicista, só para me provocar, e escutaria toda minha justificativa de que estou longe disso, para me responder, rindo, ao fim: "calma, Dalmorito, não se ofenda, gosto de você assim mesmo". No Face, Marcos pôs uma foto na qual antevi seu comentário: "hahahaha, aí, sim, Marcos!" Era um Pica-Pau de pelúcia defronte uma cachoeira - Chapada dos Veadeiros, se não me equivoco. Não perguntei, mas tenho certeza que o intuito dele foi o de fazer esse agrado para você - ele também deve ter antevisto seu comentário. Havia me deparado com um Pica-Pau assim na República ainda esta semana - me lembrei de você e a incompletude da vida tatuada no seu braço. Pica-Pau filosófico-existencialista - só você para subverter desse jeito! Tenho andado num período estranho: não é desânimo, não é a dor da tua ausência - o vazio segue, porém tenho conseguido a cada dia preenchê-lo de memórias e da alegria de ter te conhecido -, não sei ao certo o que é. Penso ser uma das minhas ecdises. Que pele nasce sob essa que, morta, tento me desvencilhar? Há você nessa pele nova, por mais que não esteja presente da mesma forma que nas minhas ecdises anteriores. Queria te perguntar "o que faço" diante das minhas pequenas dúvidas e angústias do dia a dia. Queria pedir seus conselhos sobre garotas - que raios se faz quando começa a tocar Pela luz dos olhos teus, que você cantarolava quando falava do Marcelo? Queria te abraçar para além do meu abraço simbólico que te dou toda vez que passo pelo Charm - você faz tanta falta, Misson! Queria palpitar nos seus dilemas quotidianos, existenciais, pequenos, grandes, bizarros - cadê suas histórias do Metrô? Ouço Miho Hatori, Ecdysis. Me recordo da vez que mostrei um clipe dela, tentando te convencer de que rock alternativo japonês e coreano não eram tão chatos assim - pela internet você sempre me dizia que não assistira ao que te enviara, pois tinha medo de clicar em links com caracteres que não conhecia. A produtora do clipe de Barracuda era uma Mariana Castro - rimos no QGinho. Muito tempo depois, Marcos daria um "checkin" no QGinho, pelo Face - estávamos Yane e eu também, foi dia dois de junho. Começava ali uma revolução? Começava, mas foi interrompida no meio do caminho. Ainda me lembro da terça-feira, vinte e sete de agosto, lá pelo meio-dia, em que encontrei Yane na Sé e perguntei se ele tinha te visto, conversamos sobre você, estávamos preocupados, mas esperançosos de que você já trilhava um novo caminho para a vida. Doze horas depois... você abandonava a "não-morte", como dizem os índios Bororo. Troco de disco, ponho Caetano Veloso, Abraçaço. Foi você quem mo mostrou pela primeira vez. Questionei se você apenas queria me mostrar a música, ou se queria falar por ela. Era a segunda opção. A música? Estou triste. Há tempos evito este disco. Sempre soube que me traria lágrimas: há uma coisa que há muito queria te dizer. Guardo isso como uma relíquia, como disse Débora. Esta carta que agora te escrevo, tenho ela escrita - o essencial dela - desde muito. Não que me faltasse coragem de dizê-lo, é que esperava falar pessoalmente - diante da impossibilidade... Sei que você sabe, que você sabia. Isso era claro e óbvio, eu apenas não dera conta de nomeá-lo. Esse sentimento ganhou nome com o disco do Caetano apresentado por você. Coincidência, não? Tantas. Estou triste, estou muito triste, o que será que existe, o que quer que seja. Me sinto vazio, mas não adianta estar farto: aprendi a aceitar certas coisas da vida. Perdi meu medo do porão, você viu? A Casuística talvez volte, eu assumiria seu papel de co-editor, Daisy como editora. Uma amiga sua, Daniela Nascimento, me perguntou de você esta semana - na verdade do seu livro, que eu pretendo ainda lançar um dia: seus cadernos estão aqui comigo, um tesouro. A Augusta não tem a graça de outrora, e não é porque ela mudou. Alberta, da noite do famoso "Fanoruti", reabriu. Conheci o apartamento novo do Djalma. Achei uma nova Ruth, a balconista. Semana que vem vou para Buenos Aires, cidade que você planejava conhecer. Tenho a impressão de que você passou por um sonho meu. São duas da manhã, chove lá fora. Vida sem utopia, não acredito que exista. A minha utopia está em reencontrá-la - para além dos reencontros diários por SP. Eu tinha tantas coisas pra te contar - imagino que você também. Poderia elencá-las aqui, mas seria apenas para fugir do essencial, como fiz outras vezes. Enquanto escuto Abraçaço me baixa um sentimento sutil de conforto, parece que estou em sua companhia - há algo a mais no ar de casa hoje. O dia e o disco se encaminham para o fim - toca Gayana. O amor que vive em mim/ vou agora revelar/ este amor que não tem fim/ já não posso em mim guardar/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ eu não vou mais me calar/ eu não vou mais esconder/ este segredo guardado/ bem lá no fundo do peito/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ não adianta fugir/ não adianta fingir/ já me cansei de sofrer/ por não poder lhe dizer/ eu amo muito você/ eu amo muito você. É Caetano, não sei para quem ele canta. Sou eu também, e canto para você, Missoneta. E por que escolhi dizer isso agora? Também não sei. Talvez para poder concluir minha ecdise, talvez para poder deixar você partir, talvez porque não coubesse mais em mim esse segredo (que todo mundo sabia, mas era segredo), talvez porque precisasse dividir essa minha relíquia. Você sabia, tenho certeza, isso era óbvio na nossa relação, mas mesmo assim eu precisava te dizer: eu amo muito você!

São Paulo, 16 de novembro de 2014.

Para Patrícia Misson, que eu tanto amo e tanta falta faz.


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