sábado, 1 de novembro de 2014

Ao perdedor, as cebolas [Eleições 2014]

O fim da contagem dos votos não encerrou o clima de saudável debate de alto nível que tomou o país, em especial as redes sociais. Uma amiga tratou logo de divulgar uma imagem dizendo que havia votado em Dilma por ela ser mulher (em letras pequenas complementava: por ter defendido os direitos destas). Fiquei com vontade de perguntar: e se o segundo turno tivesse sido entre Marina Silva e Eduardo Jorge, teria votado na Marina por ser mulher? Não o fiz, tentei não perder amigos por causa da eleições. E agora me centro no lamento dos derrotados - ao perdedor, as cebolas.
Discordo que as pessoas que saíram anunciando "luto pelo Brasil" não saibam perder - ao menos não por essa frase. Tivesse ganho o PSDB e muitos eleitores petistas estariam também em luto, por ver seu projeto de país interrompido. Enlutar por ver um projeto que julgava o melhor ser preterido me parece normal e dentro da normalidade democrática. O que não não está dentro dessa normalidade são os discursos que estão indo além - muito além - desse luto.
As diversas manifestações de preconceito contra nordestinos me parecem a face mais sombria destas eleições. A canção da banda Ira!, "Pobre paulista", que parecia ser peça do museu de horrores tupiniquim, talvez nunca tenha soado mais atual: "não quero ver mais essa gente feia/ não quero ver mais os ignorantes/ eu quero ver gente a minha terra/ eu quero ver gente do meu sangue" (sobre isso, recomendo o texto "Neofascismo à paulista", na página 24 e 25 da edição 12 da Casuística [www.casuistica.net]): a idéia lançada por formadores de opinião (sic) da Grande Imprensa (sic) corporativa, de separação do Brasil pró-Aécio do país pró-Dilma, mostra desrespeito com a democracia, com os dados e com nortistas-nordestinos (mas também com sudestinos-sulistas-centro-oestistas): contrariamente ao mapa a la delegados estadunidenses, a vitória da petista só ocorreu por conta dos votos que ganhou no país todo - e a maioria tucana no sul-sudeste não implica em unanimidade, bem longe disso.
Veja apontou Aécio Neves como grande ganhador do pleito deste ano. Informação correta, se da análise forem excluídos Dilma Rousseff e o PT. De qualquer forma, o mineiro sai fortalecido dentro do partido, o partido e ele é que saem enfraquecidos de um dos seus principais discursos: o de ser o partido da união, em contraposição ao partido que dividiu o país. Se assumir o discurso do ex-professor da Sourbonne, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, primeiro a levantar a vitória petista no grotões do nordeste como conseqüência da ignorância do povo local, comprado num esquema neocoronelista pelo bolsa-família - levado ao paroxismo por seus apoiadores, principalmente da Veja -, o PSDB se tornará partido de força regional em no máximo duas eleições nacionais - rota que só não inaugurou em 2014 por conta do acidente que vitimou os planos de poder de Eduardo Campos e do PSB.
Curiosidade da análise de FHC: ao falar sobre a ignorância, ele ignorou que os governos petistas ampliaram o acesso à educação, inclusive à superior, e acabaram com a principal causa do voto de cabresto: a fome (ao fim desta crônica, oporei ao doutor tão sabido outro grande intelectual brasileiro). Pior: se bolsa-família é tão pernicioso assim à democracia, por que o candidato do seu partido defendia institucionalizá-lo como política de Estado? A ignorância fernandista sobre Aécio é a mesma de boa parte dos seus eleitores, que defendiam o voto no PSDB para acabar com as "bolsas-esmolas" petistas. Ou contra a corrupção, como se fosse problema de um partido e não de um sistema - inclusive deixado impune durante os oito anos de tucanato. Bem dizem: a ignorância é uma benção - principalmente àqueles que dirigem uma massa que se presume ilustrada!
Não que votar no PSDB fosse indefensável, razões razoáveis haviam. Uma política à direita, por exemplo - de que com o crescimento do bolo os mais pobres ganhariam mais migalhas. Ou a institucionalização da bolsa-família - proposta de Michel Candessus e Enrique Iglesias, do Bird e FMI, em meados da década de 1990. Outro ponto defensável, que vi no Facebook de um empresário, era a maior confiança dos agentes econômicos em Aécio. Verdade, porém pela metade: a confiança maior em Aécio se dá antes por predileção dos donos da grana e não o contrário, como sói a quem se informa com a Grande Imprensa (sic). Também no facebook, uma ex-amiga virtual (me excluiu durante as eleições - quase chorei), dezoito anos, se perguntava como iria arranjar um emprego com a crise econômica em curso - usava Veja como fonte. Poderia ser uma preocupação justa, se não fosse equivocada: tendo estudado em escolas particulares e fazendo cursinho, sua preocupação atual deveria ser antes a de entrar em uma universidade e conseguir levá-la até o fim - coisa que, por caminhos em muitos pontos criticáveis, o governo petista dá boas perspectivas. Por fim, nascida no Japão, deveria olhar para o país natal e ver que, apesar de um quarto de século de estagnação, segue em situação de pleno emprego e boa qualidade de vida - o índice de desigualdade social que não vai tão bem. A economia crescer é imprescindível... para a economia crescer. Para as pessoas, essas que não são agente econômicos plenos, que lidam com dinheiro e não com capital, e precisam fazer contas para salário e mês fecharem juntos, para essas, emprego, renda e qualidade de vida são mais importantes - e há muitos que, ao observar o Japão, questionam a necessidade do crescimento econômico pelo crescimento econômico.
E para ajudar a entender a ignorância do nordeste, nestes tempos de seca em São Paulo, um autor que não cita Marx, nem Weber, nem foi professor com uma teoria cheia de palavras difíceis:

"Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece,
Nunca sôbe quem sou eu,
Nunca viu minha paioça,
Minha mué, minha roça,
E os fio que Deus me deu.

Se não sabe, escute agora,
Que eu von contá minha histora,
Tenha a bondade de uví:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasí.

Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De cinco mês em seguida
Sem comê carne uma vez.

Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação,
Pra sustentá a famia
Só tem dereito a dois dia,
O resto é para o patrão.

Sou o que no tempo da guerra
Cronta o gosto se desterra
Para nunca mais vortá,
E vai morrê no estrangêro
Cumo pobre brasilêro,
Longe do torrão natá.

Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasí fica mió;
Mas o Brasí continua
Na cantiga da perua:
Que é: - pió, pió, pió...

Sou o mendigo sem sossego,
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem dereção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.

Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado,
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataque de sezão.

Senhô dotô, não se enfade,
Vá guardando esta verdade
Na memora, e pode crê
Que eu sou aquele operário
Que ganha um pobre saláro
Que não dá para comê.

Sou ele todo, em carne e osso,
Muntas vêz não tenho armôço
Nem tombém o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhero,
Cantado por Juvená.

Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele geno,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Munto sentido cantou.

Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro munto e corro estreito,
Inda tou no mêrmo jeito
Que Juvená me deixou.

Sofrendo a mesma sentença,
Tou quage perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasí,
E o meu nome é Ceará!"

"Seu dotô me conhece?", de Antônio Gonçalves da Silva, poderia mas não foi escrito ao doutor Fernando Henrique Cardoso. É anterior ao PT, e ao PSDB também - mas desconfio ter tido mudanças significativas no quadro cantado apenas na última década. A quem não conhece, está no livro Inspiração nordestina, assinado com o nome artístico de Patativa do Assaré.


São Paulo, 01 de novembro de 2014.

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