terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Transitar por Buenos Aires

O transporte de Buenos Aires, em seus vários modais, merece uma crônica. Começo pelos ônibus: a primeira impressão é de que são muito velhos, provavelmente causada pela pintura e seus adereços - mesmos nos novos. Reparando um pouco mais, creio ter visto alguns ônibus que no século passado eu já achava muito velhos - sinal que a impressão não é de todo equivocada. Pelos avisos, Buenos Aires parece estar ampliando (ou implementando) corredores exclusivos - inclusive não me lembrava do metrobus nas pistas centrais da Nove de Julho, mas pode ser que eu não reparara. E causa estranhamento também as pessoas fazerem fila nos pontos - e não apenas quando o ônibus pára, pela questão logística de que não pode entrar todo mundo pela porta do busão (tão logo chego no brasil, ainda no aeroporto, o motorista do ônibus mostra onde deve ser feita a fila, as pessoas seguem sua indicação, e na hora de estacionar para embarcarmos, o mesmo motorista pára no meio da fila).
Ciclovias, essas não vi avisos, mas espero estarem sendo ampliadas, pois há lugares em que a ciclovia se encerra do nada, num meio fio, após atravessar uma avenida movimentada. Em geral, elas me pareceram bem mal feitas, antes com efeitos cosméticos que efetivas - apesar de um número não desprezível de pessoas usar a bicicleta como transporte (e tomo como modelo as ciclovias implementadas em São Paulo por Haddad). Boa parte das ciclovias são apertadas, malemal passa uma bicicleta em cada mão e foram feitas próximas ao meio fio, sem nenhuma reforma e adaptação: algumas têm suas faixas ocupadas por lixeiras, muitas ficam na parte originalmente dedicada ao escoamento da água da chuva. Não é preciso ser gênio para saber que em dias de chuva não há ciclovias. Imagino, contudo, que isso não torne impeditivo o uso da magrela: impressão tive que os motoristas respeitam mais, ou melhor, respeitam (ainda que não tanto quanto creio ser o ideal), desde outros motoristas até pedestres - de onde não ver por que excluir os ciclistas. Esqueitistas vi poucos.
Buenos Aires não tem sinais que fecham todo o tráfego aos carros, para que os pedestres atravessem: sinal verde vale para ambos, e ao dobrar a esquina, a preferência é (de fato) do pedestre. O que talvez me irrite mais dos motoristas portenhos é que eles adoram buzina. Notei dois padrões de buzina: as que chamei de che, e as de boludo. As primeiras são aquele "pi" que eles soltam para qualquer coisa, como quando o sinal recém fica verde. A boludo estende-se no tempo, "piiiiiiiiiiiiiiii", quase vejo os motoristas gritando "boluuudo!" dentro seus carros, e são utilizadas para qualquer coisa, também, como, por exemplo, quando o motorista atrasa dois segundos depois que o sinal abriu. Parece que boludar na buzina alivia de prosseguir com ofensas - mas ajuda bastante na poluição sonora. Uma placa curiosa encontrei em Palermo: uma vaga na rua reservada especificamente para um carro, placa tal. Devia ser um morador com alguma deficiência de locomoção, ok, mas ter um lugar só seu na via pública, isso não lembro de acontecer oficialmente no Brasil
Porém, o que mais me motivou a esta crônica foi o metrô, aqui chamado mais acertadamente de subte - vale lembrar que o Metrô de São Paulo, só com as novas ampliações vai se tornar efetivamente metropolitano. Sem muito contato com o modal paulistano, e talvez sob efeito da comparação com os ônibus, não tinha registro de serem tão antigos assim. Havia os trens de madeira, que iam para a praça de Maio, mas esses eram propagandeados como propositalmente mantidos, serviam como ponto turístico. Para não caminhar tanto antes dos shows, vou de metrô até estação mais ou menos próxima do local do festival (uns quatro quilômetros, talvez). Entro na estação Avenida de Mayo. De lá me encaminho até a Diagonal Norte, troco de linha e vou até a Plaza Italia. Simples, pero no por completo. Além de funcionários mal humorados e pouco dispostos a dar informações (diferença grande para os funcionários do metrô paulistano, e não falo isso para puxar saco de amigos), sinalização ruim e caminhos bizarros tornam a troca de linha uma aventura, quase uma caça ao tesouro: é preciso se encaminhar para o fim da plataforma, onde diz saída tal, virar à esquerda, descer a escada, caminhar por um túnel razoável, entrar na segunda direita, caminhar um tanto mais, subir outra escada e pronto: estou do outro lado da estação, pronto para tomar o metrô de volta para a Avenida de Mayo. Mais uma caminhada pelos subterrâneos portenhos, sobe desce, desce sobe, túnel, vira, corredor, vira, túnel, corredor, salva a princesa, sobe, desce, magia, sobe desce, escada, escada, meia lua xis e, agora, sim, me encontro na plataforma certa para seguir viagem - em companhia de um casal formado por um italiano e uma venezuelana, que não economizou no dedo quando o funcionário nos deu a informação de como chegar aonde gostaríamos.
Por ser antiga (imaginava ser da década de 1920, uma amiga me contou que a rede é de 1913), as estação são apertadas, até um pouco claustrofóbicas, por conta do pé direito baixo. Azulejos as enfeitam e as diferenciam, dando um ar menos padronizado - soa estranho, mas não deixa de ser simpático. Falta um pouco de manutenção, contudo: paredes descascando, cheiro de mofo e grandes ventiladores para fazer o ar circular - para não falar nos trens um tanto antigos, dando aquele ar de modernidade de ontem, que comentei quando falei do nome da empresa que administra o Aeroparque (detalhe: os de madeira, me contou minha amiga, foram tirados por conta de reiterados problemas, talvez circulem de domingo). Entendi o porquê de precisar fechar toda a linha B durante o final de semana para implementar ar-condicionado: não parece ser tarefa simples, antes uma considerável adaptação. O terceiro trilho corre pelo alto, há pedra brita entre os trilhos - para não falar de lixo jogado pelos usuários e água da chuva da noite. Na estação, na plataforma de embarque, um ambulante vende doces em uma mala - tranquilamente, sentado no chão. No trem, um brasileiro abre seu teclado e toca Bob Marley, enrola um portunhês (estágio anterior ao portunhol) e pede uma contribuição. As cinco pessoas sentadas na minha frente dariam um curta: uma jovem com fone de ouvido masca chicletes displicentemente, uma mulher perto dos quarenta sentada rígida tem o olhar perdido, um senhor (desses cinematográficos que não são raros de encontrar em Buenos Aires) apoiado em sua bengala, traz o olhar entre o leve fastio e a leve irritação, e, por fim, dois adolescentes, um com óculos de aro grosso, aparelho, espinhas - visual meio nerd -, e outro com óculos escuros, boné aba reta e estilo mano, cantam empolgados junto com o artista de metrô. Atrás deles propagandas. Primeiro imagino que quase todas irregulares, por parecerem lambe-lambe, mas depois passo a achar que a de "canto y escena" é regular, enquanto a de "sevicio de jardinería", por estar colada muito aleatoriamente, é irregular. Agora já acho que as duas são irregulares. É feriado, o número de passageiros é tranquilo, prefiro nem imaginar como é durante a semana - ou, pior, durante a semana com greve dos ônibus, como dali a dois dias. Chego à Plaza Itália sem sobressaltos, pronto para os shows, depois de uma viagem que começou com a visão de um Jesus Cristo do Porta dos fundos do outro lado da estação.

Buenos Aires - São paulo, 16 de dezembro de 2014

Sem comentários: