sábado, 28 de março de 2015

Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem - não como estrobo, que parcela o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab'Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.
Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura clubber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.
Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata - a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.
Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára - como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.
Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos vão se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino - o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura - tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros - o transforma em manto - e proclama "eu sou o imperador!". No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita - "essa é a minha natureza!".
Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: "então me mata! Então me mata!". Não se acomoda em lugar algum - não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música - que segue alta e intensa - e das luzes - cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.
Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves - segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: "é aqui, deus, que você quer que eu fique?" - eu me questiono: quem é deus, que Dielson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.
A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado - sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições - de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?
O final é redentor para Dielson - não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe - até nosso colapso. Ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

28 de março de 2015.


quarta-feira, 25 de março de 2015

Não hoje...

Cheiro de fumaça invade a sala - é a pizzaria do lado acendendo o forno. Pouco depois, o cheiro de fumaça vem misturado ao da carne - é a do espetinho do outro lado. No bar em frente, homens ouvem música e bebem cerveja em mesas na calçada. Duas delas estão vazias até que numa senta-se um homem, na outra, eu, outro rapaz e uma mulher. O homem e a mulher flertam, na mesa onde estou o importante é parecer estar se divertindo. O homem, sozinho, logo ganha a companhia da mulher. Eles conversam, a intimidade chega rápido, não tarda estão trocando carícias. Atravessam a rua para um "happy end". Tão rápido quanto se aproximaram, se afastam: ela grita, manda ele embora. Ele tenta argumentar, entender; ela bate a porta. Ele fica parado no meio da rua. As pessoas do bar assistem à cena. Também as do espetinho. Da oficina mecânica e os transeuntes também - e as da pizzaria provavelmente, mas estou de costas para ela. Ela surge na sacada do primeiro andar e manda uma vez mais ele ir embora, ou vai chamar a polícia. Mesmo sem entender, ele se dá por convencido e aceita partir. Entra pela mesma porta que a mulher. Eu e meu colega de mesa também rumamos para a porta. Antes de entrar, porém, somos cercados por cinco garotos que presenciaram o barraco. Nos perguntam ansiosos se "está tendo teatro". Não é na primeira negativa que aceitam a resposta. Somos obrigados a explicar: é apenas ensaio, investigação de uma cena. "Mas não vai ter mais", insistem. Não hoje. Mas prometemos avisá-los quando da estréia.


25 de março de 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

15 de março de 2015: o fracasso da nossa democracia [Qual gigante acordou?]

Trinta anos após a redemocratização, assistimos em horário nobre ao fracasso de nossa incipiente democracia. Esta conclusão pode soar contraditória quando a Grande Imprensa anuncia um milhão e meio de pessoas nas manifestações em todo país (metade disso, a se acreditar nos institutos estatísticos dessa mesma imprensa), neste quinze de março. Sem dúvida, se centrando apenas no fato, sem analisar o contexto, tivemos uma prova de política de massa e convivência democrática. Ao remontar as diversas causas que levaram essas pessoas à rua neste quinze de março, o que se vislumbra é uma farsa que se aproveita da democracia. A começar que uma manifestação democrática brada contra adversários, nunca inimigos - inimigos devem ser aniquilados. E o discurso das pessoas que foram para a rua - não digo todas, não sei nem se se pode falar da maioria, mas isso é mais assustador do que se fossem todas - era um discurso de guerra, de ódio, contra um inimigo, o PT, tratado como início e fim da corrupção no país, a besta do mal.
Mas o que tanto incomoda uma parcela da população para guardar tanto ódio frente um governo que não lhe tirou nada? Pois, vale lembrar, a grande mágica do lulo-petismo, desde 2005, foi fazer o bolo crescer já fazendo sua divisão - negando a receita de um dos grande chef da desigualdade tupiniquim, Delfim Netto. Se aproveitando do bom momento do comércio externo, primeiramente, e do bafo de dinamismo no mercado interno, depois da crise do capitalismo especulativo de 2008, os governos petistas promoveram a melhora das condições de vida dos mais pobres sem precisar com isso mexer com as classes média e alta, as quais não engoliram bem ficar com o pedaço maior do bolo, e não com ele todo, como soía acontecer até 2004. O ódio pelo PT se mostra, portanto, um mal-disfarçado ódio pelo pobre, a velha luta de classes, e ele nada tem de novo a não ser sua forma - explícita, incisiva, nada cordial.
Vale lembrar a grita contra Leonel Brizola à frente do estado do Rio de Janeiro, quando ele proibiu a Polícia Militar de agir fora da lei nas favelas, ou quando melhorou o acesso da população marginalizada ao centro da capital. O que Brizola fez então foi apenas uma versão condensada e evidente dos governos petistas na esfera federal: deu à população historicamente excluída uma primeira oportunidade de ser vista como cidadã e alterou a geografia dos "lugares naturais" sociais.
No caso petista, tento um breve resumo de como se deu essa alteração da geografia social a partir da ampliação da cidadania aos excluídos, um dos motores do ódio manifesto no quinze de março de 2015.
A redemocratização e constituinte de 1987-1988, com suas manifestações públicas e efervescência política, inverteu a curva de despolitização que a ditadura civil-militar havia imposto, à base de educação técnica, porrada, afogamento e pau-de-arara. Essa politização não conseguiu ter vida muito longa: ao desgaste habitual que ação política gera no cidadãos, acrescenta-se a educação formal que a negava, a avalanche midiática, principalmente via Rede Globo, que a deturpava, e a própria dinâmica institucional, que a desestimulava. O grande golpe para a subjugação da política foi o ideário neoliberal, trazido pela imprensa, pela academia, pela política, de substituição do politikon zoon pelo homo oeconomicus, com o mercado, e não mais a política, como paradigmática da sociabilidade contemporânea.
O governo FHC foi quem deu o golpe mais destruidor nessa disputa entre política e mercado. Curiosamente, para fazê-lo precisou de muita articulação política - outra prova de que, diferente do que prega, o mercado não é apolítico. Podemos dizer que foi uma mudança estrutural. 
E por ser estrutural, mudanças radicais tornam-se mais difíceis e mais complexas. Talvez por isso Lula e o PT se mantiveram nessa senda e desistiram de alterarem-na: o bordão "é só você querer, que amanhã assim será, bote fé e diga Lula" apresenta a política ao cidadão como se fosse algo não muito diferente da escolha de um sabonete, quando não fruto de alguma mágica sobrenatural, do qual o chefe do executivo tem o poder de transformar tudo em realidade - basta ter fé. Durante o governo, no seu início, a política seguiu abafada, ao menos para a população: vários analistas ressaltam o complexo arranjo de Lula na montagem de seu ministério, que teria trazido disputas que aconteceriam na sociedade para a esplanada dos ministérios. Foi somente quando acuado pelo chamado mensalão que a política foi trazida novamente à tona por Lula. A tática de se defender ameaçando partir para o ataque, pela reemergência da política, parece ter servido para que a mídia recuasse, ficasse dentro dos limites conquistados - o bordão da corrupção seria esse limite.
Ao mesmo tempo, o governo petista promovia a inclusão de uma massa até então à margem das benesses da civilização capitalista - o que trazia também benefícios aos detentores do capital. A classe operária ia ao paraíso das compras: carro, casa, televisão, shopping, faculdade, plano de saúde, tênis, fast food, computador, internet, celular, marcas, marcas, marcas. Os antigos habitantes do condomínio não gostaram de ver sua exclusividade invadida pela turba - em que sustentariam sua superioridade? Apesar do carro cinco vezes mais caro, ficam parados como qualquer um no trânsito; as roupas que compram em Miami agora são vendidas na 25 de março, diploma na parede e anel de bacharel são tão comuns quanto comprar picanha pro churrasco, e a conta personalité não garante a necessária visibilidade das diferenças. "Hipócrita consumidor, meu igual, meu irmão" - a nova classe média só não fez paráfrase de Baudelaire porque nem a nova nem a antiga sabe que raios é Baudelaire.
Essa inclusão fez emergir a política justo no local onde ela, teoricamente, estaria ausente: no mercado. Jacques Rancière comenta sobre a política:
"Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política - ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos - que faz os pobres existirem enquanto entidade (...). A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela".
Os sem-parcela, até a vitória do PT, silenciosos e cientes do seu lugar na distribuição econômica, laboral, geográfica e arquitetônica social, petulantemente passam a buscar novos espaços, fazer reivindicações, querer compartilhar das mesmas maravilhas até então destinadas exclusivamente à Casa Grande - como comentou a professora universitária do Rio de Janeiro, foi-se o glamur de viajar apertado em bancos que não deitam comendo gororobas semi-prontas, agora qualquer mulato de regatas e chinelos tem dinheiro para uma passagem dessas. Inversamente à tese de Rancière, a instituição dos sem-parcela foi instituída por uma certa elite, acuada em seus míseros privilégios (os realmente grandes, esses não batem panelas nem viajam em classe turista). Ou seja, na primeira vez que a corja teve respingos de visibilidade social para além da polícia, um mínimo de cidadania, de direitos, de existência para a sociedade (como consumidores), caiu o velho mito do brasileiro cordial: a cordialidade perdurou apenas enquanto o negro, o nordestino, o pobre aceitavam que seu lugar era na cozinha ou na favela, não no asfalto, na praia, no avião (no avião, deus meu, no avião!), no avião, nas concessionárias, comprando carros que vão poluir o mundo, no facebook, emporcalhando a rede social com seu uso animalesco - como haviam feito com o orkut.
Com o governo Dilma, o arranjo político lulista caiu. "O Brasil precisa de um gerente, Dilma presidente" - o bordão só não foi usado na campanha porque o PSDB o utilizara quatro anos antes. Sem os medos de não ter sequer para as necessidades básicas, o populacho foi aos shoppings - "a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte" -, e as elites se horrorizaram, passaram a xingar muito no tuíter. Sem as disputas sociais canalizadas nos ministérios, a política vazava para a sociedade. Inicialmente nas redes sociais e veículos da Grande Imprensa. Faltava ocupar as ruas - Virilio há muito diz que quem tem o poder real é quem detem o poder da rua. Estas surgiram na cena política nacional com as nomeadas "jornadas de junho de 2013", um movimento originalmente espontâneo, de contestação (por isso a reação agressiva da Polícia Militar), sem ser massa de manobra de parte da oligarquia (como no Fora Collor). Como disse: originalmente.
A manifestação por mais direitos e de contestação da ordem estabelecidade - social e geográfica -, a Grande Imprensa deturpou em território seu: da exigência de mais cidadania para a revolta contra a corrupção. Desemprego, saúde, violência, educação, mobilidade urbana, moradia popular, tudo isso passou secundário diante da corrupção. E corrupção, é sabido desde 2005, é culpa do PT. Saliento aos leitores binários: não sou a favor da corrupção, nem acho que deva ser relativizada, porém corrupção, mais que causa, é conseqüência: conseqüência de uma educação que não ensina para a cidadania, de um lugar onde direitos - inclusive os direitos humanos - são desrespeitados, em que saúde, violência, violência policial, desemprego são preocupações permanentes, onde a desigualdade social é absurda e ainda assim defendida.
15 de março foi isso: atiçados pela Grande Imprensa, por formadores de opinião absolutamente desqualificados pro debate público, pelas redes sociais que espalham o ódio e a boçalidade a um ritmo impensável, um milhão de pessoas foram às ruas do país bramir contra Judas, por mais que não houvesse Cristo.
E como conseguiram juntar um milhão de pessoas (a maioria devia se dizer cristão, ainda por cima) para uma passeata de ode ao ódio? Porque a estrutura do estado de excessão montada pelos militares não foi alterada: da propriedade dos meios de produção e seus oligopólios, em especial o oligopólio da mídia - a rede Globo é o veículo oficial da ditadura e dos interesses que ela representou -, à estrutura educacional, que não apenas não ensina a pensar como desestimula o pensamento e o raciocínio - e estou falando das escolas particulares, fascistóides como colégio Bandeirantes, Fundação Bradesco ou as franquias para vestibular. Foram trinta anos que passamos brigando por direitos fundamentais e acabamos por não conseguir mexer nas estruturas da nossa sociedade desigual, corrupta, injusta, inepta: torturas militares continuam, execuções extra-judiciais são rotina ("você também pode dar um presunto legal"), a intolerância recrudesce, o ódio aumenta, os donos do poder permanecem os mesmo - os faxineiros também -, a democracia consiste em votar a cada dois anos (na ditadura também tinha eleição), o raciocínio louvado pelos donos da voz e da grana ainda é o da lei de Gérson. 
A principal mudança, mudança radical nesses trinta anos, parece ser que os mitos vão caindo, e o Brasil vai mostrando suas verdadeiras faces. Algumas delas me orgulham, outras me enojam. Sete a um foi é pouco.

17 de março de 2015.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Uma conversa banal sobre o 15 de março [Qual gigante acordou?]

Dois respeitáveis senhores, bem vestidos, sem espalhafato, num mercado da zona cerealista, em São Paulo, conversam sobre os protestos contra a Dilma, no dia anterior. São contra o PT, e isso soa óbvio. Na ala de bebidas do estabelecimento, talvez parte da explicação: o governo que diz que a inflação está sob controle, como justifica um reajuste de quase vinte por cento em dois anos, em uma garrafa de conhaque Louis XIII: de nove mil e quinhentos para onze mil e duzentos reais (nunca tinha visto tudo isso de número em víveres, o que muito me impressiona, toda vez que vou a essa venda)? 
Mas é a conversa entre ambos que realmente me impressiona:
Viu a Dilma, ontem? Tomou no cu - fala, polidamente, o primeiro.
Pois eu achei é pouco: tinha que queimar ela em praça pública - responde, muito cordato, o segundo.
E eu com meus botões me pergunto como falar em democracia com gente que tem mentalidade da época da inquisição medieval.

16 de março de 2015

domingo, 15 de março de 2015

O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil

Do século XV ao século XVIII a burguesia, ao mesmo tempo que financiou, se utilizou do Estado pré-burguês – as monarquias absolutistas de união nacional – para deitar as bases para seu crescimento e para a consolidação da sua influência e do seu poder. Uma vez certa do seu poderio, a burguesia pôde, finalmente, tomar o Estado, de forma a não ser mais seu principal financiador, assim como fazê-lo servir aos seus interesses. A grande preocupação na implementação desse novo Estado burguês foi que ele fosse forte o suficiente para controlar a turba (que se mostrava pela primeira vez ferramenta útil e eficiente para convulsionar Estados), mas não o bastante como o era o anterior, capaz de prejudicar o bom andamento "natural" dos negócios. Ou seja, um Estado, sim, forte, mas limitado – garantidor da ordem e respeitador da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Dentro dessa lógica de controle do Leviatã, ganha destaque o modelo mais bem apresentado por Montesquieu, em fins do século XVIII, da divisão dos três poderes – legislativo, executivo, judiciário –, criando assim um sistema de pesos e contrapesos garantidor de um equilíbrio entre os poderes estatais que pode não ser perfeito, mas ao menos evita o perigo de arroubos despóticos do executivo. Tal modelo tripartite, cuja justificativa ainda hoje é essa de equilíbrio entre os poderes, pode ter funcionado realmente conforme proposto enquanto os cidadãos eram apenas uma pequena parcela do povo. Conforme o populacho foi conseguindo adentrar no sistema político, sem que este se adaptasse à nova realidade, dando peso desiguais ao voto dos desiguais – como desesperadamente propunham os liberais, crentes de que o povo ignaro, inculto e incapaz iria utilizar desse poder injustamente ganho para usurpar legalmente a propriedade alheia, tal qual hoje a classe-média burra-porém-diplomada fala do Bolsa Família –, esse equilíbrio entre os poderes foi também se alterando. Quando, finalmente, o Estado foi adquirindo a forma necessária para atender aos desejos da burguesa, com o cidadão sendo identificado primeiramente com o eleitor, o aumento quantitativo destes implicou também na sua mudança qualitativa, surgindo o fenômeno da chamada democracia de massas. Nesta, o legislativo deixou de ser um contrapeso ao executivo, sendo antes um freio a ele. O governo da maioria é o governo da fração que possui o controle de toda a máquina representativa do Estado, executivo e legislativo, sendo a cisão dessa representatividade, a divisão real dos poderes, vista como a paralisia da administração. Esse freio é feito via oposição parlamentar, em especial pela necessidade de maioria qualificada em matérias fundamentais. É assim no Brasil com seu executivo hipertrofiado. Mas é assim também nos parlamentarismos europeus, em que executivo e legislativo estão umbilicalmente ligados. É assim nos EUA, em que o aparente sistema de contrapesos implica antes no imperativo de maioria do partido que controla o executivo tê-la no legislativo.

É de se questionar se apenas essa oposição parlamentar é capaz de frear a maioria. Institucionalmente, é claro que sim. Porém me parece haver um outro elemento capaz de influenciar a disputa entre os poderes de situação e oposição: o da comunicação de massa – que mesmo estando no século XXI, ainda se apresenta como "opinião pública".

A comunicação de massa surgiu pouco depois da democracia, mas é fruto da mesma sociedade de massas. Como a democracia, trouxe profundas mudanças nos hábitos e parece ter tido uma influência muito mais profunda. “Me parece” porque não sou entendido nos assuntos, e é claro que, bombardeado pela indústria cultural, é difícil não aceitar sua versão de que ela foi muito penetrante. Tendo a aceitá-la, mas não me comprometo tão cegamente.

Não falo aqui da opinião pública do século XIX, temida por Stuart Mill, por ser capaz de dar poder à massa para que esta pressione politicamente – já não bastasse a turba poder votar de igual para igual! Opinião pública, tal como é usada pela indústria cultural nos séculos XX e XXI, é uma sutil corruptela daquilo que foi teorizado no início do Estado Moderno e Contemporâneo, muito útil aos propósitos dos donos do poder – não só do Brasil, que fique claro.

Desde o início opinião pública tem ligação com a idéia de sociedade civil e, assim como esta, tem sido empobrecida em favor de uma noção de mercado - um empobrecimento paralelo não poderia deixar de acontecer com o conceito de opinião pública. Ora, no mercado não há opinião pública simplesmente porque não há a noção de Público. Ademais, mercado não tem opinião, tem apenas o pensamento utilitário de maximização de utilidades.

Partidos políticos, originalmente espaços de discussão e formação de opinião, há muito – uns cento de cinqüenta anos – são prioritariamente espaços de formação de quadros burocráticos – atualmente apenas isso. No espaço privado, a discussão é cortada pelo calaboca! da tv e agora da internet. Calaboca! necessário para evitar questionamentos não somente ao conteúdo como ao próprio meio, o que poderia perturbar o trabalho de adestramento e amansamento público.

Já a imprensa, dada sua estrutura industrial, unidirecional, não-dialogal, hierárquica, burocratizada – tanto quanto o Estado –, ao se arrolar o papel de formadora e divulgadora da opinião pública tem razão em assim afirmá-lo apenas na medida em que opinião pública passa a significar a opinião da mídia, a opinião de um segmento muito pequeno da sociedade, com interesses muito específicos, precisos, e nada interessados em dar voz à sociedade civil, a vozes destoantes. Em suma, em nada interessados em tornar o que eles chamam de opinião pública próximo daquilo que de fato significa opinião pública – e que é o conceito com o qual eles dizem trabalhar e que nos forçam a engolir.

Bem, nada de novo até aqui. E provavelmente nada de novo a partir daqui. Tudo tão gasto quanto as novidades da indústria cultural.

Indústria que desde a década de 1920 tem um poder fortíssimo – Hitler seria o melhor exemplo dessa época, porém não o único –, mas que só a partir da década de 1960 não conseguiu mais disfarçar sua hegemonia – o marco é a eleição de John Kennedy nos EUA.

Apesar de ser uma indústria, a indústria cultural guarda importante diferença para as demais – ao menos no que aqui nos interessa. A indústria automobilística em boa parte do século XX, e a indústria financeira desde o último quartel do século passado, são as indústrias motrizes do sistema capitalista. Isso não as impede, claro, de correr o risco de quebrarem – por culpa delas, como a crise de 2008, ou de terceiros, como as crises do petróleo na década de 1970. Quebras que não ocorrem de fato, porque o Estado é avalista dessas indústrias, por uma singela questão de auto-sobrevivência. E no caso da mídia, o que ocorreria no caso da quebra da indústria cultural? Eis uma pergunta que não faz sentido: apesar de ser uma indústria, não parece haver possibilidade de quebra, nos moldes das demais indústrias, porque o papel da mídia no jogo de forças de sociedade é outro. Nestes tristes trópicos, por inabilidade, ela acabou escancarando que outro papel é esse nos últimos anos, e o fez de maneira grosseira nas últimas eleições: é o que tentarei tratar a partir de agora, me atendo ao caso brasileiro. Antes, um parênteses: outra indústria que não quebra é a bélica, por razão similar à da cultural.

Com base nos ensinamentos de Goebbels, a mídia conseguiu construir uma mitologia acerca de si mesma – especialmente para seu braço chamado jornalismo –, de que é porta-voz da opinião pública (o conceito do século XIX), e que com base nos interesses da sociedade civil (que ela sabe melhor do que ninguém) fiscaliza o governo e o Estado. O Quarto Poder, como ela mesma se nomeia. E está correta. Mais correta do que admite quando pressionada. 

As últimas demonstrações da Grande Imprensa deixam à mostra que se trata realmente de um poder institucionalizado de fato – como o Executivo, o Legislativo, o Judiciário –, ainda que não de direito. E a briga desse Quarto Poder é justamente poder permanecer à margem da lei – o que significa, na prática, acima dela. Há, claro, uma série de leis e regulamentos que recaem sobre a imprensa, a mídia, o jornalismo, pondo-os sob o Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que ao ignorar o real poderio desses veículos, a real função na sociedade, o estatuto de fato no jogo de forças e no equilíbrio entre os poderes, o Quarto Poder acaba por se tornar um poder independente, paralelo, “auto-regulado”, além do Estado Democrático de Direito, na prática acima da Constituição Federal.

Os exemplos do poder da imprensa tupiniquim e de como se imiscui nos outros poderes são fartos. Proconsult e Collor são exemplos de como se interfere (ou tenta-se) nas eleições, logo, no legislativo e no executivo diretamente – para não falar indiretamente, como nos arrastões de 1992, ou em reportagens de capa da Veja. Escola Base, caso Nardoni e caso goleiro Bruno, são exemplos do quarto poder assumindo o poder legislativo e judiciário: queda do princípio da presunção de inocência e julgamento “sumário em capítulos” ou novelesco (todo mundo sabe o final, mas vai enrolando para ter audiência e garantir a venda de espaço publicitário): nestes casos mais recentes tem-se mostrado impossível ao poder judiciário inocentar, mesmo que não haja provas suficientes para incriminar os suspeitos, porque a imprensa, com base na “opinião pública”, já incriminou os culpados. Ponto, está decidido. No primeiro caso, ainda que a justiça – anos depois – tenha notado o equívoco do julgamento da imprensa, a polícia da imprensa – o povo – já havia destruído a escola, e a vida dos donos havia sido bastante prejudicada pelo fato não-acontecido-mas-a-imprensa-disse-logo-aconteceu. Pode-se entrar na justiça pedindo direito de resposta. Uma palavra contra mil imagens, de que vale? Se apareceu na Globo.

Toda tentativa de dar à imprensa um estatuto legal condizente com seu tamanho, contudo, é encarado por esta como tentativa de censura, um retorno à época da ditadura, o aflorar de idéias stalinistas que perduram na esquerda que domina o subcontinente sul-americano. Curiosamente, dos principais veículos da Grande Imprensa alérgicos a qualquer regulamentação externa, dois deles foram entusiastas apoiadores do golpe militar de 64, Folha e Estadão – se hoje reescrevem sua história, a la 1984, é outra história. O outro, é quase uma BBC brasileira – porém para-estatal e sem a mesma qualidade –, criada já tendo em vista a força estratégica do quarto poder: a rede Globo de televisão. Somente a Veja não esteve nessa festa, mas que com o tempo, por conta própria, se tornou uma revista neofascistóide (com as peculiaridades que haveria num fascismo do século XXI, o qual mereceria um novo nome, deveras). Na América do Sul, Cháves se mostrou um ditador ao fazer uso de prerrogativas constitucionais ordinárias e não renovar a concessão pública de uma emissora de tv. Os Kirchner, na Argentina, há muito mostram seu caráter autoritário ao bater de frente com a imprensa – característica do casal, que fez o mesmo com os militares, por exemplo. No Brasil, todo e qualquer questionamento de uma autoridade pública à imprensa é tentativa de censura. A criação do Conselho Federal de Jornalismo foi uma tentativa de censura sem paralelos na história da humanidade e sem direito a ser discutido – deveu simplesmente ser combatido. A criação de uma tv pública pelo governo federal foi considerada como absurdo sem tamanho – enquanto PSDB deixar a qualidade da TV Cultura definhar por conta de ingerência política na emissora não é problema. A pulverização do orçamento publicitário do governo federal, antes concentrado na Grande Imprensa, foi outro sinal de ingerência em assuntos que não competiam ao executivo. Por fim, vem agora o ataque do legislativo ao quarto poder, por intermédio do Controle Social da Imprensa, tentativa de censura que partiu de deputados “stalinistas do PT”, como já denunciou em editorial o jornal Valor Econômico, e que teve início no Estado do Ceará e vem se alastrando por todo o país – inclusive um deputado stalinista do DEM de São Paulo fez proposta similar. Veja a audácia: executivo e legislativo se unindo para calar a voz do povo! Curiosamente, toda tentativa de discussão que o governo abre, a Grande Imprensa democraticamente se recusa a participar. E toda auto-regulação o governo democraticamente não tem o direito de passar perto.

Tudo isto é muito novo no Brasil: de 1964 a 2002 não houve conflito grave de interesses entre os poderes. A única tentativa, a criatura contra o criador, Collor, não conseguia sequer agir em nome do poder executivo. Assim, as eleições este ano no Brasil, principalmente a presidencial, além de uma disputa entre partidos e entre egos – porque entre projetos de país e mesmo de governo, essa disputa foi bem marginal –, acabou assumindo também – e de maneira consideravelmente visível – a disputa entre poderes. De um lado o poder executivo, do outro, o quarto poder da Grande Imprensa – nada muito diferente dos últimos oito anos, em suma. A imprensa muito criticou Lula por este não ter seguido a liturgia do cargo, e saído pelo Brasil fazer comício junto com sua candidata. Não nego que Lula adora um palanque, coisa que FHC não era tão afeito: preferia uma tribuna, um jantar solene, uma honraria qualquer no primeiro mundo. Mas FHC só seguiu a tal liturgia do cargo em 2002 porque ninguém além de Ruth Cardoso queria ele por perto – e isso porque ela não era candidata. Deixemos de lado o palanquismo do presidente, e nos centremos na presença dele na imprensa, ou como a imprensa lidou com a presença dele na eleição. Me centro no episódio da bolinha de papel.

A reação exagerada do candidato da oposição, não precisava falar, foi patética – quase teve um traumatismo craniano por causa de uma bolinha de papel? Nem FHC mandando o exército fazer exercícios com ovos chegou ao mesmo nível. Covas, com a cabeça sangrando por causa de uma paulada, não fez drama parecido, se recusou a se vitimizar desse tanto. Porém, mais impressionante foi a dimensão dada ao episódio: mais de uma semana de noticiário sobre, com microfones abertos ao ferido acusar livremente o partido adversário de inimigo da diferença, da democracia, da liberdade, da ordem, da paz social – um passo para o fascismo, em suma. Episódio parecido ocorrido com Dilma, o dos balões d'água em Curitiba – cidade que congrega vários grupos neonazistas, diga-se de passagem e sem relação –, mereceu bem menos destaque. Curiosamente, Lula foi um dos personagens que fez questão de que o episódio seguisse em relevância. Havia, por um lado, o cálculo político de expôr Serra ao ridículo por mais tempo, e este não poderia voltar atrás, deveria reiterar sua versão, sua vitimização por conta de uma bolinha de papel. A Grande Imprensa, contudo, fez marcação serrada (com o perdão do trocadilho) no presidente. Não lembro qual foi a comentarista de política (ou era de economia?) da CBN que disparou que o presidente, tendo traquejo no lidar com a mídia, deveria maneirar no tom de agressividade, que não cabia a ele fazer o tipo de crítica que vinha fazendo nem ao candidato Serra nem à cobertura do episódio. A nada imparcial Eliane Cantanhêde, da nada imparcial Folha de domingo, 24 de outubro, fez a mesma crítica: Lula não deveria ter dito nada sobre o episódio – outro fato que só faria com que saísse menor do que entrou na eleição. Para a Grande Imprensa, essa é a versão: um presidente diminuído por ter feito sua candidata vencer. Para a vida para além do quarto poder, a história muda um pouco.

Não que Lula não erre, não possa ou não pudesse cometer erros. Mas ele está escolado demais para erros tão grosseiros a uma semana da eleição, sendo O pilar de sustentação de uma candidata que disputa contra um candidato que tem toda a máquina do quarto poder a seu favor – como Collor tinha em 1989 contra ele. "Nunca o povo foi respeitado como agora, e a gente não pode jogar isso fora por um bando de mentira que está sendo contado (...). É uma vergonha a farsa que tentaram jogar na cabeça do povo”. Lula não acusou diretamente Serra de armar uma farsa, porque se tratava de um recado para Globo, Folha, Veja e companhia: “povo avisado de que foi tentada uma farsa, em eventual nova tentativa, não será preciso convencer ninguém, basta dizer 'eu já havia avisado daquela farsa, e está aí uma nova prova de tentativa de golpe nas eleições, porque eles não querem o povo no poder'”. O quarto poder teve que engolir o andamento normal da eleição, sem um novo Xerife Tuma como diretor de figurino de seqüestradores ou nova antológica edição no Jornal Nacional do último debate para, democraticamente, tentar alterar o resultado.

Porém, fica a pergunta: se Lula é tão sagaz no seu trato com a imprensa (ao menos após a derrota de 1998, ele, que já sabia fazer bom uso do palanque, aprendeu a dominar de maneira impecável o palanque eletrônico), por que não conseguiu segurar a Grande Imprensa durante seu governo? Por que o quarto poder segue como um poder extra-legal? Por que não fez aquilo que falou que era imprescindível fazer com relação à imprensa, em 1993, no documentário Beyond Citizen Kane?

Vejo durante o governo Lula um jogo um tanto ambíguo com relação à imprensa. Parece haver uma estratégia de longo prazo para diminuir a concentração de mídia no país e colocá-la sob o manto legal. É, como disse, uma estratégia ambígua, um tanto medrosa, outro tanto sutil (e esperta) – e conservadora, de qualquer forma. Começa com o privilégio que Lula desde sua primeira entrevista deu à Rede Globo. Segue que dois de seus ministros das telecomunicações – Miro Teixeira e Hélio Costa – tinham fortes ligações com os Marinho. O Conselho Federal de Jornalismo foi uma das poucas, se não a única grande tentativa positiva do governo de limitação não da mídia, mas do seu braço jornalístico. O que houve foram ações de fortalecimento da pequena e média imprensa, da mídia alternativa, da mídia local. Isso implica em certa perda de poder da Grande Imprensa, mas não é democratização da informação ou da mídia, visto que essa mídia, via de regra, pertence a pequenos coronéis locais – salvo a imprensa alternativa da internet, mas este é um caso complexo. Também as concorrentes televisas da Rede Globo ganharam fôlego do governo federal – tudo via pulverização da publicidade oficial. Além de diminuição do poder da rainha do quarto poder sobre a sociedade toda – Band e Rede TV!, por exemplo, não boicotaram a Conferência Nacional de Comunicação, a primeira, inclusive, não se opôs ao Conselho Federal de Jornalismo –, são medidas que permitirão aos poderes executivo e legislativo, quem sabe, enquadrarem o quarto poder ao Estado Democrático de Direito. Nada revolucionário, nada questionador do status quo, nada que prejudique sobremaneira a indústria cultural instalada no país ou a que ainda vai se instalar – ao contrário do que acreditam e ainda apregoam boa parte de militantes ou apenas deslumbrados com o PT. Afinal, trata-se de um partido institucionalizado e bem adaptado ao sistema. Pode ter objetivos reformistas de melhorias sociais e maior democracia – tudo dentro do que está estabelecido. Porque medidas fora dos parâmetros significa dar um tiro no próprio pé, atacar o próprio sistema que o sustenta. E o quarto poder é parte que sustenta o próprio PT.

Quando Veja, Folha, Globo, Estadão e tantos outros estampam em suas capas e manchetes de domingo que as tentativas de regulação e enquadramento da Grande Imprensa vão favorecer o PT, estão corretos. Porém mente quando dizem quem perderá com isso. A liberdade? A democracia? Sejam menos hipócritas! Eles, apenas: os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita, os Saad, os Abravanel, os Magalhães, etc. E a nós, o povo, o populacho, favorecerá ou prejudicará? Não sei dizer ao certo, fica ao critério do consumidor decidir o que acha. Ao menos teremos mais opções de mentiras para escolher.

publicado originalmente na revista Casuística. artes antiartes heterodoxias. Edição 101 (janeiro de 2011). pp 93-97. www.casuistica.net

sexta-feira, 13 de março de 2015

Stifters Dinge em uma leitura kafkiana [Diálogos com o teatro]

"Uma composição para cinco pianos sem pianistas, uma peça sem atores, uma performance sem performers" - eis a descrição do espetáculo Stifters Dinge, de Heiner Goebbels e do Theatre Vidy-Lausanne, apresentado na segunda edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Um espetáculo sem atores - no máximo dois contra-regras - em uma mostra de teatro não poderia deixar de causar algum estranhamento; porém há algo no que é apresentado que nos soa familiar, natural - e não deveria ser.
A obra de Goebbels é inspirada na do escritor austríaco do século XIX, Adalbert Stifter (daí o título, "Coisas de Stifter"), o qual reconheço desconhecer - daí que minha leitura possa ficar seriamente prejudicada. 
Ao fundo, os cinco pianos, com suas entranhas de cordas e martelos à mostra, contracenam com árvores secas e outros elementos dos quais se extraem sons para acompanhá-los na apresentação. No meio, uma grande chaminé. Esse cenário me remete a Metrópolis, filme de 1927 de Fritz Lang - a fábrica engolindo pessoas com suas chaminés soltando fumaça. A diferença está que não há pessoas neste caso - a máquina libertando o homem ou suprimindo-o? (A aridez do cenário me faz acreditar na segunda opção). Entre os pianos e o público, três retângulos no chão. Ao lado desses retângulos, caixas de sons e outros "instrumentos musicais", como dois grandes tubos de pvc. À direita de cada retângulo, uma grande gaiola com um recipiente plástico cheio d'água.
A figura humana não está totalmente ausente: dois contra-regras aparecem para auxiliar a máquina, no início da apresentação - daí me vir a lembrança de Na colônia penal, de Franz Kafka. O homem a serviço da máquina, bem adestrado para o bom funcionamento da engrenagem. Primeiro eles jogam um pó sobre os retângulos pretos, tornando-os brancos. A seguir, abrem a água para cada um dos retângulos. Passado um tempo, recolhem as mangueiras e a cena fica toda ela por conta do cenário-máquina. 
O que presenciamos, a partir de então, é a demonstração daquela estranha engenhoca e sua música, acompanhada de um trabalho de luz complexo e discreto, marcante sem ser espetacular: basicamente focos nos diversos "instrumentos" espalhados pelo palco, projetores sobre nos retângulos, auxiliados por ribaltas rente a cada um, e um projetor para os pianos do fundo. O clima é sombrio, tenso. Sinto como se estivesse assistindo à demonstração da máquina kafkiana de Na colônia penal, porém sem o condenado - ou seríamos nós os condenados, apenas sem perceber que temos nossa pena sendo marcada no fundo de nosso corpo enquanto comemos nossa ração diária?
A ausência humana é interrompida pela projeção da imagem de um quadro que retrata algumas árvores e o céu - que se modifica, perde e ganha contornos e realidade conforme são alteradas as cores, contraste e saturação -, acompanhada de um longo texto em off - o qual, acreditei eu ser de Adalbert Stifter. Uma meia presença, portanto, diante de um movimento estático. Contradições que não nos perturbam. A seguir, uma entrevista com um Levi-Strauss pessimista e desesperançoso. Me questiono o quanto um estruturalista assentir a falta de perspectivas para a humanidade não corrobora Kafka: "há esperanças, mas não para nós". Em dado momento, o antropólogo relembra de uma brincadeira juvenil, de sair caminhando em linha reta até cansar, na esperança de achar algo esquecido pela civilização nas margens de Paris - esperança que, velho, ele recusa até para os rincões do mundo. Fachos de luz passam a percorrer os retângulos, como scanners, como a enfatizar Levi-Strauss: nada passa despercebido pelas máquinas da civilização tecno-industrial. 
A música volta a ser executada - o show não pode parar, a música não pode parar, o trabalho não pode parar. O ritmo é frenético, há coreografia para os martelos dos pianos, fumaça é solta próxima à base da chaminé. Levo um tempo até notar que os pianos e todo o cenário meio Fritz Lang avançam por sobre os retângulos, em direção ao público - seria a máquina kafkiana colapsando? Não era o caso. A máquina percorre os retângulos, pára diante do público, como a encarar sua próxima vítima, e ao retroceder restam as águas borbulhando. Me sugere o inferno de Dante, mais ainda o Hades - seria esse o caminho que a máquina reserva aos homens?
O espetáculo acaba. Aplaudimos o homem por trás da máquina, mas é a máquina que avança para agradecer. Rimos com a piada, não estranhamos a ausência humana, e descemos para ver de perto a engenhoca que parece saído de um conto de Kafka para nosso deslumbramento ingênuo.

São Paulo, 13 de março de 2015