domingo, 20 de setembro de 2015

O centro de São Paulo não é violento

Em abril deste ano, fomos eu e uma estrangeira que também estagiava no Teatro da Vertigem comer algo depois do estágio. Dado momento conversamos sobre a violência no Brasil, em especial São Paulo. Eu discordava e tentava desmontar a afirmação senso-comum de que o centro de São Paulo é violento e perigoso, ainda mais à noite. Que não seja tranqüilo, ok, mas não é para tanto. Fui elencando meus argumentos, ela ajudou com exemplo vivenciado no dia anterior quando, na Vila Mariana, ao quase ser atropelada ao atravessar a rua ("eu estava na faixa e ele estava virando a esquina", ela argumentava, desconhecedora que diante de uma vaca sagrada só outra vaca sagrada tem poder, nunca o pedestre), seu amigo batera no carro para que ele parasse e acabou apanhando do motorista, que tão valente quanto desceu do carro fugiu a seguir. Ao fim da minha argumentação, me dei conta, estarrecido, do quanto eu tinha razão sobre o fato do centro de São Paulo não ser muito violento, mas para ter essa razão o quanto não naturalizei toda sorte de violências quotidianas - que me chocam e me indignam, mas passam, como as chuvas de verão e as secas de inverno. Diante da violência geral, de cima a baixo na sociedade, a violência do pobre contra o rico ("passa o dinheiro") é só mais uma - e das mais leves: das entradas de serviço à proibição de certas classes de pessoas em locais públicos, da ofensa de classe, cor, orientação sexual, gênero ("pobre favelado", "preto", "viado", "homem de peruca"), à invisibilidade de toda uma classe de sub-pessoas (as "pessoas marrons" tratadas pela Eliane Brum [http://j.mp/1hbvAXT], serviçais da segurança, da faxina, do dia-a-dia que acontece sem que a classe-média ilustrada precise pensar nisso), quando não à aniquilação física ou emocional dos mais fracos (pobres, pretos, periféricos, mulheres, desviantes). Lembrei desse diálogo - que desde então queria transformar em reflexão, e não foi desta vez - por conta de um trecho do livro 1Q84, do japonês Haruki Murakami, que dá um pouco a medida do descaminho da violência destes tristes trópicos:
"- Acho que temos muita coisa em comum, não acha?
- Acho que sim - concordou Aomame. 'Mas você é uma policial e eu mato pessoas. Estamos em lados opostos da lei e isso certamente nos torna muito diferente', pensou". (1Q84, p. 201)
Uma policial e uma assassina: em "lados opostos da lei" porque uma mata pessoas e a outra, não. Pelas nossas leis, esse diálogo poderia ocorrer no Brasil, mas é sabido que soaria totalmente irreal. Sob aplausos de uma classe-média que não pensa e pedidos de "quero mais" e "tem que matar" de apresentadores de tevê tão criminosos quanto os pretensos criminosos assassinados por criminosos fardados de policiais, que agem com o beneplácito do governador Alckmin - PMs que assassinam até com mais frieza que os  pretensos "bandidos".
Deveras: se formos tratar violência como algo extraordinário que irrompe em dado local contra determinadas pessoas, São Paulo não é violenta. Mas se formos tratar por "violência" toda forma de violência, não a encontramos só no centro "degradado", na Cracolândia: São Paulo - a exemplo do Brasil - é violenta nas periferias, nos bairros nobres, nas ruas, nos edifícios privados e nos prédios públicos. É violenta na avenida Paulista tanto quanto na avenida Duque de Caxias. Cidade Tirandentes, Jardim Ângela, Jardim Europa, Pinheiros (e seu fetiche classe-média, Vila Madalena): impossível caminhar dez metros sem se deparar com uma violência - qualquer que seja. Quem enxerga só um lado da violência é porque compactua com o outro. Infelizmente, a maioria parece enxergar só um dos lados.

20 de setembro de 2015.

Favelas são uma violência - tolerada e naturalizada. As favelas auto-inflamáveis durante a gestão Kassab, então. Mas não é isso que torna São Paulo violenta para uma parcela da população.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Mariposas, flores, jardineiros e os ventos da morte a cultivar a vida [diálogos com a dança]

O corpo nu, de costas, sob a luz fraca, não permite identificar de início se se trata de homem ou mulher. E a questão principal ali está para além de gênero: temos uma pessoa, um corpo humano. A baixa intensidade da luz cria relevos inusitados no corpo que se retorce. Em certos momentos, o corpo em seu lento mover se deforma - ainda assim, o que há ali, em seus relevos desconhecidos, em sua deformidade, é um corpo humano. Em Uma batida de uma borboleta, Maki Watanabe diz querer dançar como uma mariosa girando em torno de uma lâmpada. O corpo tenso e teso, em agonia, me faz perguntar: seria em volta da luz da Little Boy que Watanabe dança? Ou a referência é pesada demais, e posso ser menor, mais mesquinho, e pensar que a lâmpada que mariposamente giramos em volta não precisa ser de uma destruição instantânea, pode ser do nosso quotidiano baço e banal, feita de brilhos artificais que não nos levam a lugar algum?
Estou no Centro de Referência da Dança de São Paulo, no Viaduto do Chá. É minha segunda experiência com Butô. A primeira, Sankai Juku na imensidão do teatro Alfa, me fez perder algo desse caráter minuciosamente humano que Watanabe e Zaitsu me trazem e me tocam.
Na segunda metade, Gyohei Zaitsu me emociona com seu Uma flor sem nome. Mesmo sem ter lido o programa, é perceptível notar como morte e vida convivem naquele corpo que se apresenta sem gênero - ou com todos os gêneros -, sob a luz inicialmente tênue. Morte e vida, destruição e renascimento, devastação e esperança. Em terra devastada, aquele corpo se faz esperança - de inicio, a esperança parece renascer à custa de lucidez. Vale a pena a esperança quando não há sequer solo onde ela possa brotar? me pergunto. Zaitsu defende que sim: a flor a desabrochar - e o que parecia loucura se transforma em realidade. Não é a flor de Drummond, não se deve parar tudo para vê-la surgir no asfalto, porque não há mais asfalto, e é de se questionar se há ainda alguém para poder observá-la. É uma flor e nada mais. Em torno, os seres invisíveis, as almas perdidas, e o jardineiro esperançoso orgulhoso de seu cultivo. Diz o programa: "O vento sopra da terra da morte/ O ar está repleto de seres invisíveis e desconhecidos/ Nele, as almas estão perdidas tranqüilamente/ Nutrindo a loucura de uma flor desabrochando.../ Uma flor se desabrochou graças a todos os cadáveres...".
Saio do CRD com uma frase lancinante que minha mãe falou pouco tempo atrás: "a gente não morre de uma vez, a gente vai morrendo aos poucos. Viver é morrer aos pedaços". Depois desses dois espetáculos, interrogo: para além da morte, o que há? E penso que talvez morrer seja renascer em terras até então aparentemente áridas e estéreis, das mãos de um jardineiro aparentemente louco.

18 de setembro de 2015.

agradeço ao Luis F. pelo convite para a dança!


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Uma conversa na portaria do prédio

Vida de porteiro em prédio de classe média de São Paulo não é fácil. Além de ganhar pouco, ouve muito - de que ganham demais (miseráveis mil reais por mês) pro pouco que trabalham a todo tipo de doutrinamento dos moradores que se crêem ilustrados. Mas a coisa começa a assustar quando o porteiro assume esse discurso classe-média-fascista - o que não é difícil, visto que os moradores que se crêem ilustrados não fazem nada mais que repetir sem qualquer mostras de reflexão Datena, Rezende, Bonner, Sheherazade e "formadores de opinião" afins.
No meu prédio há um senhor que volta e meia está parlando seu discurso fascista aos porteiros que, presos pela profissão ao pouco espaço que possuem, não têm como fugir de tal vilania (esse mesmo senhor era sempre simpático e educado comigo, até a vez que, na frente de sua platéia, peguei meu jornal e não aceitei sua verdade de que tudo de ruim é culpa do PT, lembrando-o que havia também uma crise internacional, que se arrasta desde 2008, não me cumprimenta mais desde então, numa clara mostra de apreço pela democracia e pela pluralidade de opiniões).
Hoje, o porteiro da tarde - que, apesar de pernambucano, tenta ser um bom paulistano imitando aqueles que dizem que nordestino (ele) é quem estraga São Paulo - conversava com outro morador - branco, claro. Falavam mal do Haddad e dos novos limites de velocidade na cidade - medida que tem como objetivo (alcançado, conforme primeiros levantamentos) diminuir os acidentes automobilísticos e permitir que o trânsito flua sem percalços. O porteiro dizia que agora tinha que ir devagar na Marginal - ele tem uma moto - e, pior, se acelerasse além do limite, tomaria multa - "esse governo petista só quer ganhar em cima do povo". Eu, já com vontade de chorar, me segurando para não intervir, pensava "obra pro povo é oito bilhões de reais para não despoluir o rio Tietê, é ponte e viaduto superfaturados, é trem superfaturado, é novas pistas da marginal a preço de trilho de metrô, é conta no HSBC da Suiça", quando intervêm o morador: "e o pior, eles dizem que na Marginal tem muito atropelamento. Mas quem é atropelado? Mendigo, drogado, ambulante." Espero pela conclusão do raciocínio, mas o raciocínio está concluído, a ponto do porteiro concordar: "é isso mesmo!". O elevador chega, adentro querendo sumir logo dali. Ainda escuto o morador reclamar "aí somos nós que pagamos a conta". Contra minha vontade, deve me incluir no grupo dos "somos nós", esses que perdem velocidade por causa de vidas que não valem nada.

15 de setembro de 2015.

Malditos pedestres (que resolvem dirigir).



quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Brasília de poucos contatos humanos [Diálogos com a dança]

O branco domina espaço, luzes e roupas, alguns detalhes em cinza evitam a monocromia - e também a monotonia. Os bailarinos são sincrônicos nos movimentos - mesmo que em sentidos diferentes. Sincrônicos e sem contatos. Os raros momentos de encontro entre os três são marcados também pela música "normal", com ritmo e melodia identificáveis - no restante, o que predomina são ruídos eletroacústicos. Vinil de asfalto, espetáculo de Edson Beserra, se propõe a dançar Brasília, e, sem inovar, soa feliz no seu intento. Consegue ser bonito e delicado - com uso de certa linguagem consagrada na dança, sem soar virtuosista -, captar algo da Brasília - típico de qualquer grande cidade baseada em asfalto e concreto -, e apresentar faltas da cidade: a monumentalidade anti-povo, anti-gente, anti-humano, típica da arquitetura modernista de Niemeyer - arquiteto pouco afeito a pessoas, e menos ainda à pólis e à política -, que garante o fluxo e impede encontros, que mantém a ordem e evita contatos. Conceitualmente convidativo, existencialmente árido - de uma aridez que não dialoga com o cerrado ao redor, uma aridez fria, branca, das teorias desprovidas de humanidade -, eis a Brasília sugerida por Vinil de Asfalto. Entretanto, ambos - a cidade e a coreografia - insistem em ser mais que fluxo ordenado, a monotonia monocórdia do poder autocrático: há encontros, há raros momentos em que se aproveita para que entre corpos haja mais que espaços vazios - ou, se preferir, há raros espaços em que se aproveita para que entre corpos haja mais que momentos vazios. Há convite ao diálogo - esse aspecto da sociabilidade moderna tão em falta no mundo atual. O espetáculo ressalta a pertinência de ocupar ao enfatizar o volume dos corpos dos três dançarinos - reforçado pela iluminação preponderantemente feita de contra -, e mostra o ocaso que talvez esteja à nossa vista, mas não enxergamos, ao apresentá-los como sombras de si próprios diante da cidade banal que é projetada ao fundo. A tensão é tênue, fácil de se desfazer na imensidão pastel da Esplanada dos Ministérios, mas importante para que não se esqueça que há homens e mulheres em meio a todo o concreto asfalto lobby e poder da capital federal.

10 de setembro de 2015