domingo, 29 de novembro de 2015

E agora, escrever para quem? [saudades feitas de afetos]

Como acontece muitas vezes, não precisei pensar na crônica: ela quem surgiu espontaneamente (era sobre a entrevista do secretário de educação de São Paulo). Tendo identificado os pontos de ancoragem da argumentação, abri o Open Office e, diante do branco da tela, meu trabalho era conseguir que os pensamentos mantivessem a velocidade dos dedos, que passeavam rápida e familiarmente pelo teclado. Findo o primeiro parágrado, como se estivesse em uma encruzilhada, precisei decidir a ordem da exposição, o impacto e os desdobramentos de cada argumento. Foi então que estanquei: ao pensar no meu interlocutor ideal, me veio a constatação de que eu já não possuía meu principal leitor - ele, que seguidamente usava minhas crônicas de gancho nas conversas, seja para complementar, para acrescentar ou para contestar pontos específicos. Nosso espectro de concordância era grande, e o respeito nos pontos dissonantes também: ele devia me achar muito moderado, eu o achava muito radical, pouco atento às forças envolvidas nos embates políticos. De qualquer forma, estávamos numa esquerda bem longe do centro e a prudente distância de extremismos apedeutas. Ali, diante do primeiro parágrafo escrito e com o resto da análise apenas precisando de meus dedos, me perguntei por que eu escrevia, para quem eu escrevia. Dos porquês, dois deles eu tenho muito claro desde longa data: porque gosto e porque me ajuda a organizar e entender o mundo que me cerca - social como interno e afetivo. O para quem me soou uma pergunta que eu nunca havia me posto. Não era para mim, que os textos escritos para mim eu nunca publico. Me lembrei de uma conversa com uma antiga terapeuta. Eu apanhava para conseguir escrever o texto de qualificação do mestrado, basicamente por conta de preocupações formais excessivas: eu fazia uma leitura quase estruturalista d'A Sociedade do Espetáculo; e tinha como objetivo escrever a dissertação o mais rigorosa possível, mas numa linguagem que meu pai fosse capaz de ler e entender (e não se entediar). A terapeuta não entendeu por quê meu pai, achou que era qualquer coisa psicanalítica, de filho dependendo da aprovação do pai. Precisei me explicar: meu pai não possuía curso superior, não tinha um conhecimento especializado (academicamente falando), mas muita leitura, vasto campo de interesse, e uma cultura geral bem acima da média (academicamente falando também). Eu poderia escrever uma dissertação hermética difícil árida que a banca (Peter Pal Pélbart, Jeanne Marie Gagnebin e Vladimir Safatle) compreenderia sem qualquer dificuldade; mas preferia alcançar um público mais amplo, ainda que qualificado, que não necessitasse de simplificações dos conceitos, apenas um texto minimamente aprazível à leitura, talvez uma ou outra explicação mais detalhada de pontos mais complexos. Meu pai foi o representante imaginário desse público - para minha dissertação e para a grande maioria das minhas crônicas. Isso não quer dizer que eu escrevia para ele, escrevia para o mundo - mas um mundo ideal feito de Dejanirs. Não apenas isso: ele era de fato meu leitor e interlocutor privilegiado - ou talvez eu fosse o escritor e interlocutor privilegiado dele. E agora, o que fazer? Eu sabia como seguir com a crônica, mas ao pé daquele primeiro parágrafo, a ausência dele fez com que perdesse o sentido continuar a escrever. Escrever para quem? Lembrei que todo meu interesse por política era clara influência dele - assim como minha vontade de saber sobre tudo (ou quase) e meu apetite por livros. Na ausência de quem, achei um novo quê para justificar minha crônica - e as vindouras. Como homenagem: não tenho mais sua interlocução, porém ainda posso mostrar ao mundo parte da herança que ele me deixou.


29 de novembro de 2015.



quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Aula de democracia dos estudantes de São Paulo

Ao ouvir a entrevista do secretário de educação do Estado de São Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, na rádio CBN, quarta-feira, o primeiro escritor que me veio à memória foi Millôr Fernandes: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim". As alusões bibliográficas não se encerraram por aí: o duplipensar orwelliano também era claro na fala do secretário. Para não falar na máxima de Goebbels, tão em voga nestes Tristes Trópicos - afinal, se algo é repetido o tempo todo, só pode ser verdade, não?
Em quarenta e cinco minutos montados para o secretário "explicar para a população" as medidas adotadas pelo governo tucano, Voorwald conseguiu irritar as muito complacentes entrevistadoras, Fabíola Cidral e Ilona Becskeházy. Para alguém um pouco mais crítico, sua fala foi temerária do início ao fim, uma boa mostra de desapreço à democracia por parte dele e do governador para quem trabalha, o senhor Geraldo Alckmin.
Diz o secretário que o projeto de reorganização das escolas está em "fase de discussão" e que não é uma medida atabalhoada, antes parte de um processo que vem desde dois mil e onze - ou seja, desde a gestão anterior. Duas questões importantes quanto a isso: se é um processo, como os agentes diretamente envolvidos - professores, alunos e pais, para não falar nos cidadãos sem ligações diretas com a escola - não estavam a par? Inadmissível em um governo sob regime democrático um processo que afeta toda a sociedade passar quatro anos na sombra. Já dizer que o fechamento das escolas está em fase de discussão é negar a realidade, ao gosto do Grande Irmão, de 1984, ou como bem definiu Millôr Fernandes: desde quando baixar uma norma determinando o fechamento de escolas é discussão? O secretário usa como exemplo de "abertura para o debate" do governo o fato de ter revertido a decisão de fechar duas escolas, por terem conseguido provar que eram importantes. Isso não é debate, é ceder a movimentos de resistências: diante de uma norma ditada de cima, decida em gabinetes com ar-condicionado, sem qualquer discussão com a sociedade, provou-se que os tecnocratas que a elaboraram durante quatro anos foram incapazes de perceber a relevância dessas duas escolas - nada surpreendente, já que a comunidade é um dos atores mais indicados para indicar a importância e os porquês de dados equipamentos públicos.
Como todo político no poder, Voorwald tenta desqualificar os movimentos reivindicatórios e todo e qualquer crítico de sua proposta. Sobre as críticas dos professores das faculdades de educação da USP e da Unicamp, disse que não tinham qualquer importância, que os pesquisadores de educação pouco (ou nada) sabem de educação - e completou que se a crítica partisse da FEA, aí ele daria crédito. 
Na sua fixação em desqualificar as ocupações - que são, afinal de contas, contestações efetivas e não beletrismo acadêmico em busca de revistas indexadas -, conseguiu tirar do sério as entrevistadoras. Depois de repetir pela enésima vez que seria anti-democrático e inadmissível que as escolas "invadidas" fosse trancadas pelos invasores, aparelhados por "movimentos políticos". "Secretário, o senhor já falou quatro vezes isso", retrucou a certa hora a entrevistadora, diante de um secretário que ignorava a questão feita para explicar o plano para a população. Pouco a seguir, depois de Voorwald chorar novamente sua ladainha sobre a falta de democracia dos alunos aparelhados por "movimentos políticos", a entrevistadora teve que lembrar o secretário de educação que ele não podia generalizar, pois a maioria das ocupações não ostentava bandeiras de partidos ou do MTST.
Estavam numa empresa do grupo Globo, é claro que passou sem problemas o discurso proto-fascista do ex-reitor da Unesp: ao usar o argumento de "movimento político" para desqualificar o protagonismo dos estudantes, como se fosse uma falha óbvia, desmerecedora - e pior, ilegal e autoritária - discutir política e usar instrumentos político numa questão política. Os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo deram uma pequena lição de democracia ao governador Alckmin, ao negar o pedido de reintegração de posse: "[as ocupações] não envolvem questão possessória, pois o objetivo dos estudantes é apenas fazer com que o Estado abra discussão sobre o projeto de reorganização da rede de ensino". Desta vez a justiça negou a educação feita na base de porrada, bombas e balas "não-letais" (que eventualmente matam), tão ao gosto dos governadores paulista nos últimos vinte anos. Talvez a proposta tucana seja das mais razoáveis para o momento (não tenho opinião formada e não palpito sobre), e me parece que os alunos não estão negando de antemão essa possibilidade: é certo que duvidam que seja, e questionam, principalmente pela forma como Alckimin está tentando implementá-la. Se o governo apresentar argumentos sensatos, as ocupações perdem força no momento seguinte.
Há pressões para que o governador abra discussões sérias - dessas que envolve apresentação e discussão de propostas e não o-governo-fala-a-população-acata. Entretanto, não é de agora que o PSDB demonstra apreço nenhum pela democracia: gestões feitas de cima para baixo, questões sociais resolvidas preferencialmente com polícia militar e porrada, negação e desqualificação do contraditório, leis em interesse próprio, complacência com corrupção e descrédito do processo eleitoral. Para sorte do partido de Alckmin, a Grande Imprensa brasileira defende o mesmo modelo de democracia dos cemitérios - e das ditaduras -, em que o povo acata bestializado o que pequenos ditadores da Casa Grande determinam - "sim, senhor". Desta feita os estudantes da rede estadual de São Paulo decidiram dizer "Não!", ao gosto do operário de Vinícius de Moraes: "E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução/ (...)/ Em vão sofrera o operárioSua primeira agressãoMuitas outras se seguiramMuitas outras seguirão.Porém, por imprescindível/ Ao edifício em construção/ Seu trabalho prosseguiaE todo o seu sofrimento/ Misturava-se ao cimentoDa construção que crescia".

ps: não era o foco de meu texto, mas destaco que a pauta dos estudantes da rede estadual, diferentemente das usuais pautas da Apeoesp ou dos universitários (professores e alunos), não é corporativa. Que professores e universitários aprendam algo com toda essa mobilização.

26 de novembro de 2015.

E os estudantes ensinam: a escola é nossa, não do governo.