quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

31 de dezembro de 2015, no hospital [saudades feitas de afetos]

Sinto o choro ganhar força. Começo a pensar nesta crônica para afogar as lágrimas - funciona. A dor que me traz ao hospital não é para tanto - mas a dor que o hospital me traz, essa, sim, é enorme. Cogito pedir pedaço de papel e caneta à atendente, mas desisto: sou o próximo. Foi enquanto esperava ser chamado, olhando pela porta para o pronto-socorro deixada aberta: vi um homem ser levado numa maca por uma porta, devia ser uma sala; dela saía o pi pi pi pi de alguma máquina - talvez de uma "bomba". O barulho me fez voltar cinqüenta dias no tempo, numa sala do pronto-socorro do outro hospital da cidade, na qual meu pai esperava por uma vaga na uti. Eram várias máquinas a apitar, em ritmos, alturas e intensidades diferentes. Numa das telas que circundavam-no, gráficos estranhos se repetiam a intervalos regulares - para minha ignorância aquilo poderia ser o sinal emitido da estrela Vega, no livro Contato, do Carl Sagan (lembro do meu pai chegar esfuziante do cinema, agradecendo por eu ter indicado o filme, isso no século passado). O que mais me marcou (e machucou), entretanto, foi aquela estranha sinfonia dos aparelhos - algo meio Tarkovski, meio Fritz Lange. Talvez para muitos aquilo seja um último ribombar da esperança, o som o que antecipa a cura inesperada. Para mim, foi a continuação de uma vida que não mais se sustentava, de uma situação que só um verdadeiro (e impossível) milagre - como o nascer espontaneamente um braço num maneta, como o exemplo-desafio que tantas vezes ouvi - reverteria. Meu pai. Tinha planos para quando retomasse a vida normal. Junto com o otimismo quanto a sua recuperação, eu temia que nosso ano novo fosse no hospital, esperando pela reação do seu organismo. Apesar da demora, acreditava que se recuperaria, como recuperado ficou nas outras duas vezes, operado nesse hospital que agora eu esperava resolver um problema ridículo (e me recordo da virada para 2013, quando pouco antes da meia-noite eu havia matado um aranha marrom em meu braço, sem saber se havia me picado ou não. De madrugada acordo com meu pai em meu quarto, iluminando meu braço com uma lanterna, "só para conferir se a aranha não te picou mesmo"). Nas duas vezes saiu cansado, fraco fisicamente, mas revigorado na vida - por que não foi assim desta vez? O futuro do pretérito me toma: e se ele tivesse feito a terceira cirurgia aqui, ou a segunda no outro hospital? No futuro do pretérito tudo é possível; no presente, o que tenho são lembranças, a sensação dos móveis de minha casa de Pato estarem todos com três pernas, ao invés de quatro, e uma unha encravada na mão direita. O som pára, pouco depois a enfermeira me chama. Diante do meu problema, sequer chega a medir minha pressão. Faltam menos de doze horas para 2015 acabar. A comemoração será como sempre: em casa, de pijama, estourando um espumante e indo dormir assim que os fogueteiros permitam. Falta, entretanto, a quarta pessoa das viradas anteriores. Minha mãe reclama que meu pai não deveria ter ido tão cedo. Concordo. Desconfio que ele também. Mas quando notou que estava em suas últimas horas de vida, se despediu sereno: sabia que a hora de partir não é nem cedo nem tarde, é tão-somente a hora. 2015 termina, mas deixa uma marca indelével feita de vazio.


31 de dezembro de 2015

1 comentário:

Daniela disse...

Sinto muito Daniel, sei o que é atravessar este momento. Te desejo conforto e a sua familia também.