sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

De ódio em ódio, para se sentir brasileiro

O Brasil é um caldeirão de ódio prestes a explodir. Cozinha esse caldo faz tempo, desde os primeiros portugueses, e as atuais gerações não conseguiram dirimir, sequer diminuir a fervura. Pior: em boa medida, deixamos de tentar. Esse ódio com o inferior (socialmente) vem de cima, como paradigmático, e desce até o ponto onde não há mais ninguém abaixo para humilhar. O questionamento ao de cima surge parca e precariamente, resta a revolta difusa a reforçar a ordem social. Esboços de reação às injustiças sociais não raro se desvirtuam rapidamente, guiados por essa mesma cultura do ódio, da necessidade de se achar um inimigo, um Outro estereotipado, personificação do Mal, a quem é imputado toda a culpa - pelos males a esses que, por conseqüência lógica, são do Bem. A outra face da mesma moeda - e ai de quem não ajoelhar e rezar por esse novo ódio, só pode ser favorável ao outro, quem não está conosco está contra nós.
Esta semana, esperava com minha mãe e meu irmão a hora de embarcarem, quando se aproxima um homem e puxa conversa. Pergunta se somos descendentes de poloneses, e diante da (óbvia) afirmativa passa a fazer elogios aos polacos e ao papa fdp. Não tarda, introduz novo assunto: "o atual problema do Brasil". Já imagino que vai falar do Lula, do PT e da corrupção. Me equivoco: não estou diante de um homem de bem de classe média, mas de alguém do "povo" - esse que certa esquerda Peter Pan julga ontologicamente como "do Bem". Começa a falar mal de nigerianos e haitianos, a quem classifica como bandidos - "todos bandidos, tudo bandido", repete. Como bem assinala Pedro Serrano em Autoritarismo e golpes na América Latina, "bandido" é a versão tupiniquim para "judeu" na Alemanha nazista, a senha para rebaixar a pessoa da condição de ser humano, livre conduto para qualquer atrocidade extra-legal: "o bandido não é tratado o cidadão que erra, mas como um inimigo da sociedade, que não tem reconhecido sequer os direitos fundamentais inerentes à condição de ser humano. Nesse contexto, sua vida pode ser suprimida" (p. 152). 
Nosso interlocutor da rodoviária, periférico (ainda que branco), talvez esteja em momento raro de sua vida: se sente um honrado cidadão brasileiro, alguém a quem é garantido o direito de odiar e pregar a eliminação do subalterno, sem medo de reação (afinal, imigrantes são sub-humanos, estão abaixo dele, sub-cidadão). Talvez pela primeira vez na vida ele se sinta alguém, integrante da irmandade da Casa-Grande, um ser humano com direito, um, que seja: o direito de aniquilar o Outro. Claro, não percebe que uma vez aniquilado quem está abaixo, passará a ser ele o próximo estorvo à felicidade geral da nação, o novo inimigo, voltará à condição de bandido aos olhos dos cidadãos de bem e dos apresentadores de tevê dos programas de fim de tarde. Não percebe que só temporariamente perdeu a pecha de bandido - por mais que não tivesse cometido algum crime.
Na internet, na linha do tempo do meu Fakebook, acadêmicos das diversas matizes da esquerda se atacam mutuamente em acusações de quem é o culpado do ponto onde estamos (o PT, a falta de união, o homem machista, os evangélicos, algum nome da direita que está em voga na mídia). É sempre mais fácil dizer que a culpa é do outro, desobriga de se comprometer em alternativas factíveis, e permite que se siga ignorando que o fracasso é antes de tudo seu (meu, nosso), é de toda a esquerda, de todo o campo progressista. Paulo Freire é só um nome pomposo para trabalhos teóricos, há muito parece não ter realidade prática no Brasil - que chafurda no ódio e na ignorância.

30 de dezembro de 2016

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Corpo-preconceito

É algo que me chamou a atenção desde que comecei a fazer dança contemporânea, há três anos, com a Key Sawao: o quanto o corpo não carrega de memórias, de medos, de prazeres, de conceitos, de preconceitos que racionalmente parecem muito bem resolvidos.
Nascido e crescido numa cidade pequena e interiorana (recentemente orgulhosa de produzir um dos líderes do nazi-fascismo tupiniquim deste início de século) de um estado reacionário de um país machista, nada mais óbvio que achar homossexualidade um desabono à pessoa, ainda que fosse seu direito, e não justificasse qualquer forma de segregação ou violência - postura que vinha de casa e era muito avançada para a cidade (e seus três gays assumidos). Ainda chocado me recordo do choque em presenciar quase todos os alunos da escola (confessional, católica) perseguirem um garoto de onze anos, durante o recreio, quando ele ousava sair da sala, xingando-o, vaiando-o e cuspindo nele, por ele ser "jeitoso". Também lembro que com dezesseis anos meu maior receio com gays era tomar uma cantada - coisa de adolescente inseguro em cidade fim de mundo. Pouco depois, já na universidade, em cidades maiores - ainda que provincianas e conservadoras -, levei um sem-número de cantadas e descobri que dizer um tranqüilo "não" resolvia a questão na maioria dos casos - houve alguns insistentes, em que precisei fechar a cara e sublinhar o "não". Fora isso, muitos colegas, conhecidos e amigos homossexuais - alguns assumidos, outros então em vias de -, a ponto de me livrar daquele preconceito de antanho, e ainda discutir com meus pais até eles assumirem de modo enfático que cada um faz o que quer da sua vida íntima e nos cabe tão-somente respeitar - e errado são os fiscais do cu alheio.
Encerro as digressões e volto para 2013, aula da Key. Ela dá um exercício que conheço da época que praticava yoga: fica-se de gatinho (ou de quatro, em linguagem mais sexualizada) e mexe de forma circular cabeça e quadril, cada um para um lado. Talvez a primeira vez que fiz essa posição, dez anos antes, ela tenha sido um tanto incômoda, não lembro; sei que agora ela me perturba profundamente, dada minha completa descoordenação de circular cabeça e quadril ao mesmo tempo, ainda mais para lados opostos. Em compensação, em outro exercício, uma breve seqüência de gestos passada pela Key, minha trava foi não motora, e sim psicológica: um desses gestos consistia em passar o braço sobre a cabeça. Não faço idéia das causas, sei apenas que ele ganhava uma conotação tão gay que tive dificuldade em fazê-lo e levei tempo para naturalizá-lo. Desagradável (e necessária) surpresa: não sabia que ainda tinha esse preconceito arraigado, melhor, nunca soube que tive esse preconceito tão arraigado. Não me pareceu, a exemplo dos meus dezesseis anos, insegurança quanto à minha sexualidade - até porque não vejo qualquer problema ou demérito em ser gay -, mas me rendeu algumas sessões de análise. Surpresa também desse inusitado trazido pelo corpo: ficar de quatro, dançar com outro homem, nada disso me levou a questionar minha masculinidade, agora passar o braço sobre a cabeça...

29 de dezembro de 2016

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Relato (e divagações) de um dançarino acidental

Por três meses fiquei a me questionar "que cazzo estou fazendo aqui", três vezes por semana, quatro horas por dia. Questionava não por achar que estava numa furada, e sim por me desreconhecer, mesmo. Imaginava que se há quinze anos me acontecesse, como a Borges, de trombar com um eu do futuro a me contar a quantas ia eu e o mundo em 2016, eu acharia o que me seria narrado mais surreal que o próprio encontro. Pulo as questões do mundo, por demais óbvias a quem ainda não abdicou de pensar, e me centro em mim mesmo. Era com esse olhar de quem se enxerga surrealizado que eu me perguntava o que estava fazendo ali, positivamente surpreendido com a resposta: me experimentando e me divertindo. 
Tentei várias vezes reconstruir o caminho: por um lado, uma leitura a seco de Fenomenologia da Percepção, do Merleau-Ponty, que me levou pro yoga, que me levou pro tai chi; por outro, uma apresentação do Grupo Corpo em Ribeirão, vários Unidanças na Unicamp, a mudança pra São Paulo e a freqüência assídua à Galeria Olido; por um terceiro caminho ainda, uma amiga contando das aulas de dança que estava fazendo - técnica Klauss Vianna, curiosamente com uma das minhas paixões platônicas da Unicamp -, que me fez pela primeira vez pensar em dançar também, e a abertura de um curso de "Técnicas e pesquisa de movimento", da Key Sawao, no qual me meti - inicialmente eram dez profissionais de dança e eu, experiência apenas como expectador leigo e comentador sem propriedade. Ao cabo, estava eu na residência artística do dançarino Eduardo Fukushima, no Sesc Vila Mariana (timidamente e sem jeito, o Sesc começa a tentar incentivar a criação artística e não o mero consumo), investigando e ensaiando uma coreografia para ser apresentada.
Várias vezes me questionei se não estaria mais atrapalhando o Edu e a Bia (sua assistente de direção) que ajudando (éramos em trinta, dos quais vinte e oito eram profissionais das artes do corpo ou alunas do último ano de graduação em dança), ainda que não pensasse em desistir - se ele me aceitou na residência, que arcasse com meu corpo meio desajeitado. Com o tempo fui perdendo esse receio, atualizando minha auto-imagem, e compreendendo que se eu não tinha a técnica dos demais, há muito eu não sou o jovem desengonçado e travado, sem qualquer alongamento.
Mais perto da data das apresentações, comecei a me questionar se na hora eu não ficaria por demais nervoso. Me lembrava de meus tempos de colégio, século passado, época em me chamavam de Papa Léguas (por conta das pernas finas e compridas), em que me faltava coragem para apresentar os trabalhos, e eu chegava na escola com o trabalho feito e duas capas: uma com meu nome, outra com a de outros dois colegas - o Tiguerinha e o Alcino -, que sabiam que no dia eu amarelaria e chamaria os dois para apresentar o que eu havia feito - a vez que fomos aplaudidos pelo cartaz que eu fizera, fiquei com raiva de mim mesmo por não ter apresentado sozinho. Isso faz vinte anos, e hoje eu já dou conta de apresentar em público sem maiores dificuldades, abrindo congresso de medicina com quatrocentas pessoas sem gaguejar - me irmanei do lógos e sinto tranquilidade por trás do discurso racional. A questão era que não havia um lógos racional e claramente estruturado - eu muitas vezes sequer reconhecia qual a razão por trás dos movimentos, e isso me angustiava, até uma colega me sugerir não me preocupar tanto em pensar com a cabeça. Tarefa árdua: me expunha de corpo, sem um anteparo a disfarçar a alma - sem controle seguro do que estava apresentando ao Outro. Não por acaso, dos exercícios mais difíceis desses três meses foram os em que o grupo se dividia em dois, e um assistia ao outro dançar livremente.
E meu receio de travar e não dar conta de me soltar e dançar diante do público cresceu conforme se aproximavam as datas de abertura do processo. Para ajudar, duas semanas antes, mudou a disposição do público: não mais frontal, mas sentado ao redor do "palco" - e eu, que havia territorializado, desde a primeira semana, o canto escuro do fundo da sala, fui posto na situação oposta à que imaginava escapar, e tive que engolir a idéia de que estaria cara a cara com o espectador, pior, eu começaria em meio ao público, encostado na parede, mexendo na barbicha, "com cara de quem está de boa, nem aí", como disse Fukushima, certo ensaio, para minha cara de quem estava nervoso, tentando entender as instruções. Prêmio extra: foi-me pedido que não ficasse logo em pé, porque eu, com meu um metro e noventa (só eu e a moça que também não era da dança tínhamos mais de um e oitenta), era um evento nessa hora. Coragem!
Dia de estréia. Apesar do receio, nada do nervosismo vir. Fizemos o habitual tai chi para preparar o corpo para a apresentação. Nada. A hora que descermos pro camarim bate, pensei. Nada. A hora que voltarmos pra sala. Nada. Já a postos, duvidei que não bateria um frio na barriga a hora que abrissem a porta - quando opero luz, quinze minutos antes já estou pilhado, me convenço que é para não perder a concentração, e agora que estou na ribalta, faltando menos de cinco minutos... nada. A hora de começar. Nada. Do início ao fim, nada: me vi mais confortável que quando me escoro no discurso racional - no terceiro e último dia, ainda lamentei que a apresentação poderia ter durado mais. Amigos que foram assistir a "Residência em suspensão", brincaram: ao me verem sentado tranqüilamente, como se sequer fosse apresentar, com a roupa que há dez anos uso para quase todas as ocasiões, ficaram esperando a hora que eu iria passar a cuia de chimarrão - foi o que faltou para dar a impressão de estar na sala de casa.
Se me apresentei bem, não sei. Fukushima conversou comigo depois, me elogiou, e ainda que não tenha duvidado, não consegui acreditar: já havia sido demais eu ter me apresentado sem sobressaltos, que ainda tenha feito com qualidade, era informação demais para minha cabeça - que não parou desde então, tentando entender o que foram esses três meses, e, por que não?, o que foram esses três anos desde que comecei a fazer dança com a Key. Me desreconheço (inclusive neste texto, muito "querido diário").

21 de dezembro de 2016.

PS: Revisava a crônica quando noto onde posso talvez me reconhecer novo: no nome. Com dois Daniel na sala vejo o mesmo processo de quinze anos atrás, quando entrei na USP e, para diferenciar os Daniéis, passei a ser chamado pelo sobrenome - que desde então adotei e prefiro, ainda que não faça questão. A diferença: Edu não conseguiu lembrar de Dalmoro, que ganhou nova corruptela (já tinha virado Fanoruti com a Misson bêbada [http://bit.ly/2igpo22]): Dandoro. Talvez seja isso! Dancei já não mais como Dalmoro - certamente não como Papa -, mas como Dandoro.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A PEC da desestabilização

Com o Estado tomado pelas finanças, há uma busca agressiva por parte dos donos do poder pelo esvaziamento da política na sociedade, de forma a garantir a platitude necessária à maximização de seus lucros. A Política, a exigência dos "de fora" em serem incluídos no pretenso bem-estar geral da nação, desestabiliza, ou melhor, torna evidente a falta de qualquer estabilidade na sociedade contemporânea, é capaz de mudar rumos - os tais "contratos" que governos progressistas precisam respeitar quando assumem o executivo -, por isso deve ser combatida, por isso deve ser tratada como sinônimo de "palavrão" (quantas vezes Alckmin não desqualificou greves e movimentos reivindicatórios por serem "políticos", para não falar no seu pupilo, o lobbysta que não faz política mas disputa eleição e ainda não saiu do palanque). Uma das funções de Lula no executivo federal, enquanto grande conciliador nacional, foi dar um pouco de sossego a uma turba que se politizava via lutas e reivindicações sociais, e ameaçava questionar privilégios, reivindicar direitos. Houve quem anunciasse ali o fim da política. Exagero: Lula, inteligente e experiente, sabe que política é imanente à sociedade humana, o que o ex-presidente fez foi manter a política em intensidade muito baixa - talvez seu grande erro: conseguiu considerável apoio e tranqüilidade durante seu mandato, mas deu as condições ideias para a gestação da serpente que vem engolindo o PT, as esquerdas e a incipiente democracia brasileira.
O grupo que assumiu o poder com o golpe de Estado de 2016 aparenta mais esperto que o PT, mas tenho cá sérias dúvidas: parecem crentes demais para conseguir perceber o que se passa ao seu redor. A PEC 241/55 pode ser vista como a tentativa de institucionalizar o fim da política sem precisar recorrer a uma ditadura de linhas totalitárias (o golpe de 64, convém lembrar, manteve alguma política acontecendo). O golpe, contudo, pode sair pela culatra: soa absurda a idéia de uma sociedade que prescinda da política - e qual não é o principal instrumento de disputa política no Estado moderno que não o orçamento, desde a cobrança de impostos até a alocação dos recursos? Tentar sufocar a política é dar fermento para que ela ressurja com muito mais força e vigor - o que pode gerar reações igualmente vigorosas e violentas do lado oposto, da anti-política (de inspiração nazi-fascista). 
Ainda antes de possível revolta popular nas ruas, há sinais de que a PEC surge capenga, e quem o diz é um dos porta-vozes oficiais do golpe. O Datafolha não possui credibilidade, mas é reconhecido por ser falho e adulterar dados para favorecer suas posições - vale lembrar a notícia, a partir de dados forjados, deturpados e mal apresentados, que diziam que 50% da população queria a permanência de Temer, pouco antes do desfecho do golpe contra Dilma [http://bit.ly/2hPtcHp]. Pois é esse instituto quem anuncia que 60% da população é contra a PEC 241/55 [http://bit.ly/2hy0749], isso mesmo com toda propaganda feita pelo jornalismo da chamada Grande Imprensa, de que a tal emenda evitaria a quebra do país e permitiria a retomada do investimento e do crescimento. A lógica é simples: com dinheiro garantido para os juros da dívida, os "investidores" (termo genérico para especulador) voltariam a aplicar no país, por dar estabilidade ao seu investimento.
O dado do Datafolha deixa claro que, apesar da emenda constitucional, não deve haver estabilidade nos próximos anos, a não ser que se recorra a uma ditadura aberta e se implemente a tão sonhada paz de cemitério (com trabalhadores zumbis) que o mercado elogia. Se se mantiver o mínimo do lustro de democracia formal, a oposição à PEC deve ser bandeira forte em 2018, no mais tardar em 2022, quando seus efeitos serão sentidos (ainda que economia não seja ciência exata, há certos direcionamentos cuja direção é evidente e permite antever muito do que espera). Alckmin, nome forte da extrema-direita tupiniquim, já deu entrevista criticando a proposta [http://bit.ly/2gMX9Kj] - a esquerda, desnecessário falar. A tendência, portanto, é de permanente crise entre os poderes - com agudização da crise de representatividade dos políticos eleitos para o legislativo -, ou uma nova ementa à constituição que desfaça a PEC dos golpistas. De qualquer modo, contrariamente ao que dizem os analistas da Grande Imprensa, a PEC 241/55 deve afastar qualquer estabilidade jurídica e econômica, condição para atrair investimentos ou mesmo especuladores. Por mais um caminho, o golpe deve deixar como maior legado a instabilidade - e há aqueles que saberão ganhar muito com isso.

14 de dezembro de 2016


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Sexta qualquer de ordem e progresso e humilhação

Duas da tarde de uma sexta-feira em uma cidade grande de um país que se anuncia democrático e de direito, se diz civilizado e abençoado por deus. Perto da praça da Sé, três militares revistam quatro suspeitos. São quatro negros/morenos e talvez seja esse seu crime. Todos os sete aparentam ser brasileiros - ou seja, falantes nativos de português - e dotados do que se chama de "razão". Poderiam, portanto, se comunicar verbalmente, mas os PMs nada falam - tudo o que tinham para dizer, "mão na cabeça", foi dito no início da abordagem e obedecido sem questionamento. Puxam os suspeitos pela gola da camisa para a esquerda e para a direita, como se fossem incompreendidos se dissessem "um passo para a esquerda, por favor", ou como se toda sua autoridade caísse se uma daquelas quatro pessoas não cumprisse de imediato a ordem. Dois militares revistam, o terceiro fica na cobertura, a mão no coldre, pronto para sacar a arma e atirar, caso uma daquelas pessoas com as mãos na cabeça e sem esboçar qualquer reação faça alguma mágica e ponha em perigo um dos três funcionários a serviço da ordem, ou caso tentem fugir daquela abordagem suspeita - nunca o encontrei, mas certamente em nossa Constituição há um artigo que diz que qualquer insubordinação contra a polícia é passível de pena de morte com execução sumária, pena agravada se for preto pobre e periférico. O espetáculo serve para a humilhação dos quatro homens, expostos à multidão que acompanha a ação policial. Sigo meu trajeto, mas tenho a infelicidade de ouvir um dos diálogos entre dois dos espectadores. Ele lamenta ao outro, decepcionado: é o Choque, tinha que ser a Rota! Ordem e progresso. No Brasil, o Estado corrompeu - com aplauso das elites e de um lumpem ignaro que almeja um dia ser elevado a capitão do mato - o "monopólio legítimo da força" em "monopólio (pretensamente) legítimo do terror" - e agora começa a democratizar o terror para todos os que não agradem aos donos do poder, os patrões dos PMs que fazem essa cena deprimente. Ainda escrevo o rascunho desta crônica quando, quinze minutos depois da cena, vejo os três militares passarem na minha frente - ou seja, não havia nada que exige encaminhamento daqueles quatro homens. Os militares caminham candidamente, como se passeassem no parque num domingo de folga. Talvez tenham a sensação de dever cumprido, ao impôr a humilhação pública a três inocentes culpados por serem periféricos freqüentando a via pública como se tivessem esse direito, por serem negros num país que ainda ressente como injustiça o fim da escravidão.

18 de novembro de 2016

domingo, 13 de novembro de 2016

Um ano [saudades feitas de afetos]

Hoje fez um ano. Era para ter sido ontem, talvez anteontem. Adiamos, não por esperança de um milagre impossível, ou por uma moral cristã-iluminista que preserva a vida a qualquer custo - da própria humanidade, inclusive. Sofria, pedimos sedativos, mas o médico não havia prescrito: só se autorizássemos a UTI. Depois de três dias em que deparei com meu maior pesadelo - não ser reconhecido pelo meu pai, carente de razão - o medo daquele sofrimento inútil se arrastar por sabe-se lá quantos dias. Durou dois, quinta e sexta, quando era pouco mais que um corpo sustentado por uma sinfonia mecânica, incapaz de sentir dor ou o que fosse - melhor assim. Lembro de sexta à tarde, eu vestia camiseta do MST por baixo do paramento todo da UTI, e pouco via por conta das lágrimas, enquanto eu e mãe pedíamos para que partisse - eu me perguntava: por que toda essa merda? Pouco antes da meia noite, eu e Phah assistíamos apáticos ao jogo entre Brasil e Argentina, enquanto pipocavam notícias sobre ataques terroristas na França - mãe já havia ido dormir -, quando ligaram no seu celular - único telefone que registrado em sua ficha. Estranhamos. Atendi na segunda vez que ligaram. Acabava. Numa sexta, para não atrapalhar a semana útil - ele, que teimava em nunca parar. Um mês antes havia, no hospital, finalmente, entendido que férias eram importantes - não pôde aproveitar da sua descoberta. Não como gostaríamos que aproveitasse. Não foi ontem, nem anteontem. Eu gostaria que ainda não fosse, mas reconheço que poderia ter sido há mais tempo, se ele não tivesse sido um exemplo de afirmação da vida, se tivesse sucumbido ao medo quando soube do diagnóstico. Foi hoje, treze de novembro, que fez um ano. Em Pato fazia sol e calor. Em Sampa, chuva e frio. Mãe mexeu no jardim. Phah fez concurso. Eu pouco fiz - muito lembrei, da piada do pintinho aos elogios um pouco sem jeitos no Trezenhum e na Muda. Era dia de GP de Interlagos. Daqui quatro meses fará vinte anos de nossa primeira viagem de avião, na volta do GP de Interlagos de 1997. Saímos antes, para fugir do trânsito e da chuva, a tempo de chegar no aeroporto - eram as águas de março. Não pude conversar com você sobre a prova, depois - ou mesmo antes, para avisar que aqui chovia e a corrida poderia ser caótica. Natália mexe em minha barbicha, cultivada desde o dia onze de novembro do ano passado - foi onde você fez seu último agrado. Barbudão, disse dia oito, ao ser questionado pela mãe se me reconhecia. Nesses dois dias havia alegria no seu olhar ao me ver. Não sei no meu o que você viu. Choque no dia oito, tímida alegria no dia onze - talvez. Isto que escrevo, você não vai ler, para comentar depois, ao telefone - Dani, andei lendo sua última crônica... Em certas situações, não faz sentido medir o ano conforme as rotações dos dias e das estações. Não fez um ano hoje.

13 de novembro de 2016

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Ficção barata para 24 de outubro

Da veia aberta por motivo fútil, o sangue escorre discreto pelas páginas de notícias. Culpa das drogas, dizem na imprensa, já que seu discurso de incitação ao ódio contra as esquerdas e movimentos sociais produz apenas cavaleiros da paz e harmonia social. Os cidadãos de bem, arautos da moral, dão de ombros: quem planta colhe: se estivessem em casa, assistido a Datena ou JN, nada disso teria acontecido. Temo de, em breve, ver esses patriotas invejosos de Miami contabilizando aos milhões - com um sorriso no rosto - as vidas dos outros. A mãe chora por uma vida descartável aos amorosos maridos, bons pais de família que banqueteiam hipocrisias em Brasília. A ponte para o futuro é o triunfo da vontade da Casa Grande.

25 de outubro de 2016.


domingo, 9 de outubro de 2016

Eleições municipais: uma visão menos catastrófica ao PT e às esquerdas.

Apesar de ainda estar em disputa a prefeitura de 55 cidades, é possível já fazer um esboço do que foram as eleições municipais de 2016.
Ao menos desde a ascensão do PT ao poder federal, analistas (sic) políticos da Grande Imprensa tentam dar às eleições municipais o caráter de prévia da presidencial dali dois anos - como se fossem a equivalente tupiniquim das eleições legislativas de meio de mandato nos EUA. Pela primeira vez acertaram: impossível não analisar os números destas eleições sem vincular ao que se passa na política nacional, por mais que fatores municipais não sejam irrelevantes.
A principal dificuldade para analisar os resultados de 2016 e o que eles significam para o futuro está em Brasília: vivemos sob um regime democrático ou não (por mais capenga que seja nossa democracia institucional)? Que não estamos mais sob um Estado de direito, isso nosso judiciário tem reiterado diariamente. Já sobre a democracia e eleições, há quem acredite que o "tropeço democrático" do impeachment da presidenta Dilma será restabelecido em 2018. Gostaria que assim fosse, mas não vejo motivos pra acreditar. Saber o que será é importante pra poder entender se vemos os números que temos até agora como radiografia de momento, vulneráveis aos ventos das ruas (por mais que sejam brisas), ou se se trata de uma tendência quase que imposta de cima para baixo, em que a população tem o dever de legitimar escolhas feitas pelos donos do poder - banca, judiciário, mídia, oligarcas.
Para a análise a seguir, dividido os partidos em três grupos: 1) esquerda/centro-esquerda (PT, PDT, Psol, PCdoB), 2) direita/extrema-direita (PSDB, DEM, PPS, PSC, SD), 3) fisiológicos-centro-direita (a grande geleca conservadora, mas que está com o governante do turno). Por precariedade das estatísticas fornecidas pelo TSE, centro no número de prefeituras ganhas.
A esquerda foi a grande perdedora em 2016, puxada pela queda do PT. Se alguém se surpreendeu com esse fato, precisa urgentemente ativar sua capacidade crítica, pois não dava para esperar nada que não isso. A questão que se põe: perdeu tudo aquilo que é alardeado na Grande Imprensa? Admito que eu imaginava uma queda maior, diante de todo o ataque que PT tem sofrido há anos - com respingos para o resto da esquerda -, em especial no período anterior ao pleito, com direito a Moro fazer o papel de diretor de figurino, cargo ocupado em 1989 pelo xerife Tuma, no seqüestro de Abílio Diniz e o espetáculo anti-PT feito em cima.
Se o PT e a esquerda caem, não é a direita e a extrema-direita quem mais ganham: ainda que tenham ganhado praticamente o dobro de prefeituras das esquerdas, esse grupo não conseguiu recuperar o número de prefeituras que obteve em 2008. Percentualmente, seus 24% estão longe dos 40% de executivos municipais conquistados em 2000, com a máquina federal tucana a todo o vapor - a esquerda ainda teve um aumento de 50% em relação a 2000, e mesmo o PT tem 27% a mais de prefeitos eleitos que então.
Quem mais cresceu em 2016 foram os partidos fisiológicos de centro-direita, que preferem sempre ceder anéis a ter que arriscar os dedos. E ainda que por si só esse fato não seja positivo, ele aponta perspectivas a serem exploradas pelas forças progressistas: o fato de desiludidos com o PT não aderirem à direita pura e raivosa - que cada vez mais embasa seu discurso no anti-petismo e na destruição do inimigo vermelho - pode significar que há uma grande faixa do eleitorado capaz de reconhecer - assim que baixe a poeira goebbelsiana da Grande Imprensa - os ganhos dos governos de esquerda. Se estivermos sob um regime democrático minimamente sério, o que se viu em 2016 pode ser revertido num curto espaço de tempo. Claro, para que isso ocorra realmente não convém esperar tomada de consciência espontânea de pessoas que nunca foram educadas politicamente: é preciso que as esquerdas (forças progressistas em geral) passem a fazer aquilo que abandonaram desde que o PT assumiu o poder federal: política, política quotidiana, micro-política. E um dos focos da conscientização política precisa estar em suprir falhas de nossa educação, que faz com que a maioria da população seja incapaz de interpretação de texto e de refletir criticamente sobre aquilo a que assiste, sendo ludibriada com uma facilidade espantosa por construções publicitárias pueris - como Doria Jr - ou manipulações grosseiras - como a criminalização do PT. Penso que é nessa política de conscientização para a política - muito mais que para a esquerda ou para certas bandeiras - que podemos reverter a ditadura em curso, e, quem sabe, remediar esse golpe sofrido em 2016. As eleições de 2016 mostraram que o discurso fascista ganha adeptos, sem conquistar (ainda) a maioria - Doria Jr, com descarado discurso de extrema-direita, só ganhou em São Paulo graças à construção do personagem populista a la Janio Quadros, e por ter conseguido fechar a disputa no primeiro turno.
Outra análise que tem sido comum: que o PT se tornou um partido decadente nas cidades e regiões ilustradas, que sobrevive nos grotões do país - teria se tornado algo como o novo PFL/DEM e PMDB. Há uma diferença substantiva entre vencer sendo o partido de coronéis e vencer sendo um partido de massa. O voto no PT em regiões pobres tende a ser um voto consciente, de quem sentiu na pele as melhorias nas condições de vida - 100 anos em 10 -, diferentemente do apadrinhamento político e troca de favores que costumam nortear oligarcas políticos em terras de ninguém. Achar que população carente e de cidade pequena é ignorante e mais facilmente manipulável é uma mentira repetida diariamente pela rede Globo e afins, engolida como se fosse caviar pela classe média, média-alta ignara-mas-diplomada, e comprada por muitas pessoas de esquerda. 
Pontuando sobre os partidos, rapidamente. PT caiu vertiginosamente: das 648 prefeituras em 2012 já possuía pouco mais de 500 este ano, e vai para 254 em 2016 - 50% de queda. Perderam também prefeituras, mas em número bem mais modestos (5 a 12%), o PSB em ressaca pós-Campos, e os definhantes de longa data PTB, PPS e DEM. PMDB ficou estacionado. O PSDB, com 793 prefeituras, volta ao padrão de 2008, porém está ainda muito longe das 991 prefeituras conquistadas em 2000. Os dois partidos que mais cresceram foram o PCdoB, com quase 50% (de 54 para 80 prefeituras), e o PRB, ligado à Igreja Universal, com 30% (79 para 103) - por essa faixa do eleitorado, o outro partido evangélico, mas com discurso de extrema-direita, o PSC, cresceu 4%, com 86 prefeituras. Cresceram também os partidos nanicos: 33%, com 265 prefeituras.
Depois de mais de dez anos tendo como norte políticas públicas progressistas, ainda que limitadas, que favoreceram a maioria da população, se não se consumar a ditadura judiciária-midiática no país, é de se esperar que os prefeitos eleitos não acompanhem as diretrizes de Brasília, e façam governos moderados, sem atacar diretamente boa parte das políticas tidas como "de esquerda" de seus antecessores. Por outro lado, se os políticos não tiverem mais como preocupação as próximas eleições (suas ou de seus padrinhos políticos), e sim em agradar os dono do poder - por ora simbolizado no espantalho-útil do golpista Michel Temer -, tempos temerários virão. É o fim de um ciclo, sem dúvida, porém em que magnitude se dará tal fechamento, depende tanto das mobilizações das ruas, da política cara-a-cara por tanto tempo esquecida, e da consumação ou não da ditadura. De qualquer modo: lutar politicamente é preciso.

09 de outubro de 2016.


2000 2004 2008 2012 2016*
PT 200 411 557 638 254
PDT 289 307 352 307 332
PcdoB 2 10 41 54 80
PSOL X X 0 2 2
Total esquerdas 491 728 950 1001 668
PMDB 1260 1059 1202 1021 1028
PSD X X X 498 539
PP 619 551 551 476 493
PSB 135 175 310 440 413
PR X X 385 275 295
PTB 399 421 413 298 260
PRB X X 54 79 103
PV 13 57 75 100 101
REDE X X X X 5
PL 235 382 X X X
Outros 213 189 143 199 265
Total fisiológicos 2874 2834 3133 3386 3502
PSDB 991 870 791 695 793
DEM/PFL 1027 789 496 278 265
PPS 168 308 129 125 118
PSC 34 26 57 82 86
SD X X X X 62
PRONA 0 7 X X X
Total direitas 2220 1993 1473 1180 1324
*1o turno




segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Meio fascismo, meio populismo: a vitória de Doria Jr em São Paulo

Ao ver o resultado das eleições em São Paulo, com vitória de Doria Jr. no primeiro turno, a sensação que se tem é de terra arrasada e triunfo do fascismo - campos de concentração bandeirantes, aqui vamos nós! Respiro e tento analisar a situação um pouco mais objetivamente: chego à conclusão de que vivemos tempos realmente preocupantes, mas não se pode vaticinar nada para um futuro breve - é possível reverter o quadro, ainda que o mais provável seja o aprofundamento de um Estado de Exceção aos moldes nazi-fascista, tal qual já acontece. A vontade é achar culpados por termos chegado aonde chegamos, porém penso que vale uma análise mais pontual, visando um próximo passo - a tal auto-reflexão que muitos da esquerda cobram de seus representantes é necessária e urgente, mas precisa ser feita junto com o embate político: não há possibilidade de fazer uma pausa para discutir e depois voltar a agir.
Sem mais delongas, à eleição paulistana.
As regras do jogo
Primeiro, é importante salientar que as regras do jogo têm influência direta no seu resultado. Um amigo tratou de levantar logo: "Gilmar Mendes é o presidente do TSE". Prefiro não acreditar em manipulação nesse nível no resultado das urnas, entretanto Coronel Mendes é o Coronel Mendes, tudo dele pode se esperar. Deixo de lado essa hipótese. Ao meu ver, o principal fator destas eleições foi a diminuição do tempo de campanha: a exemplo de Russomano, Doria Jr. também era um candidato-sabonete, e não suportaria nenhum embate direto: assim que fosse instigado a fazer propostas um pouco mais palpáveis, desidrataria. Entretanto, para achar esse flanco e explorá-lo, faz muita diferença se se tem 90 ou 45 dias de campanha - a regra favoreceu, portanto, candidatos oportunistas e antipolíticos, a exemplo do futuro prefeito paulistano.
Segundo ponto: o poder da mídia, cujo monopólio não foi atacado diretamente pelos governos petistas. Desde 1982 a Globo tenta diuturnamente, e em todas as eleições, dar golpes brancos. Conseguiu de 1989 a 1998, e vinha falhando fragorosamente desde 2002, a ponto de apelar para o golpe direto em 2016. Voltou ao modus operandi nestas eleições: eu estava numa cantina no sábado, o televisor ligado sem som, e pude ver no Jornal Nacional uma notícia em que se vinculava PT e algum crime eleitoral - só o PT. Entretanto seu maior triunfo, assim como dos golpistas, não foi a derrota do PT, foi a desmobilização da população: o desalento representado em votos brancos, nulos e nos que se abstiveram de votar - retorno a este ponto mais adiante, é aqui que vejo a possibilidade de reverter o ritmo acelerado para o fascismo.
Sobre os candidatos, em agosto eu comentava que a eleição seria uma verdadeira disputa pela sobrevivência política [http://bit.ly/cG160822], com Doria Jr. como o único apto a perder sem sofrer maiores danos com isso - no fim, o azarão venceu.
Luíza Erundida e o Psol-Raiz
O Psol, com Erundina, cresceu em relação a 2012. Ainda assim, esteve aquém do que se imaginava no início da campanha. Parte dessa queda se deve ao pouco tempo de exposição na mídia - ou seja às regras do jogo. É provável que outra parte seja por conta de voto útil no Haddad. Uma das falhas de sua campanha que me chamou a atenção foi seu colega de chapa: num momento em que se pede algo "novo" em política, uma chapa formada por um casal de velhinhos passa a imagem de antigo (estou aqui analisando em termos de marketing e imagem, independente de propostas e trajetórias políticas), um vice jovem passaria essa idéia - Erundina poderia mesmo inovar, tendo como vice uma mulher. Pessoalmente, não demonstrou querer usar esta eleição para outros vôos políticos - era mesmo uma questão do partido. Se no Rio Freixo dá novo alento à esquerda e ao Psol, em São Paulo, a esquerda ainda tem o PT como seu principal representante. Sem dúvida a participação de Erundina no pleito foi extremamente importante - união de esquerda não deve significar candidatura única (como eu disse alhures: é necessária a desunião sincrônica das esquerdas).
Celso Russomano
Russomano deve dar adeus a pleitos majoritários - talvez ainda tente senado em 2018 (caso haja eleições em 2018). Sem qualquer estofo político, e sem a mesma equipe de marketing e complacência da mídia que tem Doria Jr., não deu conta de manter sua vantagem. De positivo, sua campanha não se baseou em discurso de ódio ao PT e à esquerda, ficou ainda no esquema "catch-all party" - o discurso cata-tudo -, com tendência à direita. Propostas fracas, postura tímida e uma enxurrada de podres da sua vida pregressa minaram seu sonho de ser um novo Jânio Quadros.
Marta Suplicy
Como eu havia anunciado em agosto, Marta Suplicy era quem mais arriscava. Ao fim da eleição, definitivamente é quem mais perdeu: favorita se fosse ao segundo turno (onde ganharia os votos dos anti-petistas caso disputasse com Haddad ou da esquerda, caso enfrentasse a direita puro-sangue), esqueceu de combinar com os russos. Terminar em quarto lugar é um tremendo golpe em sua carreira política - e em seu enorme ego. Seus 10% mostram qual seu capital político real, provavelmente fruto da sua gestão à frente da prefeitura: sua adesão ao golpismo não deve ter lhe rendido um voto sequer. Mediu errado seu passo político e ao tentar se desvencilhar do PT indo para a direita, perdeu o discurso sem perder a pecha de petista - tentar voltar à esquerda me soa impossível, depois de ter votado pelo impeachment-golpe. É possível que perca ainda mais esse resto de simpatizantes daqui para a frente, e sobraria tentar se manter na política com base no fisiologismo de cúpula e currais eleitorais. Se tentar o senado em 2018 (caso haja eleições em 2018), pode perder novamente; suas chances maiores parecem ser na disputa do governo do Estado, ou costurando um amplo apoio dos partidos fisiológicos e de direita (aí precisa conversar com o Doria Jr), ou na expectativa de ir para o segundo turno e vencer com o voto "anti".
Eduardo Suplicy
Eduardo Suplicy não disputou a prefeitura, contudo, na disputa pela vereança, seus quase 6% dos votos mostram sua força. É nome forte para voltar ao senado em 2018 (caso haja eleições em 2018), se assim desejar, ou à Câmara dos Deputados, caso seja mais interessante ao partido garantir a maior bancada possível, para ter maior tempo de tevê e quetais.
Fernando Haddad e o PT
Ainda que tenha perdido a prefeitura, o segundo lugar do atual prefeito mostra uma força de resistência sua e do PT que não pode ser desprezada. Anunciado desde o início da campanha pelas pesquisas eleitorais como candidato sem quaisquer chances, com seu partido sofrendo feroz perseguição política da justiça, da polícia, e da imprensa nas datas próximas ao pleito, seus 16% são significativos - o PT não acabou, como alguns arautos da direita (e da extrema-esquerda) anunciavam em agosto. Se somarmos aos votos de Erundina e Marta, a esquerda (acredito que Marta teve seus votos ainda pela sua trajetória no PT) teve 31%, ou seja, mantém sua base de 1/3 do eleitorado - era o piso antigamente, hoje é o teto. Sem negar o quanto a esquerda foi golpeada, ainda mais o PT - que em 2012 se tornara a segunda força municipal e ganhara a principal cidade do país -, um terço do eleitorado da principal cidade do Brasil é um índice alto para um país cujo lema do governo central é "tirar o país do vermelho" (em outra demonstração nazi-fascista do presidente-golpista Michel Temer). No plano nacional, a queda do PT foi grande, mas chama a atenção não ter sido acompanhada do crescimento dos seus antípodas, da "direita-cheirosa" (PSDB+DEM+PPS), que cresceu menos de 10%, sem sequer recuperar o que perdera de 2008 para 2012 (1416, 1084, 1174 prefeituras, respectivamente). A grande tarefa das esquerdas é conseguir, a partir de agora e o quanto antes, formar a frente ampla, sem ir a reboque de um partido.
De volta a Haddad. Seu grande erro não é só de campanha, é de governo: não ter investido o suficiente em publicidade oficial. Infelizmente, é da regra do jogo: aparecer para ganhar: à mulher de César não basta ser honesta... A gestão Haddad priorizou o marketing de internet, mais barato, e deixou de lado grandes campanhas de publicidade. Começou a campanha com a fama de prefeito que não fez nada, e passou o período eleitoral enunciando tudo o que fizera - do bilhete único temporal a hospitais e creches nas periferias. Os 45 dias de campanha foram determinantes para que não conseguisse divulgar o suficiente sua gestão. Se por problema de comunicação ou realmente por ter não dado a devida prioridade, o mapa da eleição mostra que Haddad foi muito mal nos extremos da cidade, reduto habitual do PT - tendo melhor desempenho nas regiões central, oeste e sul-1.
Talvez o que tenha sido determinante para a derrota de Haddad foi o elevado índice de abstenções, brancos e nulos. Costuma-se dizer que cada um colhe o que planta. A Grande Mídia tem plantado intensivamente o desalento com a política, encontrando solo fértil naqueles que viam na política ideais mais nobres - como combate à pobreza e melhoria das condições de vida de todos -, e conseguiram desmobilizá-los o suficiente para garantir a vitória ao seu candidato, ao que tudo indica. A lógica é fácil de ser compreendida: por mais que ache Haddad melhor que os outros, ou que tenha feito um governo razoável, de que adiantaria votar nele se são todos "políticos", ou seja, são todos corruptos, são todos "bandidos"? Quase 40% dos paulistanos se absteve de votar ou não se sentiu representado por nenhum dos onze candidatos - isso num país cujo voto é obrigatório! Dos que foram às urnas, os votos válidos na capital caíram de 87% para 83% do eleitorado. Se esses 4% a mais que se abstiveram tivessem votado em algum dos candidatos derrotados, seria o suficiente para forçar o segundo turno. Eis nesse ponto onde ainda vejo esperança: construir uma contra-narrativa que dê conta de reabilitar a política e as esquerdas (poderia ser também a direita, mas uma direita de verdade, não esse atraso político que no Brasil assume a bandeira), de modo a trazer para política parte da população que sucumbiu ao canto da desolação. Isso, claro, implica em trabalho de base e diário, e não apenas em época eleitoral.
João Doria Jr.
Há diversos fatores a se levar em conta na vitória de Doria Jr. Um deles, que levantei acima, a desilusão com a política, que repercutiu no aumento no número de eleitores que não participaram do pleito ou não fizeram voto útil em algum candidato. Outro é que Doria Jr soube explorar quatro discursos diferentes: um discurso de direita, dois de extrema-direita e um populista de direita. Em tese, portanto, Doria Jr teve quatro tipos de eleitores: 1) os de direita, que votaram nele por acharem que um estado mais enxuto e concentrado em áreas prioritárias da administração é a melhor forma de se alcançar o bem-estar comum (proposta política apresentada de maneira muito tosca, mas ainda assim uma proposta política); 2) os anti-petistas radicais, que embarcaram no seu discurso de ódio de clara inspiração nazi-fascista: o candidato não se punha como crítico da administração Haddad, ele propunha a eliminação do PT e do prefeito - suas políticas seriam somente a conseqüência do PT ser a encarnação do Mal -; 3) os desiludidos com a política, que votaram no seu discurso de anti-político, também de inspiração nazi-fascista; e 4) os que compraram o sabonete Doria Jr-trabalhador.
Acreditar nesses quatro perfis de eleitores do Doria Jr que me dá alento de que não necessariamente começaremos o ano letivo de 2017 queimando em praça pública livros de autores degenerados.
Os eleitores de direita dificilmente formaram sua base: pelo racha dentro do próprio PSDB, pela ausência de uma opção razoável de direita e pela gestão econômica de Haddad, é de se acreditar que quem está nesse espectro político e é razoável (racional, diriam os economistas) votou no atual prefeito. A base cativa de Doria Jr - e do PSDB todo, cada vez mais - são os eleitores de extrema-direita, ou em um termo um pouco mais cru: o PSDB caminha a passos largos para se tornar um partido neofascista, se é que já não se tornou (uma das particularidades da extrema-direita século XXI tupiniquim, é que o "movimento" não funda um partido, conforme a análise do fascismo feita por Robert Paxton, e ainda hoje observável na França e na Alemanha, por exemplo, e sim é adotado por um partido já consolidado, como forma de sobreviver à sua iminente derrocada política e eleitoral). O discurso de extrema-direita do tucano teve duas frentes: de um lado, o discurso de ódio e contra o inimigo portador de todo o Mal; do outro, a exploração da desilusão com a política, causada pelos escândalos ocorridos também nos governos petistas - que antes de assumirem o governo federal eram os arautos da moralidade política no país -, mas principalmente pela forma como tais escândalos são explorados pelo "quarto poder" (que parou de se referir a si próprio assim desde que começou a ficar evidente que era de fato um poder para-estatal e que não estava sob qualquer controle legal). Mario Vargas Llosa (saliento: um autor descaradamente conservador, porém liberal), em La civilización del espectáculo, livro de 2011, comenta sobre a desvalorização da política: "Em muitos países e em muitas épocas, a atividade cívica alcançou um prestígio merecido porque atraía gente valiosa e porque seus aspectos negativos não pareciam prevalecer sobre o idealismo, a honradez e a responsabilidade da maioria da classe política. Em nossa época, aqueles aspectos negativos da vida política têm sido magnificados freqüentemente de uma maneira exageradamente irresponsável por um jornalismo amarelo com o resultado de que a opinião pública chegou ao convencimento de que a política é um fazer de pessoas amorais, ineficientes e propensas à corrupção" (p. 133-134). Berlusconi, na Itália, ascendeu pela porteira aberta por esse jornalismo nefasto; Doria Jr também - muito antes deles, em processo muito similar, na Alemanha dos anos 1930, Adolf Hitler. Ainda que muitas pessoas se sintam intimidadas e acabem emulando o comportamento raivoso dos neofascistas tupiniquins, não penso que só o discurso explícito de ódio dê voto suficiente - pode fazer muito barulho, é sua função fazer muito barulho, para parecer maior. Aí entra o discurso velado de ódio, contra a classe política e o fazer político; Doria Jr explorou isso não apenas se apresentando como o "novo", como reafirmando sempre e uma vez mais que não era político - deixando subentendido, até pelo seu "tenho todo respeito aos políticos, mas...", seu desprezo pelos seus colegas de profissão. Se apresentou, portanto como anti-candidato, apesar de fazer parte de um partido tradicional.
Só o discurso de extrema-direita talvez o pusesse na disputa pelo segundo turno (quero acreditar que não), certamente não foi o que o elegeu. Entretanto, será utilizado ao extremo pelos golpistas (Temer, PSDB, judiciário, Grande Mídia): as urnas da maior cidade do país legitimaram que a política seja substituída por gestores e tecnocratas totalitários - ordem e progresso.
Contudo, o grande lance da equipe publicitária do publicitário-patrão foi o produto "Doria Jr-trabalhador", construção populista digna de Jânio Quadros, apesar da incompetência de Doria Jr para aparentar popular - que o diga suas fotos provando pastel e café, que logo sumiram, visto que a Grande Imprensa acatou as regras dos publicitários do candidato. Eu realmente não acreditava que um populismo tão tacanho ainda tivesse vez na política - pelo visto, nem seus adversários. Prova do quanto nossa educação é falha e sofrível - e olha que ainda nem implementaram o "escola sem partido" ou a MP do governo golpista - e o quanto a esquerda e os movimentos de massa descuidaram da formação política: milhões de pessoas caíram no conto do vigário em pleno século XXI! Quando falo da responsabilidade da esquerda em permitir que esse tipo de candidatura encontre eco na população, claro que não tem como não atribuir a maior responsabilidade ao PT, por ter sido pólo das esquerdas até aqui e por ter ocupado o governo federal por 14 anos: a inclusão social via consumo e não via cidadania política foi o tapete vermelho para que o discurso do self-made man cativasse o recém-formado pelo Prouni, o tercerizado que conseguiu comprar seu carro em 60 prestações (e agora nem pode andar como se fosse o dono da rua, porque o limite de velocidade é 50 Km/h), a dona-de-casa aflita com o desemprego do filho. À diferença de Russomano, que no início se pôs como uma pessoa do povo, como qualquer eleitor; Doria Jr afirmava que já fora do povo, mas que agora era um vencedor - tudo conseguido com o suor de seu rosto, trabalhador que começou do nada e venceu por mérito próprio -, e que faria de todo paulistano disposto a trabalhar um clone do líder. Ainda que esse engodo publicitário que bebe no populismo aparente maior dificuldade em ser rebatido - num estado que já elegeu Janio Quadros, Adhemar de Barros e Paulo Maluf -, não penso que seja tarefa árdua em ser desmontado, pelo mesmo motivo que Russomano caiu: por mais que se diga anti-político e abuse do discurso de ódio, estamos numa situação política em que ainda, para a maior parte da população, o candidato precisa apresentar propostas para a cidade - propostas políticas, portanto -, as quais necessariamente surgem (ou mostram que não existem) quando o candidato é confrontado (Doria Jr precisa agradecer Marta pelo último debate). Em um eventual eventual segundo turno Doria Jr precisaria inventar um quinto discurso para não perder para Haddad. Levantar esse "se houvesse" é importante para sublinhar que a "vitória acachapante" de Doria Jr foi acima de tudo fruto de saber usar as regras do jogo, e não de necessariamente da adesão ao neofascismo por 3 milhões de paulistanos. Outra coisa: Doria Jr tem respaldo popular menor que teve Haddad. Deixemos de lado votos úteis e pensemos no total de eleitores: os 53% de votos úteis de Doria Jr, pouco mais de 3 milhões de votos, significam pouco mais de um terço do total de eleitores; ao ser eleito, em 2012, Haddad teve o voto de quase 40% dos eleitores (300 mil votos a mais que o tucano, em um universo de 250 mil eleitores a menos).
Administração Doria Jr e as esquerdas e forças progressistas
No atual quadro de crise político-institucional, qualquer tentativa de palpite para os próximos quatro anos é muito arriscada: nem se sabe se teremos eleições em 2018. De qualquer modo, se Doria Jr puser em prática sua retórica anti-PT radical, de acabar com tudo o que cheire a esquerda, é capaz de voltar até com os Palacetes Prates. Não acredito em ataque tão radical, por uma questão de, caso haja eleições, é bom não se queimar totalmente com os eleitores - Doria Jr é acima de tudo político, sua atividade empresarial é fachada para contratos com o Estado. A escolha das ciclovias e da velocidade das marginais mostra que o tucano vai marcar seu anti-petismo em questões menores, no sentido de que envolvem menor conflito com interesses poderosos - ao menos assim aparentam. Não é por não ser radical que não deverá ser temerária sua gestão: a depender da proposta que o PSDB tem há tempos apresentado à nação, privatização dos espaços públicos, sucateamento dos serviços públicos, repressão aos opositores por parte da PM transformada em política política estadual, nortearão a administração pública, e só não avançaram a trote rápido se houver oposição na câmara e nas ruas.
Às forças progressistas e democráticas, não apenas de esquerda, urge se unirem, não apenas politicamente, mas em ações coordenadas para recuperar o terreno perdido pela Blietzkrieg midiática e golpista. Lideranças políticas, intelectuais comprometidos com valores como direitos humanos e democracia, movimentos sociais e pessoas avulsas, precisam criar uma contra-narrativa que dê conta de não haver mais golpes (de Estado ou eleitorais) comprados com tanta facilidade - a exemplo do pós-impeachment-golpe, o pós-eleição foi impressionante morno no centro de São Paulo, muitos poucos comentários -, e que torne a política novamente um valor positivo. Importante nessa tarefa: ativismo de internet serve para sabermos que não estamos sozinhos, mas tem pouco influência fora do círculo dos convertidos: é preciso, sim sair da zona de conforto do Fakebook e ir para o embate, para o diálogo, para o desgaste do cara-a-cara com pessoas que não pensam como nós (mas que pensam).
Uma faixa da população, os 2% de Major Olímpio, da SS, digo SD, e parte do eleitorado de João Doria Jr, parece estar condenada à vidiotia pelos próximos anos, completamente zumbizados pela narrativa de Globo, Veja, Folha e congêneres, e sobre ela, pouco há o que fazer, que não impedir seu crescimento; outra parcela, os que não votaram ou anularam, e muitos dos que votaram em Doria Jr, mostra que gostaria de acreditar na política como transformadora (para melhor) da sociedade, mas sucumbiu ao bombardeio midiático: trazer essas para a política, não apenas a eleitoral, mas a quotidiana: que a cidade (e o país) se faz no dia-a-dia por todos e não a cada quatro anos, ao delegar poderes a representantes que não as representam. Vale lembrar que a esquerda - no Brasil e alhures - se forja na resistência, nas disputas nas ruas pela inclusão dos excluídos. É preciso despertar o fazer político que a década de sonolência petista nos desacostumou - reabilitar o "nós" coletivo que Haddad e Erundina puseram na campanha.

03 de outubro de 2016.

Ainda não acredito que esse cara conseguiu se vender como trabalhador, que já foi do povo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pela aplicação da Lei de Talião no Brasil!

Não que o Brasil tenha sido algum dia um Estado Democrático e de Direito pleno - no máximo valeu para a parte rica e branca da população, hoje nem isso -, entretanto até 2015 mantinha-se as aparências, o que dava a esperança (pelo visto vã e ingênua) de que poderíamos caminhar para o que se chama de uma sociedade "civilizada", isto é, habitada por cidadãos e cidadãs com direitos civis e políticos garantidos, independente da sua condição. Tudo o que parecia sólido se desmancha no ar, e as ilusões perdidas sugerem que 2016 seja o ano da besta: golpe de Estado, encaminhamento para uma ditadura, discurso de ódio e incitação ao ódio em tempo integral nas concessões públicas de televisão (antigamente se restringia a certos programas) e na imprensa impressa (internet, sem empecilhos materiais, sempre foi espaço livre para o esgoto intelectual e político), políticos de extrema-direita com possibilidade de vitória em cidades importantes, e o show de horrores de judiciário: prisões arbitrárias, desrespeito à Constituição, crime lesa-pátria, torturas em Curitiba: vale qualquer coisa, desde que feita pelos amigos do rei contra o bode-expiatório eleito pelos donos do poder. Primeiro foi o colegiado do Tribunal Regional da Quarta Região legitimar o estado de exceção, ao dizer que tempos excepcionais exigem medidas excepcionais (de homens excepcionais, o senhor Adolf Moro?), ou seja, inventar leis retroativas conforme o arbítrio do juiz e seus pares, para que nelas se encaixem seus inimigos políticos, doravante podendo ser tratados por criminosos de crimes que inexistiam até o dia anterior. Agora é a vez do Tribunal de Justiça de São Paulo dizer que execuções extra-judiciais são legais - na política, o governador paulista Geraldo Alckmin é um dos grandes entusiastas dos assassinatos extra-judiciais praticados pela sua milícia política-militar -, ao anular o juri que condenou militares envolvidos na chacina de 111 (quem me conhece melhor sabe minha ojeriza a esse número) pessoas no Carandiru, em 1992 - e que respondem em liberdade, porque perigoso para a sociedade é petista, não assassino - os quais teriam cometido o assassinato em massa em "legítima defesa". "Tempos excepcionais exigem que se reescreva não apenas a história como os fatos", esqueceram de avisar o desembargador Ivan Sartori e seus pares. Nas redes sociais, "cidadãos de bem" e cristãos comemoram toda decisão que visa aniquilar pessoas que não concordam com suas posições ou não fazem parte do seu círculo próximo. Nada mais cristão, nada mais longe de Cristo - e depois torcem o nariz para Nietzsche quando ele disse que o último cristão morreu na cruz. Dostoiévski ironizava em O Grande Inquisidor, que se Cristo voltasse, morreria na fogueira. Hoje morreria apedrejado - que fogueira é coisa avançada para estes tempos. E não adiantaria Cristo dizer que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecado: nestes tempos, a primeira pedra há de ser atirada por um militar infiltrado - uma vez que pecado é algo individual, instituição ou ideal não pecam -, e as pedras seguintes estariam liberadas - não sei se era Cristo ou era do tempo, mas faltou malícia ao proto-hippie da era romana. E diante do Estado Democrático de Barbárie (com todo respeito aos bárbaros) que se instituiu nestes Tristes Trópicos, se torna cada vez mais necessário um movimento em defesa de avanços jurídicos mínimos: urge a implementação da Lei de Talião no Brasil, para garantir um mínimo de justiça à sociedade. Por exemplo: roubo de tênis ser punido com tênis, assassinato ser punido com morte, e não o inverso: roubo de tênis ser punido com morte e assassinato ser punido com tênis, a depender se o crime foi praticado por um preto pobre periférico ou um branco endinheirado. Reconheço, a Lei de Talião não me soa muito atrativa, mas direito romano é algo pra petralha e as regras que muito povos primevos seguiam nestas terras são desvalorizadas pelo simples fato de serem produto nacional - além de atéias -, e é preciso, diante desse estado de natureza hobbesiano que o judiciário tem implementado - a regra de todos contra todos -, algum código penal que forneçam um mínimo de eqüidade nas decisões de nossos divinos magistrados.

28 de setembro de 2016



quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Asco

Asco. Foi essa a sensação que me tomou ao ler a notícia da prisão de Guido Mantega, enquanto estava no hospital, acompanhando a cirurgia de sua mulher, em luta contra o câncer, por ordem do justiceiro Sérgio Moro. Houve quem falasse em "monstruosidade", outros em "desumanidade", eu realmente não sei como qualificar. O que Sérgio Moro fez foi deixar claro que tortura e atentado contra a vida são hoje expediente válidos no marco legal da justiça brasileira - indo além das torturas e assassinatos extra-judiciais das polícias militares, defendidas e estimuladas por políticos como Alckmin e criminosos televisivos como Datena. 
Não tive como não lembrar de meu pai, vitimado há menos de um ano pelo câncer, contra o qual lutou por seis anos. Quando a doença está estável, já é desgastante - mas convivível, meu pai soube seguir com a vida, a despeito da doença, e isso facilitava a vida de todos. Em momento críticos, como quando se é necessário recorrer a intervenções cirúrgicas, o desgaste aos próximos é difícil de ser descrito: rondam fantasmas mil, de se a cirurgia será bem-sucedida, se o pós-cirúrgico será tolerável, se depois disso tudo será possível retomar certa normalidade - e em caso de negativa a qualquer dessas interrogações, surgem mil outras de como será a vida a partir de então; tenta-se afogar toda possibilidade de pensar no pior, evita-se pensar no dia seguinte, porque é preciso sobreviver ao hoje, e isso, que costuma ser básico, é de uma incerteza angustiante nessas situações. Ao enfermo, a presença das pessoas queridas junto a ele ajuda na recuperação - ou numa partida mais tranqüila.
Sérgio Moro talvez nunca tenha sofrido a perda de alguém muito próximo - ou pode ser que seja um psicopata ou perverso a quem a vida do Outro, não importa quem, nada vale -, daí não conseguir se condoer do drama de Mantega, mas um mínimo de conhecimento - e isso seria de imaginar de alguém que passou em concurso para juiz - permite saber que o que ele está fazendo é atentar contra a vida de Eliane. Lembro de relatos da ditadura de Franco, na Espanha, em que era comum a prisão de casal e filhos e fazer um revezamento de tortura entre a família, de modo a tornar a coisa um pouco mais cruel. Discretamente, porém com pleno conhecimento do que faz, Moro aplica (também) esses métodos da ditadura franquista no Brasil - já o tem feito com a perseguição a familiares de Lula, agora deixa claro que não há qualquer comprometimento com a vida das "pessoas do mal" em sua sana persecutória.
A Polícia Federal deu sua contribuição ao triste quadro que remete aos tempos de recrudescimento nazista, ao cumprir a ordem judicial - dizer que foi "infeliz coincidência" é uma hipocrisia cretina: pessoas não vão ao hospital para se divertir, e os policiais sabem que o Hospital Albert Einstein é um hospital, como diz o nome, e não um cassino ilegal. Um dos procuradores da república de Curitiba defendeu a ação, dizendo que “não há como não cumprir uma ordem judicial”: a velha escusa nazista da ordem burocrática para realizar qual atrocidade for sem se comprometer: só cumpriam ordens. Vale lembrar que não são poucos os casos de militares (MILITARES) israelenses que se recusam a cumprir ordem de ataque contra palestinos - isso traz sanções, é certo, entretanto mostra que é possível descumprir qual ordem for (não estando num estado de terror), basta um mínimo de consciência e de empatia humana com o Outro. Ou, para ficar nos termos que os nazi-golpistas tanto gostam: basta ter um mínimo de ética e da moral cristã.
Ao fim, o efeito mais provável de mais essa arbitrariedade de Sérgio Moro é aumentar a espiral de ódio que envenena o país desde 2014 de maneira intensiva (e eu lembro do desenho de uma criança com discurso de ódio à Dilma, Lula e ao PT, aceito pela escola e louvado pela mãe). O desejo de que realmente ocorra algo próximo de uma guerra civil, anunciada por Requião na farsa do impeachment, parece nortear as ações dos golpistas: um estado de sítio serviria para legitimar o estado de exceção em que vivemos, as arbitrariedades em nome não mais do combate à corrupção, e sim da ordem e da segurança pública. Com seguranças, bons salários, status de heróis nacional, e nenhum poder a contrapô-los, justiceiro Moro e seus capangas do MPF e PF (a serviço dos donos do dinheiro) se divertem com a vida de milhões de brasileiros comuns.
Infelizmente, diante de tudo o que tem acontecido nos últimos tempos no país (a favelização geral do Brasil, ou seja, uma terra sem lei em que vale o desejo do mais forte, o arbítrio da autoridade sádico-estatal, e a vida humana nada vale [http://bit.ly/cG160313]) também eu me vejo sendo tragado pela espiral do ódio. Socorro!
Em tempo: In Nomine Dei. Ou alguém bota um cabresto em Moro, Dallagnol e cia, ou logo o Brasil viverá as cenas de Münster recriadas por Saramago.

22 de setembro de 2016

ps: leio que Moro revogou a prisão. Hipócrita. Não o fez por qualquer respeito a Mantega e sua companheira, e sim porque isso pegou muito mal à sua imagem.