quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Duas perdas, um livro, Joaquim [memórias feitas de saudades] [saudades feitas de afetos]

Sonhei alguma coisa hoje, não sei o que. Lembrava quando acordei para ir ao banheiro, sete da manhã - esqueci ao voltar a dormir. (Talvez devesse ter escrito). Não sei sequer se foi um sonho bom ou ruim - não havia esse retrogosto do inconsciente, que não raro é tudo o que me sobra dos embalos de Morfeu. Acordei indiferente - no embotamento dos dias que a vida tem me imposto, como recurso para viver sem capitular. Não lamento, sei que é passageiro, sei que é da vida, mas dói ausências tamanhas: quando finalmente conseguia recompor as cores perdidas com a sua partida, uma nova perda - ainda maior - empalidece tudo ao meu redor. Não tenho mais duas das pessoas mais queridas - e além do mais, meus maiores leitores, você e meu pai. (E escrever, desde então, se parece ainda mais à condenação de Sísifo, que cumpro não só por ser obrigado, mas por não vislumbrar outra alternativa para seguir vivo). Cheguei a pensar que havia sonhado contigo, por estar hoje pensando em você mais que de costume. Logo vi que era besteira: penso em você todos os dias, ainda mais nestes em que me vejo em pontos críticos da vida. Faz falta sua presença, um abraço seu; faz falta também as muitas conversas com meu pai, sobre política e sobre a vida - hoje vi que a forma como às vezes chamo Mafalda e Guile é tal qual meu pai chamava as cachorras de casa (sua Pitocuda, dado o pitoco de rabo que deixaram na Tandi). O que me faz pensar mais em você hoje não foi sonho algum, é o amanhã - dia 25 de fevereiro de 2016, uma data sem maiores significados até 2015. Amanhã talvez eu conheça, finalmente, Joaquim. Joaquim era seu colega-amigo que você lamentava ter nascido uma geração depois, pois queria ele para seu marido. Joaquim foi também o protagonista do primeiro sonho em que sonhei sua ausência - numa mistura de personagens que povoavam suas histórias e minha imaginação -, dez dias depois daquele dia em que permaneço esperando seu retorno à casa 128, na Penha. Era o fim de um mundo tal como eu conhecia (e eu não me sentia bem) - como tampouco me senti bem com o fim de toda uma via láctea da minha existência, em novembro. (E me pergunto agora: quem vai ler isto tão logo eu publique e fazer eventuais correções de português ou apontar trechos confusos num email direto e carinhoso?). Entretanto, o fim do mundo, descubro, não é a extinção de tudo, o nada - é um renascer confuso, que é acompanhado de outras perdas e novidades insondáveis até então. Conhecer Joaquim de carne e osso, nunca tinha me passado pela cabeça - ele era um personagem seu, que coloria seus dias e animava os meus por tabela. Pelo Fake, ele falou que tentaria aparecer no lançamento do livro com minhas crônicas em diálogo com você. Meu primeiro livro, por conta da minha procrastinação crônica não será Passageiro. Diário de João, e sim [memórias feitas de saudades]. De algum modo estou contente em lançá-lo, de iniciar esta nova fase com uma homenagem à você - por mais que a matéria com que foi feito ainda faça doer meu peito. Olho para aquele mundo que não existe mais, percebo o quanto ainda respiro dele (e, sim, me sinto bem). Amanhã conhecerei Joaquim e este texto não entrará no livro: porque nele não coube tudo o que você significou para mim.
(Que meu pai tenha te dado o abraço que pedi).

24 de fevereiro de 2016.


PS: sobre o lançamento: http://j.mp/livromfs

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Câmara de Deputados 2016: a casa do clichê e da desilusão

Leio no portal da Câmara dos Deputados entrevistas com os líderes dos partidos na casa. Nossa legislação, ao não ter uma cláusula de barreira, permite a bizarrice de partidos sem expressividade e sem qualquer ideologia tenham direito a líder de bancada e toda as vantagens com apenas cinco deputados - parece até propaganda de aparelho de exercício mágico da década de 1990. As breves entrevistas das lideranças são feitas basicamente de clichês sobre tópicos postos pelo governo e ecoados pela Grande Imprensa, já na primeira pergunta, "Quais serão as prioridades da sua bancada em 2016?": ajuste fiscal, reforma da previdência, reforma (sic) tributária, recriação da CPMF, desvinculação das receitas da união (DRU), agenda positiva, crise, impeachment da presidenta da República ou do presidente do congresso. A principal variação é se o discurso fala em "direitos" ou "impostos", o que distinguiria um partido mais à esquerda de outro, mais à direita. No fim, pobreza de idéias e a subordinação extrema ao poder executivo e à Globo e afins impera - incluo aqui o necessário impeachment de Eduardo Cunha, ele próprio já rebaixa a Câmara.
O discurso do líder do PSC, André Moura, parece ser press release da Globo, da Veja ou da Folha. O PSD, fiel à sua filosofia de não ser nem de esquerda, nem de direita, nem de centro, nem a favor, nem contra, produz três parágrafos para não dizer nada. De diferente, apenas a fala de Sarney Filho, líder do PV, sobre a prioridade do partido à caça ao Aedes aegypti; e de Ivan Valente, do PSOL, que lembrou a necessidade de reverter a marcha para o obscurantismo posta em movimento acelerado desde a eleição de Eduardo Cunha. O PPS, partido satélite do PSDB e cada vez mais próximo da extrema direita reproduz o discurso das pessoas felizes comentada pelo historiador Leandro Karnal [http://j.mp/1KEN9hl], pessoas que substituíram cultos como do Papai Noel e do Coelhinho, pelo culto da corrupção isolada: "A crise brasileira, seja econômica, política, social, tem um nome: Dilma Rousseff".

Enfim, me centro na entrevista do deputado baiano Antonio Imbassahy, líder da principal força de oposição partidária ao governo federal, o PSDB. Sem reproduzir o Febeapá dos populares socialistas, ele diz logo a que veio o partido: "trabalhar o impeachment, o afastamento da presidente Dilma a partir de uma convicção de todo o PSDB, das oposições e da maioria esmagadora da população, que com Dilma no Palácio do Planalto o Brasil só vai piorar ainda mais (...). Ela cometeu crime de responsabilidade e, portanto, numa democracia, tem que ser afastada". Mais interessante contudo, é o que ele não diz: que o que anima o partido é unicamente o poder: não possui um projeto alternativo a ser contraposto - seja econômico, político ou para a Câmara dos Deputados, já que ele fala em corrupção -, não fala em transformar o Brasil no paraíso, como Rubens Bueno, nada: fala em disputar a chave do cofre. Inclusive, diz no fim da entrevista: "não dá para o governo federal ficar com essa montanha de dinheiro e essa corrupção exagerada", sem dúvida uma idéia bastante Veja (ou rasa, se preferir) do uso do dinheiro público: ficar com o governo federal, como se esse dinheiro não fosse gasto no custeio da máquina pública, pagando professores, médicos, agentes de controle de epidemias, reforma de estradas, etc. O dinheiro público, montanha ou montinho, não deve ficar em lugar nenhum: deve voltar à população. Teria sido um ato falho, que indica a visão de partido de butim estatal que o PSDB possui?

Não há como não lembrar das manifestações de junho de 2013: grande parte dos analistas atribuiu as manifestações a uma crise de representação política. Essa crise continua e os atuais partidos nada fazem para tentar alterar sua relação com a sociedade e com os poderes. Uma parte dos desiludidos foi facilmente cooptada pelos movimentos das pessoas felizes, encabeçada pela lastimável figura de Jair Bolsonado e logo seguida pelo PSDB de Aécio Neves, José Serra, Aloysio Nunes Ferreira e Geraldo Alckmin. Outra parte segue à deriva, em busca de um modus operandi político que fuja da burocratização, do ativismo binário, da briga pelo poder ser anterior à briga pelos ideais. Essa parte aderiu ao PT na última eleição por medo de retrocesso e não por acreditar no partido: ela segue em busca e, mais importante, começa a se articular na construção de alternativas - o partido RAiZ Movimento Cidadanista, da deputada Luiza Erundina, tem se mostrado como a principal aposta daqueles que crêem em um outro mundo possível, feito de uma outra forma de política, de uma outra forma de se pôr na sociedade; todos ganhamos se a aposta se mostrar frutífera.

22 de fevereiro de 2016

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Das pequenas esperanças

Se há um lugar de onde não espero notícia boa é da região da Palestina (e falo aqui em toda a conflituosa área do chamado Oriente Médio, e não apenas às partes que cabem ou caberiam aos árabes). Tem momentos que me parece que a única solução possível para o conflito entre judeus e muçulmanos que disputam o espaço seja esvaziar a área e usá-la para acabar com o armamento atômico do mundo, inutilizando aquelas históricas e sagradas areias por uns cinco milênios. Por exemplo: quando leio a notícia de que Isaac Herzog, líder do Partido Trabalhista israelense, em tese menos de direita que o fascista Likud, do atual premiê Benjamin Netanyahu, defende políticas dignas da África do Sul do apartheid, sacramentando muçulmanos como sub-cidadãos (e mesmo sub-humanos), estimulando a segregação e o ódio, com propostas em pé de igualdade com os vergonhosos bantustões sul-africanos. Isso para não falar nas notícias quotidianas - que resisto a considerá-las banais - de assassinatos de pessoas muçulmanos pelo exército de Israel.
Mas leio no Al Jazeera do dia 12 de fevereiro uma notícia que dá um pequeno sopro de esperança. Não chega sequer a ser uma boa notícia, mas mostra que, apesar de minoria, há judeus que acreditam que a convivência com muçulmanos não só é possível como necessária, e vice-versa. Em tempo: sou da opinião que a paz, lá ou onde for, só pode ser alcançada a partir da igualdade de direitos e oportunidades (o que pode implicar, sem problemas, em tratamento desigual para os desiguais) e da convivência entre os diferentes.
Em Israel há quatro tipos de escolas: uma para judeus ortodoxos, uma para judeus não-ortodoxos, uma para cristãos e outra para muçulmanos. Não é preciso ser muito esperto para saber que o nível de cada tipo de escola decai, conforme vai das para ortodoxos até as para muçulmanos. Pior: seguem a lógica que aqui no Brasil pensadores tem denominado de "lógica do condomínio", em que a segregação entre os diferentes permite que o Outro, desconhecido, possa ser pintado como monstro pelos líderes políticos, sem que haja possibilidade de contrapôr essa visão com a realidade. A convivência gera atritos e busca de entendimentos, a segregação, ódio e a violência.
A reportagem toma como exemplo uma escola pré-escolar de Jaffa, com 140 alunos. Ao todo são doze escolas do tipo em todo o território israelense, administradas pela organização Hand in Hand. Nela não há segregação entre judeus, católicos e islâmicos: Isaac e Mohamed podem até brigar - afinal, crianças brigam -, mas logo a seguir voltam a ser amigas, A expectativa é que no futuro, já adultos, por mais que Isaac e Mohamed não concordem, isso não tenha como conseqüência o ódio e o desejo de aniquilação do outro, mas sim a discordância dentro de limites aceitáveis e saudáveis
Na entrevista, uma das fundadoras da Hand in Hand, Nadia Kinani, reclama que os pais precisam enfrentar o aparto estatal para poderem educar seus filhos fora dos padrões impostos pelo governo - isso porque a escola segue o calendário de festas judaicas e não foi autorizada a liberar seus alunos muçulmanos para o feriado do Dia do Sacrifício (Eid al-Adha). Illan Grosman, cujo filho estuda na escola, reclama: "queremos uma escola igualitária, com direitos iguais para todos - judeus e árabes -, não uma escola judaica em que palestino não se sentem confortáveis".
Como disse, é o exemplo de uma escola de jardim-da-infância, com 140 alunos, que deve ter influência direta sobre 500 pessoas, entre pais, irmãos, tios, professores - em uma população de 55 mil almas. Uma visão mais fria e realista vai dizer que uma iniciativa como essa - ainda mais com toda a resistência por parte da maioria da população e do poder estatal - não permite ter esperança. Mas tantas vezes a história viu a realidade sucumbir a idealismos postos em prática, que prefiro acreditar que num futuro - não tão distante, espero -, os cidadãos saídos de escolas como as da Hand in Hand consigam construir um país e não um território em guerra total.

17 de fevereiro de 2016

Reportagem: http://j.mp/1OgtsHm

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Eleições 2016 em São Paulo: porque Haddad é favorito

Boa parte das análises que li sobre a disputa eleitoral para a principal cidade do país entoam um réquiem para o atual prefeito, Fernando Haddad. Como embasamento para essa visão, as pesquisas sobre a aprovação e reprovação do prefeito, e umas poucas sobre intenção de voto. Ainda que não considere descartáveis pesquisas de opinião, não me fio muito nelas, visto que Ibope, Datafolha, Vox Populi são especialistas em cometer erros retumbantes a cada eleição [http://j.mp/cG151010e], erros que nada têm de inocente.
Recentemente, o Ibope divulgou uma pesquisa, feita em fins de 2015, com a avaliação dos paulistanos sobre seu prefeito: apenas 13% aprovam sua gestam, com 56% de desaprovação [http://j.mp/20laEzr]. Índice que se aproxima dos apontados pelo Datafolha, em novembro do ano passado [http://j.mp/1TgGJqg]. Em comum aos dois institutos, o movimento de queda da aprovação e aumento da rejeição ao longo de 2015. Sobre intenção de voto, pelo Datafolha de novembro, Haddad estava tecnicamente empatado com Datena (PP) e Marta (PMDB) na segunda colocação, atrás de Russomano (PRB).
A despeito desses números, sigo acreditando que Haddad é o candidato com mais chances de vitória no pleito do segundo semestre, por mais que seu favoritismo seja muito tênue. Me explico.

Os opositores à direita
O PSDB, principalmente o de São Paulo, é a incompetência em partido: desde 2000, só duas vezes o partido teve outro nome que não Serra ou Alckmin em uma eleição majoritária, seja para prefeitura, governo estadual ou senado: nas disputas para o senado de 2002 e 2010, com José Aníbal e Aloysio Nunes Ferreira, quando eram duas as vagas em disputa [http://j.mp/cG150105ms]. Diante da falta de nomes novos de conhecimento público, o partido deverá ser figurante: pode no máximo lançar um candidato com vistas a 2018 ou 2020. Outra opção é a de assumir o papel de legenda de apoio, mantendo o discurso anti-PT, para depois negociar cargos. Uma escolha interessante - não apenas para a disputa como para o próprio partido - essa sobre qual linha o candidato tucano assumirá: se vai manter a retórica raivosa de direita, beirando o extremismo, ou vai tentar se construir com um discurso mais ponderado, buscando o centro, a centro-direita - mais próximo do modelo do "catch-all-party" da ciência política. Pode ser uma verdadeira refundação do partido, ou selar o seu fim enquanto opção política democrática para o país (João Dória seria a assunção do papel de legenda proto-fascista, a espera de Luciano Huck para presidente).
Datena desistiu de seu sonho político, e isso tende a favorecer Russomano. Ambos corriam na mesma raia, a de uma classe-média amedrontada com a possibilidade de perder o que conseguiu a duras penas (dizem). Uma classe-média (que vai da baixa à alta-classe-média) sem qualquer formação política - apesar da sua formação superior -, que entende cidadania como direito do consumidor, e defende a ordem e o progresso - na base do pau-de-arara, se for o caso. Datena seria o legítimo cadidato do público do "bandido bom é bandido morto", enquanto Russomano se vende como tendo o perfil de síndico de condomínio, que chama todos à ordem antes de chamar os militares (da polícia ou do exército), defensor do cidadão-consumidor pagador de impostos. Um PSDB desesperado pode tentar buscar os órfãos do Datena; se não o fizer, eles tendem a votar em Russomano, que deve vencer o primeiro turno - até pelo período mais estreito de propaganda política na televisão. A questão é se o candidato do PRB tem fôlego para um segundo turno. Em 2012, tão logo o candidato-sabonete do partido da Igreja Universal resolveu fazer uma proposta política, definhou espetacularmente. O PSDB pode ser seu fiador num segundo turno - mas isso não somaria muito, visto que essa seria a tendência natural dos atuais eleitores tucanos, movidos antes pelo ódio ao PT do que por alguma causa positiva.
Marco Feliciano, pelo PSC, ameaça disputar. Seria interessante ele como candidato, pois se trata de um nome de projeção nacional (graças ao PT!) que apresenta de forma crua o reacionarismo mais perigoso - sua candidatura poderia dar uma dimensão do tamanho da extrema-direita de maior pureza na principal cidade do país. Poucas chances teria, sua candidatura seria mais para ventilar seu nome para o governo do estado, daqui dois anos. Russomano agradece se ele ficar por Brasília.

A oposição com histórico à esquerda
Marta Suplicy deverá disputar com Haddad a segunda vaga para o segundo turno até o último minuto. Política que, a exemplo de José Serra, tem um projeto pessoal (e personalista) de poder, ganhou guarida no PMDB de Temer, Skaf e Chalita, e já demonstrou, em 2008, ao questionar a orientação sexual de Kassab, que não tem peias éticas para alcançar seus objetivos. A grande incógnita que a cerca é o tamanho de seu capital político na periferia paulistana: quanto é dela, quanto é do PT. É isso que vai fazer a diferença - tanto para concorrer pelo PMDB quanto para chegar ao segundo turno. Apesar de ter saído do PT - mais que isso, ter aderido ao discurso de ódio contra o partido -, ela segue como uma petista aos olhos de muitos anti-petistas, que só ousariam votar nela se com isso pudesse tirar o prefeito do segundo turno - ainda assim, é possível que muitos prefiram Haddad à "Martaxa". 
Apesar de ignorado pela Grande Imprensa corporativa, o PSOL é um coadjuvante que não pode ser ignorado. A princípio sem chances de vitória, deve cumprir seu habitual papel de "grilo falante", ser o contraponto às direitas, puxando o debate pelo menos um pouco para a esquerda. Se conseguir politizar o debate, pode ajudar a desidratar candidatos-sabonete ou candidatas-vira-casaca, mas pode também salientar contradições da administração Haddad, a ponto tirá-lo do segundo turno. 
Os demais candidatos, por PHS, Rede, PV, PTB, PDS PSDC, PPS tendem a fazer papel de legenda de apoio do candidato à direita mais bem posicionado.

São Paulo imprevisível
Ao prefeito, enfim! 
São Paulo é uma cidade politicamente traiçoeira: concentra as contradições destes Tristes Trópicos e as põe de modo muito afloradas: de um lado, uma classe-média numerosa e retrógrada, de outro, uma periferia politicamente ativa e relevante. Essa polarização é também visível espacialmente, nos dados sobre os votos em cada bairro da cidade: o centro costuma dar a maioria de seus votos ao PSDB, a periferia, ao PT. E, diante das questões da urbe, invariavelmente alguma significativa parcela da população precisa ser desagradada, para a implementação de políticas públicas.
Haddad tentou quebrar essa polarização, e sua bandeira mais vistosa é a prova dessa tentativa: as ciclovias atendem aos anseios de uma população jovem e descolada, de bom poder aquisitivo e viajada pelas principais cidades européias; ao mesmo tempo, atende também a uma população mais carente, que usa a bicicleta como principal meio de locomoção, principalmente por conta da questão econômica. Ocorre que só ciclovia não vence eleição. A equipe de Haddad sabe disso. Durante seu mandato, o prefeito investiu menos em propaganda institucional e mais em publicidade via redes sociais, nas quais foi vendida a imagem de um prefeito jovem e moderno - que toca guitarra e anda de bicicleta -,  sensível aos problemas "micropolíticos" e defensor das minorias - abordagem não-repressiva dos usuários de droga e ações afirmativas para os transexuais -, engraçado e crítico - que teve na página Haddad Tranqüilão sua principal ferramenta. Pelas pesquisas, o uso intensivo da internet e das redes sociais não teve maiores efeitos na sua popularidade, mas, como dito, não me fio tanto nelas.

A oposição da Grande Mídia
A despeito de tudo o que foi dito acima, o principal problema de Haddad até a eleição - que vem desde que assumiu - será a voracidade da Grande Imprensa corporativa, em seu ódio extremista contra o PT. Não seria problema se a democracia, para além do voto regular, estivesse consolidada no país. Entretanto, a concentração da mídia é uma afronta direta à democracia - curiosamente, desde que a sociedade civil começou a questionar o oligopólio das concessões estatais de rádio e tevê, a imprensa parou de se afirmar como "quarto poder", por mais que não tenha deixa-do de sê-lo. São dois os pontos pelos quais a Grande Imprensa tenta abater o político: na sua relação com a esquerda e na sua capacidade de administração.
Muita coisa ainda está por acontecer até outubro, e Haddad sabe que o caminho é escorregadio. Seu problema mais premente são as manifestações do Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento das tarifas do transporte público. Depois de 2013, em que o problema municipal e estadual atingiu o governo federal, todo cuidado é pouco. Ao compartilhar o poder com o governador Geraldo Alckmin, do PSDB, político afeito aos direitos humanos da época da ditadura militar - bate, mata, depois pergunta -, a chance de Haddad ser posto como conivente com essa forma de tratar os movimentos sociais é grande, o que o desgastaria com setores de esquerda. Por outro lado, diante da lógica binária que impera em boa parte da sociedade - e principalmente na Grand Imprensa -, defender o direito de manifestação pode ser noticiado como "apologia à baderna", e afungentar um eventual eleitorado conservador de direita não extremista (eu acredito em conservadores de esquerda). Por enquanto ele tem se saído relativamente bem - em termos de marketing político -, ao fazer discurso de governante responsável, e que não pode aumentar os subsídios, pois teria que tirar de outro lugar. Setores à esquerda - como a urbanista Raquel Rolnik ou a ex-prefeita Luíza Erundina - dizem que se trata de uma falácia, pois haveria formas de financiar maiores subsídios no transporte público, a exemplo do que ocorre em outros países do mundo; a Grande Imprensa, agindo como grande partido de oposição ao PT, não perde a chance de fustigar o prefeito, como o portal El País, ao estampar como manchete "Luíza Erundina: 'Haddad não está resolvendo as coisas só porque faz ciclovias'", numa chamada bastante traiçoeira [http://j.mp/1KQ1GGS]. A esquerda não se equivoca em criticar - não deve se calar, como defendem muitos petistas -, contudo precisa ter mais cuidado com os termos e os veículos usados - a direita está pronta para deturpar qualquer frase minimamente dúbia.
Outro ponto fraco do atual prefeito é ser do Partido dos Trabalhadores, depois de todo o processo a la Goebbels de desgaste que a mídia tem impingido ao partido nos últimos doze anos - mensalão, Petrobrás, merenda escolar, palestras no exterior, dinheiro de empresas privadas e públicas para o Instituto FHC, trensalão, nenhum dos casos de corrupção perpetrado por políticos do PSDB mereceu manchete e reportagens intensivas -, não apenas cresceu o anti-petismo, que já era forte em São Paulo, como muitos se desiludiram com o partido - de início por conta da guinada à direita do partido, ultimamente por conta da propaganda da mídia. Ser do PT será usado à exaustão contra o candidato. Entretanto, Haddad tem conseguido ser um novo Suplicy (o Eduardo), ou seja, aparece como estando além do partido, consegue cativar eleitores que não simpatizam e até mesmo odeiam o partido - vale lembrar que Suplicy foi senador por três mandatos, vinte e quatro anos, perdendo em 2014 para José Serra, em uma campanha que apelava para a defesa do "orgulho paulista", num bairrismo vergonhosa e perigosamente tacanho.

Muito por mostrar
Ao começar o período de propaganda eleitoral, Haddad usará de estratégia de marketing mais convencional, enfatizando suas realizações nos seus quase quatro anos de mandato - muitas incorporadas ao dia-a-dia do paulistano que soa estranho pensar que há três anos não havia. São ações que favoreceram tanto o centro quanto as periferias, muitas de baixo custo e alto impacto. Alguns exemplos: os corredores de ônibus, a redução da velocidade nas marginais, que melhorou a fluência do trânsito; o bilhete único temporal, que foi imitado a seguir pelo governo estadual; o fim dos incêndios em favelas, formas alternativas e mais eficientes de abordar o problema de drogas na região central da cidade, assim como menor truculência ao lidar com moradores de rua e vendedores ilegais (ainda que o rapa siga acontecendo, como denuncia diariamente a Pastoral de Rua), um melhor uso dos espaços públicos, com fechamento de ruas aos domingos, sendo a avenida Paulista o grande exemplo.

Concluo reafirmando o que disse no início: Haddad é favorito para vencer as eleições de outubro. Seu favoritismo é pequeno, todos os seus atos serão seguidos de perto pela Grande Imprensa, afoita em noticiar qualquer deslize. Não apenas isso: muito provavelmente ouviremos até primeiro de outubro, véspera do primeiro turno, que Haddad está enfraquecido e dificilmente conseguirá vencer o pleito. Político hábil (nomear Chalita para a pasta de educação foi um belo golpe político), com uma equipe de marketing que parece ter uma estratégia clara de "fidelização" do eleitorado, e várias realizações efetivadas e não divulgadas pela imprensa, uma vitória de Haddad só será surpresa àqueles que observam o mundo pelos olhos de Veja, Globo, Folha e afins.

1 de fevereiro de 2016