quarta-feira, 30 de março de 2016

O pedido de Moro pode ser um exemplo para o Brasil [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Desconfio que se Sérgio Porto ainda estivesse entre nós, estaria deprimido com as pérolas que o golpe atual nos presenteia em incessante e extenuante atualização. O humorista carioca veria que bons tempos os de Febeapá diante destes de Fakebook - perto de hoje, o nível dos golpistas e dos debatedores da década de 1960 era um primor. Quem dera que aqueles que hoje praticam diariamente para se tornarem os censores do amanhã - ou os dedo-duros, porque vai faltar vaga -, mandassem prender Eurípides por subversão e comunismo, a despeito de o dramaturgo grego ter conhecido a morte num tempo em que não lhe restava outra alternativa que o primeiro círculo do Inferno (por sinal, quando eu morrer me enviem para lá, por favor); ou então que nobres deputadores propusessem o "dia da avó", já que ninguém lembra dessa figura tão importante nas famílias - assim como o deputado não lembrava que pra ser avó é preciso antes ser mãe. Em 1960 ainda havia os Vietcongs, Cuba e a Rússia para chamar de comunistas, hoje até o presidente dos Estados Unidos vai para Cuba, e aqui só não recriaram o Comando de Caça aos Comunistas porque a Grande Imprensa assumiu o papel de comandante em chefe das proto-milícias brasileiras. 
Tem horas - e não são poucas - que se torna difícil, quase impossível fazer piada com o que temos hoje. Não dá pra fazer piada com policial militar de Geraldo Alckmin espirrar spray de pimenta nos olhos de crianças, em uma operação de reintegração de posse; ou quando um nobre deputado diz que sua colega deveria ser estuprada. Lacerda substituído por Serra, Carpeaux por Olavo de Carvalho (ou seus discípulos), Cony por Sardenberg (atenção para o nível do Cony: dá pra descer sempre!), Nelson Rodrigues por Suzana Vieira. Nessas horas me lembro da frase no final do filme Apocalipse Now, do Coppola: "o horror" - em minúsculas, sem destaque, porque banal.
O que teria alguma graça se mostra repetitivo. E eu mesmo, se não me repito aqui, repito sei lá quantas milhões de pessoas. Mas estou insone e quero escrever.
Pulo eventos já batidos, como os intelequituais do Ministério Público da SS, digo, de SP, que citam Nietzche, Marx e Hegel; pulo suborno feito com pedalinhos, patos de borracha protegidos pela Polícia Militar, ou o Estadão se perdendo da história e achando que o golpe já se consumou, defendendo punição para Boulos, do MTST, por ter cometido o crime de dizer que os movimentos sociais reagirão nas ruas se o golpe se consumar, enquanto eles e seus comparsas estimularem neofascistas a agredirem todo mundo que não babe e não não-pense como eles é democrático.
Por falar nisso, depois que neofascistas alimentados a FGV (Folha Globo e Veja) provaram ser tão democráticos quanto a PM em suas agressões aos inimigos da ordem, batendo em mulher, bicicleta, criança e cachorro, só por usarem vermelho, desconfio que muitos dos moradores dos Jardins tem evitado seus passeios pela rodovia Bandeirantes aos domingos, amedrontados em serem acusados de comunistas e apedrejados por estarem em um carro vermelho, pouco importa que seja uma Ferrari. Mesmo os fãs de Coca-Cola sabem que correm perigo - eu, se tomasse refrigerante, só tomaria guaraná por uns tempos.
Dom Odílio que o diga, agredido dentro da Catedral da Sé, durante uma missa, na semana de páscoa, por uma fiel católica, acusado de comunista. Ainda bem que João Paulo II morreu, ou era outro que corria o risco de ser agredido por ser comunista. Papa Francisco? E desde quando há papa em exercício?
Do outro lado, vejo no Fakebook do Xico Sá uma entrevista com o professor Vladimir Safatle, em que ele condena o golpe de Estado. Cometo o erro de ler alguns comentários. Não preciso ir longe para saber que eis aí outro petista - óbvio!
Na verdade, começo a elaborar uma teoria: a água do volume morto do Cantareira tinha algum alucinógeno e não foi avisado à população (ó, que novidade). Reparem: o pessoal que protesta é aquele que teve água durante todo o tempo de racionamento, digo, subtração hídrica, que só atingiu periferias pobres: foi água alucinógena demais para gente careta e medrosa além da conta, e agora estão vendo de tudo, de comunistas comedores de criancinhas a criancinhas comedoras de burgueses; alguns chegam a jurar que o pato de borracha da Fiesp é a forma pós-moderna do robô dos Changerman, que vieram para nos salvar das ciclovias assassians. Nesse grau de alucinação todo mundo é tudo: Aécio é esquerdista, Lula é ladrão, Serra é porta-voz do governo, Gilmar Mendes é juiz do STF, Boulos é terrorista, Jabor é formador de opinião, a Globo é democrática, Bonner é jornalista, e eu mesmo descobri ontem que sou filho legítimo do Mao Tse Tung com a Brigitte Bardot (sempre desconfiei que houvesse um puxado em meus olhos). Enfim, um verdadeiro festival de non-sense e absurdidades constrangedoras.
Avisei o Xico Sá, ele que se cuide, pois logo será acusado de ateísta evangélico petista de extrema direita careta e drogado que defende o aborto por ter amigo gay e usar camisa amarela num domingo de sol. Como resposta, um simpático usuário involuntário de LSD perguntou como eu classificaria quem ocupa o poder federal atualmente. Pois respondo (aqui, porque no Fake descobri as maravilhas do botão bloquear) usando de literatura: quem ocupa o Palácio do Planato pode ser chamado de: Coisa-Ruim, Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Diá, o Dito Cujo, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-Sei-Que-Diga, O-Que-Nunca-Se-Ri, o Sem-Gracejos, o Muito-Sério, o Sempre-Sério, o  Austero (não, esse não, se fosse Austero de verdade seria enviado divino), o Severo-Mor, o Romãozinho, Dião, Dianho, o Pai-da-Mentira, o Pai-do-Mal, o Maligno, o Tendeiro, o Mafarro, o Manfarri, o Capeta, o Capiroto, o Das Trevas, o Bode-Preto, o Morcego, o Xu, o Dê, o Dado, o Danado, o Danador, o Diacho, o Rei-Diabo, Demonião, Barzabu, Lúcifer, Satanás, Satanazin, Satanão, o Dos-Fins, o Solto-Eu, o Outro, e por aí vai.
O mais novo absurdo non-sense vem do justiceiro Moro. Inspirado pela repercussão da cartinha do Temer pro Papai Noel, ele escreveu pros chefes do STF, pedindo "respeitosas escusas" por ter desrespeitado, escarrado e feito troça das leis e da Constituição Federal. Na verdade, está com medo de perder o palquinho na Globo e ser obrigado a ganhar seu salário sem trabalhar - o que lhe corta eventuais lucros adicionais de seus atos. Por falar em Globo, os Marinhos tiveram a indecência pornográfica de citar partes da carta em pleno Jornal Nacional, isto é, em horário com crianças na sala e tudo o mais. Até Maluf deve ter ficado constrangido com as "desculpas" do justiceiro da província paranaense, recitadas na hora da janta. Nela, o pueril Moro, dentre outras coisas, se diz surpreso que a revelação de conversas íntimas e irrelevantes de Lula em edições tendenciosas por seus chefes (e ele poderia falar também da prisão, na sexta, dia 04 de março), "possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários", e que "jamais foi a intenção desse julgador (...) provocar tais efeitos", assim como negou que tivesse o intuito de “gerar fato político-partidário, polêmicas ou conflitos”. Isso desde sempre foi óbvio. Assim como a vez que dei uns socos no meu colega de sexta série e fui pra diretoria, também disse que nunca imaginei que iria causar tais efeitos, e que não era minha intenção gerar qualquer conflito, eu apenas liberava ATP de uma maneira intensa e sem querer tinha a cara do amiguinho Rafael na frente - tia Iria, claro, aceitou e me deu até um chocolate como desculpas pelo se mal entendido. 
Prossigo. Tento ver o gesto do juiz Moro pelo lado positivo, pelo exemplo que ele pode dar ao país. Por esse ângulo, noto que pode ser uma forma muito bonita de resolver os conflitos que enfrentamos - e até mesmo os conflitos mundiais.
Diante das desculpas sinceras do magistrado, cabe à presidenta da República pedir desculpa pelas pedaladas fiscais e, pronto, fim de impeachment. Lula pede desculpas por ter um amigo que tem um sítio, e fim das investigações sobre seus pedalinhos. Com isso, estaria resolvida a crise existencial, digo, crise política no executivo. Podemos ir além: o Aécio pode pedir desculpa por não aceitar perder, por bater em mulher, por gostar do Rio de Janeiro mais que de BH e por dirigir bêbado; Alckmin pode se desculpar por transformar a PM paulista em milícia tucana e pelo dinheiro pra educação ter se tornado farta fonte de renda para amigos; o cunha se desculpa por ter roubado, ou melhor, por ser usufrutário de dinheiro de origem ilícita que tropeçou e caiu em sua conta; Mirian Leitão pede desculpas por agir de má-fé e por falar de economia sendo que ela não entende nem uma planilha de Excel; Sardenberg se desculpa por ser quem é, a Globo por ser golpista, o Bolsonaro e o Jabor por serem fascista (o Lobão, sempre ligado para onde o vento sopra, já se desculpou). O Serra pede desculpa por tudo, os que protestam no domingo por sonegarem impostos e humilharem os ppp (preto-pobre-periférico), os ppp por serem ppp, os fazendeiros por desmatarem e por terem escravos em suas fazendas. A Samarco pede desculpas por Mariana e resolvemos a maior tragédia ambiental do Brasil (em termos de intensidade no tempo), não seria lindo?
Em suma: é só os criminosos - dos mais variados matizes e crimes - seguirem o belo exemplo do juiz Moro e se desculparem por terem cometidos crimes, pronto! Todos são filhos de deus, estão todos perdoados. Para melhorar ainda mais: os suspeitos se desculpam por serem suspeitos, os mal-afamados por terem má-fama, e pronto, resolvemos todos - absolutamente TODOS - os problemas do Brasil! Vai ser melhor que tirar o PT do governo federal! 
Moro é mesmo um exemplo pra nação!

30 de março de 2016



sexta-feira, 25 de março de 2016

Breve pausa para novo ataque golpista [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

O refluxo golpista desta semana, antes de comemoração inspira atenção. Não que seja uma retirada planejada - parece antes que foram realmente surpreendidos e tiveram que recuar momentaneamente -, mas certamente algo planejam, pois a aposta que fizeram foi alta demais e é difícil - se não impossível - voltar atrás.
Insisto na minha tese de que a entrada de Lula no governo, ainda que passado o momento ideal, foi um contra-golpe genial num golpe que já era considerado como certo por tucanos e marinhos [http://j.mp/cG160316]. Noto pela cobertura da imprensa internacional: até a entrada de Lula no governo, a narrativa estrangeira seguia muito próxima da linha da Grande Imprensa brasileira, tratando a crise brasileira como uma conjunção de crise econômica com crise política causada por um escândalo de corrupção. Desde a semana passada a imprensa internacional vem se descolando da narrativa golpista e buscado entender melhor o que se passa. Ainda falam da crise financeira e da Petrobrás - elas existem, a despeito de qual seja a causa -, porém não tardam a notar que há um quarto poder extra-legal e extra-constitucional no Brasil, que derrotado na vitória tida como certa em 2014, decidiu fazer valer sua vontade, democraticamente apresentada ao país em horário nobre. A desfaçatez é grande demais, a ponto de muitas vezes virar piada: na linha sucessória de uma presidenta chamada de corrupta apesar de não ter nenhuma acusação contra si, notórios corruptos; na oposição, o partido que criou as práticas perpetuadas pelo PT e seus satélites extremistas e limpos como a água do rio Tietê depois de vinte anos e mais de um bilhão de dólares em despoluição. Em tom de sarcasmo ou de denúncia, ficou difícil justificar o golpe ao mundo "civilizado", ou mesmo aos nossos vizinhos argentinos. No plano interno, o PMDB segue discutindo o novo governo, como forma de abastecer o noticiário de fofocas, e tucanos já até prepararam uma festa de inauguração do Novo Governo em Portugal, num pretenso congresso de direito. As ameaças de Temer e Cunha já não causam o mesmo frisson de quinze dias atrás - Lula articula com os principais caciques da sigla, e o silêncio destes tem sido suficiente para não permitir sorrisos largos de Bonner e congêneres na cobertura da crise política. Dilma, por seu turno, saiu finalmente para o combate, e denuncia dia sim, outro também, o golpe em curso, tentando acuar os golpistas. Entretanto, o principal trunfo no plano interno do contra-golpe foi a força demonstrada nas manifestações contra o golpe e pela democracia organizada pelo PT, dia 18: ali ficou claro aos golpistas que haveria enfrentamento sério, e por mais que eles queiram dizer que mobilizaram mais pessoas no domingo, sentiram no moral o desmoronar da crença global de que eram praticamente unânimes.
O alerta de que vêm mais golpe baixo por me despertou uma mensagem no Fakebook de Eduardo Kawamura, que desconheço quem é e o que faz:
"Spoiler: O novo governo já está planejado. Ele até será defendido em Portugal no final de março (aliás, com o nosso dinheiro). Há quem tenha ficado feliz com os editoriais dos grandes jornais afirmando o caráter 'perigoso' da atuação do Moro para o estado democrático de direito. É apenas a terraplanagem do golpe. O governo Dilma cai, a Lava Jato será duramente questionada pela imprensa, a Lava Jato acaba... Ninguém contava, porém, que alguém iria divulgar a lista da Odebrecht que inclui TODO o 'Novo governo'. A imprensa terá muito trabalho para fazer a lista desaparecer da memória dos brasileiros (ou não)."
Realmente faz muito sentido: as manifestações de domingo, dia 13, seriam a comprovação da vontade popular de fim do ciclo petista - e praticamente do PT - e a volta dos homens direitos e probos e da meritocracia (ganha mais quem pode mais). O juiz/justiceiro/jagunço Moro já havia alcançado seu objetivo e era hora de fingir distanciamento e denunciar exageros pouco antes do golpe, para quando consumado, dar um fim a qualquer perigo a quem não fosse petista, e atestar que não era de ocasião a crítica à Lava Jato. As ruas dia 18 contradisseram os donos da voz, Odebrecht denunciou mais do que a Lava Jato queria saber (ainda não se sabe se as doações são legais ou ilegais, vale ressaltar), o vazamento seletivo vazou errado, Janot deu uma prensa em seus subordinados e Teori Zavascki decidiu pôr um freio ao coronel Gilmar Mendes (eu ainda me pergunto o que falta para tirar esse criminoso do STF e julgá-lo como ele merece) e seu pupilo paranaense. O pior para os golpistas não é isso: como disse, a aposta na queda de Dilma foi alta, e está difícil dar o passo atrás: a manutenção da ordem democrática pode significar não o fim do PT, mas o fim do PSDB (com possível crescimento de uma extrema-direita puro sangue, como o PSC); o corte de vez de verba federal para a imprensa que tentou derrubar Dilma (a tentativa da presidenta, ao assumir, de fazer as pazes com essa imprensa através de publicidade oficial merecia ser destacado ao fim desse imbróglio todo), além do acirramento de cobranças pela cassação da concessão pública da rede Globo.
PSDB, coronel Mendes, Rede Globo e demais patrocinadores do golpe têm muito a perder com a manutenção da democracia e não vão, portanto, se entregar tão fácil. Não consigo imaginar os próximos passos, gostaria de estar errado, mas penso que logo vem mais chumbo grosso contra o PT, a esquerda e a democracia.


25 de março de 2016.


segunda-feira, 21 de março de 2016

Esperando o primeiro cadáver [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Eu bem gostaria de dizer que os próceres do golpe encenam uma peça de teatro do absurdo, mas seu irrealismo ganha realidade no moderno aparato espetacular: a realidade material é secundária diante de interpretações fantasiosas, esquizofrênicas, paranóicas que a Grande Imprensa - rede Globo à frente - oferece para o consumo acrítico de parte da população. Praticando com esmero os ensinamentos de Goebbels, a mentira repetida um milhão de vezes ao dia se tornar verdade a uma parcela significativa da população, que se perdeu da realidade em teorias universitárias e jornalismo-novela; seu consumo, contudo, não é passivo: tem gerado reações extremistas em pessoas que vêem um futuro de herói nacional ao agirem com mais realismo que o rei.
O PSDB assumiu a dianteira do golpe, mesmo depois de serem escorraçados do ato que promoveram - acreditam, com base em si próprios, que o que aconteceu com Carlos Lacerda não acontecerá com eles, e tanto o judiciário quanto o povo (que não os elegeu) os carregarão nos braços, no dia da redenção golpista, no dia da rendição da democracia.
Em almoço José Serra e Gilmar Mendes parecem ter decidido os próximos passos do golpe - indiferentes ao que se passa nas ruas das cidades do país. Não encenam teatro do absurdo: brincam de jogo de estratégia em tempo real, algo como Warcraft, sem se importar que as forças que mobilizam são pessoas de carne e osso e não exércitos impalpáveis. Com a justiça preocupada em dar verniz legal ao golpe e não em agir como poder o mais próximo da neutralidade, logo menos deve aparecer o primeiro cadáver do discurso de ódio da rede Globo e seus asseclas - e nada garante que será o único. Não que seja novidade: o discurso de ódio contra minoria há tempo produz vítimas, só não era tão democrático como agora, a englobar qualquer pessoa que use vermelho, mesmo que seja camisa da Coca-Cola.
A decisão de Gilmar Mendes de devolver o processo para o justiceiro de província, Sérgio Moro, deixa o Brasil na beira de um conflito civil. As manifestações de sexta-feira, dia 18, na avenida Paulista e em diversas cidades brasileiras foram uma mostra de que haverá resistência popular ao golpe. Os neofascistas da "morolidade global" até então se sentiam legitimados em apedrejar qualquer Maria em nome de Jesus, quem sabe agora passem a apedrejar eventuais viventes que decidam imitar o filho de deus - agora que sabem que são a maioria, como o eram desde as eleições, a despeito do discurso da Grande Mídia e dos golpistas - e pedir um mínimo de bom senso. Acontece que nenhum é Jesus e é provável reações da turma da democracia.
Mas a situação pode piorar para além de brigas de rua entre proto-gangues neofascistas e anti-fascistas: Geraldo Alckmin deixou explicitado que usará a Polícia Militar de São Paulo como milícia pró-golpe a serviço do projeto de poder do PSDB-Globo-judiciário: já havia sido constrangedor o tratamento diferenciado dado aos seguidores do Pato da Fiesp, que bloqueiam por 40 horas a avenida Paulista sem serem incomodados (em compensação, se é adolescente reivindicando educação, dez minutos de interrupção de via pública é motivo para espancamento geral da gurizada, sob aplausos da mesma classe-média que apóia o golpe); a forma como a polícia militar interveio na PUC-SP nesta segunda, em que apenas observava o protesto dos alunos quando era pró-golpe, e mudou drasticamente de atitude quando esses foram calados pelos pró-democracia, com direito a balas de borracha, bombas de efeito moral e tratamento de choque para proteger neofascistas, mostra que Alckmin não tem qualquer compromisso com a ordem pública ou com a segurança dos cidadãos (o que não é novidade para um governador que estimula assassinatos extra-judiciais por parte de seus comandados), pelo contrário: são as ações de sua polícia que na grande maioria das vezes instigam a desordem e a violência - palavras de ódio e incitação à violência, tudo bem, reivindicar direitos ou exigir respeito à democracia, aí vira baderna, tudo homologado por Datenas, Bonners e afins.
Já desde ano passado comento que o exército está com muita vontade de entrar no palco e resolver a situação. Entretanto, contrariamente ao que pedem golpistas e porta-vozes da Grande Imprensa, as forças armadas não vão derrubar presidente nenhum: se entrarem em ação será para reprimir golpistas: mais de um ano da casa pegando fogo, com pedidos de intervenção militar, com acusações mil de comunismo ao PT e as forças armadas caladas, nenhum pio sequer dos seus generais de pijama. Foi só semana passada que um oficial se manifestou, para dizer que o exército respeita a constituição, ou seja, se subordina à comandante suprema das forças armadas do Brasil, isto é, Dilma Rousseff (amigo meu disse que o exército chegou a entrar em cena ano passado, para liberar pontos principaia de estradas do país durante o locaute dos caminhoneiros). A vontade das forças armadas entrarem em cena é simples: cobrar a fatura com o respeito à ordem democrática e constitucional agora com o enterramento definitivo de todo questionamento sobre a ditadura civil-militar de 1964-85. Na atual situação, se preciso for, penso ser um preço amargo, mas válido.
A prisão de Lula pode ser o estopim para revoltas populares e sua repressão pela milícia oficial (que atende pelo nome de polícia militar) paulista e pelas milícias paralelas. Do lado da reação, além dos defensores da democracia é possível que detone uma bomba de revolta e ressentimento contra o sistema repressor do Estado (principalmente em São Paulo), e esses não irão para as ruas protestar com gritos. Gilmar Mendes, Serra, os irmãos Marinho, Sérgio Moro e outros, protegidos em suas mansões, apostam que o governo não resistirá a um derramamento de sangue. A responsabilidade (ou irresponsabilidade) dos golpistas é preocupante para nós, pessoas comuns, sem direito a foro especial e guarda-costas pagos pelos cidadãos.

21 de março de 2016.

Eles fingem que estão jogando War

Dois exemplos das artes [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em meio ao país em fervura por conta do golpe (eufemisticamente chamado de impeachment), destaco dois exemplos vindos do mundo artístico.
O primeiro é de Mônica Iozzi, atriz da rede Globo (um dos poucos artistas que sei identificar, por termos freqüentado a Unicamp na mesma época). Confesso que fiquei surpreso com sua atitude: depois de trabalhar com um dos neofascistas mais velhacos da Grande Imprensa brasileira e se tornar uma das mais queridinhas da rede Globo, a atriz preferiu pôr em risco seu futuro na televisão e enfrentar a opinião dos patrões, não somente ao participar de vinheta chamando para os atos pela democracia e contra o golpe, realizados dia 18, como chamando a atenção de seus seguidores do Tuíter para a precariedade da opinião senso comum brasileira, formada com apenas de manchetes do jornalismo viciado da rede Globo. Por ser uma artista ainda em início de carreira e no seu ápice, sua atitude denota não apenas sua gradeza como a situação avançada em que o golpe se encontra.
O segundo exemplo é do também global Cláudio Botelho, que após criticar a presidenta e o ex-presidente em meio à apresentação "Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos", foi interrompido aos gritos de "não vai ter golpe" por parte da platéia, no sábado. O Estadão noticiou a reação vinda da platéia como fruto de um grupelho que havia ido com a clara intenção de perturbar a peça. Pelos vídeos divulgados na internet, percebe-se claramente que não é um grupo que grita contra o golpe, mas quase metade da platéia. Em condições normais, eu criticaria um espetáculo ser interrompido por discordância política. Como estamos em uma condição excepcional, o ato muda de perspectiva. Vejo a reação do público mineiro como conseqüência direta dos atos de sexta, que demonstraram que os opositores ao golpe são a maioria da população (como disse, o ato deve ser comparado ao pró-golpe de quarta, e não ao de domingo), e que podem (e devem) manifestar sua posição sem receio de serem encurralados e agredidos pelos demais, acusados de párias que rompem a harmonia social. É também uma reação contra o monopólio da narrativa do golpe por parte da Grande Imprensa: tivéssemos uma imprensa plural, que permitisse a voz aos diversos atores e setores sociais, as vaias seriam um ato autoritário - na situação de monopólio da mídia, foi, pelo contrário, um grito pela democracia e contra o totalitarismo autoritário-midiático. A imprensa, claro, vai utilizar o episódio de Botelho como combustível para incentivar ainda mais o ódio dos neofascistas que se comportam como verdadeiros camisas negras do "morolismo global", e amedrontar uma classe média indignada, que é técnica, só tem técnica dentro da técnica, e fora disso é tola - com todo o direito a sê-lo, é certo, mas que não se sabe parva e mera massa de manobra.
Infelizmente, apesar das reações dos artistas e do público, o ódio tende a crescer enquanto a narrativa golpista seguir impingindo a dicotomia PT x moralidade. Ideal que se consiga mostrar que a questão é muito mais complexa, mas se conseguirmos fazer entender aos que se informam pelo JN que o que está em jogo é o Estado Democrático de Direito, e se haveria um dicotomia seria entre democracia liberal-burguesa x golpe autoritário midiático-judicial, já será um grande passo nestes tempos de cólera e cegueira.

21 de março de 2016.


PS: ia publicar este meu texto quando vejo que Iozzi cometeu o equívoco de dar entrevista à imprensa golpista - no caso, a Folha de São Paulo -, que não tem nenhuma ética e distorce falas ao sabor dos seus interesses. Reproduzo seu comentário:

A Folha de São Paulo publicou hoje em seu site uma entrevista feita comigo há alguns dias. Acredito que a edição feita pela repórter não deixou minha opinião clara o suficiente. Por isso, segue abaixo o conteúdo da entrevista feita por e-mail na íntegra.
1) Você é praticamente uma unanimidade entre os telespectadores da Globo e os usuários das redes sociais. Teme que demonstrar seu posicionamento político - ainda que não partidário - possa te prejudicar?
Não. Me sentiria prejudicada se não pudesse expor o que penso. Não posso deixar de me pronunciar só porque trabalho na TV. Sei que muitas vezes serei mal interpretada, principalmente num momento como este, em que o país parece estar dividido apenas entre "coxinhas" e "petralhas". Precisamos parar de nos comportar como torcidas organizadas de futebol e aprofundar a discussão política no Brasil. Participei do vídeo convidando as pessoas para as manifestações deste dia 18 com este intuito. Mas é preciso deixar claro que a ideia não é abonar as ações do PT. A ideia é cobrar que TODOS OS PARTIDOS sejam investigados e julgados de maneira clara, imparcial e justa. E que a imprensa divulgue da mesma maneira as acusações sofridas pelo PT, PSDB, PMDB, etc. O que não vem ocorrendo. Não sou petista, mas não sou cega.
2) Já recebeu alguma advertência ou conselho por parte da Globo a respeito dos comentários que tem feito na internet, sobretudo o que citava o Jornal Nacional?
Não. Minhas redes sociais expõem o que eu penso, de maneira completamente desvinculada da empresa em que trabalho. Usei o Jornal Nacional como exemplo por ser o telejornal de maior audiência do país. Minha intenção ao escrever aquele post foi de questionar como as pessoas vêm se informando. Não sejamos ingênuos. Não existe imparcialidade na imprensa. Todo veículo pertence a alguém ou a um grupo. E estas pessoas tem seus ideais, princípios e interesses. Por isso precisamos nos cercar de toda informação possível. Acompanho Veja, Carta Capital, IstoÉ, Piauí, Folha, Estadão, O Globo, JN, Jornal da Cultura, Jornal da Band, Mídia Ninja, Globo News, Revista Fórum, blogs, etc. Não podemos ser um povo que consome apenas as manchetes. Este debate raso e tendencioso é que vem alimentando a atual atmosfera de ódio, preconceito e intolerância na qual nos encontramos.

sábado, 19 de março de 2016

Sexta-feira: o contra-golpe está na rua, a mentira está no ar.

Meu irmão logo cedo me mandou o editorial da Folha, "Protagonismo perigoso". Achava que pelo menos um dos veículos do golpe de estado tinha se dado conta que Sérgio Moro havia exagerado no seu ímpeto e estava preocupada. Não compartilhei do seu otimismo: a Folha foi apoiadora do golpe civil-militar de 64 e servil aos ditadores do período até o momento em que sentiu que o regime começava a fazer água, quando tratou de pular fora - com isso conseguiu construir sua fama de jornal liberal, progressista e plural, quase de centro-esquerda, que se desfez como diarréia no Tietê ao longo do século XXI -; ou seja, golpista mas antes de tudo oportunista, li o editorial do jornalecão dos Frias como um aviso de "golpistas, volver", ao menos "esperar" - vai que o golpe não vingue e o governo do PT corte sua publicidade em retaliação por seu golpismo. Desconfiei que já vislumbravam um grande ato na sexta, que entornaria ainda mais o caldo para os representados por Sérgio Moro (que não é advogado mas age como, com o adendo de emitir o veridicto sobre a própria matéria que defende).
Sobre o ato de sexta, em defesa da democracia. O filósofo e urbanista francês Paul Virilio comenta que o verdadeiro poder está na rua, quem detém o poder da rua é quem deter o poder de fato - daí o "sistema", o "Poder" trabalhar sempre pelo esvaziamento das ruas através de suas inovações tecnológicas, do urbanismo haussmanniano aos condomínios fechados, dos carros aos shoppings centers, passando pela televisão e pela internet. Isso ajuda a explicar também a diferença de tratamento da polícia militar sob o comando do governador Geraldo Alckmin nas manifestações pelo passe livre ou do MTST e nas contra o PT - um questiona o status quo que o tucano representa e defende com lealdade protestante, sendo encarado como inimigo pela polícia militar, a ser dispersado com violência. Por isso também a tentativa da extrema-direita, inflamada pela Rede Globo e pelo juiz Sérgio Moro, de calar toda e qualquer dissidência, agredir qualquer camiseta vermelha que apareça na frente: mostrar quem domina a rua, quem detem o poder e tentar forjar, na base do silêncio-amedrontado, uma unidade que justifique o discurso de "todo o Brasil é contra o PT", "todos os brasileiros são a favor do impeachment" repetido à exaustão por Globo e pelos políticos golpistas. Levar cem mil pessoas - como inventou o DataFolha - à avenida Paulista foi, como disse Sakamoto [http://j.mp/1TXUADz], um momento de empoderamento da esqueda e dos democratas de todos os matizes e, se não intimida, ao menos deixa claro à extrema-direita que não há uma avenida aberta para eles passarem rumo ao golpe.
Ainda sobre a manifestação de sexta. Jean Wyllys escreveu em seu Fakebook um texto em que explica o óbvio a quem não consegue mais pensar: a transmissão calhorda da Rede Globo às manifestações, ainda mais se comparado à cobertura das manifestações de domingo ou de quarta: não teve entrevista dos presentes, não teve a cobertura integral por parte de nenhum de seus veículos (se tivesse futebol, aposto que não deixariam de transmiti-lo), não teve a fala do Lula ao vivo e sem cortes, pelo contrário, foi um repórter que contou o que o ex-presidente falou. Como questiona o deputado: "passamos dois dias inteiros assistindo sem parar pela televisão, em repetição continuada como no velho cinema, às conversas privadas do ex-presidente (uma espécie de Big Brother involuntário do qual ele não sabia que estava participando) e agora não temos direito, como audiência, público e cidadania, a ouvir o que ele diz num comício com cerca de cem mil pessoas na avenida Paulista? Não é notícia? Qual é o medo? Deixem as pessoas assistirem tudo e tirarem suas conclusões sozinhas!" ("Cadê o Jornalismo?" [http://j.mp/1RbZaIq], recomendo muito!). A Globo não é maluca de divulgar a íntegra da fala de Lula ou de Haddad, ela precisa insistir na visão simplista e maniqueísta de que existem apenas dois lado: o do PT ou o do impeachment. Não por acaso, a Grande Imprensa na maioria dos casos tem falado em "atos em favor de Lula e da presidenta Dilma", quando na verdade foram atos em favor da democracia, em favor das garantias democráticas - de privacidade e de respeito à vontade da maioria. A fala de Lula - assim como a de Haddad - mostraria aos globoespectadores que é possível se posicionar contra o governo sem aderir ao projeto golpista (no grupo de discussão do partido Raiz há um sem número de pessoas que se dizem decepcionadas pelo governismo da maioria dos que apóiam o novo partido). Talvez uma das tarefas mais importantes dos defensores da democracia seja reforçar o discurso de que há mais do que dois lados, de que não coadunar com o golpe (via impeachment ou via TSE) não é aprovar o governo, não é dar carta branca a Dilma: é aprovar o regime democrático, é saber que em 2018 outro governante estará no Palácio do Planalto, conforme a escolha sua e da maioria.

Me estendo sobre a má-fé na cobertura da manifestação de sexta, acerca de algo que ainda não vi nenhum comentário: a comparação entre os atos do dia 18 e as manifestações do domingo. É um cotejar impudente: são os atos do dia 31 de março que devem ser comparados aos do dia 13: para ambos houve tempo para organizar e mobilizar seus partidários - o do dia 13 ainda com propaganda em horário nobre (com sabe-se lá que dinheiro) e transmissão completa pela Grande Imprensa. Dia 18 deve ser comparado aos atos de quarta, dia 16, quando as pessoas foram às ruas pedir o impeachment de Dilma, com base na sua conversa com Lula. Os atos desta sexta foram organizados às pressas, em resposta à tentativa de golpe, como um primeiro combate: os 100 mil da Paulista (que foram muito mais) devem ser comparados, portanto, aos cinco mil (5.000) de quarta, também mobilizados às pressas [http://j.mp/1SaGF9V]. Me repito: o ato na Paulista a favor da democracia foi vinte (20) vezes maior que o da Globo, o dos apoiadores do impeachment. 
Sem força suficiente nas ruas, os golpistas trabalham duro para dominar o discurso sobre este momento, no intuito de enfraquecer os legalistas e inflar os abarbados fascistóides golpistas com uma massa de cidadãos atolados de boa-fé.

19 de março de 2016

PS: para não me alongar aqui e para dormir, escrevo sobre a decisão de Gilmar Mendes amanhã

João Pessoa (PB), com população equivalente a dois distritos de São Paulo, levou 4 vezes mais manifestantes a favor da democracia que a Globo levou à Paulista contra, na quarta.


Relato da manifestação de sexta (sem maiores pretensões)

Meu plano era ir do início da Paulista até seu fim. Chego à manifestação de sexta às 18h. Até a avenida Brigadeiro Luís Antônio trata-se de uma sexta-feira normal. É a partir da avenida que a CET faz o bloqueio e a manifestação acontece. Logo na esquina da Paulista com a Brigadeiro, três manifestantes apontam a três policiais militares uma janela com a bandeira do Brasil, no alto do edifício Nações Unidas: "foi daquela da bandeira, tenho certeza!", diz um dos manifestantes aos policiais que olham com pouca vontade - afinal, o que é uma tentativa de homicídio que não passou de uma tentativa?, ainda se o objeto atirado tivesse acertado a cabeça de um daqueles comunistas. É o que temo para manifestação, violência dos que se acham do lado do bem contra nós, que nos achamos do lado da democracia liberal burguesa - com tudo o que ela tem de mal. Por garantia, não visto vermelho, mas a camisa do Paraná Clube - até para mostrar que não sou bairrista. Na quadra seguinte é que a aglomeração começa de verdade - e é curioso que o próprio ar da avenida parece mudar radicalmente. Batucadas, gritos de "não vai ter golpe", carros de som, pessoas de vermelho, bandeiras do PT, bandeiras da Dilma, bandeiras da CUT, bandeiras do Brasil. Desisto de chegar ao fim da Paulista na alameda Casa Branca: levo cerca de vinte minutos para atravessar a rua, quase uma hora para avançar uma quadra, tamanha a aglomeração de pessoas próximas ao carro de som onde discursavam políticos e lideranças diversas, e onde poderia acontecer o discurso do ex-presidente Lula. Algumas das falas denunciam o golpe, convocam a manter a mobilização; outros, veladamente cobram o governo federal de abandonar a adesão ao projeto vencido nas eleições de 2014-2016 (levando em conta que a oposição conseguiu forçar um terceiro turno e a gestão Dilma ainda não pôde começar de fato); Haddad faz um discurso ressaltando que não se trata de defesa de um governo ou de um partido, mas da democracia. O público presente vibra com o prefeito, como se as pesquisas de opinião não dissessem que ele é muito impopular. A DataFolha fala em cem mil pessoas, diante de 350 mil no domingo, apesar das fotos - uma ainda do início da manifestação de sexta, outra do ápice da de domingo - não apontarem tamanha diferença de concentração de pessoas - vai ver o DataFolha adota as idéias liberais de Stuart Mill, que dá maior peso ao voto das pessoas de posses, de modo que um manifestante do Jardim Europa vale por três do Jardim Ângela. Enquanto atravesso a rua, é anunciado que Lula comparecerá, sim, à manifestação - o público vibra. Vibrará mais em pouco tempo, quando o ex-metalúrgico subir no palanque. Lula não fala em conflito, mas em respeito - respeito à democracia, ao Estado de Direito, às últimas eleições, ao adversário político. Ele parece crer também que boa parte dos que vociferam junto com a rede Globo contra a corrupção do PT são apenas parvos, e não neofascistóides. Eu torço para que as ações do governo não sejam tão conciliadores - o momento de tensão não convida a instigar ainda mais a população, entretanto nas instâncias legais é preciso fazer valer os seus direitos e os da população que participou da grande farsa da democracia em 2014. Encontro alguns conhecidos ao fim da manifestação, a sensação geral é de certo alívio: não estamos sozinhos, e temos muita força para resistir à "morosidade" da justiça. Em 2016 o golpe não vai ser tranqüilo como foi em 1964.

19 de março de 2016


quinta-feira, 17 de março de 2016

O Brasil é fracasso (e eu só notei isso dia 16 de março de 2016)

Fracasso. É essa a sensação que me abate, depois de uma noite mal dormida e um dia mal acordado, ainda atordoado com os acontecimentos recentes do país. Fracasso. Eu fracassei, você fracassou, eles fracassaram, nós, nós fracassamos. Ainda que o golpe encabeçado pela Rede Globo seja revertido por Lula - com apoio dos movimentos sociais e das pessoas democratas do país -, o que resta deste episódio - cuja última cartada foi o atendimento à conclamação, por parte de um casal de ventríloquos biltres e canastrões, do homem-gado e da mulher-vaca para tomar a Avenida Paulista, em louvor ao fato de um justiceiro togado ter escarrado sobre as leis do país e sobre os direitos individuais - é a certeza de que o Brasil fracassou, de que nós fracassamos. Fracassamos enquanto nação, pois, tal qual nos últimos 516 anos, uma parcela majoritária da população segue invisível aos donos do poder, que apregoam que "todos os brasileiros" estão cansados disso e daquilo. Fracassamos enquanto Estado de Direito, ao permitir que presidente da República seja grampeado por qualquer juiz de província. Fracassamos enquanto Estado de Direito também quando o judiciário - juízes, promotores, analistas, técnicos - vestem preto como a milícia de Mussolini e tiram uma foto para defender que a constituição fique à mercê do casuísmo de ocasião de um grupo de plutorepresentantes. Fracassamos enquanto Estado de Direito quando um juiz da corte suprema do país é um coronel que usa o cargo para fazer proselitismo político e demonstra tanto apreço pelas pessoas, pela Constituição e pela justiça do País quanto Franz Gurtner na Alemanha Nazista. Fracassamos. Fracassamos enquanto país capitalista, ao vivermos de fato em uma sociedade de castas, com baixíssima ascendência social à casta dos donos do poder e do dinheiro, os primeiros encrustados na burocracia do Estado, cujos cargos são hereditários (por meritocracia, claro), os segundos encrustados nas entranhas do poder, feito chopins atrás do tico-tico (e eu custo a entender porque Macunaíma matou o tico-tico), a viver de concessões públicas, rendas do Estado, quando não de pilhagem pura e simples (mas tornadas legais pelos seus representantes legislativos, claro). Fracassamos enquanto civilização, ao formarmos milhares de doutores analfabetos e absolutamente incapazes de pensar, que dirá de refletir. Fracassamos ainda mais enquanto civilização ao querermos comparar pessoas com base em seus títulos burocráticos e não em sua inteligência, competência e respeito pela coisa pública, seu respeito e seu tato com o Outro. Fracassamos enquanto democracia ao deixarmos grande parte do povo sem direito a voz. Fracassamos enquanto democracia quando parte desse povo decide falar e reivindicar e é recebido a balas de borracha, bombas de gás, cacetetes, prisões arbitrárias por uma Polícia Militar autorizada a execuções extra-judiciais pelo governador do Estado - isso quando nosso Estado Democrático de Direito não deixa essa tarefa a jagunços e pistoleiros. Fracassamos enquanto Estado quando este se mostra muito aquém do crime organizado na sensibilidade às questões sociais e à distribuição equânime da justiça. Fracassamos enquanto democracia quando a Rede Globo comete sete golpes brancos à democracia em trinta anos (para ficarmos nos escancarados, sem possibilidade de dúvidas, 1982, 1984, 1989, 1994, 1998, 2005-2012, 2014), até que se cansa e parte para o golpe aberto, com Sérgio Moro como ator principal. Fracassamos enquanto democracia quando apenas uma geração é suficiente para parte do país esquecer o horror de uma ditadura (eu e meu irmão estamos na casa dos trinta anos, nascemos na transição da ditadura para essa nossa democracia capenga, e somos obrigados a conviver com um golpe de Estado!). Fracassamos enquanto civilização ao ver os tais homens e mulheres de bem defenderem o pau-de-arara, numa completa alienação da sua própria humanidade e absurda indiferença pelo Outro. Fracassamos enquanto civilização ao não conseguirmos garantir direitos elementares aos cidadãos - nem mesmo à presidenta da República! Fracassamos de maneira retumbante enquanto Estado Democrático de Direito, enquanto civilização, enquanto nação, enquanto pátria. Temo que nosso fracasso seja tamanho que não haja qualquer possibilidade de civilidade num futuro breve. Digo isso não por vermos pais acharem lindo o filho de cinco anos escrever "morra Lula", "morra Dilma" em um trabalho de escola, não por presenciarmos pessoas sendo espancadas por estarem de vermelho, não pelas panelas batidas no anseio de calar o diferente; digo isso pelos 50 mil assassinatos anuais, pelas outras 50 mil vítimas anuais da nossa guerra sobre rodas, pelas centenas de vítimas em conflitos agrários todos os anos, pelas vítimas que sequer merecem ser transformadas em estatísticas, assassinadas em aldeias indígenas, em prisões, em autos de resistência; fracassamos ao saber que há pessoas vitimadas por serem negras, por serem mulheres, por serem pobres, por serem "nordestinas", por serem haitianas, por serem putas, por serem periféricas, por serem moradoras de rua, por serem faveladas, por serem gays, por serem trans, por serem diferentes (que o diga todos os suicidas da Unicamp).
À tarde resolvi dar uma espairecida do golpe, fui dar uma volta no centro de São Paulo - bem longe da avenida Paulista. Largo do Paissandú, 25 de Março, Zona Cerealista, Luz. Tirando na cantina onde almocei, em que o assunto passou rapidamente por uma conversa ao meu lado, não ouvi nenhuma vez os nomes de Lula, Dilma, Moro, Globo - mas soube que o Coringão ganhou e o São Paulo, não. Elogiei a moça do caixa, garota muito simpática, que esbanja vida - pouco importa quem seja o dono do butim estatal. Fiquei sem saber, mas desconfio que ali, nessa área bem "povão" de São Paulo, as preocupações são as contas a pagar, o quanto vai conseguir ganhar no fim do mês, se o rapa está vindo, se vai conseguir um lugar sentado no ônibus ou no trem, na volta para casa; se ama e se é amado; se o seu time vai ganhar o campeonato, se a crise vai ceifar seu emprego, ou "apenas" seu salário. Moro, Lula, golpe? Ali está o Brasil fracassado - nosso fracasso - que insistimos em não enxergar. A certa altura, três ambulantes gritam e fazem algazarra; não tardo a entender: tiram sarro de dois africanos que passaram por eles vestidos com roupas tradicionais (que acho muito legais, por sinal). Sem idealizações, vejo ali o Brasil fracassado, o nosso fracassamos.

Ainda assim, de fracasso em fracasso, amanhã sairei à rua, sem camisa da seleção ou a bandeira que tanto me envergonha, lutar pela democracia, pelo Estado de Direito, pelo respeito aos direitos individuais e aos direitos sociais - pelo direito desses que hoje vociferam e agridem quem pensa diferente. Porque ainda é possível que nesse golpe eles fracassem, e isso nos permita tentar corrigir os efeitos de nossa herança de fracassos.

17 de março de 2016
ps: Fracassamos ao ter como alíquota de Imposto de Renda mais alta 27,5%.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Lula na Casa Civil: a confissão do golpe

Aqueles que entoam o "não vai ter golpe" não podem estar mais enganados: a ida de Lula para a Casa Civil é a admissão velada de que há um golpe de Estado em estágio avançado.
Lula pode não ter feito faculdade - diferentemente da maioria dos cabeças do golpe em curso e dos seus apoiadores apedeutas dos bairros nobres da nação -, mas é inteligente e demonstrou isso com tudo o que aprendeu ao longo de sua vida pública. Depois de afirmar que seria candidato em 2018 (eu ainda acho que ele não queimaria seu capital político com um terceiro mandato, antes tentaria a presidência da ONU, não fosse todo o trabalho dos seus inimigos de pô-lo fora da disputa da presidência do país), assumir um cargo no governo Dilma como o fez, às pressas e sem outras mudanças de imediato, seria um suicídio eleitoral - estivéssemos nós em condições democráticas normais. Não estamos, e assumir a Casa Civil foi a forma que o ex-presidente achou para tentar garantir eleições livres em 2018 - seja para ele ou para quem for do PT (e da esquerda?) participar.
(Parênteses para meia teoria conspiratória: a impressão que se tem é que sua prisão (na Guantanamo brasileira, conforme alcunha corrente da carceragem da PF em Curitiba) era para breve, ao que se seguiria o processo de impeachment de Dilma e sua destituição do cargo, um governo tampão "de união nacional" (vulgo PMDB, PSDB e os donos da voz) até 2018, quando novas eleições correriam "normalmente", sem perigo de vitória petista - tudo feito sob a supervisão do judiciário brasileiro e da nossa Grande Imprensa, ambos de notória imparcialidade).
A nomeação de Lula para a Casa Civil foi um belo contra-golpe político: no plano interno, dá ao governo petista um alívio - pequeno e por si só insuficiente - nas negociações com o legislativo, retardando o impeachment num primeiro momento, com possibilidade de freá-lo tão logo consiga se estabelecer (Paulo Henrique Amorim fala que Lula já estaria fechado com a maioria do PMDB, e a governabilidade, garantida); no plano internacional é que seu lance é grandioso: ao entrar no governo, uma destituição da presidenta deixaria escancarado ao mundo nossas instituições de república bananeira (em pé de igualdade com nossos hermanos paraguaios, de má-lembrança), o que traria sanções ao país, além de ferir nosso orgulho nacional tão pós-moderno e ao mesmo tempo tão século XIX - visível nas manifestações de domingo ou em manifestações de tucanos ou nas manifestações tanto dos políticos do Partido Conservador quanto do Partido Liberal -, de sermos quase primeiro mundo, não fosse a maioria da população desta terra, esse populacho feio e ignorante feito de gente mestiça e pobre.
O acerto do lance de Lula ficou evidente no destempero dos principais articulistas do golpe, Moro pelo judiciário e Globo pela Grande Imprensa e partidos de oposição de direita, ao divulgar conversas da presidenta da República - um crime contra a segurança nacional. Foi a comprovação de que o golpe estava em curso e que o contra-golpe também - "Nietzche", Marx e Hegel foi a primeira tentativa destrambelhada de barrar o contra-golpe. Se a espionagem da presidenta por parte da NSA (sigilosa, não fosse o WikiLeaks) mereceu congelamento das relações brasileiras com o todo-poderoso Estados Unidos, a espionagem e divulgação de conversas privadas da Presidente da República, com claro intuito de perturbar a ordem pública - o próprio Juiz admite de que não há indícios nas conversas -, merece respostas à altura, contra o juiz, contra o Grupo Globo de comunicação (e suas concessões públicas), e demais envolvidos nessa lastimável página de nossa história. 
Como já disse em outra análise: o Brasil hoje não se divide entre petistas e anti-petistas, coxinhas e petralhas, como a Grande Imprensa tenta fazer crer (e muitos acreditam); mas entre os defensores da democracia (falha, capenga, mas ainda assim sob o manto do direito e com possibilidades de aprimoramentos) e de uma ditadura com fortes traços fascistas.


PS: na CBN ouço da manifestação em Brasília, acompanhada pela PM e pelo exército. Desde a tentativa de locaute dos caminhoneiros, ano passado, tenho achado que o que o Exército mais quer é ter que entrar no jogo, garantindo a normalidade institucional ao obedecer as ordens das presidenta, e poder cobrar a fatura com o fim de Comissão da Verdade qualquer coisa relacionada ao período em que eles encabeçaram a ditadura nestes Tristes Trópicos - aplaudidos, diga-se de passagem, pelos mesmos que hoje aplaudem Gilmar Mendes, Sérgio Moro e seu jagunços.

PS2: é hora de Lula rever o documentário da BBC "Além do Cidadão Kane" (Beyond Citizen Kane), de Simon Hargo, em que um então político de esquerda homônimo ao ministro da Casa Civil falava do imperativo em se romper com o monopólio da comunicação do país, sob o risco de nossa democracia nunca poder triunfar por completo [http://j.mp/1XwkfRC].

16 de março de 2016.



domingo, 13 de março de 2016

Querem que o Brasil se torne uma grande favela

Há um certo ethos corrente nestes Tristes Trópicos que tento entender, sem muito sucesso. É uma forma de pensar e se posicionar com relação ao mundo, em especial diante do Outro, que me soa absurda - por mais corriqueira que seja. O "complexo de vira-latas", enunciado por Nelson Rodrigues ajuda, mas não dá conta de tudo, pois parece se aplicar melhor à relação com o estrangeiro, em que nos vemos inferiores em tudo - menos no futebol, único momento da nação cantar que é brasileira, "com muito orgulho, com muito amor", apesar que depois daquele lindo 7 a 1... O que me intriga é a forma como essa auto-imagem caquética é reorganizada nas relações entre as classes sociais, no interior do território.
Parece que precisamos o tempo todo de comprovação do Outro de nosso valor, e essa comprovação se dá pela negativa do Outro - que beira a negação, almeja a negação do Outro, mas não sobrevive se negá-lo -, com o regozijo do fracasso alheio (acho que isso se destaca tanto pra mim por meu pai sempre ter combatido essa forma de apreender o mundo, recordo a vez que tentei justificar minha nota baixa comparado à de colegas). Me vem como um exemplo o professor de ética que tive na graduação em filosofia: não perdia uma oportunidade de tentar diminuir seus colegas ou sua desafeta-mor, Marilena Chauí - em compensação, raríssimas vezes foi que demonstrou ter algum conteúdo além de ressentimento e ego. Outro exemplo eu já trouxera em crônica antiga, em que questionava a satisfação desditosa de pessoas abusarem de pequenos poderes, quando tem a oportunidade (como ficar no lado esquerdo da escada rolante propositadamente), que nada acrescentam à sua vida pífia [http://j.mp/cG161009]. Um terceiro exemplo: os tais "privilégios" que muitos se indignam e querem ver abolidos (como os marajás colloridos), na maioria das vezes não passam de direitos legítimos e que deveriam ser extendidos a toda a população - dois meses de férias, trabalho remoto, trinta horas, se tanto, de expediente por semana, salário na casa dos cinco dígitos: isso deveria ser uma possibilidade factível à maioria da população, e não apenas a meia dúzia de togados.
Somos movidos a ressentimentos e, incapazes de nos atribuir uma valoração positiva, sustentamos nossa auto-imagem na derrota do nosso próximo, que nos faz esquecer temporariamente o fracasso que também somos.
Vejo Donald Trump "caosando" nas prévias republicanas. Penso nas tais "pessoas de sucesso" (sem entrar no mérito de que sucesso é esse) daquelas terras, que estufam o peito para contar sua história de vida, que se tornam modelos para seus conterrâneos. Aqui, no Brasil, não teriam vez: seriam vistos não apenas sem admiração, mas com inveja, dessas sangue nos olhos, das pessoas que trazem o olhar sempre atento, sempre esperançoso de uma queda triunfal no próximo passo - "aqui se faz, aqui se paga", justificam. Exceção feita à nossa commodity for export, jogador de futebol, e ao Sílvio Santos. Talvez porque saibamos, ainda que não queiramos admitir, que a mobilidade social no Brasil é para inglês ver e nunca ascenderemos à casta dos senhores da Casa Grande, que nos incomoda os poucos exemplos que confirmam a regra.
Lula, principalmente após a vitória nas eleições de 2002, assumiu com ênfase esse discurso positivo sobre si, sobre seu passado, sua história - ao invés de se fazer sobre o negativo do Outro, como fez FHC. Foi o que recordou no seu discurso após os eventos bananeiros de 4 de março, ao comentar, por exemplo, o quanto cobra por palestra. Um migrante sem nível superior negar o complexo de vira-latas para o mundo? Uma afronta dupla para a classe-média, média-alta brasileira. Para piorar: pressionado, cresceu ainda mais na auto-afirmação de si.
A prisão, seqüestro, condução coercitiva ou que nome se queira dar ao ocorrido com Lula dia 4, além do pedido cafajeste dos promotes do Ministério Público de São Paulo, dia 10, trouxe a uma significativa parcela da população esse prazer pusilânime de ver o Outro se dar mal - mais, de mostrar a esse nordestino petulante seu devido lugar. O que esses brasileiros não se deram conta - porque a Grande Imprensa não entregou mastigado, e seu funcionários são covardes e atiram no próprio pé na esperança de ganhar um bônus no fim do ano - é que aplaudir o ato ilegal contra Lula e o pedido de prisão contra o ex-presidente (independente de a suspeita de corrupção vir a ser confirmada no futuro ou não), é aceitar que a polícia, a justiça e quem mais for aja fora da lei, conforme a conveniência de momento a si e aos seus interesses - banditismo, para usar o termo que Datenas da vida tanto gostam de aplicar aos pretos pobres periféricos. Diante de pessoas acima da lei, corrupção e desvio de dinheiro se tornam problemas menores diante da violação dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Esses brasileiros, que hoje ocuparam as ruas de várias cidades do país e tem a fé cega de que estão do lado certo, do lado "do bem", podem, mesmo sem mudar de posição, serem vistos como "do mal" pelas mesmas pessoas que agora apóiam, e serem perseguidas, presas, torturadas, mortas - vide Nelson Rodrigues, entusiasta do golpe de 64, até prenderem seu filho.
Mas essas pessoas - classe-média, média-alta, branca, nível superior, moradora de bairros abastados - que vibram com as agruras injustas contra Lula não deixam de ser coerentes: o fazem também quando polícia mata "bandido", quando prendem preto pobre periférico em poste, quando chacinam craqueiros, quando prendem e espancam sem-terra e sem-teto. Sua ignorância crassa (apesar do diploma da USP) não permite que entendam que a igualdade é boa quando estão todos sob o abrigo da lei, e que quanto mais direitos todos tiverem, melhor. Só enxergam sua realidade mais estreita, por isso acham sublime a igualdade que rebaixa todos ao seu nível, que põe seus iguais junto a eles, como moradores da senzala. Seu ressentimento não permite que percebam sua verdadeira condição: acham que por serem escravos domésticos e servirem diretamente a mesa do senhor, não são escravos. Se achavam ruim Lula ter transformado aeroporto em rodoviária, mal esperam a vez de Globo e Moro transformarem o Brasil todo numa favela - terra sem lei, em que o Estado é tão criminoso quanto o dito "bandido", onde ninguém tem direito a nada, onde todos são suspeitos e não há para onde correr.


13 de março de 2016

quarta-feira, 9 de março de 2016

Bem-vindo ao senso-comum do espetáculo [Diálogos com o teatro]

As cem pessoas no palco são representativas da cidade de São Paulo, segundo os dados do Censo 2010 do IBGE, em termos de idade, sexo, local de residência, estado civil e cor. São pessoas comuns, estudantes, aposentados, desempregados, taxistas, pesquisadores, pastores, tatuadores, gays, héteros, negros, pardos, amarelos, brancos, direitistas, esquerdistas, cristãos, ateus, umbandistas, espíritas.
Estão no palco do Theatro Municipal de São Paulo por conta do espetáculo 100% São Paulo, do coletivo berlinense Rimini Protokoll - formado por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel -, e em cartaz por conta da terceira Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Antes do espetáculo, ao ler o programa, a idéia parece boa e a expectativa é grande. Ao fim, resta a decepção e a impressão de que a boa idéia foi mal desenvolvida. Após um tempo, concluo que a peça é fiel ao que se propõe, e não poderia esperar nada além de um medíocre reality show. O paralelo com reality show vem da diretora do Goethe-Institut, responsável por trazer a companhia, ao comentar na apresentação do programa que "o resultado é a encenação de uma demografia metropolitana em forma de 'reality show'" - se eu tivesse lido o programa antes, não teria perdido meu tempo no Municipal. Ela é precisa: 100% São Paulo é uma franquia a la Big Brother - a diferença é que o produto da Endemol é para a televisão, e o do Rimini Protokoll para teatro -, replicada em várias partes do mundo e, desconfio, em todas registrando o senso comum mais rasteiro. Talvez se aqui em São Paulo houvessem apresentado 100% Filadélfia ou 100% Atenas ou 100% Taipei, dando ao público a possibilidade de contrapôr suas concepções com outra cultura, poderia ter causado um impacto maior do que um entretenimento de segunda linha. Segunda linha, inclusive, esteticamente - um eficiente e convencional modelo inspirado em programas de televisão.
O início é interessante, as pessoas se apresentam rapidamente, e apresentam o objeto que carregam e que as representa. A seguir, distribuem-se pelo espaço conforme as cinco categorias - um telão ao fundo mostra imagens de cima, que ajudam a visualizar a estatística da cidade. Parece uma aula de geografia animada - e sem questões relevantes, como nível de renda, de endividamento familiar, de ocupação, de acesso a serviços essenciais de qualidade. Ainda assim, cresce a expectativa que depois disso o espetáculo perca esse ar de tele-aula e venha a dramaturgia. Não há vem: o início é o que há de melhor. 100% São Paulo lembra o quadro Tentação do Programa Silvio Santos, em que as pessoas precisam escolher uma das portas que acham conter a resposta correta. No caso de 100% City, as pessoas se distribuem entre o grupo dos "eu sim" e do "eu não", sem que haja resposta certa e prêmio ao final. Longo tempo assim, e muda-se a forma de resposta, primeiro para uma opção de quatro opções pré-determinadas e representada por cores, a seguir para o levantar a mão. Ainda que esse tipo de questionário não abra possibilidade de maiores reflexões, poderia ao menos haver perguntas boas. Não é o caso. O caso aqui é entreter e dar ao distinto público do Municipal a impressão de que poderiam ser eles no palco. Tanto é que muitas das pessoas da platéia também participam, comentando com seus companheiros se sim ou não, ou levantando a mão.
Ao contemplar as respostas dos selecionados, descubro que o ex-PM e atual taxista é a favor da redução da maioridade penal, que o pastor evangélico é contra o aborto, que o patinista gay da Mooca é contra bolsa família e cotas nas universidades, contrariamente ao negro morador do Capão Redondo. Em suma: descubro o que se sabe ao andar por São Paulo, ou ao ler qualquer levantamento de instituto de pesquisa.
Em algumas das brevíssima apresentações que cada uma das pessoas faz de si no início, há indicações de possibilidades que o trio alemão passa ao largo. O ex-PM e taxista, por exemplo, mostra uma foto da sua turma da polícia: segundo ele, dois viraram bandidos, três foram assassinados. Talvez na sua história de vida fosse possível compreender o que o leva à posição de favorável ao porte de armas e redução da maioridade penal - compreender não para ser favorável, mas para não reforçar a polarização que hoje se vê em todo o mundo, do Brasil de coxinhas e petralhas aos Estados Unidos de Trump versus Sanders, passando pela Europa que não sabe se reafirma a civilização ou adere de vez à barbárie. Mas o que os diretores oferecem é apenas uma resposta simplista que reforça preconceito e estereótipo, e causa indignação do casal ao meu lado.
Admito nunca ter me interessado por reality show, e o pouco que vi achei descartável, inclusive como entretenimento; e que tele-aula tampouco me empolga (ok, andei assistindo a uns documentários na TV Escola que gostei, e muito!). Mas não é por isso que 100% São Paulo é fraco. Da possibilidade de sortear trajetórias de vida para serem narradas ao público, de contrapôr visões divergentes de duas ou três das cem pessoas em assuntos polêmicos, de causar estranhamento e mesmo tensão nos participantes ou no público, tudo isso é descartado em favor de um medíocre reality show cara-a-cara, que força identidades precárias - sou palmeirense, sou corinthiano, sou vaidosa, sou da paz, sou da zona sul, da zona leste -, aguça egos e nos oferece uma amostragem do que pretensamente opina o paulistano - não digo pensa porque as respostas "sim" e "não", salvo quando muito bem trabalhadas, não autorizam reflexões nem maiores pensamentos. Ao fim, o que há de mais profundo em todo o espetáculo são os objetos trazidos pelas pessoas.

09 de março de 2016.

O melhor momento da peça, quando cada um representa o que cada um costuma estar fazendo em determinada hora.

domingo, 6 de março de 2016

Um ponto de inflexão na crise político-institucional brasileira, e a necessidade de tomar partido

Até esta semana havia conhecidos que mantinham sua capacidade de reflexão e pensamento em um nível mínimo para não serem confundidos com um papagaio ou um cão adestrado, e que não estavam de todo convencidos de que se articulava um golpe jurídico-policial-midiaresco contra a presidenta e o Partido dos Trabalhadores. Não eram ingênuos a ponto de acreditar que todo o mal do Brasil e da Terra tem origem, meio e fim no PT, mas achavam que a idéia de golpe era teoria conspiratória - as evidências do golpe eram evidências, não provas, diziam. No máximo admitiam que havia uma cobertura desproporcional contra o PT, que seria justificada pelo fato de ser o partido no poder federal - o fato do PSDB ser poder estadual em São Paulo e ter acusações mais graves que as contra o PT, que em mais de vinte anos de prevaricação desviaram mais milhões do que as petistas, isso nunca entrou na conta.
Não os culpo de todo: o monopólio das concessões de rádio e TV por parte de algumas poucas pluto-famiglias, verdadeiras máfias espetaculares (ou pós-modernas, apesar de serem-na desde quando não se ia além da Modernidade), impede o desenvolvimento da democracia - em que o contraditório é condição necessária - nestes tristes trópicos: convivendo num meio em que as pessoas se limitam a assistir a Globo e afins, ouvir Band e CBN, ler Folha, Estadão, Veja e congêneres, é-se bombardeado a cada cinco minutos com notícias do "descalabro" da nação perpetrada por petralhas, comunistas, negros, nordestinos, ateus, putas, gays e favelados de toda sorte, de modo que não há como não ser convencido da sua verdade - a Grande Imprensa tem Goebbels como seu Manual de Redação -, ainda que a esses seres pensantes mal localizados seja perceptível certo exagero.
A situação mudou radicalmente de figura nesta sexta, dia 4 de março, com a condução coercitiva do ex-presidente Lula. A partir de então, não aceitar de que há uma tentativa de golpe de Estado em curso é burrice grande, ou má-fé exagerada. Má-fé do nível da do juiz Sérgio Moro, que hipocritamente justifica que visava com isso preservar a imagem do ex-presidente - afinal, é claro que a imagem de um dos principais líderes do Brasil de todos os tempos (concorde com ele ou não) sendo buscado em casa pela polícia não tem nenhum simbolismo.
Má-fé que tem pautado a operação Lava Jato e sua cobertura desde o início: prisões preventivas sem fim com o intuito de assinar uma delação premiada em troca de afrouxamento da pena - apesar de ainda não ter havido julgamento para que houvesse pena -; delações sigilosas aos advogados de defesa mas que são de conhecimento da Grande Imprensa; aviso prévio à imprensa sobre a prisão de Lula - como deixou claro o tuíter do editor do panfleto semanário Época, Diego Escosteguy -; descarte de toda evidência, ou mesmo prova, que atinja políticos ligados ao PSDB ou aos partidos de oposição - ignorando, inclusive, que FHC admite explicitamente em seu livro Diários da Presidência que sabia da corrupção na Petrobrás desde 1996.
Não adentro as evidências contra Lula alardeadas pelo juíz Moro e pela Grande Imprensa, afinal elas são meras formalidades em busca de um pretexto que justifique o golpe.
Um dos argumentos que tenho ouvido e lido tudo o que está acontecendo é amparado pela lei, logo, não é golpe. Para esse sofisma, convém rememorar que em 1961 o Congresso aprovou o golpe de Estado (super-brando, diria a Folha de São Paulo?), com a mudança do regime de governo o país de presidencialismo para parlamentarismo - ou seja, um golpe feito dentro da mais estrita legalidade. Um exemplo mais recente, ainda que adventício: Fernando Lugo foi afastado da presidência do Paraguai, em 2012, em processo legal de impeachment, que durou 24 horas e não enganou ninguém.
Mesmo sem aprovar mudanças constitucionais oportunistas e sem extrapolar as leis, abuso de direito é tipificado na nossa legislação, no artigo 187 do Código Civil: "comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa fé ou pelos bons costumes". Sérgio Moro está descaradamente excedendo os limites impostos pela lei, a ponto do ministro do STF Marco Aurélio Mello, que está a anos-luz de distância de ser petista, se assombrar com o destempero do juiz paranaense. Disse o magistrado a Monica Bergamo: “só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado". Ele compara a ação de Moro à dos justiceiros - ou seja, à dos capangas que faziam a lei do coronel imperar nos sertões do país nos séculos XIX e XX, ou dos esquadrões da morte da segunda metade do século XX; nada mais longe do Estado de Direito, portanto.
Não é o que entende a Grande Imprensa. A colunista Miriam Leitão, arauta de seus chefes, comemorou que não haveria mais intocáveis no país. Primeiro que há aí uma mentira: a Grande Imprensa, para a qual ela trabalha e que se orgulha de ser o "quarto poder" da república (tem falado pouco nesse assunto, desde que começaram as pressões pela sua regulamentação legal), resiste a qualquer lei que vise enquadrá-la no arcabouço democrático e de direito, de modo que é intocável pelas leis. Segundo que a questão não é estar acima da lei: o que ficou evidente na fase Aletheia da Lava Jato é que o juiz Moro veste toga mas age à margem da lei (a exemplo de seu modelo, o ministro Gilmar Mendes, figura das mais nefastas da história recente do Brasil). O argumento de que isso seria preciso, pois de outra forma os acusados conseguiriam dar um jeito de prejudicar as investigações, ou que já há provas suficientes para medidas mais drásticas, é uma falácia das mais perigosas. Que o diga o dramaturgo Nelson Rodrigues, por oito anos grande entusiasta do golpe civil-militar de 1964 - o que significa também aprovar prisões extra-legais, torturas, desaparecimentos e ações do gênero -, até ter seu próprio filho preso e torturado pelos militares, em 1972. Só então ele se deu conta que fora do Estado Democrático de Direito todo mundo é potencialmente um inimigo prestes a ser abatido. Marco Aurélio Mello deixou isso claro na sua entrevista: “o atropelamento não conduz a coisa alguma. Só gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem um paredão na praça dos Três Poderes”. Ironia: a direita brasileira, que grita vai para Cuba, e acusa o regime da ilha de assassinar opositores, é quem se aproxima de construir um paredão bem aos moldes do que ela diz haver em La Havana.
Dia 4 de março de 2016 é, portanto, um ponto de inflexão nesta crise institucional brasileira. Infelizmente, neste momento não é possível permanecer neutro: não se trata de disputa entre esquerda e direita, entre governo e oposição; é disputa entre democracia e ditadura, entre Estado de Direito e Direito de Estado - no primeiro, todos, inclusive juízes, procuradores, políticos, presidentes, governadores, donos de emissoras de tevê devem se submeter às leis; no segundo, o Estado, na figura de seus representantes políticos, judiciais, policiais ou militares tem direitos sobre os cidadãos que julguem inconvenientes ao "serviço do Brasil" (para usar o lema de um jornal golpista), e não precisam se submeter às mesmas leis que as pessoas comuns.

Dói ter que defender o governo Dilma: um governo que entrega o petróleo a multinacionais, que não faz reforma agrária, que aumenta juros para benefício de uma minoria, que aprova lei anti-terrorismo, que não altera nenhuma estrutura do país, beira o indefensável. Contudo, é preciso defender a democracia - sistema que permite não só que esse projeto de governo não perdure para além de quatro anos, como que permite que a pressão das ruas impeça a tomada de medidas que prejudiquem o grosso da população -, e neste ponto crítico defender a democracia é defender o mandato da presidenta. Entretanto, ao garantir a democracia política-formal, não é possível se acomodar: é preciso pressionar por reformas que implementem uma democracia de fato, a começar pela democratização da mídia. Ou então teremos crise institucional toda vez que os interesses dos poderosos do Brasil e do mundo foram minimamente contrariados.

06 de março de 2015.

Imagem do justiceiro Moro achada na internet. Fica a dúvida: o que significa "todos"?