domingo, 13 de março de 2016

Querem que o Brasil se torne uma grande favela

Há um certo ethos corrente nestes Tristes Trópicos que tento entender, sem muito sucesso. É uma forma de pensar e se posicionar com relação ao mundo, em especial diante do Outro, que me soa absurda - por mais corriqueira que seja. O "complexo de vira-latas", enunciado por Nelson Rodrigues ajuda, mas não dá conta de tudo, pois parece se aplicar melhor à relação com o estrangeiro, em que nos vemos inferiores em tudo - menos no futebol, único momento da nação cantar que é brasileira, "com muito orgulho, com muito amor", apesar que depois daquele lindo 7 a 1... O que me intriga é a forma como essa auto-imagem caquética é reorganizada nas relações entre as classes sociais, no interior do território.
Parece que precisamos o tempo todo de comprovação do Outro de nosso valor, e essa comprovação se dá pela negativa do Outro - que beira a negação, almeja a negação do Outro, mas não sobrevive se negá-lo -, com o regozijo do fracasso alheio (acho que isso se destaca tanto pra mim por meu pai sempre ter combatido essa forma de apreender o mundo, recordo a vez que tentei justificar minha nota baixa comparado à de colegas). Me vem como um exemplo o professor de ética que tive na graduação em filosofia: não perdia uma oportunidade de tentar diminuir seus colegas ou sua desafeta-mor, Marilena Chauí - em compensação, raríssimas vezes foi que demonstrou ter algum conteúdo além de ressentimento e ego. Outro exemplo eu já trouxera em crônica antiga, em que questionava a satisfação desditosa de pessoas abusarem de pequenos poderes, quando tem a oportunidade (como ficar no lado esquerdo da escada rolante propositadamente), que nada acrescentam à sua vida pífia [http://j.mp/cG161009]. Um terceiro exemplo: os tais "privilégios" que muitos se indignam e querem ver abolidos (como os marajás colloridos), na maioria das vezes não passam de direitos legítimos e que deveriam ser extendidos a toda a população - dois meses de férias, trabalho remoto, trinta horas, se tanto, de expediente por semana, salário na casa dos cinco dígitos: isso deveria ser uma possibilidade factível à maioria da população, e não apenas a meia dúzia de togados.
Somos movidos a ressentimentos e, incapazes de nos atribuir uma valoração positiva, sustentamos nossa auto-imagem na derrota do nosso próximo, que nos faz esquecer temporariamente o fracasso que também somos.
Vejo Donald Trump "caosando" nas prévias republicanas. Penso nas tais "pessoas de sucesso" (sem entrar no mérito de que sucesso é esse) daquelas terras, que estufam o peito para contar sua história de vida, que se tornam modelos para seus conterrâneos. Aqui, no Brasil, não teriam vez: seriam vistos não apenas sem admiração, mas com inveja, dessas sangue nos olhos, das pessoas que trazem o olhar sempre atento, sempre esperançoso de uma queda triunfal no próximo passo - "aqui se faz, aqui se paga", justificam. Exceção feita à nossa commodity for export, jogador de futebol, e ao Sílvio Santos. Talvez porque saibamos, ainda que não queiramos admitir, que a mobilidade social no Brasil é para inglês ver e nunca ascenderemos à casta dos senhores da Casa Grande, que nos incomoda os poucos exemplos que confirmam a regra.
Lula, principalmente após a vitória nas eleições de 2002, assumiu com ênfase esse discurso positivo sobre si, sobre seu passado, sua história - ao invés de se fazer sobre o negativo do Outro, como fez FHC. Foi o que recordou no seu discurso após os eventos bananeiros de 4 de março, ao comentar, por exemplo, o quanto cobra por palestra. Um migrante sem nível superior negar o complexo de vira-latas para o mundo? Uma afronta dupla para a classe-média, média-alta brasileira. Para piorar: pressionado, cresceu ainda mais na auto-afirmação de si.
A prisão, seqüestro, condução coercitiva ou que nome se queira dar ao ocorrido com Lula dia 4, além do pedido cafajeste dos promotes do Ministério Público de São Paulo, dia 10, trouxe a uma significativa parcela da população esse prazer pusilânime de ver o Outro se dar mal - mais, de mostrar a esse nordestino petulante seu devido lugar. O que esses brasileiros não se deram conta - porque a Grande Imprensa não entregou mastigado, e seu funcionários são covardes e atiram no próprio pé na esperança de ganhar um bônus no fim do ano - é que aplaudir o ato ilegal contra Lula e o pedido de prisão contra o ex-presidente (independente de a suspeita de corrupção vir a ser confirmada no futuro ou não), é aceitar que a polícia, a justiça e quem mais for aja fora da lei, conforme a conveniência de momento a si e aos seus interesses - banditismo, para usar o termo que Datenas da vida tanto gostam de aplicar aos pretos pobres periféricos. Diante de pessoas acima da lei, corrupção e desvio de dinheiro se tornam problemas menores diante da violação dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Esses brasileiros, que hoje ocuparam as ruas de várias cidades do país e tem a fé cega de que estão do lado certo, do lado "do bem", podem, mesmo sem mudar de posição, serem vistos como "do mal" pelas mesmas pessoas que agora apóiam, e serem perseguidas, presas, torturadas, mortas - vide Nelson Rodrigues, entusiasta do golpe de 64, até prenderem seu filho.
Mas essas pessoas - classe-média, média-alta, branca, nível superior, moradora de bairros abastados - que vibram com as agruras injustas contra Lula não deixam de ser coerentes: o fazem também quando polícia mata "bandido", quando prendem preto pobre periférico em poste, quando chacinam craqueiros, quando prendem e espancam sem-terra e sem-teto. Sua ignorância crassa (apesar do diploma da USP) não permite que entendam que a igualdade é boa quando estão todos sob o abrigo da lei, e que quanto mais direitos todos tiverem, melhor. Só enxergam sua realidade mais estreita, por isso acham sublime a igualdade que rebaixa todos ao seu nível, que põe seus iguais junto a eles, como moradores da senzala. Seu ressentimento não permite que percebam sua verdadeira condição: acham que por serem escravos domésticos e servirem diretamente a mesa do senhor, não são escravos. Se achavam ruim Lula ter transformado aeroporto em rodoviária, mal esperam a vez de Globo e Moro transformarem o Brasil todo numa favela - terra sem lei, em que o Estado é tão criminoso quanto o dito "bandido", onde ninguém tem direito a nada, onde todos são suspeitos e não há para onde correr.


13 de março de 2016

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