terça-feira, 23 de agosto de 2016

Debate em SP: os presentes ganharam, a democracia perdeu

O primeiro debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, realizado pelo grupo Bandeirantes (um dos cinco Berlusconis do Brasil, não esqueçamos) na segunda, dia 22, não trouxe grandes surpresas nem grandes embates: os cinco presentes estavam ali para marcar posição, tentar garantir os eleitores que já tendem a neles votar. Analiso o desempenho de cada um a seguir.

Erundina, PSOL
Não esteve presente no debate, por conta da cláusula de partido (no mínimo 9 deputados federais ou então aprovação de 2/3 dos demais debatedores) que, se excluiu Erundina, também não deu voz a Ley Fidelix (aquele que em 2014 nos ensinou que sistema excretor produz partidos e candidatos). Não há como negar que perderam todos, eleitores, candidatos e nossa democracia-na-UTI. Curiosamente, quem parece ter se dado melhor com sua ausência foi justo Haddad, que defendeu sua participação.

Major Olimpio, SD
Tanto quanto a ausência de Erundina, deve ser sentida a presença de Major Olimpio, do SD (seria SD ou SS?), partido do notório Paulinho da Farsa Sindical. A presença dele não somente no debate, mas no pleito, é uma grave sinal da qualidade da nossa democracia e da nossa sociedade: Major Olimpio tem um discurso de ódio de clara inspiração nazi-fascista, apenas atualiza os termos: de "ratos" para "câncer" e "metástase"; sua proposta é militarizar e hierarquizar a sociedade, enquanto extingue qualquer contestação - fez questão de associar movimentos sociais ao tráfico de drogas e a população carente e da periferia ao PCC (mas ignora que o ministro da justiça (sic) do governo golpista foi advogado do "partido"). Termina sua fala falando em "força e honra", dois termos bastante afins aos regimes totalitários do século XX, além de várias vezes dizer que a cidade é terra sem lei e que vai "impôr" a lei - "tolerância zero". Tem como propostas repressão ampla e extinção do PT (provavelmente porque falar em extinguir a democracia não cairia bem). 

Doria Junior, PSDB
Em fevereiro, quando PSDB hesitava entre Doria e Matarazzo, eu dizia que "João Doria Junior seria a assunção do papel de legenda proto-fascista" e que o PSDB deixaria, definitivamente, de ser uma opção democrática. Faço uma correção: substituto o "proto" por "neo". O PSDB de São Paulo é um partido neofascista. Doria Junior claramente desdenha da política, dando novo alento à tarefa que o PSDB se põe há tempos, de esvaziar a esfera pública de toda e qualquer política. Doria Junior chegou a soltar o velho conhecido "nada contra, mas...": "não desrespeito os políticos, mas...", mas é isso que fica claro na posição atual do PSDB: sai o gerente, entra o patrão, e a política é varrida para longe de qualquer horizonte - temerosos tempos nos aguardam. Um partido que nega a política é um partido que bebe do fascismo - ainda que o PSDB tenha suas idiossincrasias, como ser anti-nacionalista. Doria Junior, a exemplo do candidato do SD (SS?), buscou marcar presença como candidato de extrema-direita e anti-PT: em todos os blocos o candidato tucano atacou o PT, no primeiro bloco os dois chegaram a rivalizar no discurso de ódio, a seguir Doria Junior diminuiu um pouco o tom, deixando ao PT a responsabilidade por ter "destruído o Brasil"; encerrou suas considerações finais não com uma mensagem positiva, como publicitários geralmente defendem, mas com mais ataques e ódio ao PT - outra figura lastimável que São Paulo apresenta ao Brasil.

Russomano, PRB
Russomano era quem mais tinha a perder com o debate, por ser líder e por ser fraco - já provou em 2012 e já deu mostras em 2016. Faltar, como havia ameaçado, o tornaria alvo fácil dos adversários - fez bem em comparecer. Apagado, falou pouco, e conseguiu, ao que tudo indica, se safar. Por ser o adversário ideal no segundo turno, foi também poupado por todos. Com entonação muito próxima a dos pastores televisivos, evitou se apresentar como candidato anti-PT, ao mesmo tempo que assumiu discurso de direita, falando em gestão, redução de impostos, liberdade de mercado (para a construção civil). Em suas considerações finais, fez um discurso de candidato próximo do povo e dos seus problemas, por ser apresentador de tevê e brigar pelos seus direitos de cidadão (sic), foi o único a marcar tal proximidade (ao menos a conseguir, Doria Junior foi risível ao dizer que vai fazer uma gestão na rua). Por fim, se apresentou como "zelador de São Paulo": um papel condizente com sua presença apagada, o que pode ser bastante perigoso (para o candidato): um homem como eu e você tem condições de ser prefeito? Lula tem má-recordação de discurso desse tipo. Além do mais, zelador é uma figura um tanto subalterna, que cumpre ordens e faz pequenos consertos, mas não tem autonomia para realizar grandes mudanças. A ver se esse seu discurso não lhe custa votos - se correr o risco de ficar fora do segundo turno, passa a ser alvo preferencial dos adversários.

Marta, PMDB
Confesso ter me surpreendido com a Marta, imaginava que ela seria mais crítica a Haddad e ao PT, apelando para a baixaria. Não foi. No debate tentou se apresentar como a velha Marta de 2004, a Marta petista - talvez tenha notado que tentar disputar os votos do anti-petismo com a extrema-direita seria tarefa inglória -, apenas se corrigindo em criar taxas e impostos. Seu anti-petismo ficou na discreta consideração final, em que se disse capaz de "acolher todos os cidadãos", o que faz coro com o discurso da grande mídia e da extrema-direita, de que o PT dividiu o Brasil e governa só para alguns - ao que tudo indica, vai guardar o anti-petismo para quando falar diretamente com anti-petistas, como os leitores do Estadão. Acenou com a direita em pouco pontos, como na defesa da repressão na região central de São Paulo como política anti-drogas; preferiu marcar sua experiência e fazer um discurso para a periferia. O que mais chamou a atenção durante o debate, contudo, foi a quantidade de vezes que usou "eu": sua forma ultra-personalista de fazer política é bem aceita na tradição política do país, e sua força nestas eleições vem justo daí (Doria e Olimpio foram pelo mesmo caminho, mas sem toda ênfase no "eu" porque tinham que atacar o PT).

Haddad, PT
Haddad era quem mais tinha a ganhar com o debate: por ser o governante de turno tem mais que promessas a fazer, mas como é boicotado pela grande imprensa, pouco espaço teve para notícias positivas durante seu mandato - seu marketing também parece ter sido falho, ao não se centrar em propaganda intensiva nos veículos tradicionais durante os quatro anos (tenho cá minhas dúvidas se não foi decisão tática). Soube usar o debate para elencar suas ações nos três anos e meio à frente da prefeitura: citando obras e localidades e bairros, ao invés de falar genericamente em "periferia" ou zona leste, oeste, norte, sul, seu discurso foi direcionado para as periferias citadas, com o objetivo de marcar para seus moradores o que são ações de seu governo. A tentativa desesperada da extrema-direita de colá-lo ao PT (e o PT à corrupção) demonstra minha tese de que ele conseguiu construir sua imagem acima da do partido. Foi o único candidato a falar "nós" e não "eu", ou seja, o único que assumiu a política como construção coletiva (seja de um equipe, de um partido ou da população) e não como desejo voluntarioso de um governante benfeitor - uma sutileza política talvez pouco notada, mas que parece ser um dos responsáveis pela sua (alardeada) baixa aprovação. Destaque para quando resolveu não responder Major Olimpio e sim desmascará-lo no que chamou de "provocação": não apenas por dizer que todos os partidos e corporações têm corruptos (Major Olimpio babou de raiva quando Haddad falou que havia PMs corruptos) e devem ser punidos, mas por recusar entrar nos termos postos pelo major da SS, digo SD.

Enfim, pode-se dizer que todos os candidatos presentes ganharam com o debate, em que pouco, quase nada, se debateu, o que talvez explique seu "bom" nível. A ausência de Erundina e a presença de Major Olimpio e Doria Junior, entretanto, podem ser encarados como uma grande derrota da democracia e da população da cidade. Há ainda cinco debates pela frente, e é de se esperar que o nível caia muito - resta-nos torcer pra que nossa democracia-na-UTI resista.

23 de agosto de 2016

Erundina, apesar de sua relevância política, foi barrada do debate por Marta, Doria e Olimpio

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Eleição paulistana: disputa pela sobrevivência

Desde a ascensão do PT ao executivo federal os analistas políticos da grande imprensa (que entendem tanto de política quanto Miriam Leitão de economia e eu de modelagem teórica em monocamadas anfifílicas) tentam ligar as eleições municipais a uma prévia da presidencial de dali dois anos, como se fosse um equivalente às eleições legislativas de meio de mandato no Estados Unidos. Erram sempre, claro, porque o objetivo é criar uma narrativa de início de decadência do PT, que se consumaria na próxima eleição federal. Nas eleições de 2016, por conta da polarização política conseguida pela extrema-direita (bem ao gosto do fascismo e nazismo do século XX), consagrada com o golpe de estado encabeçado por Temer e Serra, e com o desenho institucional de uma "ditadura pós-moderna de linhas neofascistas", ao menos nas grandes cidades, talvez a política federal tenha  - finalmente! - alguma relevância na decisão do eleitor. Entretanto, na principal cidade do país, São Paulo, o que chama a atenção é o enredo de reality show que a eleição deve ganhar. Não se trata apenas de vencer a disputa, mas de sobrevivência política. Com um adendo a mais: não se sabe se e em que condições o vencedor concluirá o mandato, ainda mais se for Erundina ou Haddad.
Em fevereiro, quando Datena desistia da disputa e Erundina ainda não era cotada, Haddad podia ser considerado favorito [http://j.mp/cG160201]. Com o grau de perseguição e ódio ao PT que superou as expectativas dos mais entusiastas goebbelsianos e a entrada de Erundina, a situação se complicou ao atual prefeito, que está longe de ser carta fora do baralho, ao contrário do que apregoa a grande imprensa. Convém lembrar que os institutos de pesquisa tem índice de acerto de 0% nas suas pesquisas de boca-de-urna (como bolão, Ibope, DataFolha e afins chegam perto dos 50%, mas pesquisa estatística e bolão são significativamente diferentes [http://j.mp/cG10410]). Não por acaso, pesquisas internas de partidos e candidatos são feitas por outros institutos, que numa estratégia de mercado optaram por não divulgar resultados na imprensa, e garantir seu ganha pão com índices de acertos relevantes (ouvi isso de um professor de estatística, dono de um desses institutos menores mas mais bem conceituados). Mesmo assim admito; é difícil pensar que tudo o que se vê na grande imprensa sobre as pesquisas de intenção de voto seja mentira - mas ouso dizer que se não é tudo é quase tudo: o The Intercept mostrou como Folha de São Paulo não tem nenhum pudor em manipular e distorcer dados (Globo, Veja e quetais menos ainda) [http://bit.ly/2bcjdbG]. Enfim, faço uma breve análise dos principais candidatos do pleito:
João Doria Junior, PSDB: o azarão
Dos principais candidatos, apenas Doria Junior pode perder: o PSDB não possuía nome para a disputa (graças a seus caciques personalistas, que não permitiram a emergência de outras lideranças), e Doria Junior foi ungido para ser escada do Milosevic bandeirante, Alckmin, no seu plano de alcançar a presidência de nossa república bananeira. Disputa a prefeitura para ganhar visibilidade com vistas à eleição estadual em 2018 (se houver eleições em 2018). Tem pequena chance como voto útil contra as esquerdas, caso Russomano abra a boca e desidrate, como em 2012, e Marta não consiga anular o fato de ser ex-petista. Seu veto a Erundina participar dos debates televisivos mostra que sua preocupação maior é combater as esquerdas e não vencer as eleições.
Luiza Erundina, Psol: para provar que é alternativa
Mais que Erundina, quem testa sua sobrevivência nas eleições de 2016 é o Psol. Vencer a disputa na capital paulista seria sua consagração como alternativa de esquerda ao PT. Ainda que uma derrota não seja desastrosa para a legenda nem para a candidata, dificultará a construção de um discurso para 2018 (se houver eleições em 2018). O problema da candidatura de Erundina é se resolver centrar fogo em Haddad, como alguns de seus apoiadores têm feito: além de ajudar a enfraquecer a esquerda como um todo, num cenário de criminalização goebbelsiana das esquerdas, seu passado tem deslizes que contradizem abertamente seu discurso atual. Seu ponto forte é que deve ter a militância mais aguerrida da disputa, o que pode fazer diferença num eleitor de esquerda hesitante entre ela e Haddad e a força de cada um no segundo turno.
Celso Russomano, PRB: o candidato sabonete não pode falar
Em 2016 Russomano precisa provar que é capaz de disputar de verdade uma eleição majoritária: se fizer o papel de cavalo paraguaio novamente deverá se consolar com eleições legislativas, apenas. Em 2012, tão logo abriu a boca para fazer uma proposta política, perdeu votos e ficou fora do segundo turno. Promete não fazer muito diferente em 2016, de modo que ameaça não participar dos debates no primeiro turno - sua sorte também é o menor tempo de campanha. Tem ido em busca dos viúvos do Datena, assumindo discurso militarizado e de repressão. Uma de suas promessas é de revista geral para garantir que só os "cidadãos de bem" circulem pelo centro da cidade: proposta capaz de desagradar parte de seu eleitorado - pretos pobres periférico - sempre vistos como suspeitos, que ganhariam uma revista bônus da polícia e da GCM, sempre que resolvessem sair de casa. Também pesa contra o político ser do partido da Igreja Universal do Reino de Deus - para sua sorte o pastor-estuprador Marcos Feliciano apenas declarou apoio, não havia chegado a gravar um vídeo. Ainda assim, tem grandes chances de ir para o segundo turno, se ficar quietinho. Ganhar a eleição, dificilmente. Se não cair nas pesquisas, deve ser poupado de ataques no primeiro turno: Marta, Haddad e Erundina sabem da fragilidade do adversário, e que quem for disputar com ele tem boas chances.
Marta Suplicy, PMDB: tudo ou nada
Numa disputa onde todos tem muito a perder, quem está com a pele mais em risco é Marta: derrota em 2016 pode significar o fim da sua carreira política (pressupondo a continuidade de certa democracia). A disputa à prefeitura serve para pôr à prova se seu capital político é mesmo dela, ou é do PT. A sexóloga homofóbica (basta lembrar a campanha contra o Kassab, em 2008) abandonou o PT ressentida e assumiu o discurso mais tacanho da grande imprensa: defendeu a moralidade e o fim da corrupção ao lado de Temer e Eduardo Cunha, se aliou a Serra na entrega do pré-sal, foi voz ativa dos golpistas na farsa do impeachment, e até se disse vítima de "racismo reverso", por ser loira de olhos azuis. Resta saber se isso será suficiente para que ela perca a pecha de petista para o paulistano classe-média típico - até que prove o contrário, Marta é o mais petista dos candidatos. Seu ponto forte está na periferia, ainda em conseqüência de sua gestão à frente da prefeitura, em governo bastante personalista. Ganha votos também graças ao discurso de destruição do PT, e ao erros de publicidade da gestão Haddad. Entretanto, por estar aliada ao que há de mais nefasto na política nacional, pode perder parte do seu capital político numa periferia que não tem vocação para massa de manobra. Deve fazer uma campanha das mais vis, de fazer Regina Duarte mirim no seu discurso do "eu tenho medo", centrando ataque contra Haddad e Erundina.
Fernando Haddad, PT: a negação da tese, novamente?
Em 2012 Haddad já foi a negação da tese da grande imprensa, judiciário e grande capital (o triunvirato da ditadura pós-moderna em que vivemos): mesmo com julgamento do chamado mensalão do PT nas manchetes de todos os jornais, o petista conseguiu ganhar a prefeitura paulistana, derrotando ninguém menos que o cacique tucano José Serra. Mas o discurso de 2012 era primário perto do que foi feito desde então, em especial desde a eleição de 2014: o objetivo não é mais derrotar o PT, mas destruí-lo, aniquilá-lo (ao gosto nazi-fascista de Coronel Mendes, irmãos Marinho, PSDB paulista e asseclas menores). Vencer a eleição de 2016 seria a prova de força do PT, mais que do candidato, apesar de tudo o que tem se passado. A seu favor, Haddad conseguiu construir uma imagem desvinculada do partido, a exemplo de Eduardo Suplicy, vencendo barreiras, inclusive, nos cinturões endinheirados da capital. Sua fraqueza estaria justo onde o PT costuma ser mais forte: nas periferias - ainda mais depois de Erundina ter entrado na disputa. Também é ponto fraco o pouco conhecimento da população acerca das ações de seu governo - ações que não são visíveis, mas são sentidas e foram fácil e rapidamente incorporadas ao dia-a-dia do paulistano, como o bilhete único mensal -, e o tempo reduzido de campanha, aprovado pela mini-reforma eleitoral Cunha-Dilma. Esse desconhecimento, contudo, pode ser o seu trunfo: se conseguir reverter os índices de rejeição que os institutos de pesquisa lhe atribuem e ter um crescimento significativo, é capaz de se tornar uma onda difícil de ser parada - para isso, é importante a militância não aceitar o discurso da grande imprensa de candidato derrotado. Por ora tem centrado ataques em Marta, Dória e Russomano, como forma de não deixar dúvidas como candidato de esquerda.

Com a situação dada, é difícil arriscar um favorito. A grande imprensa fará seu papel: desinformação, boatos, mentiras, acusações e reportagens e entrevistas tendenciosas, com o principal objetivo de tirar os dois candidatos de esquerda do segundo turno. As campanhas oficiais louvarão os pontos positivos de seus candidatos, e na internet, padrão-Veja de ataques e boatos deve ser a norma. Esta é, contudo, uma eleição extremamente peculiar, seja pelo contexto nacional, seja pelo contexto dos candidatos - poderia fomentar um rico debate político, mas tudo o que os donos do poder querem agora é política nos debates. A esperar se e como Haddad e Erundina contornam essa interdição, e são capazes de ventilar um mínimo de inteligência num ambiente marcadamente neofascista.

22 de agosto de 2016



quinta-feira, 18 de agosto de 2016

É preciso matar anjos [Diálogos com a Literatura]

Me espanta a indiferença  cruel  com que a enfermeira, irritada em suas narinas, propõe matar os anjos: "por que não lhe dá uma injeção contra os anjos? Deve ter aprendido a matar anjos na Faculdade: os cadáveres de autópsias são anjos defuntos, anjos que se deixam esquartejar sem  uma palavra de revolta". A moça, esquecida num ermo, a fazer companhia a cabras em meios a restos, de repente ganhou a companhia de anjos que conversavam com ela, e foi  para a cidade. Os anjos não lhe faziam mal, tampouco ela fazia mal a alguém, mas é preciso matar os anjos - devastar qualquer ser, qualquer vida que não seja a vida definida como normal, essa feita do amargo ressentimento a quem foi prometida uma felicidade de bijuteria, se suportasse calado as agruras de uma vida de merda trabalhada para outrem. O trecho de Conhecimento do inferno, do António Lobo Antunes, me fez lembrar de um ex-freqüentador do Centro Cultural São Paulo. 
Tendo o psiquiatra perdido o poder de polícia, e não tendo (ainda) o militar assumido o poder psiquiátrico (com temor aguardo o que gestam os evangélicos), resta à assistência social - com as mais hipócritas das boas intenções - matar os anjos, ou ao menos afastá-los da vida das pessoas normóticas, que crèem que a felicidade acontecerá quando no mundo não houver qualquer diferença significativa. A assistência social limpou o CCSP dos maus elementos, pessoas que usavam o espaço para ler, assistir a filmes, jogar xadrez, conversar e conviver, sem terem dinheiro suficiente para poder usufruir desse direito (gratuito). 
Um desses ex-freqüentadores atravessou a rua, passou a freqüentar o outro lado da Vergueiro, a mureta das escadas para o Santo Agostinho. Era quieto, sereno, trazia sempre um sorriso meio bobo e um brilho no olhar que me fazia imaginar que ao menos uma vez ele deve ter tropeçado no sublime. Talvez conversasse com anjos, ou os anjos com ele, não sei - ao menos em voz alta nunca presenciei nada. Ignoro se era feliz ou infeliz, mais ou menos que qualquer outro usuário do CCSP - sofrer parecia não sofrer. Mas a mera possibilidade de um dia ter conversado com anjos já é condição suficiente para apartá-lo da convivência com os normais. Porque loucos incomodam, porque loucos são perigosos. Perturbam a harmonia daqueles que pagam R$ 200 para bater papo em um concerto sinfônico, esbravejam eqüinamente atrás de volantes, gritam para ser ouvidos por um deus perverso e hipócrita, feito à semelhança do que têm de pior - mas não toleram anjos e quem com eles conversa. 
Há tempos não vejo esse ex-freqüentador do CCSP deste lado da rua. Também faz tempo que não vou ao CCSP, pode ser que voltaram a aceitar esse tipo de gente em algum canto, longe da vista dos usuários dignos do local. Ou pode ser que ele tenha cansado do relento e partido. Pode ser que a assistência social tenha convencido ele a ir para um abrigo seguir regras que ele não quer em troca de uma cama e um prato de comida. Ou pode ser que na desproteção da rua, a polícia militar ou qualquer pessoa prestativa tenha transformado o próprio em um anjo - será que ele conversa com viventes? -, para o bem-estar das pessoas de bem, esses que rezam, fingem conversar com deus, mas não toleram que se converse com anjos.

18 de agosto de 2016

domingo, 14 de agosto de 2016

Estudo sobre a meia-idade na segunda década do século XXI [Diálogos com o teatro]

Dentro de uma moldura masculina, na pela de quatro homens, Estudo sobre o masculino: primeiro movimento, residência artística de Antônio Duran, dramaturgista do Teatro da Vertigem, fala sobre a meia idade em quatro sujeitos que não seguiram o "caminho natural da vida" - que nada tem de natural, é antes um fluxo socialmente imposto e cada vez mais caduco na modernidade tardia.
Quatro atores, entre 45 e 55 anos, heterossexuais. Deveriam estar estabelecidos, casados - ou ao menos terem sido -, os filhos começando a caminhar pelas próprias pernas, e a atenção voltando novamente para si e sua vida, com a fatídica pergunta: "que fiz eu da minha vida?", ou melhor, "que deixei eu fazerem da minha vida?" - crise retratada em muitos filmes, como Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) ou A era das trevas (traduzido como A idade da inocência no Brasil, Denys Arcand, 2007). Não é esse o caso que Estudo sobre o masculino retrata: o caminho heterodoxo dos quatro, sem terem feito nenhum comprometimento maior ao longo de suas vidas, faz com que muitas vezes surja a pergunta se não deveriam ter seguido o tal "caminho natural". Por não seguirem o fluxo, parte do drama dos quatro é não poderem fugir à responsabilidade de estar aonde estão: se não é o ponto aonde gostariam estar, é aonde conseguiram chegar com os percalços que a vida põe - não deixaram de tentar para agradar aos pais, para se adaptar a um padrão social. Pelo contrário, a história que contam é a de quem passou a vida fugir da "vida de merda" que lhes era reservada: bom salário, bom marido, bom pai, almejando ser o funcionário do mês e que seu filho consiga fugir desse paraíso feito de obrigações e privações. Em momentos nos perguntamos se conseguiram realmente fugir, ou apenas postergar.
Se comprometeram pela metade com o sistema, sem fracassarem: estão ali, de terno e gravata, a mostrar que em seu trajeto ganharam respeito - ao mesmo tempo falta a calça e a camisa, a dar prova de sua rebeldia e liberdade, ainda que limitadas. O problema de sua heterodoxia, feita de uma crítica pela metade, é que o corpo começa a demonstrar os sinais do tempo: a barriga, os cabelos brancos ou ralos, a falta de fôlego: "só ao me ver no espelho vejo que envelheço", diz um deles. Não viram o tempo passar, mas vêem a velhice se aproximar, por isso têm pressa, por isso repetem seguidamente que querem mais tempo, por isso correm. A velhice soa um fardo: numa sociedade em que "velho" é ofensa, e em que juventude é valor absoluto, não foram críticos o suficiente para fugir dessa valoração absurda e tida como natural, não souberam envelhecer, encarar os anos que se acumulam invariavelmente sobre as costas com serenidade, e na meia idade não sabem lidar com as limitações que o corpo impõe. Talvez por conseqüência de terem assumido esse valor social, nem o corpo nem os desafios que a idade impõe: em certos momentos parecem adolescentes ainda crus da vida - e que apontam seguir na mesma direção quando têm pressa, como se precisassem usar um certo "capital juventude" que têm estocado e precisa ser gasto antes que passe da validade - antes que passem à invalidez. 
Em dez anos estarei eu na meia-idade. Pelo que caminhei até aqui e para onde aponto, também eu terei seguido por um caminho heterodoxo, crítico da sociedade pela metade - o suficiente para pleitear algum sucesso. Também eu tenho pressa, também eu corro - desde já. Após assistir Estudo sobre o masculino, pus a me questionar: fujo da morte ou da velhice?


14 de agosto de 2016



Estudo sobre o masculino: Primeiro movimento from Andreia Teixeira on Vimeo.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Eleições 2018: falta combinar com os russos

Com o golpe de Estado praticamente consagrado, parece não haver outra alternativa às forças progressistas e esquerda em geral que discutir estratégias de retorno para 2018 - assunto que já vinha sendo abordado desde o início do ato final do golpe, o impeachment. Quem se propõe a discutir 2018 sempre esquece uma questão básica: combinou com os russos? Que eleição? Ou ao menos, em que termos? Aceitar a derrota e discutir 2018 é ignorar o que está se passando: vivemos uma ditadura sorrateira: sai a ostensividade da farda, entra a sisudez formalista da toga e dos camicie nere. O golpe é só a parte visível de uma ditadura que se articula nas entranhas do poder: temos um judiciário sem qualquer controle externo e com liberdade para legislar, aliada a uma imprensa sem controle, sem ética e sem pudores, escolada nos ideais nazistas de comunicação, ambos patrocinados pelo capital internacional - financeiro e das seis irmãs -, e um legislativo corrupto que se vende por preço de banana. Nesse contexto, o chefe de executivo vira só um detalhe, pronto para ser descartado, caso saia da linha - basicamente caso se contraponha ao reforço da estrutura perversa de desigualdade social e subordinação total aos interesses estadunidenses (me sinto tão anos 1960 falando isso).
Com o desenrolar dos fatos, volto meu pensamento ao dia seguinte à reeleição de Dilma, e me pergunto se ali já não estava dado o golpe e suas concessões eram tentativas desesperadas e infrutíferas de manter a casca democrática - que permitiria ao menos um alento de reversão do quadro. Sem sucesso na sua empreitada, veio o golpe de Estado encabeçado pelo informante dos EUA, mas que pode durar pouco - ao que tudo indica, dura somente até permitir eleições indiretas, ano que vem. 
Grande imprensa, judiciário e capital internacional formam o triunvirato que determina o que pode e o que não pode no país - de políticas macro-econômicas a questões menores de cidadãos quaisquer. Temer é tosco demais para o cargo, e tenho dúvidas se seu saco de bondades ao triunvirato é suficiente para mantê-lo no cargo. Contudo, também tenho dúvidas se o judiciário quer assumir a cabeça da ditadura, ou prefere seguir comandando da surdina - há vantagens e custos em cada uma das escolhas (o §4 do Art. 5º da lei que regulamenta a eleição indireta, de 2013, anula as exigências de desincompatibilização de cargos e funções públicas). Vale lembrar que em 1964, Castello Branco não tomou de assalto o planalto: Jango quem teria abandonado o cargo, e o presidente do congresso chamou eleição indireta, na qual foi eleito o militar - tudo dentro da mais estrita legalidade constitucional e democrática.
Pode soar sem sentido falar em ditadura sem ditador, mas vale lembrar que o Brasil conviveu com uma "ditabranda" em que havia eleições e alternância de poder - jabuticabas é aqui mesmo, por que não uma ditadura sem um ditador, mas um consórcio sem rosto, pouco definido ao grande público?
Independente de quem seja o chefe de Estado ano que vem, há um esboço do que nos espera para os próximos sabe-se lá quantos anos (os otimistas dirão 2, os receosos, 21, os pessimistas preferem não chutar). 
A lei será respeitada, como sempre. Se acaso a lei não servir ao donos do butim, muda-se a lei - todo golpe de Estado, depois de sacramentado, se torna legal. Se a lei não for respeitada, também não é problema, a grande imprensa deixa passar - desde que seja um ilegalidade de "boa-fé". Há um exemplo dessa democracia vindo da Argentina: Macri atropelou as leis e o congresso para desmontar programas kirchneristas que não dependiam do seu voluntarismo - programas que tiveram que passar pelo crivo do legislativo antes de serem implementados. 
A exemplo do que fez em São Paulo, em que polícia militar foi transformada em milícia política do PSDB, é de se esperar que as forças de segurança sigam o padrão político de repressão ao crime - por exemplo: PCC pode, torcida organizada que protesta contra o golpe, não. MST é terrorista e estudante logo vai virar. Mesmo diante da imprensa internacional a repressão política tem tido vez - um amadorismo surpreendente. 
Não acredito no fim puro e simples do programas sociais - a relevância deles é tanta que não dá pra acabar -, mas haverá um componente extra de humilhação aos que precisarem depender deles - o fiscal de pretitude é um primeiro passo.
A possibilidade de um Estado de bem-estar social, isso virará lenda: a depender do grupo golpista no poder não sobrará pedra sobre pedra: papel do Estado é reprimir movimentos sociais, oposição política e ladrões de galinha. E é aqui que está o ponto fraco do governo atual: Temer sabe fazer política de sombras dos corredores de Brasília - ameaçar, chantagear, corromper -, não sabe fazer política de negociar e conciliar: nisso pode mexer em setores ainda fortes o suficiente para pôr o governo em xeque - professores universitários e diplomatas, por exemplo, ainda que estejam quietos, como se vivessem na Terra do Nunca -, e pôr tudo a perder. Não me parece digno do cargo que ocupada e pode ser ejetado tão logo seja dispensável.
Independente do que se passe na presidência, é de se esperar algumas mudanças legais. Provavelmente virá a tão apregoada reforma política, como modo de dar aparência de legalidade democrática à ditadura em curso e afastar por um tempo mais qualquer força progressista das esferas de decisão. Não consigo nem imaginar muito do que viria numa possível reforma do tipo - Coronel Mendes deve ter o projeto já pronto. Haverá substancial reforço às oligarquias partidárias e regionais, os setores arcaicos-tecnicamente equipados da política tupiniquim. As chances de aprovação do parlamentarismo também são grandes - por mais que o sistema já tenha sido duas vezes rechaçado pela população, mas a população é de pouca importância aos ditadores. Ainda que não haja clima pra tanto, provavelmente novas regras limitarão o número de partidos, e calarão aqueles que se põem à esquerda.
Daí perguntas fulcrais e por ora sem respostas aos que tentam vislumbrar 2018: haverá eleição? Se houver, quem poderá disputar? Se se seguir pelo caminho brando, PSOL poderá participar sem direito a participar de debates - fazendo antes papel de legitimador da farsa. O PT pode sequer existir - se existir, terá novamente a forte oposição goebbelsiana da grande imprensa. O principal nome da disputa, Lula, pode ser considerado desde já um ficha-suja, por mais que ainda não tenha sido julgado - pior, por mais que não tenham conseguido achar crime para imputá-lo. A perseguição aos seus familiares mostra o estado da obra do judiciário brasileiro; Protógenes Queiroz conhecia de dentro e tratou de pedir asilo político na Suíça, seria de bom tom os parentes do ex-presidente fazerem o mesmo, uma vez que se atacado por esse lado, Lula pode sentir. Quanto a Lula, infelizmente se tornou personagem fundamental para tentar evitar um retrocesso gigantesco do país, dado seu peso político interno e externo.
Ao que tudo indica, Temer conseguirá algo que parecia impossível: fazer com que a ditadura militar seja vista até com certa nostalgia: ao menos os militares tinham um projeto de nação e um concepção de desenvolvimento - excludente, parcial e subordinado aos EUA, mas desenvolvimento -; o grupo que tomou o poder tem como único projeto a pilhagem e o butim para fins pessoais, sua subordinação aos EUA não inclui nenhuma perspectiva de desenvolvimento e a exclusão social que suas propostas claramente acarretarão chocaria muitos dos escravocratas do segundo reinado (não, não estou defendendo a ditadura civil-militar, apenas alertando aos que tanto a criticam e acham que a situação está razoável o suficiente para não se mobilizar e ocupar as ruas).

10 de agosto de 2016.

domingo, 7 de agosto de 2016

Quadrilha versão pocket

Em minha última visita a Pato Branco, um amigo me levou a um café recém aberto na cidade - a cafeteria a que eu estava habituado ele se recusou a ir, depois que encontrou bigatos em sua comida, motivo que me pareceu digno.
Estamos lá, conversando sobre várias coisas, dentre elas relacionamentos, quando a dona do estabelecimento se aproxima, troca duas palavras e sai. Nesse breve diálogo, ele diz seu nome. Apesar de ser ruim pra juntar rosto com nome, me esforcei pra ver aquele rosto como conhecido - o nome era. Perguntei se o sobrenome dela era aquele que eu imaginava - confirmou. Então contei: quase apanhei por causa dessa mulher, uns vinte anos atrás. Acho que foi a única vez que (quase) briguei por causa de mulher.
Eu tinha treze, no máximo quatorze anos. Tinha tido uma paquera que não foi muito além disso com a irmã do meio da dona do estabelecimento, quando freqüentávamos a AABB - adolescente tímido em sociedade machista é uma maravilha! A mais velha, tenho a impressão, também havia me olhado estranho algumas vezes - pouco depois seria miss Pato Branco, mas era a menos bonita, na minha opinião. A mais nova, quem se interessou foi um amigo. Falava e falava e falava dela. Louvores e louvores à beleza da menina (se eu tinha, se muito, quatorze, ele tinha treze e ela, doze) declamados em meus ouvidos já um pouco cansados daquela lenga-lenga, seguidos sempre de lamentos e lamúrias de não conseguir nada com ela. Até que ele resolveu me perguntar o que fazer. Idéia de jacu, como dizíamos na época. Eu não tinha experiência alguma, mas tinha um ano a mais que ele, que tampouco tinha qualquer experiência. Sugeri que parasse de enrolar: "chega, diz que está a fim dela e convida pra ir no cinema" (na época havia um cinema na cidade). Ele fez quase como sugeri, apenas acrescentou um "oi, tudo bem" antes. Recebeu um não da menina, que passou então a evitá-lo, e ele quis descontar o fora pra cima de mim - não chegamos às vias de fato.
Hoje a menina é uma bela mulher, casada com um dos herdeiros da família dona da cidade; adotou, é claro, o sobrenome do marido - não sei se o marido fez o mesmo, desconfio seriamente que não. Suas irmãs, desconheço o paradeiro, nem me interessei em pesquisar. Meu amigo de infância, que há mais de uma década não troco qualquer mensagem, entre coquetéis antidepressivos e inferninhos da Augusta se formou em medicina, conseguiu arranjar uma namorada, até casou - ela trocou o sobrenome, ele, claro que não -, mora nos Estados Unidos, onde é pastor (e eu torço para que ele não seja dos que agradeceram a deus pelo massacre na boate Pulse, nem ache Trump um cara razoável). E eu, bem... eu não casei, mas tentei trocar oficialmente de sobrenome - sem sucesso, por causa do hífen e da minha preguiça -; a única vez que fui líder ou dono de algo foi de um grupo de humor em que eu era o único integrante (ao menos foi divertido), e os domingos, invés de celebrar missas ou encontrar figurões locais, passo escrevendo crônicas bobas.

07 de agosto de 2016

ps: nesse ritmo de Drummond revisitado, lembrei de um poema de Jefferson Vasques, "Quadrinha revisitada":

João comia Teresa que trepava com Beth
que não gozava com Carlos que olhava (demais) pro Fred
que enrabou o Fábio que nunca havia transado.

João saiu do Brasil, Teresa, do armário,
Beth pediu o divórcio, Carlos pulou do oitavo,
o Fred purpurinou e o Fábio,
agora é Fábia e descobriu o amor por si própria
(que não tinha entrado na história)

em: Subverso, 2009, p. 74.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poética feminista para dramas humanos [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Vértigo (vertigem em espanhol) é claramente um espetáculo feminista, de um feminismo de pouco eco nestes Tristes Trópicos: o que põe a mulher, antes de representante de um gênero ontologicamente único, como representante da humanidade. A bailarina Camila Bilbao e a escritora Camila Urioste (ambas da Bolívia) trabalham o corpo dentro de um duplo registro: como local da política, portanto receptáculo de linhas de força e poder, predominantemente passivo; e como Político, isto é, constituinte de um sujeito ativo que intervém no mundo. Se no primeiro aspecto corpo masculino e feminino guardam grandes distâncias na forma como sofrem a dominação masculina, o segundo põe mulher e homem dentro de um mesmo registro, apesar das diferenças: o de sujeitos políticos, que refletem a sociedade em que vivem, mas são capazes de refletir, reflexionar sobre essa mesma sociedade, e intervir ativamente na sua transformação. Daí a capacidade dessa poética feminista tocar e comover uma pessoa, independente do seu gênero.
O espetáculo começa com Camila a analisar e lamentar as imperfeições da pele e do corpo diante de um espelho-câmera-Outro. Ainda que essa objetificação aguda do corpo recaia especialmente sobre as mulheres, também eu me pergunto: a que olhar tento me adequar? Que Outro invisível-mas-ostensivo faz com que eu me imponha determinados comportamentos? Que mecanismo é esse que nos reduz a imagem para permitir nossa existência dentro do espetáculo? A câmera de vídeo que flagra a insegurança de Camila não é olho de Deus, que está morto, não é o da autoridade do pai, que está capenga, é então o olho de quem que ela representa - para além do nosso, capturado por esse Outro? Que artifício é esse que nos faz reduzir também os demais a imagens, a fragmentá-los em pedaços como que independentes do todo, e a julgá-los e desprezá-los por terem o que nos falta e desejamos, exatamente da forma como fazem conosco e tanto reclamamos? 
Como corpos-objetos privilegiados para consumo, as mulheres são mais visadas por esse círculo perverso - que domina a sociedade do espetáculo de alto a baixo. Camila afirma explicitamente: "mi cuerpo es político". Dessa assunção decorre uma série de conseqüências, todas elas políticas: de ter um filho ou não a subir no tubo de pole dance, passando pelo usar rosa (cor de mulher) e observar seu corpo e o corpo das demais mulheres com um distanciamento cruel. É por ser um corpo político, iminentemente e radicalmente político, que Camila precisa também estar "siempre en guardia": não é em guarda temerosa do ataque do próximo homem, é em guarda do seu próximo ato: agirá ela com relação a outra mulher como a sociedade que a oprime? A questão de gênero não é posta mais em termos de vítima e carrasco, mas da dialética oprimido-opressor exposta por Paulo Freire.
Vértigo não é a recusa de um estado, é mais profundo: é o questionar radical de si, carregando junto com esse questionamento a sociedade toda - seus defensores e seus críticos. "El abismo abajo", que ela fala próximo ao fim do espetáculo, talvez seja tudo isso que levamos sem questionar, e que ela se põe corajosamente a encarar. Camila enumera as regras para uma "boa mulher": bonita, calada, sempre maquiada, sempre sexy, sempre submissa, sempre servil, sempre sorridente. Recusa o que não serve, incorpora o que acha válido para si - seu percurso dialético a autoriza a incorporar valores "positivos" da sociedade machista, sem que nisso haja contradição ou traição da causa. Recebe admoestações por ser sujeito autônomo, que vejo fácil na boca de algumas feministas-acadêmicas que conheci:  que é "demasiado sexy para ser feminista", que o tubo do pole dace é um símbolo fálico. Pois ela não vê assim: como sujeito é capaz de ressignificar elementos do quotidiano, sem se prender a determinações heterônomas, mostra que pode ser sexy E ser feminista; que o pole dance, fora dos inferninhos, é um instrumento de conhecer o próprio corpo de forma lúdica. Vértigo se autoriza a ser feminista e combativo ao mesmo tempo que é poético e delicado. Quem a repreende por não ter asas quando ela diz que vive uma "crisis de las alas" é porque não se dignou a enxergá-la, insiste em vê-la com os velhos olhos de um velho mundo - me dou um alento de que, sim, acho que vi asas em Camila. É por ter asas - ainda que em crise -, que Camila enxerga o abismo sob seus pés e ainda assim tem a coragem de dar "un paso fuera de mi". É quando o mundo muda: do "abismo abajo, infinito arriba" ela pode se deparar com a riqueza de sua humanidade: "el abismo abajo, el infinito adentro".

04 de agosto de 2016

ps: não coube no diálogo acima, mas destaco, a exemplo do espetáculo colombiano Elogio de guerra, que comentei em outro texto, o uso da palavra, do discurso, no espetáculo: um texto muito tocante e bem inserido na coreografia - coisa que não costumo ver em obras brasileiras.


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Dançar um discurso acadêmico-político [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Em geral evito comentar um espetáculo de dança se não tenho nada positivo a acrescentar - não tenho conhecimento para ser crítico de dança, tento estabelecer diálogos, o mais construtivo possível. Para falar de Z.i.g.o.t.o. eu não conseguirei ser muito construtivo - ao menos positivo -, mas não deixa de ser diálogo - e talvez este retorno seja uma das respostas esperadas pela artista e sua provocação.
Tocado pela questão de gênero levantada por Prelúdio para danças caboclas, vou assistir ao segundo espetáculo da noite do Dança à Deriva, Z.i.g.o.t.o., que trata explicitamente da questão de gênero. Até aí, nenhum problema - comentei na minha crônica anterior da dimensão política que a dança contemporânea possui. O que mais me incomodou, entretanto, foi a forma como o espetáculo pareceu ser feito: soou antes uma tentativa de instrumentalização de um discurso pronto do que uma construção artística que trazia junto, no seu fazer, a questão política abordada. Um discurso pré-fabricado preenchido com um corpo (objeto?).
Uma mulher negra que não se enquadra no padrão de beleza (ainda que não se enquadre tampouco no padrão de feiura que a sociedade possui) me parece ser um manancial de experiências sobre as muitas formas de exclusão em nossa sociedade. Se Patrícia Pina Cruz trouxe isso para cena, não consegui perceber; o máximo que me pareceu foi uma mulher que, por conta de ser mulher, teve seu sucesso profissional limitado - dado o figurino (masculino) do início do espetáculo, que remetia a executiva de banco -, e se ressente com isso, a ponto de imitar o gestual masculino, numa tentativa de demonstrar que ela também é capaz de fazer o que um homem faz - no início achei que esse imitar fosse levar a uma crítica daquilo que Bourdieu chamou de "nobreza do masculino", mas me pareceu antes seu reforço (inconsciente).
A personagem apresentada em cena estava antes para uma construção ideal-típica da mulher-vítima, bem ao gosto do feminismo-acadêmico que hegemoniza o discurso de gênero no Brasil (de linha estadunidense, criticada com precisão pela feminista francesa Elisabeth Badinter), a uma construção feita a partir de vivências reais, sentidas no corpo - impressão coroada pela alusão infeliz do estupro coletivo no Rio de Janeiro, verdadeiro clichê do ativismo (de esquerda) de Facebook (comentei em outro texto que o que chocou tanto não foi o estupro, foi o número, e isso deveria ser um alerta para nossa perda de humanidade e reificação da dor do Outro [http://bit.ly/cG16528]).
A forma mais positiva que consigo ver Z.i.g.o.t.o., dentro da perspectiva de um homem não-machista, mas independente disso, um homem, é que é parte de um processo analítico ainda no começo, em que o sujeito começa a se dar conta de si, mas passa ao largo de uma crítica social, da condição que a faz se sentir diminuída, a ponto de soar mais um elogio ao masculino que uma crítica ao machismo.
A preocupação com o discurso político enlatado prejudicou a produção artística e acabou por fazer os dois ficarem muito aquém das suas potencialidades. Ou talvez não, talvez Cruz seja das feministas radicais que acha, como em foto de pichação que vi recentemente, que "feminismo que agrada homem não é revolucionário", e este meu texto seja um elogio para ela - desejo muito que não seja o caso.

03 de agosto de 2016

PS: por ser um texto bastante ranzinza, não iria publicá-lo, mas depois de assistir a Vertigo, no dia seguinte, achei que cabia, até para deixar marcado o contraponto entre dois discursos feministas.


Danças Caboclas, Política Pós-Moderna [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Talvez parte do que eu diga aqui seja o óbvio para quem é da dança - como sou um mero espectador, para mim ainda tem um frescor de caminho pouco desbravado. 
A dança contemporânea me parece um campo privilegiado de arte política - questionadora do estar do e no mundo. Centrada no corpo - cuja representação oscila entre o negativo e o marginal na cultural Ocidental-judaico-cristã-iluminista -, sem exigir desse corpo uma forma ideal ou virtuosismo de movimentos - ainda que tampouco seja rechaçado -, aceitando, inclusive, limitações físicas com naturalidade, a dança é capaz de levar para o palco o gesto mais banal e ressignificá-lo, prescindindo da palavra, do discurso racional: seu discurso, racional ou não, passa por outras discursividades, além do logos, de forma que muitas vezes o simples estar ganha enorme força crítica e política. Esse potencial político deixa à mostra também a dificuldade em ser dançarino, em experimentar outras formas de se relacionar com o corpo - próprio e do outro.
Essas foram algumas das reflexões que Prelúdio para danças caboclas, da Balé Baião Dança Contemporânea, me despertou. 
Tentei imaginar o que é fazer dança contemporânea numa cidade do interior. Três homens que afirmam elementos masculinos - facão, chicote, cachaça, chapéu de cangaceiro - ao mesmo tempo que desafiam esse ser-macho em requebros sensuais - identificados com o feminino. Me pergunto quantas pessoas vão assistir a suas apresentações em Itapipoca, sessenta mil habitantes, no interior do Ceará. Quantos ficam até o final? Talvez depois de mais de vinte anos de trabalho tenham conseguido formar público - quanto de resistência e combate não há nessas duas décadas de arte?
O grande momentos de contestação da coreografia - contestação do machismo, de uma masculinidade imposta, do corpo-tabu - é quando dois bailarinos banham o terceiro, completamente nu, em uma cena que não soa ritualística, muito menos sexual: são duas pessoas banhando uma terceira, só isso - o suficiente para fazer com que pessoas deixassem a sala.
Prelúdio para danças caboclas afirma a cultura tradicional ao mesmo tempo que questiona seus arcaísmos nefastos - os quais se tornam tecnicamente equipados, ao sobreviverem em sintonia com a Modernidade e a Pós-Modernidade. Seria reducionismo falar que é política em forma de dança, mas não há como ignorar a dimensão política e contestatória de seu trabalho.

03 de agosto de 2016

ps: outra coisa que me fez pensar e que aqui trago: por que insisto em ver o interior do nordeste - no sentido de fora da orla litorânea - como se estivesse petrificado na década de 1930 dos romances regionalistas ou, no máximo, no cenário de Abril Despedaçado? Preconceito arraigado que tenho dificuldade em me livrar, admito. Prelúdio para Danças Caboclas ajudou a balançar esse preconceito, ao fazer com que aflorasse na minha leitura da obra.

A universidade pública pronta para o desmonte

Durante a década de 1990, encabeçado por FHC e sua trupe (estatal e para-estatal), todo serviço público (que não o serviço da dívida) foi duramente atacado e o mercado louvado como capaz de melhorar qualquer coisa à enésima potência, sem maiores esforços dos ex-cidadãos, agora consumidores. Na educação não foi diferente, e o estado de ruína (atual) da educação básica brasileira é uma das conseqüências dessa investida: a decadente escola pública foi sucateada, e a seleção via mercado do melhor ensino, sem o contraponto de uma (real) alternativa estatal, conseguiu rebaixar a educação ao grau de indigência (claro, a interdição do debate sobre educação, atropelado pela prioridade às questões econômicas, como faz o "Todos pela educação", deu uma boa ajuda). Diferentemente da educação básica, a universidade pública, apesar de cambaleante, conseguiu sobreviver à rosa neoliberal (só não se esqueça da rosa, da rosa) - Paulo Renato (de nefasta memória) não conseguiu estabelecer seu "financiamento por aluno e não por instituição", nem desidratar por completo as universidades federais via perdas salariais. Debito esse poder de resistência a dois fatores principais: a função da universidade pública na estrutura social brasileira e o capital simbólico de seus professores-pesquisadores.
Domingo, dia 24 de julho, o porta-voz oficial do governo golpista, o Globo, oficializou abertamente o período de caça à universidade pública, com seu editorial "Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito". Ainda mais que na época fernandina, o ataque desta feita corre sério risco de alcançar seu intento num médio prazo, por obra do contexto em que vivemos -  e a universidade pública tem sua parcela de responsabilidade.
Universidade pública e falta de auto-reflexão
Uma das principais dificuldades da universidade pública brasileira é refletir sobre si própria em termos críticos - e aqui me refiro à parte inteligente da academia, gostaria eu que fosse a maioria, mas tenho sérias dúvidas. Uma reflexão dessa natureza implicaria, dentre outras coisas, em questionar o lugar que a universidade pública ocupa atualmente no contexto brasileiro, o que dela se espera - realista e irrealisticamente -, e que discurso ela faz acerca de si própria.
Ano passado, numa aula na PUC-SP, a professora Helena Katz chamou a atenção para o fato de que as universidades federais estavam há três meses em greve e pouco, quase nada, era noticiado; que poucas pessoas fora do círculo diretamente afetado se incomodavam de fato com essa greve - em clara dissonância com a importância que a universidade pública tem para o país. Esse exemplo joga algumas luzes na relação que a universidade pública consegue (ou não) estabelecer com a sociedade, dando base para a acusação de elitista acaba tendo apelo junto a parte da população: que utilidade a população enxerga numa universidade pública, para além da formação profissional de indivíduos e do seu hospital universitário? Uma pergunta que a universidade pública, se se faz (muito raramente), tem preguiça (ou medo) de buscar respostas e, mais importantes, soluções. E enquanto não se põe a sério esse questionamento, reforça-se a idéia de uma grande escola de nível superior que serve para meia dúzia de favorecidos conseguirem os melhores salários depois de formado.
Função social e popularização
Entretanto, o grande calcanhar de Aquiles na atual conjuntura é a função social da universidade pública, posta (positivamente) em xeque com o ministério Haddad (2005-2012), que promoveu tanto a melhoria dos salários dos docentes (e as estaduais, em especial as paulistas, tiveram que reverter seu processo de sucateamento, para fazer frente à administração petista) quanto sua popularização (discreta, mas visível), via ampliação e interiorização da rede de universidades federais. Um primeiro resultado foi a perda do poder de distinção que um diploma de uma universidade pública naturalmente tinha até o início do século - ou melhor, a distinção segue, o problema é que há mais distintos disputando as vagas. Parte da perda dessa distinção foi compensada com o aumento de bolsistas enviados para estudar no exterior - oportunidade raras vezes dadas aos mais pobres, uma vez que estes precisam trabalhar a sério para ajudar no sustento da família; e, mesmo assim, o diploma, tendo feito parte na gringa ou não, é o mesmo - e com a manutenção de um grande gargalo no nível de mestrado e doutorado - distinções necessárias quando há muitos bacharéis.
O problema é que a universidade pública brasileira tem como função (implícita mas evidente) formar quadros para o Estado: ministérios, judiciário, diplomacia, pesquisadores diversos, etc. Durante os anos FHC, algumas instituições privadas buscaram entrar nesse nicho e tentaram se especializar na formação de quadros altamente qualificados; sem sucesso, foram empurrados para a vala comum da educação como mercadoria e lucro - até mesmo a PUC se viu obrigada a aderir à onda. A universidade pública resistia.
Raymundo Faoro apontava, em Os Donos do Poder, que certo espectro do funcionarismo público tupiniquim é uma verdadeira casta, em que uma ocupação na burocracia estatal é transmitida de pai para filh@ - a filha do juiz vira desembargadora com a ajuda do prestígio do papai, por exemplo. Pode ser que tal transmissão da função social não se dê no mesmo cargo, mas fica nessa esfera dos 1% ou 2% mais ricos da nação, pagos com dinheiro público, neste país nota 52,1 no índice Gini de desigualdade (recentemente fomos superados pelo Chile da educação superior privada que neoliberais tanto idolatram). Ou seja, a universidade pública brasileira atende, sim, à elite do país. Ela também atende, entretanto, a muitas pessoas que não compõem essa classe, permitindo, inclusive, que pessoas de fora da casta dos donos do poder ambicionem e alcancem cargos de relevo na burocracia do Estado e no mercado. Acabar com a gratuidade é criar um empecilho a mais na deselitização da universidade pública - acreditar no contrário é duvidar da lógica mais elementar, e quem acredita no editorial do Globo já pode discutir se um quadrado precisa mesmo ter quatro lados.
Formas legítimas de exclusão
A seleção de ingresso nas universidade públicas é viciada, exclui os mais pobres, favorece os mais ricos. A tal meritocracia é uma falácia em uma sociedade de fortes diferenças sócio-econômicas - Bourdieu faz essa acusação contra a França pré-rosa-neoliberal, imagina no Brasil pós-Real. O vício da seleção se dá não apenas pela questão da educação básica privada cara ser de melhor qualidade que a educação básica pública (a educação privada barata e média, com raras exceções, é do mesmo nível da escola pública, mas parece melhor por causa da publicidade), como pelo cabedal cultural que os vestibulandos trazem de casa: alguém que desde os doze anos visita o Louvre e o MoMA tem outra leitura de mundo frente alguém que uma vez foi na Pinacoteca, frente a quem só conhece música clássica de ouvir na internet, frente a quem só assiste a Faustão e afins. Isso é determinante? Não (eu mesmo só visitei um museu pela primeira vez com vinte anos e fui aluno da USP e da Unicamp), mas a influência não é pequena. Contudo, uma vez superada essa forma legítima de exclusão primeira que é o vestibular, a dificuldade a quem não é da elite é aumentada e pode ser percebida, por exemplo, nas concessões de bolsas de estudo, de graduação ou de pós, que acabam, via de regra, na mão dos que não precisam dividir seu tempo entre ganhar a vida para pagar as contas e estudar para tirar boas notas.
Concorrência dos neófitos
Apesar de sempre entrarem na disputa em vantagem, os donos do poder têm se mostrado incomodado com a concorrência de neófitos - muitos deles oriundos das periferias, ainda por cima negros -, e desacostumados com concorrência, temendo ter sua auto-estima destruída ao ser preterido por um Zé Ninguém, têm percebido que vale mais a pena mandar o filho estudar direto no exterior: os contatos feitos nos seus intercâmbios quando estudantes (ou já como professores-pesquisadores) ajudam a "alocar" sua prole em algum bom lugar na Europa ou nos EUA. Amigos que trabalham no judiciário ou na área administrativa diretamente com a nata uspiana, foram quem primeiro comentaram dessa tendência. De início não dei muita atenção: me soou apenas esnobismo de quem pode manter o filho na University of British Columbia, em Paris ou em Berlim, apesar de ganhar em real, graças a sua boa colocação dentro da burocracia estatal brasileira. Me dou conta agora: com os filhos dos donos do poder fazendo sua formação no exterior, a função social de reprodução de classe - de casta - da universidade pública começa a ficar seriamente ameaçada - função, repito, que garantiu sua sobrevivência ao desmonte tucano-neoliberal.
Burocratas pouco interessados em educação
Boa parte dos professores-pesquisadores da universidade pública são burocratas que pouco se importam com educação, desde que seu salário seja bom e caia no dia, e tenham alguma estrutura de pesquisa. Nicolelis há tempos alerta para o fato de professor-pesquisador no Brasil ser antes de mais nada um burocrata - não por acaso o ápice da carreira universitária no país parece ser ocupar um cargo burocrático de alto-escalão com grande relevância política, reitoria ou direção da Fapesp, por exemplo. Cristóvão Buarque (de nefasto presente) exemplifica esse absurdo da pesquisa subordinada à burocracia: se um artista egresso da universidade se tornar nacional e internacionalmente reconhecido e alguém estudar sua obra em um mestrado e doutorado, é este - e não o artista - o detentor do saber, simplesmente porque tem mais títulos burocráticos que o primeiro.
Muito ego, pouca vocação e pouco interesse com a educação (mesmo entre aqueles que teriam educação como seu objeto de pesquisa), crescimento da turba em cargos importantes na burocracia, muita sede de poder. Num contexto desses, a universidade é um meio, não um fim. Meio para entrar na casta dos donos do poder e de ascender à classe política, para lidar diretamente com o dinheiro e seus caminhos ocultos - Herman Voorwald, ex-reitor da Unesp e ex-secretário de educação de Alckmin, pouco afeito à democracia e à publicidade de seus atos (em especiais quanto à merenda) que o diga.
Um dos resultados dessa utilização para fins outros da universidade pública está na crise das universidades estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro. Ou alguém acredita que tal situação seja fruto de uma inefável crise estrutural e não de escolhas deliberadas de seus reitores, em sintonia com os governadores que os puseram no cargo, todos sempre alinhados aos interesses do mercado? Se fosse estrutural, porque as universidades federais, em situação muito mais precária quinze anos atrás, já não quebraram faz tempo? Não só isso: conseguiram certa expansão com ganho relativo de qualidade? Será pura coincidência que as estaduais com os maiores problemas financeiros sejam exatamente as dos estados que há tempos estão sob hegemonia de políticos privatistas, PSDB em São Paulo, há mais de um quarto de século, PMDB no Rio, há quase uma década? É tanta coincidência quanto foi a passagem do Cometa Halley em 1986, e será em 2061. Detalhe: via de regra, tais reitores foram escolhidos por seus pares (exceção feita a Rodas, da USP, escolhido por Serra, de nefasto passado, presente e, ao que tudo indica, futuro), o que reforça a idéia da ciência (e os cientistas) estar a serviço do poder - e o conseqüente caráter conservador da academia.
Problemas essenciais e omissão de debate
O professor Fausto Castilho, um dos fundadores da Unicamp, comentava que universidade brasileira possuía um erro fundamental: ser definida como local de ensino e não de estudo. Certa feita, durante uma atividade de greve, o historiador Cláudio Batalha levou a uma mesa redonda a distinção entre universidade de ensino e universidade de pesquisa, amparado em uma série de dados, como relação professor-alunos, número de pós-graduandos e de graduandos, forma de abertura de um curso de graduação, etc: ainda que ambas desenvolvam pesquisa e ensino, há diferenças significativas de ênfase, e sem a devida distinção cobra-se rendimento de universidades de pesquisa em estruturas de universidades de ensino. Contudo, assumir essa distinção poderia abrir a porta para o questionamento de outras distinções dentro dessa elite, até mesmo para ressentimentos intraclasse que poderiam levar a sua desunião: melhor fingir que são todos iguais, ao menos no prestígio e distinção, mesmo que isso custe a qualidade de ensino e de pesquisa em todas as universidades. Um dos custos da omissão desse debate vai além da distinção, poderia ser contabilizado em termos financeiros: alunos que entram em uma universidade como a Unicamp sem qualquer interesse em pesquisa, e acabam subutilizando a estrutura da universidade. Pior: não raro tais alunos saem frustrados por não saírem devidamente preparados para o mercado.
E deveria a universidade pública preparar para o mercado? Eis um debate posto com certa freqüência, mas sempre em termos falsos, uma vez que é discutido a partir de posições ideológicas desvinculadas de uma análise do contexto histórico e social em que a universidade está inserida. Mais: sem uma reflexão sobre qual o papel da universidade pública brasileira, em especial as voltadas à pesquisa. Acaba por prevalecer a posição de que não, universidade pública não serve para atender demandas do mercado - o que deixa claro, mesmo que nunca dito, sua função de formação de quadros do Estado -, ainda que acabe sempre cedendo em parte. Nada mais óbvio: vivemos em uma sociedade capitalista (goste ou não, isso é indiferente), em que o mercado é o grande responsável pelas trocas interpessoais, inclusive de conhecimento - eu, ao menos, não acredito que o livro de uma grande editora comprada numa livraria (na Amazon?) esteja alheia à lógica da mercadoria e do lucro.
Essa interdição de um debate sério sobre a relação da universidade pública com o mercado é que acaba dando a deixa para o ataque de grupos pró-mercado de defender não o convívio (tenso e difícil, não sejamos ingênuos) entre universidade e mercado, mas a subjugação daquela a este - expressa em propostas como o fim da gratuidade ou parcerias com empresas que são antes a determinação de linhas de pesquisa feitas com dinheiro público.
Exclusivismo na produção do saber
Há um agravante no caso brasileiro, fruto da posição que a universidade pública se arrola no contexto social, de única legitimadora do conhecimento. A universidade brasileira é uma mistura de iluminismo démodé com síndrome de vira-latas: ela resiste a aceitar que fora de seus muros seja possível produção de saber e de conhecimento - uma população mestiça e negra, já diziam os doutos do século XIX, pouco pode contribuir para o progresso, não é? Ou melhor: ela até aceita, mas só depois de passar pelo seu crivo - que pouco ou nada acrescenta, e tem como única função a legitimação desse saber. Ela é reticente em estabelecer um diálogo de igual para igual com quem está fora, mesmo que seu interlocutor seja um doutor formado por ela própria. Novamente um exemplo das artes: é cada vez mais comum artistas utilizarem sua formação acadêmica para se apresentarem como artistas (e eu tenho vontade de lembrar Manzoni a esses artistas).
Por um lado, essa postura garante um enorme poder social: ao se afirmar não apenas centro, mas única fonte de produção de conhecimento (legítimo), o ataque à universidade pública pode ser tratado como equivalente a um ataque à ciência e ao conhecimento deste Tristes Trópicos. Seu quase monopólio de pesquisa no país encoraja as empresas a se desobrigarem de investirem diretamente em pesquisa e tecnologia - investimento que não raro é acusado por alguns grupos como seqüestro de cérebros da universidade -, e se tornarem compradores de patentes economicamente viáveis desenvolvidas pelos laboratórios acadêmicos (nas ciências humanas, a universidade pública assume um papel perverso que não cabe discorrer aqui).
Conseqüência disso para o país: ao mesmo tempo que é pólo de produção de conhecimento, ou seja, indutor de progresso científico e tecnológico, a universidade pública se torna uma grande força conservadora - quase reacionária. Acrescente que tal arrogância faz com que a universidade se torne ainda mais autista da realidade brasileira, se afaste das questões que afligem a maioria da população, e não desperte nela maior interesse: esta não só não se vê como desinteressante para a academia - salvo como fonte de exotismo -, como não vê interesse naquilo que a academia produz e oferece, para além do seu hospital.
Fim da gratuidade e ainda público
Com o diálogo com a comunidade externa praticamente inexistente, e com um diálogo interno precário - fruto do seu furto a se questionar a sério -, a universidade pública está à mercê de ataques dos setores mais reacionários do país - tão bem representados nesse golpe de Estado judiciário-midiático encabeçado por Temer e PSDB. Desde que entrei na universidade, em 2001, lembro de poucas vezes haver um auto-questionamento sobre sua função e sua relação com o país - em todas elas, falas isoladas de alguns professores outsiders e pouco levados em consideração. Entretanto, há um profundo incômodo da sociedade brasileira com a universidade pública sustentada com seus impostos, e se a academia não encabeça esse debate, outros o farão: quem começar o debate leva vantagem na imposição dos termos em que ele se dará. As outras forças com poder para colocar tal debate são, além da própria universidade, o governo e a grande imprensa. Haddad, ainda que sutilmente, colocou a função da universidade em debate - foi aceito passivamente pela academia, até por não tocar diretamente em seus pontos mais sensíveis, como de reprodução de casta. Agora, diante de um ministério de neandertais, o Globo achou por bem assumir o debate, de forma a pô-lo em termos passíveis de serem aceitos.
O editorial não propõe o fim ou a privatização da universidade pública, e sim o "ensino superior público pago". Uma privatização branca, sem dúvida, mas algo que vai na linha do que a universidade pública brasileira é hoje: antes de acusarem de quererem impôr a lógica shopping center às universidades, a academia brasileira nunca fez um mea culpa de que os shopping centers na verdade é que seguem a lógica da universidade tupiniquim: seus campi são áreas isoladas (originalmente), cercadas, de difícil acesso que não por carro (a área de estacionamento não demonstra seu real tamanho pelo fato dos campi geralmente serem muito grandes), guardadas por segurança privada, altamente normatizadas, hierarquizadas, segregadas. Poucas universidades têm biblioteca pública aberta à comunidade, ao público: há dez anos UFSCar e UERJ eram as duas exceções, e parecem seguir sendo as únicas. A Unicamp chega ao extremo de bloquear a entrada em suas bibliotecas a quem não é aluno regularmente matriculado. A UFABC bloqueia qualquer intruso logo na entrada do prédio. Fica difícil mobilizar a população na defesa de uma universidade que a repele e a trata como suspeita - e neste ponto não há qualquer culpa a ser atribuída ao Globo ou a Temer, a universidade pública cai por seus próprios deméritos. As pesquisas são majoritariamente para consumo interno e raros professores descem de seu pedestal para encararem as ruas - até porque têm pés de barros. Chauí até início do século, Safatle desde o retiro dessa, e mais recentemente Karnal são alguns dos raros exemplos de professores que saíram dar a cara a tapa - há, sim, aqueles que estabelecem diálogos menos midiáticos, diretamente com movimentos sociais e sindicatos, mas são poucos que tem capacidade para tal, por cacoete de formação: a maioria discursa, não desce para o debate e o diálogo franco.
Arrisco próximos capítulos: além da cobrança de mensalidade, a intensificação de parecerias em laboratórios de pesquisa com a iniciativa privada, como forma não apenas de captar recursos extras, como para aumentar o número de patentes e o lançamento de produtos no mercado. Boa parte dos professores-pesquisadores aceitarão esses termos, desde que não tenham seus rendimentos afetados. Para boa parte da academia, não há mais necessidade de manter a universidade pública tal como hoje, já que sua função de formar quadros para o Estado vem decaindo, e eles enviam seus filhos para estudar nos EUA ou na Europa: de lá, sem compromisso com agências brasileiras, sua prole pode fazer carreira acadêmica no exterior ou regressar para carreiras burocráticas mais promissoras no Brasil, que podem impôr suas vontades, perseguir adversários políticos e sambar em cima da constituição sem qualquer problema. Tais propostas são capazes de até mesmo gerar a impressão de maior proximidade entre universidade pública e sociedade - o que compensará, aos olhos desses, sua maior elitização e discriminação.
As propostas da grande imprensa - agora verbalizada pelo Globo, mas em outros tempos já vocalizadas por outros mafiosos midiáticos - são claramente reacionárias, mas encontram eco na sociedade - mesmo entre os egressos da universidade pública -, repito, graças à precariedade de sua reflexão e seu questionamento sobre si própria - não sei se por um narcisismo que não tolera críticas ou se por comodismo. Não por acaso, diante da celeuma causada pelo editorial, vem de fora da universidade uma das propostas mais sensatas (ainda que tardia): Jean Wyllys propõe "um tributo adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres". Sobre essa proposta, penso apenas que tal tributo adicional não precisa esperar pela (necessária) reforma do IR: precisa acontecer já, antes que acabe por afetar somente (novamente) a classe-média. Aos que não querem pagar o resto da vida pelo ensino que tiveram, têm toda a liberdade para optarem por universidade particulares - essas, sim, com cobrança de mensalidades.
O que significa debater a universidade pública
Por fim, passa ao largo a real significação do debate sobre a universidade pública - ainda mais no atual contexto de crises. Cobrança de mensalidade e formas de financiamento são questões epidérmicas - ouso dizer de menor importância, ainda que não devam ser desprezadas. Quando discutimos universidade pública estamos discutindo, antes de mais nada, projeto de nação. A história da universidade pública no Brasil é reflexo dos projetos de nação que motivaram sua criação e suas mudanças (inclusive ainda estamos presos, em grande medida, na visão fundante da USP). Perdemos, durante o governo Lula e o ministério Haddad, uma oportunidade ímpar de discutirmos a sério projetos de nação e perspectivas de futuro a partir de um ponto fulcral, a universidade pública - suas funções, sua relação com o país, a produção de conhecimento. As reformas de Lula apontavam numa direção razoável e a universidade pública se acomodou, se furtando, uma vez mais, a refletir sobre si própria. Não discutimos no momento ideal, mas o editorial do Globo e o governo golpista (espero que interino), dão nova oportunidade de pôr a questão no centro do debate nacional. Mais que discutir sobre mensalidade e financiamento, é preciso que a universidade pública brasileira se abra à democracia - interna e externa -, exponha sua função social, descubra novas formas de se inserir na realidade que a rodeia, popularize e compartilhe o conhecimento dentro dela produzido - sem medo de ser contradita e contestada em seus doutos saberes por periféricos e analfabetos que, sim, possuem muito conhecimento, mesmo sem ter passado pelo ensino oficial.
Se insistir em repelir a população que a sustenta como bárbaros que vão destruí-la, a universidade pública não tarda a perder sua razão de ser, se transformando nisso que a desenham: uma escola de nível superior que abre os melhores cargos na burocracia do estado e do mercado.


Importante para este texto, falar sobre o autor: Daniel gorte-dalmoro é bacharel em filosofia e sociologia pela Unicamp, mestre em filosofia pela PUC-SP, licenciado em filosofia por uma universidade particular. Também foi aluno de graduação na USP e na UFABC. Entre 2007 e 2010 foi um grupo de crítica de costumes da Unicamp, o Trezenhum. Humor sem graça. Foi editor da revista eletrônica Casuística. artes antiartes heterodoxias. É editor do Boletim SPM Informa e do Informativo Vai e Vem, do Serviço Pastoral do Migrante.

Algumas referências citadas:

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O epitáfio de nossa humanidade [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

O que esperar de um espetáculo que faz o Elogio de Guerra, como o apresentado pela Compañia Hombrebuho, vinda da Colômbia famosa por tanto conflitos armados? Tiros, mortes, desespero, a dificuldade em seguir vivo diante da ameaça de tanta tecnologia de morte e destruição? O que há de se elogiar na guerra?
Yenzer Pinilla García nos convida, contudo, a se desfazer do imediato como forma de compreender o que se passa diante de nós - seja o espetáculo a que assistimos, seja o mundo em que vivemos. O título é uma metacrítica sutil e feliz: se hoje elogio é sinônimo de louvor, a origem da palavra remete a epitáfio (do latim elogium) ou a palavras (do grego λογιον). E é isso que o artista faz em cena: uma seqüência de palavras em tom de palestra - longe de qualquer empostação teatral -, com a qual elenca aquilo que o encaminha para a morte da sua própria humanidade, derrotada por uma guerra em que a tanatotecnologia é feita não de destruição imediata, mas de falsos positivos - a começar pela hipocrisia dos laços sociais, incapazes de sustentar qualquer subjetividade. Discurso feito por um sujeito presente, consciente de si, de seu corpo e suas potencialidades - representado na sua grande habilidade corporal do artista, que faz parecer simples e fácil a gama de movimentos e o domínio da gravidade que possui -, mas que tenta se identificar com a própria sombra. 
Elogio da Guerra é feito, portanto, de um discurso humano (racional) em um corpo humano (para além do racional), arruinados por uma sociedade (anti) humana, excessivamente racional. Corpo palavra razão - λογος σομα - são subjugados a uma racionalidade heterônoma ao sujeito: em nenhum momento o intérprete consegue ser por completo: surgido da queda, imerso nos laços sociais que herdou de nossos antepassados, ele não se enxerga que não em fragmentos, e se desarticula, se desfaz do que sequer chegou a ser - mas parece ter vislumbrado em algum momento do passado como possibilidade (talvez ideal) -, a ponto de colapsar, primeiro como uma falha de imagem-espetáculo, até se ver robotizado e reificado, alheio a si próprio: "Estou sempre seguindo em vez de ir para onde quero ir”, diz, ao fim, um corpo humano de gestos mecânicos. 
Saio da Olido rumo à minha casa, que no dia seguinte preciso seguir com a vida produtiva que me faz parecer alguém.

02 de agosto de 2016