quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Dançar um discurso acadêmico-político [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Em geral evito comentar um espetáculo de dança se não tenho nada positivo a acrescentar - não tenho conhecimento para ser crítico de dança, tento estabelecer diálogos, o mais construtivo possível. Para falar de Z.i.g.o.t.o. eu não conseguirei ser muito construtivo - ao menos positivo -, mas não deixa de ser diálogo - e talvez este retorno seja uma das respostas esperadas pela artista e sua provocação.
Tocado pela questão de gênero levantada por Prelúdio para danças caboclas, vou assistir ao segundo espetáculo da noite do Dança à Deriva, Z.i.g.o.t.o., que trata explicitamente da questão de gênero. Até aí, nenhum problema - comentei na minha crônica anterior da dimensão política que a dança contemporânea possui. O que mais me incomodou, entretanto, foi a forma como o espetáculo pareceu ser feito: soou antes uma tentativa de instrumentalização de um discurso pronto do que uma construção artística que trazia junto, no seu fazer, a questão política abordada. Um discurso pré-fabricado preenchido com um corpo (objeto?).
Uma mulher negra que não se enquadra no padrão de beleza (ainda que não se enquadre tampouco no padrão de feiura que a sociedade possui) me parece ser um manancial de experiências sobre as muitas formas de exclusão em nossa sociedade. Se Patrícia Pina Cruz trouxe isso para cena, não consegui perceber; o máximo que me pareceu foi uma mulher que, por conta de ser mulher, teve seu sucesso profissional limitado - dado o figurino (masculino) do início do espetáculo, que remetia a executiva de banco -, e se ressente com isso, a ponto de imitar o gestual masculino, numa tentativa de demonstrar que ela também é capaz de fazer o que um homem faz - no início achei que esse imitar fosse levar a uma crítica daquilo que Bourdieu chamou de "nobreza do masculino", mas me pareceu antes seu reforço (inconsciente).
A personagem apresentada em cena estava antes para uma construção ideal-típica da mulher-vítima, bem ao gosto do feminismo-acadêmico que hegemoniza o discurso de gênero no Brasil (de linha estadunidense, criticada com precisão pela feminista francesa Elisabeth Badinter), a uma construção feita a partir de vivências reais, sentidas no corpo - impressão coroada pela alusão infeliz do estupro coletivo no Rio de Janeiro, verdadeiro clichê do ativismo (de esquerda) de Facebook (comentei em outro texto que o que chocou tanto não foi o estupro, foi o número, e isso deveria ser um alerta para nossa perda de humanidade e reificação da dor do Outro [http://bit.ly/cG16528]).
A forma mais positiva que consigo ver Z.i.g.o.t.o., dentro da perspectiva de um homem não-machista, mas independente disso, um homem, é que é parte de um processo analítico ainda no começo, em que o sujeito começa a se dar conta de si, mas passa ao largo de uma crítica social, da condição que a faz se sentir diminuída, a ponto de soar mais um elogio ao masculino que uma crítica ao machismo.
A preocupação com o discurso político enlatado prejudicou a produção artística e acabou por fazer os dois ficarem muito aquém das suas potencialidades. Ou talvez não, talvez Cruz seja das feministas radicais que acha, como em foto de pichação que vi recentemente, que "feminismo que agrada homem não é revolucionário", e este meu texto seja um elogio para ela - desejo muito que não seja o caso.

03 de agosto de 2016

PS: por ser um texto bastante ranzinza, não iria publicá-lo, mas depois de assistir a Vertigo, no dia seguinte, achei que cabia, até para deixar marcado o contraponto entre dois discursos feministas.


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