sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Sexta qualquer de ordem e progresso e humilhação

Duas da tarde de uma sexta-feira em uma cidade grande de um país que se anuncia democrático e de direito, se diz civilizado e abençoado por deus. Perto da praça da Sé, três militares revistam quatro suspeitos. São quatro negros/morenos e talvez seja esse seu crime. Todos os sete aparentam ser brasileiros - ou seja, falantes nativos de português - e dotados do que se chama de "razão". Poderiam, portanto, se comunicar verbalmente, mas os PMs nada falam - tudo o que tinham para dizer, "mão na cabeça", foi dito no início da abordagem e obedecido sem questionamento. Puxam os suspeitos pela gola da camisa para a esquerda e para a direita, como se fossem incompreendidos se dissessem "um passo para a esquerda, por favor", ou como se toda sua autoridade caísse se uma daquelas quatro pessoas não cumprisse de imediato a ordem. Dois militares revistam, o terceiro fica na cobertura, a mão no coldre, pronto para sacar a arma e atirar, caso uma daquelas pessoas com as mãos na cabeça e sem esboçar qualquer reação faça alguma mágica e ponha em perigo um dos três funcionários a serviço da ordem, ou caso tentem fugir daquela abordagem suspeita - nunca o encontrei, mas certamente em nossa Constituição há um artigo que diz que qualquer insubordinação contra a polícia é passível de pena de morte com execução sumária, pena agravada se for preto pobre e periférico. O espetáculo serve para a humilhação dos quatro homens, expostos à multidão que acompanha a ação policial. Sigo meu trajeto, mas tenho a infelicidade de ouvir um dos diálogos entre dois dos espectadores. Ele lamenta ao outro, decepcionado: é o Choque, tinha que ser a Rota! Ordem e progresso. No Brasil, o Estado corrompeu - com aplauso das elites e de um lumpem ignaro que almeja um dia ser elevado a capitão do mato - o "monopólio legítimo da força" em "monopólio (pretensamente) legítimo do terror" - e agora começa a democratizar o terror para todos os que não agradem aos donos do poder, os patrões dos PMs que fazem essa cena deprimente. Ainda escrevo o rascunho desta crônica quando, quinze minutos depois da cena, vejo os três militares passarem na minha frente - ou seja, não havia nada que exige encaminhamento daqueles quatro homens. Os militares caminham candidamente, como se passeassem no parque num domingo de folga. Talvez tenham a sensação de dever cumprido, ao impôr a humilhação pública a três inocentes culpados por serem periféricos freqüentando a via pública como se tivessem esse direito, por serem negros num país que ainda ressente como injustiça o fim da escravidão.

18 de novembro de 2016

domingo, 13 de novembro de 2016

Um ano [saudades feitas de afetos]

Hoje fez um ano. Era para ter sido ontem, talvez anteontem. Adiamos, não por esperança de um milagre impossível, ou por uma moral cristã-iluminista que preserva a vida a qualquer custo - da própria humanidade, inclusive. Sofria, pedimos sedativos, mas o médico não havia prescrito: só se autorizássemos a UTI. Depois de três dias em que deparei com meu maior pesadelo - não ser reconhecido pelo meu pai, carente de razão - o medo daquele sofrimento inútil se arrastar por sabe-se lá quantos dias. Durou dois, quinta e sexta, quando era pouco mais que um corpo sustentado por uma sinfonia mecânica, incapaz de sentir dor ou o que fosse - melhor assim. Lembro de sexta à tarde, eu vestia camiseta do MST por baixo do paramento todo da UTI, e pouco via por conta das lágrimas, enquanto eu e mãe pedíamos para que partisse - eu me perguntava: por que toda essa merda? Pouco antes da meia noite, eu e Phah assistíamos apáticos ao jogo entre Brasil e Argentina, enquanto pipocavam notícias sobre ataques terroristas na França - mãe já havia ido dormir -, quando ligaram no seu celular - único telefone que registrado em sua ficha. Estranhamos. Atendi na segunda vez que ligaram. Acabava. Numa sexta, para não atrapalhar a semana útil - ele, que teimava em nunca parar. Um mês antes havia, no hospital, finalmente, entendido que férias eram importantes - não pôde aproveitar da sua descoberta. Não como gostaríamos que aproveitasse. Não foi ontem, nem anteontem. Eu gostaria que ainda não fosse, mas reconheço que poderia ter sido há mais tempo, se ele não tivesse sido um exemplo de afirmação da vida, se tivesse sucumbido ao medo quando soube do diagnóstico. Foi hoje, treze de novembro, que fez um ano. Em Pato fazia sol e calor. Em Sampa, chuva e frio. Mãe mexeu no jardim. Phah fez concurso. Eu pouco fiz - muito lembrei, da piada do pintinho aos elogios um pouco sem jeitos no Trezenhum e na Muda. Era dia de GP de Interlagos. Daqui quatro meses fará vinte anos de nossa primeira viagem de avião, na volta do GP de Interlagos de 1997. Saímos antes, para fugir do trânsito e da chuva, a tempo de chegar no aeroporto - eram as águas de março. Não pude conversar com você sobre a prova, depois - ou mesmo antes, para avisar que aqui chovia e a corrida poderia ser caótica. Natália mexe em minha barbicha, cultivada desde o dia onze de novembro do ano passado - foi onde você fez seu último agrado. Barbudão, disse dia oito, ao ser questionado pela mãe se me reconhecia. Nesses dois dias havia alegria no seu olhar ao me ver. Não sei no meu o que você viu. Choque no dia oito, tímida alegria no dia onze - talvez. Isto que escrevo, você não vai ler, para comentar depois, ao telefone - Dani, andei lendo sua última crônica... Em certas situações, não faz sentido medir o ano conforme as rotações dos dias e das estações. Não fez um ano hoje.

13 de novembro de 2016