sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

De ódio em ódio, para se sentir brasileiro

O Brasil é um caldeirão de ódio prestes a explodir. Cozinha esse caldo faz tempo, desde os primeiros portugueses, e as atuais gerações não conseguiram dirimir, sequer diminuir a fervura. Pior: em boa medida, deixamos de tentar. Esse ódio com o inferior (socialmente) vem de cima, como paradigmático, e desce até o ponto onde não há mais ninguém abaixo para humilhar. O questionamento ao de cima surge parca e precariamente, resta a revolta difusa a reforçar a ordem social. Esboços de reação às injustiças sociais não raro se desvirtuam rapidamente, guiados por essa mesma cultura do ódio, da necessidade de se achar um inimigo, um Outro estereotipado, personificação do Mal, a quem é imputado toda a culpa - pelos males a esses que, por conseqüência lógica, são do Bem. A outra face da mesma moeda - e ai de quem não ajoelhar e rezar por esse novo ódio, só pode ser favorável ao outro, quem não está conosco está contra nós.
Esta semana, esperava com minha mãe e meu irmão a hora de embarcarem, quando se aproxima um homem e puxa conversa. Pergunta se somos descendentes de poloneses, e diante da (óbvia) afirmativa passa a fazer elogios aos polacos e ao papa fdp. Não tarda, introduz novo assunto: "o atual problema do Brasil". Já imagino que vai falar do Lula, do PT e da corrupção. Me equivoco: não estou diante de um homem de bem de classe média, mas de alguém do "povo" - esse que certa esquerda Peter Pan julga ontologicamente como "do Bem". Começa a falar mal de nigerianos e haitianos, a quem classifica como bandidos - "todos bandidos, tudo bandido", repete. Como bem assinala Pedro Serrano em Autoritarismo e golpes na América Latina, "bandido" é a versão tupiniquim para "judeu" na Alemanha nazista, a senha para rebaixar a pessoa da condição de ser humano, livre conduto para qualquer atrocidade extra-legal: "o bandido não é tratado o cidadão que erra, mas como um inimigo da sociedade, que não tem reconhecido sequer os direitos fundamentais inerentes à condição de ser humano. Nesse contexto, sua vida pode ser suprimida" (p. 152). 
Nosso interlocutor da rodoviária, periférico (ainda que branco), talvez esteja em momento raro de sua vida: se sente um honrado cidadão brasileiro, alguém a quem é garantido o direito de odiar e pregar a eliminação do subalterno, sem medo de reação (afinal, imigrantes são sub-humanos, estão abaixo dele, sub-cidadão). Talvez pela primeira vez na vida ele se sinta alguém, integrante da irmandade da Casa-Grande, um ser humano com direito, um, que seja: o direito de aniquilar o Outro. Claro, não percebe que uma vez aniquilado quem está abaixo, passará a ser ele o próximo estorvo à felicidade geral da nação, o novo inimigo, voltará à condição de bandido aos olhos dos cidadãos de bem e dos apresentadores de tevê dos programas de fim de tarde. Não percebe que só temporariamente perdeu a pecha de bandido - por mais que não tivesse cometido algum crime.
Na internet, na linha do tempo do meu Fakebook, acadêmicos das diversas matizes da esquerda se atacam mutuamente em acusações de quem é o culpado do ponto onde estamos (o PT, a falta de união, o homem machista, os evangélicos, algum nome da direita que está em voga na mídia). É sempre mais fácil dizer que a culpa é do outro, desobriga de se comprometer em alternativas factíveis, e permite que se siga ignorando que o fracasso é antes de tudo seu (meu, nosso), é de toda a esquerda, de todo o campo progressista. Paulo Freire é só um nome pomposo para trabalhos teóricos, há muito parece não ter realidade prática no Brasil - que chafurda no ódio e na ignorância.

30 de dezembro de 2016

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Corpo-preconceito

É algo que me chamou a atenção desde que comecei a fazer dança contemporânea, há três anos, com a Key Sawao: o quanto o corpo não carrega de memórias, de medos, de prazeres, de conceitos, de preconceitos que racionalmente parecem muito bem resolvidos.
Nascido e crescido numa cidade pequena e interiorana (recentemente orgulhosa de produzir um dos líderes do nazi-fascismo tupiniquim deste início de século) de um estado reacionário de um país machista, nada mais óbvio que achar homossexualidade um desabono à pessoa, ainda que fosse seu direito, e não justificasse qualquer forma de segregação ou violência - postura que vinha de casa e era muito avançada para a cidade (e seus três gays assumidos). Ainda chocado me recordo do choque em presenciar quase todos os alunos da escola (confessional, católica) perseguirem um garoto de onze anos, durante o recreio, quando ele ousava sair da sala, xingando-o, vaiando-o e cuspindo nele, por ele ser "jeitoso". Também lembro que com dezesseis anos meu maior receio com gays era tomar uma cantada - coisa de adolescente inseguro em cidade fim de mundo. Pouco depois, já na universidade, em cidades maiores - ainda que provincianas e conservadoras -, levei um sem-número de cantadas e descobri que dizer um tranqüilo "não" resolvia a questão na maioria dos casos - houve alguns insistentes, em que precisei fechar a cara e sublinhar o "não". Fora isso, muitos colegas, conhecidos e amigos homossexuais - alguns assumidos, outros então em vias de -, a ponto de me livrar daquele preconceito de antanho, e ainda discutir com meus pais até eles assumirem de modo enfático que cada um faz o que quer da sua vida íntima e nos cabe tão-somente respeitar - e errado são os fiscais do cu alheio.
Encerro as digressões e volto para 2013, aula da Key. Ela dá um exercício que conheço da época que praticava yoga: fica-se de gatinho (ou de quatro, em linguagem mais sexualizada) e mexe de forma circular cabeça e quadril, cada um para um lado. Talvez a primeira vez que fiz essa posição, dez anos antes, ela tenha sido um tanto incômoda, não lembro; sei que agora ela me perturba profundamente, dada minha completa descoordenação de circular cabeça e quadril ao mesmo tempo, ainda mais para lados opostos. Em compensação, em outro exercício, uma breve seqüência de gestos passada pela Key, minha trava foi não motora, e sim psicológica: um desses gestos consistia em passar o braço sobre a cabeça. Não faço idéia das causas, sei apenas que ele ganhava uma conotação tão gay que tive dificuldade em fazê-lo e levei tempo para naturalizá-lo. Desagradável (e necessária) surpresa: não sabia que ainda tinha esse preconceito arraigado, melhor, nunca soube que tive esse preconceito tão arraigado. Não me pareceu, a exemplo dos meus dezesseis anos, insegurança quanto à minha sexualidade - até porque não vejo qualquer problema ou demérito em ser gay -, mas me rendeu algumas sessões de análise. Surpresa também desse inusitado trazido pelo corpo: ficar de quatro, dançar com outro homem, nada disso me levou a questionar minha masculinidade, agora passar o braço sobre a cabeça...

29 de dezembro de 2016

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Relato (e divagações) de um dançarino acidental

Por três meses fiquei a me questionar "que cazzo estou fazendo aqui", três vezes por semana, quatro horas por dia. Questionava não por achar que estava numa furada, e sim por me desreconhecer, mesmo. Imaginava que se há quinze anos me acontecesse, como a Borges, de trombar com um eu do futuro a me contar a quantas ia eu e o mundo em 2016, eu acharia o que me seria narrado mais surreal que o próprio encontro. Pulo as questões do mundo, por demais óbvias a quem ainda não abdicou de pensar, e me centro em mim mesmo. Era com esse olhar de quem se enxerga surrealizado que eu me perguntava o que estava fazendo ali, positivamente surpreendido com a resposta: me experimentando e me divertindo. 
Tentei várias vezes reconstruir o caminho: por um lado, uma leitura a seco de Fenomenologia da Percepção, do Merleau-Ponty, que me levou pro yoga, que me levou pro tai chi; por outro, uma apresentação do Grupo Corpo em Ribeirão, vários Unidanças na Unicamp, a mudança pra São Paulo e a freqüência assídua à Galeria Olido; por um terceiro caminho ainda, uma amiga contando das aulas de dança que estava fazendo - técnica Klauss Vianna, curiosamente com uma das minhas paixões platônicas da Unicamp -, que me fez pela primeira vez pensar em dançar também, e a abertura de um curso de "Técnicas e pesquisa de movimento", da Key Sawao, no qual me meti - inicialmente eram dez profissionais de dança e eu, experiência apenas como expectador leigo e comentador sem propriedade. Ao cabo, estava eu na residência artística do dançarino Eduardo Fukushima, no Sesc Vila Mariana (timidamente e sem jeito, o Sesc começa a tentar incentivar a criação artística e não o mero consumo), investigando e ensaiando uma coreografia para ser apresentada.
Várias vezes me questionei se não estaria mais atrapalhando o Edu e a Bia (sua assistente de direção) que ajudando (éramos em trinta, dos quais vinte e oito eram profissionais das artes do corpo ou alunas do último ano de graduação em dança), ainda que não pensasse em desistir - se ele me aceitou na residência, que arcasse com meu corpo meio desajeitado. Com o tempo fui perdendo esse receio, atualizando minha auto-imagem, e compreendendo que se eu não tinha a técnica dos demais, há muito eu não sou o jovem desengonçado e travado, sem qualquer alongamento.
Mais perto da data das apresentações, comecei a me questionar se na hora eu não ficaria por demais nervoso. Me lembrava de meus tempos de colégio, século passado, época em me chamavam de Papa Léguas (por conta das pernas finas e compridas), em que me faltava coragem para apresentar os trabalhos, e eu chegava na escola com o trabalho feito e duas capas: uma com meu nome, outra com a de outros dois colegas - o Tiguerinha e o Alcino -, que sabiam que no dia eu amarelaria e chamaria os dois para apresentar o que eu havia feito - a vez que fomos aplaudidos pelo cartaz que eu fizera, fiquei com raiva de mim mesmo por não ter apresentado sozinho. Isso faz vinte anos, e hoje eu já dou conta de apresentar em público sem maiores dificuldades, abrindo congresso de medicina com quatrocentas pessoas sem gaguejar - me irmanei do lógos e sinto tranquilidade por trás do discurso racional. A questão era que não havia um lógos racional e claramente estruturado - eu muitas vezes sequer reconhecia qual a razão por trás dos movimentos, e isso me angustiava, até uma colega me sugerir não me preocupar tanto em pensar com a cabeça. Tarefa árdua: me expunha de corpo, sem um anteparo a disfarçar a alma - sem controle seguro do que estava apresentando ao Outro. Não por acaso, dos exercícios mais difíceis desses três meses foram os em que o grupo se dividia em dois, e um assistia ao outro dançar livremente.
E meu receio de travar e não dar conta de me soltar e dançar diante do público cresceu conforme se aproximavam as datas de abertura do processo. Para ajudar, duas semanas antes, mudou a disposição do público: não mais frontal, mas sentado ao redor do "palco" - e eu, que havia territorializado, desde a primeira semana, o canto escuro do fundo da sala, fui posto na situação oposta à que imaginava escapar, e tive que engolir a idéia de que estaria cara a cara com o espectador, pior, eu começaria em meio ao público, encostado na parede, mexendo na barbicha, "com cara de quem está de boa, nem aí", como disse Fukushima, certo ensaio, para minha cara de quem estava nervoso, tentando entender as instruções. Prêmio extra: foi-me pedido que não ficasse logo em pé, porque eu, com meu um metro e noventa (só eu e a moça que também não era da dança tínhamos mais de um e oitenta), era um evento nessa hora. Coragem!
Dia de estréia. Apesar do receio, nada do nervosismo vir. Fizemos o habitual tai chi para preparar o corpo para a apresentação. Nada. A hora que descermos pro camarim bate, pensei. Nada. A hora que voltarmos pra sala. Nada. Já a postos, duvidei que não bateria um frio na barriga a hora que abrissem a porta - quando opero luz, quinze minutos antes já estou pilhado, me convenço que é para não perder a concentração, e agora que estou na ribalta, faltando menos de cinco minutos... nada. A hora de começar. Nada. Do início ao fim, nada: me vi mais confortável que quando me escoro no discurso racional - no terceiro e último dia, ainda lamentei que a apresentação poderia ter durado mais. Amigos que foram assistir a "Residência em suspensão", brincaram: ao me verem sentado tranqüilamente, como se sequer fosse apresentar, com a roupa que há dez anos uso para quase todas as ocasiões, ficaram esperando a hora que eu iria passar a cuia de chimarrão - foi o que faltou para dar a impressão de estar na sala de casa.
Se me apresentei bem, não sei. Fukushima conversou comigo depois, me elogiou, e ainda que não tenha duvidado, não consegui acreditar: já havia sido demais eu ter me apresentado sem sobressaltos, que ainda tenha feito com qualidade, era informação demais para minha cabeça - que não parou desde então, tentando entender o que foram esses três meses, e, por que não?, o que foram esses três anos desde que comecei a fazer dança com a Key. Me desreconheço (inclusive neste texto, muito "querido diário").

21 de dezembro de 2016.

PS: Revisava a crônica quando noto onde posso talvez me reconhecer novo: no nome. Com dois Daniel na sala vejo o mesmo processo de quinze anos atrás, quando entrei na USP e, para diferenciar os Daniéis, passei a ser chamado pelo sobrenome - que desde então adotei e prefiro, ainda que não faça questão. A diferença: Edu não conseguiu lembrar de Dalmoro, que ganhou nova corruptela (já tinha virado Fanoruti com a Misson bêbada [http://bit.ly/2igpo22]): Dandoro. Talvez seja isso! Dancei já não mais como Dalmoro - certamente não como Papa -, mas como Dandoro.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A PEC da desestabilização

Com o Estado tomado pelas finanças, há uma busca agressiva por parte dos donos do poder pelo esvaziamento da política na sociedade, de forma a garantir a platitude necessária à maximização de seus lucros. A Política, a exigência dos "de fora" em serem incluídos no pretenso bem-estar geral da nação, desestabiliza, ou melhor, torna evidente a falta de qualquer estabilidade na sociedade contemporânea, é capaz de mudar rumos - os tais "contratos" que governos progressistas precisam respeitar quando assumem o executivo -, por isso deve ser combatida, por isso deve ser tratada como sinônimo de "palavrão" (quantas vezes Alckmin não desqualificou greves e movimentos reivindicatórios por serem "políticos", para não falar no seu pupilo, o lobbysta que não faz política mas disputa eleição e ainda não saiu do palanque). Uma das funções de Lula no executivo federal, enquanto grande conciliador nacional, foi dar um pouco de sossego a uma turba que se politizava via lutas e reivindicações sociais, e ameaçava questionar privilégios, reivindicar direitos. Houve quem anunciasse ali o fim da política. Exagero: Lula, inteligente e experiente, sabe que política é imanente à sociedade humana, o que o ex-presidente fez foi manter a política em intensidade muito baixa - talvez seu grande erro: conseguiu considerável apoio e tranqüilidade durante seu mandato, mas deu as condições ideias para a gestação da serpente que vem engolindo o PT, as esquerdas e a incipiente democracia brasileira.
O grupo que assumiu o poder com o golpe de Estado de 2016 aparenta mais esperto que o PT, mas tenho cá sérias dúvidas: parecem crentes demais para conseguir perceber o que se passa ao seu redor. A PEC 241/55 pode ser vista como a tentativa de institucionalizar o fim da política sem precisar recorrer a uma ditadura de linhas totalitárias (o golpe de 64, convém lembrar, manteve alguma política acontecendo). O golpe, contudo, pode sair pela culatra: soa absurda a idéia de uma sociedade que prescinda da política - e qual não é o principal instrumento de disputa política no Estado moderno que não o orçamento, desde a cobrança de impostos até a alocação dos recursos? Tentar sufocar a política é dar fermento para que ela ressurja com muito mais força e vigor - o que pode gerar reações igualmente vigorosas e violentas do lado oposto, da anti-política (de inspiração nazi-fascista). 
Ainda antes de possível revolta popular nas ruas, há sinais de que a PEC surge capenga, e quem o diz é um dos porta-vozes oficiais do golpe. O Datafolha não possui credibilidade, mas é reconhecido por ser falho e adulterar dados para favorecer suas posições - vale lembrar a notícia, a partir de dados forjados, deturpados e mal apresentados, que diziam que 50% da população queria a permanência de Temer, pouco antes do desfecho do golpe contra Dilma [http://bit.ly/2hPtcHp]. Pois é esse instituto quem anuncia que 60% da população é contra a PEC 241/55 [http://bit.ly/2hy0749], isso mesmo com toda propaganda feita pelo jornalismo da chamada Grande Imprensa, de que a tal emenda evitaria a quebra do país e permitiria a retomada do investimento e do crescimento. A lógica é simples: com dinheiro garantido para os juros da dívida, os "investidores" (termo genérico para especulador) voltariam a aplicar no país, por dar estabilidade ao seu investimento.
O dado do Datafolha deixa claro que, apesar da emenda constitucional, não deve haver estabilidade nos próximos anos, a não ser que se recorra a uma ditadura aberta e se implemente a tão sonhada paz de cemitério (com trabalhadores zumbis) que o mercado elogia. Se se mantiver o mínimo do lustro de democracia formal, a oposição à PEC deve ser bandeira forte em 2018, no mais tardar em 2022, quando seus efeitos serão sentidos (ainda que economia não seja ciência exata, há certos direcionamentos cuja direção é evidente e permite antever muito do que espera). Alckmin, nome forte da extrema-direita tupiniquim, já deu entrevista criticando a proposta [http://bit.ly/2gMX9Kj] - a esquerda, desnecessário falar. A tendência, portanto, é de permanente crise entre os poderes - com agudização da crise de representatividade dos políticos eleitos para o legislativo -, ou uma nova ementa à constituição que desfaça a PEC dos golpistas. De qualquer modo, contrariamente ao que dizem os analistas da Grande Imprensa, a PEC 241/55 deve afastar qualquer estabilidade jurídica e econômica, condição para atrair investimentos ou mesmo especuladores. Por mais um caminho, o golpe deve deixar como maior legado a instabilidade - e há aqueles que saberão ganhar muito com isso.

14 de dezembro de 2016