sábado, 7 de janeiro de 2017

Limpar o chão

Lembro das imagens de torcedores japoneses recolhendo seu lixo no estádio, durante a Copa de 2014. A imprensa corporativa destes Tristes Trópicos apregoou como prova da civilidade nipônica em contraposição ao atraso brasileiro, enquanto algumas pessoas mais críticas diziam que era reflexo de um país onde fora superada a separação arcaica Casa-Grande/Senzala, Senhor/Escravo, em que um suja e os outros limpam. Nenhuma das explicações me satisfazia, mas eu não sabia exatamente o porquê.
Sobre a pretensa civilidade japonesa. Que é um gesto de civilidade recolher o lixo, sem dúvida; mas daí dizer que um país com vagão rosa no metrô - por conta de violência sexual contra mulheres -, altas taxas de suicídio, e boa parte da economia controlada pelo crime organizado seja um país civilizado, eu teria um pouco de cautela. Nossa elite e sua porta-voz midiática, desde sempre colonial e colonizada, não esconde seu desprezo por tudo o que cheire a povo, assim como não consegue disfarçar seu deslumbramento ingênuo com aquilo que vêm dos países centrais. Como comenta Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra: "A burguesia colonialista, quando registra a impossibilidade para ela de manter a sua dominação sobre os países coloniais, decide fazer um combate de retaguarda no terreno da cultura, dos valores, das técnicas, etc" (p. 61), reforçando com isso a idéia de que "a espécie dirigente é primeiro aquela que vem de fora, aquela que não se parece com os autóctones, 'os outros'" (p. 57). Para nossa elite e seus asseclas, a civilidade está sempre no exterior e este povo xucro dos trópicos dificilmente dará conta de aprender a se comportar decentemente.
A outra explicação corrente, de que o brasileiro jogaria lixo no chão por estar acostumado a ter quem limpe pra ele, é uma variação à esquerda, com leves toques sociológicos, do biologicismo das elites. Ainda que seja de grande auxílio, não há causalidade entre fazer a limpeza e não sujar. Fosse assim, todo profissional de limpeza seria muito asseado, mas sei de muitos que não são: o mero trabalho alienado de limpar não faz ninguém ter consciência de não sujar - até porque a lógica do "tem quem limpe" se mantém, e esses esperam o subalterno que possam humilhar [http://bit.ly/cG161230]. Ademais, sei de muitas pessoas que nunca fizeram uma faxina na vida e ainda assim se preocupam em não sujar, em recolher seu lixo dos locais públicos, etc. Posso estar enganado, porém não acredito que todo europeu faça a faxina de sua casa - idealmente seria lindo, mas me soa irreal. Fazer faxina ajuda muito a melhorar a percepção do que suja, o quanto suja, o quanto custa limpar algo. Ouso dizer que esse tipo de "civilidade" é uma questão de consciência, de reflexão e auto-reflexão, de empatia com o Outro que vai limpar, mais do que ter "sofrido" pessoalmente.
Entretanto, desconfio que o exemplo japonês está muito além desse utilitarismo rasteiro de que falei acima. Tal desconfiança me veio da residência em dança que fiz com o Eduardo Fukushima, assistido pela Beatriz Sano (já escrevi crônica sobre a experiência [http://bit.ly/cG161221]). Em certo momento, a Bia nos introduziu a uma técnica japonesa de limpar o chão: uma série de exercícios em que limpamos o chão sem rodo, apenas pano e as mãos. Contando, parece exercício banal, e cabe até mesmo perguntar por quê forçar pernas e costas se há rodo - e pessoal da faxina. A ligação com a cena que descrevi no início da crônica também parece óbvia: tal técnica nos ensina a ter consciência não só de não sujar como de manter limpo - no Japão, os próprios alunos fazem a faxina da escola [http://nao.usem.xyz/9tmd]. 
Não passou por aí o que aprendi com ela. Não sei por onde isso opera, mas limpar o chão conforme as regras dessa técnica, desde o preparo até as formas de esfregar o pano criaram uma outra de relação entre mim e a sala de ensaio - que seria também a de apresentação. Não por acaso, tive a impressão que a partir de então consegui me sentir muito mais à vontade para dançar e pude entrar com outro espírito (e outro corpo) na coreografia - foi como me irmanasse do espaço, rompendo com a lógica funcional que é o meu (nosso) natural. 
Empolgado com esse efeito, passei a limpar minha casa também conforte essa técnica, com algumas adaptações, claro, visto que não se trata de um amplo salão vazio e sim um apertado apartamento cheio de tranqueiras e móveis e dois gatos curiosos. Ainda que tenha sido menos drástica, por eu já possuir uma relação afetiva com meu lar, algo mudou na minha relação com meu espaço - dos pequenos mistérios que a razão não dá conta.
A partir dessa técnica ensinada pela Bia, também dos últimos tempos nestes Tristes Trópicos, tenho me posto a pensar na nossa relação não apenas com o Outro, com o que é público (aqui sinônimo de ninguém, Oudeis), mas com os espaços que nos cercam, com o que nos é familiar. Somos estrangeiros em nossa própria terra, ressentidos que ela não é a imagem idílica que a Suécia nos vende de si. Somos estranhos em nosso próprio lar, não criamos laços, não nos reconhecemos em nosso trabalho alienado, em nossas ações não menos alienadas, em nosso lazer desesperado, em nossas conversas sem profundidade, em nossos bibelôs e souvenirs sem história. E nos eximimos de qualquer responsabilidade atribuindo a culpa sempre ao outro.
Talvez uma alternativa para reverter esse quadro seja não apenas nos afetuarmos, mas nos irmanarmos dos lugares que freqüentamos - em especial os quotidianos. Uma das questões é como fazer isso num país ainda de espírito colonizado e mentalidade calcada na exploração do Outro, até sua aniquilação; de cada vez mais absolutização de valores parciais (como cristãos (sic), em especial evangélicos) e agudização da intolerância e da violência simbólica e bruta. Definitivamente, não sei. Tenho a impressão que nos irmanarmos dos locais freqüentados implica também em nos irmanarmos daqueles que o habitam e o freqüentam. Mas surgem novas questões: quantos de nós estão dispostos a sair do seu comodismo umbigocêntrico e se arriscar no desconhecido? Quantos ainda sabem o que é se irmanar, o que é se afetuar de algo ou de alguém e se deixar afetar por isso?
Nenhuma resposta me vêm, outras perguntas me surgem. Eu apenas sugiro experimentar limpar o chão da própria casa sem o rodo.


03 de janeiro de 2017


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