segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Mãos ao alto: o imposto é um assalto!

Na Globo, em toda Grande Imprensa, comentaristas de economia e "especialistas" explicam que o Brasil não cresce e que um trabalhador brasileiro já ganha menos que um chinês por culpa da elevada carga tributária. Na internet, circulam correntes com dados falsos falando que o brasileiro trabalharia mais de 2 mil horas - o dobro de um boliviano - só para pagar impostos. No centro de São Paulo, a Associação Comercial tem um "impostômetro" a dizer quantos bilhões os brasileiros teriam pago até então em impostos. Curiosamente, os comerciários não têm um "sonegômetro", e é sabido que são poucas as lojas, os postos de gasolina, os prestadores de serviço que dão nota fiscal se você não pede (mas o valor do imposto está incluído no preço). Também é curioso que as listas de quanto se trabalha para pagar imposto nunca incluem Alemanha, França, Itália, China, Noruega, é sempre Mauritânia, Chade, Senegal, Vietnã, Bielorrússia, países com economia e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) bem abaixo do Brasil - coincidência? E se imposto baixo fosse condição de crescimento de renda e emprego, Suriname (27%) e Paraguai (35%) seriam as maiores potências das Américas, e não os Estados Unidos (44%, segundo o Banco Mundial. bit.ly/vaivem11901).
Para que servem os impostos?
A função primeira dos impostos é simples: fazer o país funcionar. É dos impostos (e não da caridade dos homens ricos) que vem o dinheiro para o estado funcionar; são os impostos que pagam o salário dos políticos (dos corruptos e dos honestos), dos juízes (dos corruptos e dos honestos), dos policiais, dos professores, dos médicos, dos assistentes sociais, dos funcionários todos; é dos impostos que vem o dinheiro para construir estradas, escolas, hospitais; é dos impostos que vem a aposentadoria, o Bolsa-Família, a compra de remédios, de merenda escolar.
A segunda função é menos evidente, principalmente em países como o Brasil: os impostos servem para tornar a sociedade menos desigual, por isso quem ganha mais paga (deveria pagar) mais que quem ganha menos.
Há ainda outras funções. Por exemplo, a elevada carga tributária sobre bebidas alcoólicas e cigarros serve para tentar desestimular o consumo desses itens prejudiciais à saúde, além de ajudar a financiar a saúde pública. Nessa linha, a Organização Mundial da Saúde, da ONU, sugere a criação de impostos para alimentos industrializados pouco saudáveis (bit.ly/vaivem11902)
A carga tributária no Brasil é alta?
Na imprensa falam o tempo todo que o brasileiro paga muito imposto. Será mesmo? Realmente, não é baixa, mas se comparado com países desenvolvidos ou em situação semelhante, os impostos no Brasil estão dentro da média. Além do mais, vale lembrar que enquanto os países da Europa ocidental têm boa parte de seus problemas de infra-estrutura e bem-estar social bem encaminhados, o Brasil ainda figura no mapa da fome (obra do senhor Michel Temer e do PSDB) e carece de estradas, hospitais, postos de saúde, universidades, escolas, creches...
Quem paga os impostos?
Aqui é o grande prolema dos impostos no Brasil: ao contrário do que acontece nos EUA, na China, na Europa, no Brasil quem ganha menos paga mais impostos - proporcionalmente. Isto é, enquanto os ricos pagam pouco mais de 1/5 do que ganham por ano em impostos, classe média e os mais pobres entregam 1/3 dos seus rendimentos. Isso acontece porque a principal fonte de arrecadação é indireta, ou seja, imposto sobre consumo, e não direta, como imposto de renda, sobre herança, sobre propriedade ou sobre o lucro e dividendos de quem tem ações - inclusive, não há esse imposto no Brasil. Não por acaso, a ONU diz que o Brasil é o "paraíso tributário para os super-ricos" (bit.ly/vaivem11903), sendo que com isso o Brasil deixa de arrecadar R$ 43 bilhões por ano dos mais ricos (bit.ly/vaivem11904).
Outro problema brasileiro é onde se aplica o dinheiro dos impostos: em 2014, 45% do que foi arrecadado foi utilizado para pagar juros e amortizações da dívida, enquanto educação e saúde receberam juntas 7,71%, e a previdência social, 21,8% (bit.ly/vaivem11905). O que se gastou em um ano com juros dava para ter pago dez anos de Bolsa-Família (bit.ly/vaivem11911)!! E a tendência é aumentar esse número, com a aprovação da PEC do teto dos gastos públicos.
Para deixar claro que o problema do Brasil não é o quanto se paga de impostos, mas quem paga mais e onde esse dinheiro é aplicado, a tabela abaixo traz a comparação com alguns países.


Imposto sobre produtosImposto de Renda Pessoa FísicaImposto – empresasIDH (posição)Índice Gini - desigualdade (posição)

bit.ly/vaivem11906bit.ly/vaivem11907bit.ly/vaivem11908bit.ly/vaivem11909bit.ly/vaivem11910
Brasil19%27,5%34%0,755 (75)52,8 (13)
EUA0%40%39%0,915 (8)41,06 (63)
Alemanha19%47%30%0,916 (6)30,13 (133)
Japão8%56%31%0,891 (20)32,11 (120)
Dinamarca25%55%22%0,923 (4)29,08 (137)
Espanha21%45%25%0,876 (26)35,89 (88)
China17%45%25%0,727 (90)42,06 (60)
Índia15%35%35%0,609 (130)33,9 (104)
Mauritânia18%40%25%0,506 (156)37,48 (81)
Bolívia13%13%25%0,662 (119)48,06 (24)
Senegal18%40%30%0,466 (170)40,28 (67)


Texto para o Boletim Vai Vem e SPM Informa, do Serviço Pastoral dos Migrantes.

27 de fevereiro de 2017

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

USP, metrô e cacoetes da academia

No Fakebook um amigo pede ajuda para uma matéria que está redigindo: quer saber o porquê de não haver estação de metrô dentro da USP, do veto de Rodas a ela. Solícitos amigos pós-formados nas melhores universidades brasileiras aparecem para ajudar - apesar de não terem muita idéia do imbróglio da estação, nem muita noção de urbanismo e cidade (não faz parte do objeto específico de suas pesquisas, logo não é do seu interesse), nem muita reflexão crítica sobre si e sobre a academia brasileira.
Uma das amigas o corrige: quem teria vetado a estação fora a Suely Vilela e não o Grandino Rodas, e informa que uma urbanista professora da FAU deveria dar a ele as informações. Fui no blogue da professora, ela fica na generalidade: "Segundo informações que obtive de um técnico do metrô, foi a reitoria da USP que não permitiu a instalação de uma estação dentro do campus, alegando questões de segurança".
Outro amigo diz ajudar na contextualização, já que não sabe nada mais específico: segundo ele, na década de 90 a USP era um grande parque para populares, e que há, desde essa época, a tendência de fechamento da universidade à comunidade, com a construção do muro e outros quetais, sempre em nome da segurança.
Também eu meti o bedelho, apesar de tampouco ser entendido no assunto (por obra do acaso, acabei não assumindo meu posto de OPS na Companhia do Metropolitano de São Paulo). Ainda que seja bem provável que a USP tenha sido consultada novamente sobre a estação quando na construção da linha amarela, em 2004, eu tinha ouvido falar do veto à estação dentro do campus universitário ainda no planejamento das linhas, na década de 70. Ouvira tal história de uma professora de outra universidade. Ela se mudara não fazia muito para o Brasil e se deparara com aquele imbróglio, facilmente resolvido, pois a USP não queria populacho a empestar seu ar (os termos ficam por minha conta). Ela teria percebido logo ali qual o ethos da academia tupiniquim. Ouvi história semelhante de uma amiga metroviária (a mesma que me contou do ramal Moema da linha azul), de que a hoje chamada linha amarela terminava na estação Jockey Club por conta da recusa da USP de que houvesse uma estação no seu território - teria aprendido isso no curso de formação. Como a matéria não era minha e eu só sabia de ouvir dizer, me limitei a dar as coordenadas ao amigo: "na década de 70, no planejamento da rede, teria sido proposto e a reitoria recusado. Metroviários podem te informar".
Meu amigo agradeceu à ajuda de todos e disse que entraria em contato com a professora da FAU. Aqui começo minha crítica à falta de auto-reflexão e aos cacoetes da academia brasileira, que poderia dizer que é um projeto de poder de uma elite periférica da casta dos donos do poder.
O comentário do amigo me fez lembrar uma tirinha da Mafalda, em que um dos personagens (acho que o Miguelito) questiona para quê havia brinquedos e tudo o mais antigamente, se ele nem era nascido. A USP como um parque aberto pode ser uma memória dele, digna de registro, mas que precisa de contextualização e crítica, ainda mais por se tratar de um sociólogo com pós-doutorado. Conhecendo minimamente a história da universidade pública brasileira, a USP ter sido uma espécie de parque na década de 90 parece antes obra de lentidão burocrática para acompanhar o crescimento da cidade ao seu redor do que qualquer real abertura à população - ok, vá lá, talvez fosse alguma lufada pseudo-democratizante na esteira de 1988: abramos os canteiros ao povo, antes que comecem a querer entrar nas salas de aula. É evidente a qualquer um que não se deixe inebriar por discursos de dever-ser que se pretendem atuais, que a USP, a exemplo das demais universidade públicas brasileiras - a gestão Haddad no Ministério da Educação me parece ter sido a primeira a tentar enfrentar de verdade isso, ainda que timidamente - é fechada para pretos pobres e periféricos de seu início até hoje: basta ver a cor da pele dos seus alunos, quantos negros fazem medicina, economia, engenharia ou arquitetura (vi mais alunos negros na PUC-SP que na Unicamp). Murar a universidade soa uma tentativa de voltar aos "bons velhos tempos" em que São Paulo e aquele povo ignorante era uma mancha urbana lá longe, e a pesquisa acadêmica podia ocorrer tranquila e segura, falando sobre os problemas sociais, daquela sociedade de homens pretos e mulheres pobres que diziam existir do outro lado do rio. Desde sempre - com suas honrosas exceções, é claro -, boa parcela da esquerda acadêmica se recusa a aceitar que é parte privilegiada do sistema e está muito bem assim, com pouco interesse em mudanças estruturais - pois seriam atingidos por elas. Afinal, mudar as estruturas significa abrir mão do poder, aceitar que seus doutorados são títulos de saberes parciais, precários e muitas vezes sem maiores aplicações práticas imediatas, e que no resto são ignorantes, podendo estar aquém de muitas pessoas que só terminaram o ensino médio (falta-nos a lucidez de Fernando Pessoa). Assumir isso, dentre outras coisas, faria com que perdessem, por exemplo, seu acesso à indústria do espetáculo como "especialistas" (esse genérico termo para calar a boca dos que não são), sem contar toda a deferência que ganham dos populares, bestializados com seu linguajar pomposo.
O comentário da outra amiga que citei - a exemplo do amigo e deste escriba, cientista social (no caso, antropóloga) na faixa dos 30 anos -, é a indicação de uma professora que pouco pode ajudar: apesar de urbanista, ela não é entendida em transporte público, e isso é evidente ao consultar seu blog. Entretanto, é uma doutora professora da USP, produtora e divulgadora do saber (pouco importa sobre o que), e sua palavra merece prioridade frente a de um serviçal uniformizado, um metroviário OPE (operador de estação), de quem se exige só segundo grau (minha amiga metroviária era formada em filosofia, mas seu diploma pouco valia na escala social de valor diante do cargo que ocupava). 
Só a universidade produz saber, só quem está nela ou passou por ela tem direito a se manifestar: é um discurso-oculto comum à academia, reiterado diariamente pela mídia e seus "especialistas". Por ser útil e confortável aos acadêmicos, esse pressuposto não é questionado - ressalto: talvez não seja má-fé, só falta de hábito de refletir um pouco sobre si próprio. Lembro de quando estudava na USP-Ribeirão, e o caderno local da Folha costumava entrevistar professores meus da psicologia sobre assuntos de política partidária - pelo que vi em sala de aula, na melhor das hipóteses eles eram tão entendidos quanto eu, mas eram doutores em psicobiologia e assuntos afins, logo, especialistas aptos a falar das disputas entre PT e PSDB. Ou quantas discussões não presenciei em que um dos interlocutores solta um disfarçado 'cala a boca' para o outro, porque ele é formado em qualquer coisa por uma universidade pública e outro não tem diploma algum - pouco importa que seu diploma seja de medicina e estejam falando do trânsito (de cientistas sociais e suas viseiras, esse assunto deixo para outra crônica). Nessa apropriação da universidade da produção do saber legítimo, não sei se é recente, ou eu quem tenho notado só agora, por ter me aproximado da área, após ter feito um curso livre de iluminação cênica, mas até a produção artística tem sido abduzida pela universidade: artista bom é artista com diploma universitário (basta ver quem vai dar oficinas por aí, se não forem oficinas para periféricos, os artistas sempre ostentam um título acadêmico).
Estou curioso sobre a matéria da não-estação de Metrô na USP. Por meu amigo não ser jornalista de formação, tenho esperança de descobrir novos aspectos dessa história. Independente disso, a não-estação de Metrô dentro no campus é outra metáfora involuntária que a USP oferece para compreender a visão que ela tem de si e da sociedade que a serve: por ser não apenas uma universidade de elite, como para a elite, nada mais lógico que evitar a nódoa de um transporte de massa a estacionar em seu interior: já pensou se esse povo ignorante resolve usar a biblioteca?

21 de fevereiro de 2017



PS: já que falei de metrô, dois amigos me falaram de uma "plataforma fantasma" da linha azul (antiga norte-sul) na avenida 23 de Maio, no ramal Moema, mas não souberam me indicar a localização. Já achei a estação fantasma, a Pedroso, da nati-morta linha sul, mas a tal plataforma, nunca. Se alguém souber onde fica, me mostra!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O que é isso?!

Quando acordo, Mafalda, minha gata, costuma estar dormindo no pé da cama. Ao tocar o despertador, ela levanta a cabeça e me observa: se apenas desligo o aparelho e volto a dormir, também ela volta aos braços de Hypnos; se dou sinal de que irei acordar, ela também desperta e de pronto começa a miar seu miado reclamão - descobriu cedo que, pela manhã, é gastar ATP à toa tentar me acordar. Se Guile está com ela, já sei: falta comida no pote ou a caixa de areia está muito suja, daí o reforço do irmão para reclamar. O esquema não muda se Natália dorme na minha casa - pela manhã está ela no pé da cama, a ocupar o espaço que Natália não alcança.
Esta semana veio dormir aqui em casa também o Vinícius, seis anos, filho da Natália. Apesar de muito sociáveis, Mafalda e Guile ainda guardam reservas para com esse ser humano diminuto com muita energia que pula e grita e berra e corre atrás deles ("correr" é aqui utilizado como licença poética, aos quatro ou cinco passos que meu apartamento permite que sejam dados antes de encontrar uma parede ou um móvel) e o máximo que sossega é por dois minutos, quando tenta pescá-los com algum fio sem graça. Já foram mais ariscos, porém ainda não se entregam tranqüilamente aos seus agrados - é perceptível uma certa tensão enquanto recebem festinha, e correm ao primeiro berro do garoto, o que não costuma demorar sequer um minuto.
Enfim, dormiu o Vini aqui, em um colchão no chão, já que minha cama sequer é de casal para dar conta de comportar três corpos humanos neste calor paulistano. No outro dia, sei da manhã, Natália acorda e vai para sua aula, fecho a porta para ela e volto para a cama. É quando reparo nos dois gatos. Estão parados ao lado da cama, no chão, entre minha cama e o colchão onde Vini dorme. Tão logo notam que os observo começam a miar inconformados, como a perguntar o que significa aquele colchão atrapalhando a livre circulação da sala até o quarto e, pior, com o pequeno ser elétrico escarrapachado nele. Alternam observações ao Vini e miados para mim, que ao invés de responder ou tomar qualquer atitude, pego meu tablet e tiro uma foto da inusitada cena, antes de voltar a dormir. Os gatos, não sei o que fizeram, a partir de então. Talvez tenham voltado a seus afazeres, ou aproveitado para descansar um pouco mais, já prevendo que em breve a casa estaria tomadas por gritos e risadas altas e tentativas de pescaria de gatos e outras atividades que me cansam só de olhar, às oito da manhã.

20 de fevereiro de 2017


sábado, 18 de fevereiro de 2017

Dois PMs em suas motos (Estado de direito no Brasil?)

Em um Estado de direito todos estão subordinado às leis. Ainda que a lei garanta certas distinções - um policial pode andar armado, um "cidadão de bem" ou um "bandido", não -, via de regra, as normais são gerais: não matar, por exemplo, serve tanto para o "bandido" quanto para o "cidadão de bem" quanto para o "policial", ou deveria servir. Falo em assassinato, mas meu exemplo é mais singelo.
Estou em uma das principais e mais movimentadas ruas de um bairro de classe média-alta da região central da principal cidade do país, no meio de uma tarde calorosa. Lenta e tranquilamente se aproximam do cruzamento dois policiais militares em motos da corporação - devem ser da Rocam, penso, esqueço de averiguar. Um deles conversa, ao que tudo indica, ao celular - pelo tom, pela forma como não termina as frases, pelo longo parlatório com quem está do outro lado da linha, definitivamente não parece que está a falar pelo rádio com a central. Pelo que me consta, infração gravíssima, sete pontos na carteira e R$ 293 de multa ao PM. Próximo à faixa de pedestres, o sinal fecha para os veículos e abre para os perdedores, digo, pedestres (meu caso). Com todos os veículos parados, e como pedestre deve respeito à vaca sagrada motorizada, os militares não se dão ao trabalho de respeitarem o vermelho que brilha para eles e atravessam assim mesmo (nova infração gravíssima) e, sem dar seta, fazem uma conversão proibida.
Pelas regras de trânsito, os guardiões da lei e da ordem que passeavam em suas motos como se estivessem num domingo no parque, em míseros três minutos, deveriam pagar ao estado mais de R$ 1600 em multa, sendo que um deles deveria, ademais, entregar sua carteira de habilitação, estourada em quatro pontos os vinte permitidos. Isso, claro, se vivêssemos num Estado de direito (oxalá fosse ainda por cima democrático). Entretanto, como o paradigma vem de cima... quando temos um presidente golpista (um constitucionalista que desrespeita a constituição), um governador que autoriza e estimula execuções extra-judiciais dos seus subordinados, um deputado-pastor que estupra, ameaça e segue lépido e faceiro ganhando seu salário e as contribuições de seus fiéis "cristãos", um capitão da PM que em julgamento fala em mandar o advogado para a vala [http://bit.ly/2lwJY3y], ou casos muitos de promotores e juízes que fazem o que querem, à revelia da lei, e se safam com uma carteirada, esperar do militar rés-do-chão o exemplo de cumprimento da lei beira o contrassenso. Mais: o que é infração de trânsito a uma polícia que só na cidade de São Paulo assassinou 412 pessoas em 2015, um em cada quatro assassinatos registrado na capital [http://nao.usem.xyz/ack4]?

18 de fevereiro de 2017



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Engraçadinho e normativo

Escaldado por dez anos de IFCH-Unicamp (o instituto das ciências humanas da Universidade de Campinas), toda vez que vejo no meu Fakebook algum videozinho pretensamente engraçado e crítico, mas que na verdade é normativo, tratando de taxar nos outros tudo o que eles fazem de errado (é sempre o outro o errado), abre em mim um enorme lago de ressentimento - daí que hoje resolvi escrever uma crônica, pra dar um pouco de vazão a esse sentimento.
O IFCH parece um lugar legal, tolerante, onde aqueles que são marginalizados pela "norma padrão" da sociedade encontram acolhida. Em parte isso é verdade. O difícil é perceber o valor da fatura para esse acolhimento, com a recusa de tudo o que fuja esse outro padrão normativo. A exigência de uma determinada forma de pensar e agir aparece em argumentos mais racionais que os dos fiscais do cu alheio, porém não deixam de ser moralistas. A cobrança, contudo, dificilmente é feita diretamente: é no dedo que aponta para o outro que fica dito o que não se deve fazer - numa covardia que me parece ser o ethos da academia tupiniquim. Quando eu publicava algum texto contra a corrente no Cacheiros viajantes, o jornal dos alunos do IFCH, era comum meus amigos mais próximos ou minha então namorada (outra exímia "normativista") virem falar do que haviam comentado com eles sobre meu texto - para mim, nunca falaram nada. Em tempo: também eu fui super normativo durante ao menos metade de meus anos de IFCH, mas o fazia às claras, cara a cara, na expectativa de resposta do outro às minha contestações; tenho tentado mudar desde 2007, quando me relacionei com uma estudante de pedagogia que me jogou na cara que minha racionalização em ideais abstratos não era menos normativa que quem falava na moral e nos bons costumes.
Tempos atrás amigas compartilharam um vídeo em que mostrava como os homens fazem errado sexo oral nas mulheres. Muitas ainda acrescentaram: "homens, aprendam". Pelo vídeo, eu teria aprendido que mulheres são seres genéricos: um pedaço de carne com pontos específicos de estimulação que gerarão, ao fim de um tempo determinado, um resultado satisfatório - um output positivo, diriam os economistas. Que uma mulher prefira mais rápido e outra mais lento, que uma não goste de sexo oral, que outra goste de tudo quanto é forma, isso não existe. Que a mulher possa ser sujeito de seu corpo e seu desejo e dizer ao parceiro "não faz assim, faz assado", tampouco há essa possibilidade. Que mulheres façam sexo oral ruim em outras, isso é ontologicamente impossível. Homens, aprendam: mulher é tudo igual, acertou com uma, acertou com todas. O vídeo me lembrou as Playboys que eu lia no início da minha adolescência e vida sexual, nas quais haviam fórmulas para chegar, beijar e transar do "jeito certo" - claro que nunca consegui fazer do "jeito certo" indicado na revista e isso por muito tempo fez com que eu achasse que era um fracasso completo, até eu descobrir que cada mulher, por ser única, tem seu jeito.
Há cerca de três anos, bombou no mesmo Fakebook a postagem de um francês funcionário do Google com observações espirituosas sobre hábitos brasileiros, coisas que nos passam despercebidas tão naturalizadas estão (meus favoritos são: os casais se sentam nas mesas lado a lado, como se estivessem no carro; e as pessoas podem perder horas no trânsito, mas não se pode atrasar dois segundos depois que o sinal abre). Logo a seguir, lembro de ter lido ao menos outras duas postagens com observações de estrangeiros sobre o Brasil. De duas uma: ou se tratavam de europeus etnocêntricos que vieram para estes Tristes Trópicos arrotar regras de civilidade, ou, mais provável, alguns brasileiros ignaros-mas-diplomados que por terem tirado uma foto com a Monalisa no Louvre ou com o Pateta na Disney resolveram aproveitar a febre e tentar dar lições de etiqueta a esses bugres que aqui habitam, desqualificando todo e qualquer hábito que pareça autóctone - provavelmente em 2016 esses brasileiros que se julgavam estrangeiros devem ter sido algumas das milhares de pessoas brancas e bem remediadas que foram para a rua pedir seu país de volta (para entregá-lo ao Tio Sam), e que cantam com orgulho, logo após o hino nacional, o refrão do Ultraje a Rigor: "a terra é uma beleza, o que estraga é essa gente".
Desta feita, o vídeo engraçadinho-normativo que me precipitou a esta crônica é sobre asiáticos e coisas que ouviriam sempre. É uma versão dentro desse ethos normativo da classe média brasileira (não sei se classe alta ou baixa agem assim também, por isso restrinjo à classe a que pertenço) a um vídeo estadunidense ou inglês. No vídeo gringo, um homem chega a uma oriental e na expectativa de ser simpático faz uma série de gestos estereotipados tirados de Hollywood, da forma de cumprimentar e andar a posturas de artes marciais. A oriental responde com estereotipia dos gestos dos W.A.S.P., tidos por "naturais". A crítica é clara: um branco que recusa enxergar o outro que tem diante de si, preferindo mediações estereotipadas, ainda que a intenção não seja a de diminuir, há um claro desrespeito ao diferente, simplificado, caricaturizado e apresentado de chofre, sem qualquer real intenção de diálogo - no máximo, uma cantada.
O vídeo brasileiro se pauta em perguntas e colocações que orientais costumam ouvir sobre hábitos alimentares, se seguem as tradições, se mantém a língua, etc. Inverteram e puseram asiáticos fazendo as mesmas para descendentes de alemães, italianos e portugueses. Tirando a qualificação de "fajuto" ou "paraguaio" para quem não segue certas tradições, as falas denotam antes de qualquer deprecio pelo diferente, um interesse pelo outro, reconhecido na sua diferença e valorizado por isso, e um questionar a si próprio das simplificações que ouve. Eu mesmo já fiz várias vezes esse tipo de pergunta, não somente a asiáticos, como a amigos que vêm de regiões de forte enraizamento de uma certa etnia - como a região de colonização alemã em Santa Catarina -, e descobri vários costumes interessantes que desconhecia - por exemplo, uma das coisas que me intrigou foi o bloco de arroz moído, que é base da alimentação de muitos taiwaneses, em substituição ao pão, que lembra muito o fufu camaronês.
Apesar de não haver desrespeito naquilo que falam aos asiáticos, há uma normatividade no texto: não questione os orientais. O que incomoda tanto o autor do vídeo? O fato de ser questionado em seus hábitos significa que não se é o padrão, não é hegemônico - daí a curiosidade. Talvez seja isso que incomode: saber que a alteridade é possível, e ele também deveria adotar esse comportamento. Ele prefere, então, seguir o padrão brasileiro e ditar uma norma ao outro, um cala a boca. Não por acaso, o vídeo se intitula "se asiáticos brasileiros fizessem as perguntas que brancos fazem". Só brancos fazem as tais perguntas aos asiáticos no Brasil? Negros nunca perguntam se comem de hashi (kuaizi, chotkarak) em casa? Por que? Seriam os negros "do bem", ou é porque têm eles apenas o direito de falar "sim, senhor" na nossa sociedade cordial? Ou o incômodo é não ser reconhecido como um absolutamente igual por aqueles que ocupam o lugar mais alto na "escala racial de valor" da sociedade brasileira?
Esse incômodo em ser reconhecido (e valorizado) pela sua diferença me fez lembrar da impressão que mais me marcou a primeira vez que fui à igreja Nossa Senhora da Paz, na região do Glicério, centro de São Paulo, onde se concentram imigrantes vindos de regiões tidas por pouco nobres do globo, quando não "selvagens" - Caribe, América do Sul, África. Sem dinheiro, sem reconhecimento, sem valorização social, a sociedade não se mostra minimamente curiosa em saber das suas tradições e hábitos, quando não os desvaloriza por isso. São pobres, a escória, invasores, bandidos, "lixo humano", como qualificam muitos cidadãos de bem - esses que costumam desprezar e odiar também os brasileiros de tez escura. Cientes - pelo dito e pelo não-dito - da sua condição de párias, de que não são bem-vindos, tentam logo se adequar - ao menos visualmente - aos hábitos locais: uma efervescência de culturas diferentes, riquezas muitas de ver e encarar o mundo, e a tentativa ao máximo de ocultar qualquer dessemelhança. Na impossibilidade de apagar os traços do rosto, esbranquiçar a cor da pele, mimetizam o vestir dos locais: apesar de não-remediados, a grande maioria dos imigrantes usavam tênis Nike ou Adidas, calças Calvin Klein ou Lee, camisetas Hollister ou Abercrombie, na esperança das marcas darem a eles um mínimo de reconhecimento e dignidade - que lhes são recusadas pela sua origem e sua cultura - por parte dos detentores do capital simbólico do país, os brancos que compram suas roupas em Miami - ou por aqueles, mais morenos, que os imitam com falsificações da 25 de março. 
Mas há quem reclame de não sentir toda essa pressão para se adequar ao "comum" e ter seus hábitos valorizados.

06 de fevereiro de 2017




quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Dizia minha avó: "Quem muito prega pouco crê"

Carente de um ganha-pão, estou em alguns grupos do Fakebook de pessoas em situação semelhante, um deles de vagas para professores (no meu caso, de filosofia e sociologia). Aí ontem, já que o mês fechou sem maiores perspectivas, um dos integrantes, incomodado com todas as imprecações a Jesus, resolveu pedir que as pessoas se limitassem a usar o grupo para divulgar vagas e não correntes de orações e afins, por respeito a quem não é evangélico ou cristão e mesmo por respeito à profissão de professor - que idealmente seria a de ensinar e não de doutrinar. Como era de se esperar, uma guerra se instaurou nos comentários.
Por questão de saúde, evito entrar em discussões de internet e, salvo em crônicas minhas, nunca leio os comentários - no máximo, passo o olho em três ou quatro, para amostragem. Na amostragem dessa postagem, o esperado: de um lado gente cobrando laicidade e tolerância, ou provocando com convites para rituais de magia negra; de outro, gente cobrando "os incomodados que se retirem", defendendo uma singular tolerância religiosa combinada com conversão compulsória ao cristianismo, e ataques a todos que não se prontifiquem cristão temerosos de um deus todo filho da puta.
Também eu quis contribuir com o elevado debate, e citei frase que há tempos uso, e que a cada dia acho mais pertinente, diante da reação de quem a ouve ou lê. Para dar uma suavizada, não solto a máximo como uma verdade pronta: começo com o aviso que quem dizia era minha falecida avó, mulher que acreditava em deus, freqüentava a missa e era boa observadora, para, ao fim, soltar a lapidar "quem muito prega pouco crê". Na verdade, a autora da frase é minha mãe, que volta e meia vem com umas máximas geniais e precisas, mas uso minha falecida avó com o intuito de diminuir um pouco a virulência dos esperados ataques: afinal, vó tem aquela coisa de sabedoria dos antigos, não foi corrompida pela depravação destes tempos (minha mãe, por exemplo, não vê qualquer problema em alguém ser homossexual), até por já estar morta - sem contar a esperança de um respeito a mais que os mortos costumam ter. Que nada!
Há uns dois anos, a caminho de uma missão pastoral social da igreja católica (pois é, sou um ateu que colabora com o trabalho social da igreja - já até aprendi o pai nosso), falei isso para um chato que insistia que eu devia aceitar a palavra de deus - no caso, um santinho mal feito que ele entregava a quem ia no banheiro da parada do ônibus. Ficou possuído, temi que fosse tentar me bater, porém se limitou a vociferar contra minha família e avisou que logo eu estaria no inferno fazendo companhia a minha avó. Ainda bem que deus é amor, porque se fosse ódio...
No grupo de professores, em vista do meu comentário, recebi pistas sobre a pretensa vida da minha avó, antes de ter sido mandada por um deus ressentido e raivoso ao encontro de um diabo tolerante e acolhedor - tudo por causa da mentira do neto sobre a frase da filha. Enfim, me informam, pessoas que nunca vi e que sequer são da mesma cidade que a falecida dona Maria, que ela teria sido mulher de vida fácil (sic), ou pelo menos mulher de vida boa. Da vida fácil, gosto de um vídeo do Karnal com respostas para isso, mas ouso dizer que ainda tivesse sido puta, vida fácil não teve - como a grande maioria das pessoas (homens, mulheres ou trans) que acabam seguindo pela profissão mais velha da Terra. Ouso mais, e sem achar nenhum demérito em quem trabalha como prestadora de serviço sexuais - pelo contrário -, afirmo que minha avó, dona-de-casa semi-analfabeta, nunca tentou a vida por esse ramo: era de uma época de moral mais rigorosa e não se desviou do caminho da igreja (apesar da Bíblia indicar sendas contrárias), tanto que passou por todos os apertos financeiros pelo qual passou. Mulher de vida boa, dessas cuja maior preocupação é a unha e a roupa da estação, também acho que quem fez o comentário deve ter confundido minha avó, pois não me consta que ela passava os dias no salão de beleza e em chás em clubes com as amigas, enquanto o marido assentava tijolo em troca de um salário de fome e as filhas brincavam de bóia-frias desde as cinco da manhã até o pôr do sol para conseguir um complemento à renda do patriarca que garantisse a sobrevivência da família. E por falar em semi-analfabetismo, a professora que falou da vida rósea de minha avó não sabia sequer pontuar sua frase - talvez porque estivesse ocupada demais a orar, não teve tempo para estudar enquanto comprava o diploma.
Não sei se por sorte ou azar, antes de saber mais sobre minha avó - devo deixar registrado, houve um rapaz que assegurou a sapiência de minha avó, que nesse caso é da minha mãe -, a postagem da discórdia foi excluída do grupo. Se da minha avó, não levei muito a sério as informações recebidas, sobre o nível dos professores que educam as próximas gerações, disso tive mais uma alarmante demonstração.
Em tempo: quem começou o furdunço todo era um filósofo: prova da necessidade premente de aprovar logo o "escola sem partido" e outras leis do gênero (melhor, sem gênero, porque gênero é ditadura gay-feminista), de modo a garantir uma educação ordeira, cristã e doutrinadora, sem qualquer risco de questionamento das ordens do pastor ou apelos a laicidade, tolerância com o diferente e respeito com o espaço público. A Idade Média européia, com suas fogueiras da verdade, nos espera na próxima esquina.

01 de fevereiro de 2017