quarta-feira, 29 de março de 2017

A barbárie Doriana contra a cultura de SP

Dia 27 de março estive no início do protesto da classe artística paulistana, em frente o Teatro Municipal de São Paulo. Protestavam contra o corte absurdo de verbas da cultura (apesar dos R$ 6 bilhões em caixa deixados pelo Haddad), da interrupção dos programas se introdução e estímulo artístico a crianças e jovens, o PIÁ e o Vocacional, e ao atropelo da lei ao alterar o edital de fomento à dança, um verdadeiro descalabro (para usar o termo que a mídia publicitária adora) com a cultura paulistana em meros três meses, perpetrado pelo grileiro de terras gourmet, lobbysta e garoto propaganda full-time, João Doria Júnior, e seu secretário de cultura, o dono de cinema que vive às custas do Estado (o Cine Caixa Belas Artes, R$ 40 reais pra entrar), André Sturm.
Um primeiro ponto que chama a atenção nesse imbróglio é a forma como o tucano se apoderou da máquina pública: motivado pelo golpe de 2016, que implementou uma ditadura no Brasil que queremos crer provisória; por uma imprensa que atua como agência de propaganda, e por uma concepção de que vencedor de eleição ganha carta branca para fazer o que bem entender, à revelia da população, Doria Jr age como se fosse o dono da prefeitura, e não seu ocupante, e sendo boss, espera de todos - funcionários e população - a aceitação passiva e submissa de suas ordens. O gestor que não é político mas vive da política tem sofrido em descobrir que política não se faz só nos conchavos partidários, e sim no dia a dia.
No protesto, o que me saltou aos olhos foi o discurso proferido pelas grades e policiais que cercaram o Teatro Municipal, para proteger o patrimônio artístico dos artistas.
Há primeiro um discurso de provocação: os sete mil artistas presentes no ato não são "artistas de verdade", que mereçam acesso ao mais tradicional teatro da cidade. Em mais de uma situação Doria Jr deixou claro que arte, para ele, não pode trazer qualquer contestação a sua figura ou dos seus companheiros: isso seria propaganda política, petismo, isto é, crime - a mesma lógica seguida por Sérgio Moro para definir o que é jornalista, o que é notícia, o que panfleto partidário petista, portanto, criminoso. Uma cidade que barra o teatro aos seus próprios artistas é uma cidade que abdicou da arte em favor da propaganda (e não é de se surpreender se em breve não abrirá suas bibliotecas para a queima de livros de autores degenerados/petistas/esquerdistas).
O segundo discurso é para o público exterior, aquele que nunca freqüenta o Municipal ou qualquer teatro, porque não se acha inteligente o suficiente (disfarçado sob o argumento de que teatro é chato), ou porque não tem dinheiro, ou por se sentir inibido de frequentar um lugar onde só há negros e periféricos como serviçais. Nesse discurso, Doria Jr tenta reforçar seu mantra de ódio e violência, ao insistir na retórica do medo do "caos": os artistas, esses esquerdistas que mamam na teta do Estado em troca de ações gratuitas na periferia, são perigosos, são violentos, são "fascistas" (como disse o próprio Sturm, indignado de não ser obedecido bovinamente, como fazem seus funcionários temerosos de perder o emprego), e estão dispostos a destruir o patrimônio público se o prefeito e a polícia não intervierem.
Doria acha que por ter a grande imprensa publicitária fechada com ele, pode tratorar autoritariamente as leis e a sociedade civil. Não percebe que o fôlego da pós-verdade que o elegeu lentamente se esvai - como comprovaram as manifestações de 26 de março dos seus partidários, que juntaram, em São Paulo, menos gente que o samba de Santa Cecília ou do Bixiga. Ao mexer com a classe artística e classe média, o grileiro de terras gourmet queima pontes do seu partido com setores importantes da sociedade, e ingenuamente crê ser capaz de domesticar ou aniquilar a arte - pois ele sabe do seu perigo, como comentei em minha última crônica.
A falta de tato do prefeito conseguiu a proeza de unir uma classe afeita a disputas mil em torno de picuinhas mínimas (motivadas, não raro, por egos máximos). A questão é se a classe artística conseguirá manter a mobilização e angariar apoio da população, e se, a partir disso, é capaz de ir além de uma postura reativa e conseguir se impôr e impôr avanços na forma como a arte e a cultura são tratados pelo Estado e pela "opinião pública" (leia-se Grande Imprensa publicitária). Vivemos tempos sombrios, mas a mobilização dos artistas de São Paulo dá alguma esperança de não apenas reverter a marcha em curso do nazi-fascista tupiniquim (o "finanfascismo" do século XXI) no curto prazo, como trazer avanços democráticos no médio prazo.

29 de março de 2017
PS: ainda não entendo o porquê de não haver um movimento de boicote ao estabelecimento do senhor Sturrm, ou ao menos panfletagem intensiva na porta do seu cinema. Esses gestores que não são políticos (ainda que lucrem muito com a política) costumam se condoer de qualquer causa quando lhes cutucam o bolso.


sexta-feira, 24 de março de 2017

Para que serve a arte? [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em 2005 assisti ao filme Elefant, de Gus Van Sant, inspirado na chacina de Columbine (que por ser no estrangeiro ganha o nome de massacre). Um filme sobre a banalização das violências que sofremos e cometemos todos os dias - a história não é de dois adolescentes perturbados, é de adolescentes normais numa sociedade, essa sim, perturbada [bit.ly/cG050302]. Até então, bullying não era um termo corrente na sociedade, nem vulgarizado pela imprensa. Foi com susto quando me vi na pele dos personagens humilhados pelos colegas, que decidem se vingar a tiros de tudo e todos: tirando pela solução, era um retrato de muito do que passei na infância e adolescência - que eu abstraía tocando Beethoven ao piano.
Mais de dez anos depois, em 2016, assisto à dança Vértigo, das bolivianas Camila Bilbao e Camila Urioste [bit.ly/Cg160804]. Uma poética feminista, que para além do feminismo cutucou minha forma habitual de pensar: a crítica sempre pronta para o outro e ausente quanto a meus próprios hábitos (e generalizo esse hábito à esquerda brasileira em suas disputas fratricidas, especialista em autocrítica alheia). Alguns meses antes, assistindo a outra dança na mesma Galeria Olido, Percursos Transitórios, da Zélia Monteiro, me dei conta de tudo que eu trazia por resolver dentro de mim, quanto às perdas recentes e aos caminhos que a vida me exigia decidir [bit.ly/cG160623].
Entre o filme e as danças, em 2010, sei lá por que, a exposição do Helio Oiticica, Museu é o mundo, no Itaú Cultural, me trouxe uma epifania: foi quando tomei convicção que precisava mudar de vida, e isso começava por morar em São Paulo. Já morador da capital paulistana, sempre zanzando (ou flanando, para usar um termo chique) pelo centro, a exposição Espaço Imantado, da Lygia Pape, na Estação Pinacoteca, em especial sua obra Tteia nº 1, me abriu outra forma de perceber a cidade.
Por falar em epifania, um professor do curso de iluminação contou da que teve assistindo à peça O livro de Jó, do Teatro da Vertigem: até então ele se via confortável na sua bem paga carreira publicitária e pouco interesse tinha por teatro, foi ver a peça arrastado pela então namorada; depois dessa experiência, abandonou a carreira segura e preferiu se dedicar à iluminação cênica.
Não sei se é possível, no século XXI, definir com precisão e sem polêmica o que é arte e para que serve. Por mais que não seja o caso de achar tudo válido, uma definição única e fechada tampouco vale. Ainda assim me arrisco a dizer que uma das principais funções da arte - e aquilo que faz um grande artista - é nos desestabilizar. Uma boa obra de arte nos tira da nossa zona de conforto - não raro, nos joga na cara que nossa "zona de conforto" é antes "zona de comodismo", que de confortável nada tem. E estão enganados os leitores e as leitoras que adoram divisões simplórias do mundo, em achar que isso tem a ver com esquerda e direita: se o esquerdista Saramago me deixou catatônico uma semana com seu Ensaio sobre a cegueira; o conservador Borges me largou em um cipoal que até hoje me pergunto como sair com seu conto "O outro".
Provocar, ensinar a questionar (um ensino que nada tem de pedagogismo), oferecer formas novas de ver a nós próprios e de perceber o mundo que nos rodeia: a boa arte - ou a que busca essa excelência - tem em si  esse gérmen da subversão - na literatura, nas artes visuais, nas artes do corpo, na música, na arte urbana. A arte, se não corrompida pelo poder (econômico e político), é capaz de corroer o poder. 
Um graffiti na Avenida 23 de Maio lembrando dos assassinatos do nosso Estado que se finge de Direito, Amarildo e outros, grita aquilo que Globo e grande imprensa tentam calar; um pixo numa casa nos lembra que a cidade real nada tem da harmonia que políticos fascistas tentam nos impôr; uma peça pode fazer uma pessoa mudar de vida; um filme (e não uma peça publicitária de 1h30, feita em Hollywood e que passa na televisão) é capaz de fazer com que alguém perceba melhor seu entorno; um concerto aguça a audição para além da música; uma escultura aprimora a visão do quotidiano; uma dança que lembra das nossas dores...
É por isso que Dória Jr (o grileiro de terras gourmet) e André Sturm, respectivamente prefeito e secretário de cultura da cidade de São Paulo, fazem, desde que assumiram a prefeitura, uma cruzada contra toda forma de manifestação artística e cultural independente - ação reforçada pelo governador Alckmin (o bom moço cristão que estimula assassinatos extra-judiciais dos seus subordinados). Começou com a caça ao pixo e ao graffiti, por não serem "arte de verdade"; avançou sobre artistas de rua, que vendiam seu artesanato - que por estarem na rua não podem ser "artistas de verdade"; se estendeu aos artistas, músicos, dançarinos e atores, que até podem fazer "arte de verdade", mas por não serem úteis à sociedade e viverem "às custas do Estado", não merecem respeito nem financiamento; e agora avança sobre a população toda, ao acabar com o Vocacional e o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), que traziam para o contato artístico crianças de 5 a 14 anos. Afinal, lugar de criança não é tendo aula de artes, e sim aprendendo alguma profissão subalterna (engraxate? telefonista? segurança?), quem sabe pedindo comida no Habbibs, ou cometendo algum ilícito até ser morto pelo Estado que nega a ele qualquer oportunidade de se desenvolver enquanto ser humano. 
Sturm foi claro no seu não-dito: o Estado só deveria reconhecer como detentor de direitos (em último caso, o direito à vida, pois sem dinheiro não se vive na nossa sociedade) quem é útil e subserviente ao poder. E ainda chama de fascista quem o critica - e ele sabe que pode falar isso sem preocupação, porque poucos assistiram a uma montagem de Terror e miséria no III Reich, de Brecht, ou assistiram ao Triunfo da Vontade, da Leni Riefenstahl, leram O Tambor, do Günter Grass, ou mesmo 1984, do George Orwell, para se dar conta de quem é o fascista na história. 
Os objetivos de Sturm na secretaria de cultura parecem ser dois: um segue a lógica da rede Globo: não permitir qualquer centelha crítica no "populacho"; o outro, segue a lógica de seu chefe, a do gestor do PSDB: o Estado só deve manter programas públicos que dêem lucro: se o PIÁ não dá lucro, não tem porque o Estado mantê-lo - já se o Cine Belas Artes, de sua propriedade, com entrada a R$ 40, não dá lucro, aí cabe ao Estado manter, porque, afinal, ele é branco, fez FGV, tem bons contatos, e o cinema atende a pessoas como FHC, e não Zé Ninguéns sem qualquer oportunidade de cultura e lazer [nao.usem.xyz/aru5].
A Globo, porta-voz da nossa elite ignara e que ajudou a eleger o lobbysta Doria Jr, tem o recorrente discurso de que "a arte afasta os jovens das drogas". A questão é que, para essa elite, só é aceito como arte aquilo que age como droga: se entorpece e impede de pensar. Se emburrece, embrutece, desumaniza, então é útil, então é arte, arte verdadeira, tem direito até a R$ 700 mil reais do governo brasileiro - via Lei Rouanet - para realizar sua arte em Miami. Nada de Picasso, Vik Muniz, Os Gêmos, Lima Barreto, Ferréz, Borges, Racionais MC's, Chico Buarque, Dudamel, Pina Bausch, o que o Brasil precisa, segundo eles, é de mais Romero Britto, mais Bia Doria, mais Paulo Coelho, mais sertanejo universitário, mais explosões hollywoodianas, mais novela, mais Faustão e suas dançarinas. Mais ignorância publicitária enfeitada com elementos artísticos: vende milhões, rende milhões, não faz pensar e não incomoda o poder - é útil. É a arte nos tempos do finanfascismo.

24 de março de 2017
PS: estou esperando a hora que Alckmin ou Doria Jr soltar um "quem quer arte, que vá para Paris". Sorte deles que nossa grande imprensa é uma grande agência de publicidade tucana.


Esperando a hora que começarem a mandar queimar livros e obras de arte degeneradas e que atentam contra a moral e os bons costumes, como as de Lygia Pape - expertise eles já tem, com a combustão de favelas e museus...

Como o secretário de cultura trata os artistas, afim à lógica PSDB-Globo.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Pannunzio e o nosso fascismo oculto

Escuto o áudio da "entrevista" do vereador do MBL-DEM Fernando Holiday Silva ao jornalista Fábio Pannunzio, da Rádio Bandeirantes. O breve trecho de três minutos (seria uma homenagem aos Engenheiros do Hawaii?) é um triste retrato do nosso acelerado caminhar para o fascismo.
Ao que dá para entender, Holiday não havia sido chamado ao programa, mas diante de terem dito que usara caixa 2 em sua campanha, liga para a rádio, para dar sua versão dos fatos. Justo, ainda que raro - a grande imprensa não oferece seu tempo assim tranquilamente ao Boulos, por exemplo. Talvez surpreendido por terem feito uma pergunta e cobrado uma resposta a ela, e não apenas a feito como desculpa para abrir o microfone para que falasse o que quisesse, o vereador se exalta e é tirado do ar, sem completar sua resposta (me pergunto se não foi para sorte dele e do grupo Bandeirantes).
O pequeno fascista começou com a desqualificação do site que noticiou seu suposto crime de caixa 2, o BuzzFeed Brasil. Realmente, o site não é algo que inspire grande confiança - até então, o tinha como site de listas bobinhas para perder tempo com inutilidades. Entrei na página do BuzzFeed e não consegui saber quem é o editor responsável - péssimo sinal. Entretanto, os jornalistas que deram o furo têm experiência, ainda que em veículos de baixa credibilidade: Tatiana Farah já trabalhou para O Globo e Severino Motta era da Veja - não sei da qualidade do seu trabalho nos respectivos veículos, pode ser que por serem profissionais éticos que tenham sido demitidos. Na reportagem, nada das frases usadas sempre pelo jornalismo da grande imprensa, nada de "fontes asseguram", "pessoas próximas confirmam" e afins: os repórteres dão nomes e caras aos bois, apresentam planilhas e áudios: uma reportagem muito bem feita, portanto. Se é falsificação - "fake news", como acusa Holiday, ele próprio integrante daquele que foi considerado por pesquisador da USP o maior divulgador de notícias falsas da internet brasileira -, Farah e Motta oferecem de bandeja suas cabeças para processos.
Impedido de falar do veículo e instado a falar do fato, Holiday tenta argumentar que dinheiro não contabilizado não é crime de caixa 2 - infelizmente não deixaram ele completar seu duplipensar, talvez ele dissesse que, não sendo petista ou de esquerda, não há crime. É nesse ponto, ao ser confrontado, que o vereador paulistano começa a gritar e é tirado do ar - medida bastante razoável.
A seguir vem o segundo momento fascista dos três minutos, o mais descarado, e que tem passado em branco - pelos comentários que li até agora. Diz Pannunzio, já sem possibilidade de réplica: "É isso aí, usou caixa 2. É o que aconteceu, e o resto é conversa fiada". Que autoridade tem Pannunzio para determinar a culpa de alguém de modo tão cabal? Ele sequer relativizou sua frase, algo como "para mim, usou caixa 2, ponto final". Fosse em particular, seria tosco, mas no seu direito, dar sentenças a torto e a direito, como se fosse o deus dono da verdade e da justiça, não foi o caso: o jornalista se utilizou de uma concessão pública para emitir um juízo de valor como se fosse fato (não que isso não aconteça o tempo todo na grande imprensa). A investigação das autoridades competentes, o contraditório, o direito à ampla defesa, e a sentença por alguém teoricamente habilitado e neutro, tudo isso é posto de lado: o veridicto está dado: Fernando Holiday Silva é culpado. É a mesma lógica utilizada contra Lula e Dilma, a mesma lógica utilizada contra o pai de Isabela Nardoni e sua mulher, a mesma lógica utilizada contra os donos da Escola Base. Estes conseguiram, vinte anos depois, provar sua inocência (pouco serviu, sua vida estava arruinada); Lula e Dilma tem a seu favor enorme capital simbólico e a completa falta de provas (mas há convicções); os do caso Nardoni, zé-ninguéns sem chance de contraditório, pagam por um crime que ninguém sabe a verdade. Holiday é outro zé-ninguém, apenas vive seus 15 minutos de fama, pode ter o mesmo fim de Nardoni e Jatobá, como nós - basta um suposto crime sensacionalista ou se indispor com o quarto poder, e não há outra justiça possível.
Nos indignamos (com razão) com o massacre sofrido por Dilma e Lula (e eu poria a morte de Marisa Letícia na conta de assassinato por parte do consórcio CIA-Moro-Globo); contudo, o episódio envolvendo Fernando Holiday Silva, até agora, mostra que estamos naturalizando esse tipo de atuação da grande imprensa. Logo estaremos apenas discutindo se os massacrados estavam do lado certo ou errado, do bem ou do mal.
Não se trata de defender Holiday. Ele tem dado reiteradas provas de não ter condições de ser vereador - seja pelos seus discursos de ódio, seja quando invadiu a reunião do PT, requerendo, ainda por cima, proteção da Guarda Civil -, e a cada dia se mostra menos apto para viver em sociedade. Contudo, não é justiçamento que vai dar conta do problema: ou reivindicamos o cumprimento das leis por parte das instâncias responsáveis (algo cada vez mais raro, com ministro do STF atuando como advogados nos casos que julgam ou juízes de província agindo como justiceiros), ou melhor defendermos logo a posse de armas, comprarmos nossa Uzi ou nossa AK-47, e sairmos para matar nossos iguais na praça de guerra.


na data da greve, 15 de março de 2017





.






quarta-feira, 8 de março de 2017

Porque negros seriam marionetes de brancos?

O Diário do Centro Mundo, do jornalista Paulo Nogueira, faz a chamada para o texto de Cidinha da Silva, anunciando "a nova marionete negra do MBL", uma missionária angolana, negra, que papagueia clichês de extrema-direita, usando sua negritude como local de fala para legitimar tais posições - afinal, se uma negra está falando...
Deixo de lado Ruth Catala, a missionária do ódio, e a estratégia manjada e eficiente do MBL, que se aproveita dessa legitimidade como ator político construído a duras pelas pelos movimentos de minorias para minar as próprias minorias, e me centro no texto de Cidinha.
Seu texto sofre de um péssimo cacoete dos movimentos de minorias com pé na academia, em que a política é substituída pela epistemologia, na (vã) esperança de alcançar uma verdade e com isso vencer o debate público, e ontologizam (ainda que pela esquerda) aspectos eminentemente políticos. Dizer que Ruth Catala, assim como Fernando "Holiday" Silva, são "marionetes do MBL" é de um preconceito equivalente de quando a classe média formada nos cursos mais disputados da USP fala que "nordestino" (esse ente genérico que mora do meio de Minas Gerais para cima) não sabe votar e vende seu voto pelo "Bolsa-Família do Lula".
Que sejam utilizados pelo MBL, não há dúvida; a questão é: também eles não se utilizam do MBL? Ruth Catala ainda é uma tentativa, mas Fernando Holiday Silva mostra que ele foi feliz no seu intento.
Se tivesse se unido ao movimento negro em busca de mais dignidade para todos, qual a possibilidade de Holiday estar ganhando hoje 15 mil reais por mês, de poder pedir que a GCM proteja suas "criancices" fascistas, ao invés de estar tomando geral da PM toda vez que resolvesse se divertir inocentemente à noite, de ser conhecido e reconhecido em todo o país como uma celebridade política do espetáculo? Ainda que preste um desserviço aos negros, às atuais e futuras gerações, ao Brasil, é preciso admitir que pessoalmente ele se deu bem, muito bem - e Ruth Catala percebeu e tenta vencer na vida pelo mesmo rumo. O fato de serem negros não os tornam menos responsáveis pelo caminho que decidiram tomar, não os tornam menos pulhas pelo discurso de ódio que proferem. 
Achar que negro que ataca negro é mera marionete de branco é recusar aos negros sua condição de sujeitos; e há sujeitos mau-caráter entre negros assim como há entre brancos, entre mulheres como há entre homens, entre gays como há entre heteros: somos todos do mesmo barro, a cor da pele não cria uma forma particular de pensar, a condição de oprimido não beatifica ninguém, pertencer a uma minoria não é automaticamente um despertar da consciência de sua condição e de seus próximos.
Paulo Freire mofa nas prateleiras da esquerda (talvez mais que nas da direita) à espera de ser relido. Não é a reforma do Ensino Médio proposta pelo golpista que gerou essa situação (muito menos que vai mudá-la): quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor. O conhecimento produzido por pesquisadores preocupados com seus índices de produtividade (condição para seu sucesso pessoal acadêmico), confinados em campus distantes da população, cercados, normatizados e vigiados, até agora pouco tem ajudado na libertação de uma massa que sobrevive com rebarbas da opressão escravocrata - por sorte, fora da universidade, por sua própria coragem e vontade, a população resiste e reage, ainda que a custo de sangue. Se Catala e Holiday são sujeitos e chegaram aonde chegaram, isso é graças às lutas do movimento negro. Mas enquanto o nosso foco estiver em epistemologizar questões sociais, em vencer pela episte o que é uma doxa, em achar que a ciência vai superar a política, esta seguirá com sua soneca tranquila, para deleite da direita. 

08 de março de 2017



Texto da Cidinha da Silva no DCM: http://bit.ly/2mlmQ7N