domingo, 23 de julho de 2017

Sobre homens, violências e um deus que justifica tudo [Diálogos com o Teatro]

Como o nome da peça sugere, Antideus, de Carlos Canhameiro, não é uma peça que tende a agradar pessoas religiosas - pelo contrário, a afronta é clara e direta, desde a segunda cena. Pessoas que acreditam em deus, contudo, talvez não se incomodem tanto. Diferentemente do que indica o título, Antideus fala nem tanto de deus, mas do nome dele, do que se faz evocando um nome em que cabe qualquer ideia - mas que tem sido preferencialmente usado para justificar agressões, assassinatos, destruições a todo aquele que não acredite na mesma forma desse deus tão polimorfo. “Sim enquanto fenômeno, não enquanto númeno” é a resposta mais típica quando me perguntam se acredito em deus e eu, já desconfiado do que deseja meu interlocutor, quero cortar logo o assunto sem causar maior balbúrdia. Se não tiver razoável conhecimento em filosofia não vai sequer entender a última palavra, terei que salientar: “eu disse númeno e não número”, e me recusarei a explicar - esse chamado à ignorância costuma desarmar crentes cheios de certeza.
O exemplo esnobe acima não é despropositado: Antideus é uma peça de muito texto, denso e pesado, um libelo contra as religiões. Poderia ser, por conta disso, uma peça chata e enfadonha, um encadeamento de discursos de um proselitismo rasteiro, a versão ateia do púlpito de algum templo cristão adornado com exógenos elementos pagãos, justificados porque “clássicos” - ainda que tenha sido esse classismo o que matou o messias de tal religião. Impressiona que não o seja - ainda que acabe cansando ao cabo de uma hora e meia: sua densidade pediria um texto mais enxuto. Há contraposições bem postas aos ateus, assim como argumentos fortes contra a religião e aqueles que tentam salvá-la de tudo o que causa sob a justificativa de que seria obra de extremistas, não dos seguidores normais da religião - a cena mais poética e pesada (na minha opinião) é a da criança que vê uma estrela cadente em pleno dia, a alegria ingênua de quem não reconhece a bomba que a dilacerará a seguir, destino comum à da criança refugiada, violada pelo mar posto como barreira aos "extremistas islâmicos", cuja morte os bons cristãos europeus (não estou falando do Papa) lamentam como a do boi que os servem à mesa. 
Ainda que a proposta de Canhameiro seja muito diferente - a começar que não é teatro dramático -, não há como não comparar com In Nomine Dei, do Saramago. Contudo, mais nuançada, Antideus mais que pregar a convertidos, mostra que gostaria, sim, de conversar com os crentes - conversa tensa, porém que aceita ouvir o outro lado.
Da parte técnica: cenografia simples e iluminação muito bem desenhada não roubam a cena e ainda ajudam a quebrar o peso de tanto texto; colabora também a trilha sonora feita ao vivo, e também discreta e bem posta (eu temi que a peça certas horas descambasse para uma espécie de musical).
Por falar em cenografia, do início ao fim, um muro vai sendo erguido na frente do palco, abrindo uma série de possíveis interpretações - de metalinguísticas acerca do teatro até sobre a temática da peça. Um convite a mais para dúvidas ao fim dos noventa minutos. A mim, o que mais me chamou a atenção é que o muro não está ali dividindo opiniões, ateus e crentes, cristão e muçulmanos, e sim fechando todos no mesmo espaço: soa como um aviso de que, ao fim, estamos todos fechados no mesmo espaço - a Terra, o país, a cidade, o bairro, o local de trabalho ou estudo -, independente da crença, e é melhor aprendermos a conviver com o diferente, com o outro, pois o muro que a princípio parece nos separar e garantir nossa integridade, nos confina e não nos deixa alternativas muitas que não matar ou... compreender e tolerar.

23 de julho de 2017
PS1: Soa um pouco contraditório eu afirmar que crentes não se incomodariam tanto, na medida que sou eu também ateu. Pesa a meu favor, o fato de eu ser voluntário da igreja católica, apesar de todas as minhas críticas (sim, há usos da religião e do nome de deus para fins de amor genuíno com o outro, quase como se diz na Bíblia)

PS2: Sobre a iluminação, área que se não consegui me inserir, mas tenho formação e registro, faço questão de salientar: creio ser a primeira peça do ano em que proposta, desenho, afinação e operação foram boas: visibilidade boa, sem buracos negros; escuro nos momentos que pedia menos luz, claros nos momentos que pedia claridade, sombras que faziam sentido. Parabéns a Daniel Gonzalez (desenho) e Cauê Gouveia (operação). Eu já começava a achar que, dada minha pouca experiência prática, estava querendo luzes ideais, impossíveis de serem postas em prática, descobri que eram luzes mal feitas, mesmo.

PS3: Ainda falta a terceira peça contemplada pelo III Edital de dramaturgia em pequenos formatos do CCSP - no qual fiquei como primeiro suplente. Pelas duas que vi - excelentes -, creio que minha peça Linha de produção é melhor do que eu já achava, para ter conseguido o quarto lugar.

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