Ao fim de duas horas
de espetáculo, foi com um certo incômodo que perguntei aos meus
amigos se animavam em comer algo: eu tinha fome, havia comido no meio
da tarde um pedaço de bolo de chocolate que fizera (diet, devido a minha
disfunção metabólica) e nada mais. Fome. É essa minha experiência
da fome: um intervalo mais longo entre duas refeições, na qual o
organismo reclama que não está satisfeito e ameaça, caso não
atendido, de reclamar em voz alta (pela boca do estômago?), me
deixar de mau humor e não me deixar dormir. O que entendo por fome
faz de 800 milhões de pessoas que passam fome um universo
absolutamente desconhecido para mim - um marxista luckasiano talvez
assinalasse que as noventa pessoas presentes no CCSP nessa noite
chuvosa e fria de domingo são ontologicamente diferentes desses 800
milhões. Universos desconhecidos - que não faço questão nenhuma
de conhecer in loco -, mas que nem por isso retira dessas
milhões de pessoas o essencial que temos em comum: a humanidade.
Humanidade que talvez alguns milhares de pessoas não tenham: os que
decidem sobre a fome, se haverá fome no mundo ou não. Fome sempre
dos outros, nunca a deles e de seus próximos.
Fome.doc, espetáculo
da Kiwi Companhia de Teatro, com roteiro e direção de Fernando
Kinas, traz numa de suas primeiras falas essa verdade inconveniente
(para usar um termo de um homem que teve poder suficiente para
resolver a questão, ex-residente do Observatório Naval, ocupante de
um dos três cargos mais importantes dos EUA): a fome é uma decisão.
Uma decisão tomada à mesa. Não à mesa dos que têm fome - que
geralmente sequer mesa têm -, mas na mesa de decisões, de homens
que entre um banquete e outro decidem o futuro de milhares de seus
semelhantes - ou ao menos assim imaginamos nós, os humanistas
ingênuos: de que todos os humanos são, no fundo, semelhantes, uma grande família.
A fome nestes
Tristes Trópicos é a prorrogação da escravidão, a metade não
abolida pela abolição de 1888. E se José de Alencar usava das
belas letras para justificar as atrocidades benfazejas da escravidão,
hoje não faltam os que usem de seus títulos acadêmicos e suas
concessões de rádio e tv para justificar a fome - como principal
diferença, a ausência de qualquer estilo refinado para edulcorar
nossa incivilização. Usa-se números para justificar a
inevitabilidade da fome que marca o corpo e a pele de 800 milhões de
pessoas - números, esses velhos conhecidos dos campos de extermínio
nazista -, usa-se da moral para justificar as humilhações de
bilhões de pessoas, que rastejam, comem gilete, vidro, merda, por um tanto insuficiente de comida: quem não
trabalha, quem não contribui para a produção, para o crescimento
da nação, não merece comer, não merece "vida boa", não
merece "bolsa-vagabundagem". E nunca se levanta a questão:
se o mundo produz alimentos mais que suficiente para todos, por que,
ainda assim, há fome? Nessas horas, mesmo sabendo ser
ontologicamente diferente de 800 milhões de pessoas, é desses
outros milhões que cospem ódio aprendido na escola e na tv que não
consigo reconhecer um semelhante meu.
E se os paladinos
neomodernos (neoconservadores, neorreacionários, neomoralistas,
neohipócritas, neoliberais, neofascistas, neonazistas) do ódio
reduzem tudo a números, numa novalíngua cada vez mais pobre e
precária - empobrecedora e precarizante de quem a segue tanto quanto de quem reduzem a coisa -, a fome
constrói seu próprio vocabulário, tentando disfarçar a falta do
que comer nas palavras que esquadrinham o mundo em que sobrevivem,
expressões que escorrem da boca junto com a baba verde dos homens
famintos junto ao cais - em cena que se repete árida no interior do
Brasil: Josué de Castro elenca as gírias da fome, o "é
batata", o "descascar um abacaxi", entre outras, que a
nós - bem comidos -, soam apenas pitorescas.
Fome.doc tenta nos
tocar nessa experiência que não tivemos, não queremos ter e -
espero - não queremos que ninguém tenha: a do corpo que se consome
para se manter vivo, na esperança - instintiva, biológica - de em
breve algo de fora adentre a boca e percorra a garganta e forneça a
energia necessária para a manutenção das funções vitais e - quem
sabe - a energia necessária para a abertura de possibilidade de uma
vida digna, de uma vida humana. As citações de Primo Levi, com as
referências aos campos de extermínio nazista, não são
despropositadas. Seus prisioneiros são o kafkiano artista da fome à
sua revelia - como o são os personagem de Vidas Secas: desnutridos,
jejuantes compulsórios, escassos de palavras como de comida.
Artistas da fome. Ao escrever sobre a peça, me lembro quando o atual
prefeito de Curitiba (cidade vanguarda do neofascismo tupiniquim), Rafael Greca, então ministro do turismo do
governo FHC, no alto de sua obesidade mórbida, morbidamente se
alegrava com os famintos esquálidos do país - via neles
Carlitos recitando poesia lírica com seus estômagos estufados de
vermes, sustentados pela fome de seus corpos esquálidos. Em 2014,
depois de doze anos de governos de esquerda, o Brasil saiu do Mapa da
Fome da ONU - é pouco, não quer dizer que erradicou a fome no país,
mas nem por isso deve deixar de ser comemorado. Para muitos, deve ser combatido. Três anos depois, um golpe de Estado perpetrado pelas
elites de sempre - econômica, política, midiática, judiciária,
burocrática, burra, desumana - ameaça pôr novamente o Brasil nesse
mapa cruel, mórbido. Quem sabe daqui 20 anos, quando finda a emenda
constitucional com teto para gastos sociais, boa parte do Brasil não
possa ser vista como um grande Auschwitz homeopática? Ou quem sabe
não retornaremos mais no tempo, aos colonizadores latinos das américas, e
oferecemos carne humana para alimentar os cachorros?
Parece ser desejo de parte do Brasil acelerar o passo para esse
futuro grandioso. Argumentarão que vêem ali poesia, milhares de Chaplins, futuros Primos Levis, artistas da fome? Ou será que dirão que se trata do
destino-manifesto de negros, índios e outros rejeitados por seu
deus?
Fome.doc tem mais de
duas horas de espetáculo, é feita de fragmentos - não fragmentos
de cenas, mas de discursos, de textos (autores que citaram ou
identifiquei: Carolina de Jesus, José de Alencar, Josué de Castro,
Primo Levi, Graciliano Ramos, Glauber Rocha, Oscar Wilde, Eliane
Brum, Kafka, Frantz Fannon) -, com um ou outro elemento para quebrar
a sisudez que a transformaria numa palestra. Possui uma dinâmica que
lembra teatro de rua: é possível entrar a qualquer momento da peça
(que possui vários pontos de "imantação", para tentar me
apropriar de Lygia Pape) e acompanhá-la a partir daí. E uma vez capturado, é difícil desviar a atenção: os atores conseguem sustentar o interesse do público por duas horas. Não cansa - mas incomoda, perturba. Ainda que não seja na minha
mesa que a fome dos outros seja decidida, sequer seja defendida a morte de
milhares, milhões de meus semelhantes. Perturba a ponto de perguntar
sem graça a meus amigos se se animam em comer - em uma refeição
simples comeremos o que pessoas comem em uma semana, em duas. Não se
trata de culpa - o espetáculo faz questão de ressaltar que não é
da boa vontade que se resolverá o problema -, é a ponta de niilismo
que a peça não impede que bata.
Me recordo de meu
pai. Lembro, quando criança, de não querer comer algo, ou deixar
sobrar alguns grãos de arroz no prato - levava bronca. Eu tentava
argumentar, dizia que era comida pouca, barata, ao que ele respondia:
"não importa quanto custa, na África tem pessoas catando arroz
do chão pra comer e você vai desperdiçar comida?" Apesar de
terem beirado a miséria, não me consta que ele ou minha mãe tenham
passado fome - essa fome - na infância, mas o senso de humanidade de
ambos me ensinou que as experiências que vivi e viverei diretamente não dão
conta do mundo. Fome.doc acho que se incluiria nessa didática dos
meus pais: mostra ao público aquilo que nunca vivenciaram (nem nunca
vivenciarão), a partir daí tenta sensibilizá-los, apelando a sua humanidade -
se ainda o tem (certamente não é o caso dos que pedem para SP
acelerar, enquanto proíbem sopão aos que tem fome e acordam com
água fria os que dormem no frio).
Um dos textos
utilizados é de Eliane Brum, sobre a
família de ribeirinhos de Otávio e Maria Chagas, desalojada para a
construção de Belo Monte. Bonecos entristecidos fazem as vezes da família. Diz Brum, dizem Fernanda Azevedo e Renan
Rovida, a sabedoria amarga de quem vive a chaga aberta da fome: "casa
é onde não tem fome. Se tem fome, é só teto". Para 800
milhões de pessoas, a Terra não é casa, é só teto, um lugar de penúria e fome. A noite fria e chuvosa de São Paulo me
faz lembrar: para muitos, nem teto.
21 de agosto de 2017
PS: a peça voltará a ficar em cartaz em breve, no Galpão do Folias
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