segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Estudo de ficção, elementos de ideologia [Diálogos com a dança]

De início é um som, um som e um corpo de costas - blusa preta, capuz sobre a cabeça. Um corpo sem rosto. Um corpo sem rosto e que se mexe. Se mexe e parece não poder parar. Gestos acelerados, hesitantes muitas vezes, se vão ou não - para onde? O som não dura muito - Estudo de ficção, de Beatriz Sano, correrá boa parte em silêncio, e os sons que transpassam o espetáculo, ainda que ornem com a coreografia, em geral tem algo de descolado da intérprete. Descompasso. Bia se vira, os gestos ganham rosto, mas seguem ansiosos, corridos - um imperativo subjaz: mova! Objetos brotam durante o espetáculo: partos rápidos - Bia não pode parar. Há uma história por narrar - parece. Porém, a necessidade de dizer impede uma elaboração do que se quer contar - gesticula-se, simplesmente, na expectativa de que o Outro compreenda e dê um contorno que junte aquela fala numa narrativa. Ou talvez não haja realmente uma história para contar, e todo movimento se dá pelo imperativo de falar, sempre, sem parar, sem pensar, sem nada a dizer. Mova!
Há três momentos bem marcados de pausa ou de gestos mais lentos: numa contagem para coisa alguma, pouco antes de convulsionar e diante do som de carros passando. Esta, a primeira pausa, me faz lembrar de Ernst Jünger, que na década de 1930 anunciava que com o automóvel até deficientes físicos poderiam lutar na guerra: um corpo sadio capaz de se movimentar não era mais condição para ser soldado e morrer pela pátria. Democracia! Inclusão! Guerra! Diante do automóvel, Bia pára: a desnecessidade do movimento diante do bólido que nos leva - ao destino (final)? Em tempos de Acelera SP e aumento de mortes no trânsito da cidade (nosso trânsito, nossa segunda guerra civil), estamos à espera do carro bêbado que nos colherá no cruzamento de um semáforo quebrado ou no ponto de ônibus. "Stop/a vida parou/ou foi o automóvel?". Paremos, se a ordem (e o progresso?) nos permitirem.
Que a segunda pausa seja para em seguida convulsionar não é menos significativo: há um imperativo em nossa sociedade de estar sempre em movimento - mesmo que parados diante do computador, em nossas bolhas fakebookianas. E essa necessidade de se mover me traz um segundo filósofo, o francês Paul Virilio que, na senda de Jünger, apresenta o mundo contemporâneo calcado no imperativo do não parar, do movimento permanente - movimento entendido em sentido amplo, não necessariamente no deslocamento no espaço -, tanto no plano macro - das nações e suas frotas a singrar os mares, do capital a sangrar economias e vidas -, como no micro - dos indivíduos, obrigados a trabalhar, consumir, fotografar, filmar e falar quando não há nada a mostrar ou a ser dito, apenas para terem a impressão de existir; e existir submersos em imagens e marcas que nos exigem contínuo esforço e movimento para adquiri-las na esperança ilusória de um dia sermos (algo ou alguém?).
A referência ao Fakebook nessa lógica do imperativo do movimento permanente me veio por uma feliz coincidência: uma das paredes da sala era espelhada, e do ponto onde eu estava sentado, Bia às vezes se duplicava e se triplicava naquela parede. Se no palco a dançarina tinha presença, ocupava-o com plenitude, seu duplo (ou triplo) na parede era solitário, melancólico: o espectro de sua presença refletida era uma imagem pequena, perdida numa imensidão escura - gestos soltos num vazio. Vazio como o que se sucedeu à contagem - um dois três - feita com entusiamo, duas vezes: nada.
Houve um quarto momento que poderia ser encarado como pausa: quando Bia pára para rir. Ou não pára, porque o riso soa se encaixar na mesma obrigação de movimento. Na primeira vez, ainda há a impressão de um riso natural a uma situação forçada. Na segunda, sentada na ribalta, o riso é descaradamente forçado, compulsivo, estereotipado - o único gesto descaradamente estereotipado do espetáculo. Traços grosseiros na face do riso que não cessa - a referência que me vem é Oscar Wilde e Dorian Gray (o original, não o prefake de SP). A referência é também eu e todos meus amigos no Fakebook, em nossas caras felizes ou poses "estilosas" para foto - que traços grosseiros de nossas vidas não estamos escondendo por trás de nossos sorrisos forçados, obrigados a estarmos sempre em movimento, sempre aparecendo, sempre em evidência, enquanto nossa existência se perde em poses e gestos (e gostos) vazios de significados, alheios (alienados, para usar palavrão marxista), para um Outro que nada se importa conosco, fazendo a máquina girar - e nos moer, ao cabo -, a economia funcionar, disfuncional?
Estudos de ficção talvez fosse para ser um espetáculo leve - não sei, não perguntei qual o objetivo da artista, se é que ela tinha um objetivo específico, uma moral da história. A mim, ao fim, soou uma pequena fábula de horror pós-moderno - a ser encarada na realidade tão logo eu saísse da sala de espetáculo.

25 de setembro de 2017

PS: não lembro se cheguei a escrever, ou pensei e não escrevi, mas não é a primeira vez que Virilio me surge forte ao assistir a uma dança; ao menos em um espetáculo de Eduardo Fukushima, habitual parceiro de Beatriz Sano, ainda que por outro caminho, também me veio essa idéia do imperativo do movimento na sociedade tardo-capitalista.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Um Oxóssi guerreiro [Diálogos com a dança]

Tempos como os atuais exigem saídas do script. Atacada por todos os lados, a cultura que ousa se afirmar cultura, na medida em que se recusa enquanto publicidade oficial, precisou começar a trazer explícito o discurso político. Entretanto, não é todo artista, todo grupo que utiliza a política institucional como material criativo, para daí sair algo para ser posto em cena artisticamente. Assim, cabe ao menos, junto com os agradecimento aos patrocinadores, no fim da apresentação, o jargão "Fora Temer", nem que seja para marcar uma posição de defesa da democracia. Isso para grupos menores. Grupos maiores, consagrados internacionalmente e dependentes de financiamento público (uma vez que o privado se recusa a patrocinar o que não traz bons lucros), se não explicitam o discurso político, acabam por trazê-lo indiretamente, como é o caso do Grupo Corpo, um dos principais (se não o principal) grupo de dança contemporânea do Brasil, reconhecido internacionalmente, que desde 2015 passa o pires atrás de dinheiro, por ter parte do patrocínio da Petrobrás cortado (afinal, diziam que a petroleira estava à beira da falência, com reservas enormes de petróleo a baixo custo de extração).
Em São Paulo, em 2017, a ascensão de um político de extrema-direita, sem qualquer apreço pela convivência democrática e republicana, com um secretário de cultura com iguais valores (e que gosta de brincar de machão (protegido por meia dúzia de guarda-civis, sempre) chamando para o braço quem o critica), pôs poder público e artistas em guerra aberta. E a dança foi um dos grupos mais articulados nessa resistência contra o desmonte da cultura em São Paulo.
Uma das mais recentes cartadas democráticas da gestão Doria-Sturm foi a substituição da curadora de dança do CCSP, sob o argumento de "porque sim, porque eu quis". E o primeiro gesto da nova curadora, Lara Pinheiro, foi boicotar o artista Eduardo Fukushima da programação - já que o dinheiro pago para construir seu espetáculo já havia sido pago e ficaria feio mandar ele para casa sem apresentar o resultado do investimento público. Fukushima é uma das (muitas) vozes que se levantam contra Doria-Sturm-Lara, dando a cara a tapa, levando o tapa, e devolvendo o tapa à altura.
O espetáculo de Fukushima apresentado dias 1, 2 e 3 no CCSP, Da percepção à memória: Oxóssi com/para Denilto Gomes, possui uma série de discursos, nem todos identificáveis logo de cara. O primeiro deles, por escolha do artista e evidente, é o político. Invertendo a ordem habitual, antes de entrar o palco para dançar, Fukushima subiu à ribalta para falar sua situação, o boicote à sua obra na programação da Semanas de dança do CCSP - pode ter sido uma falha técnica, mas é surpreendente como há demasiadas e sempre pertinentes falhas técnicas quando políticos antidemocráticos tomam o poder -, e da situação calamitosa para a qual a cultura tem sido impelida pela prefeitura de São Paulo, em parceria com o governo do Estado e o governo federal. Preferiu pôr a política à frente de sua obra, um ato ousado numa época em que artistas costumam ter como grande preocupação estar sempre de bem - ousado e marcante, dado sua dificuldade óbvia com a fala. A seguir explicou os pontos de intersecção que via dele com Denilto Gomes - grande expoente da dança contemporânea brasileira nas décadas de 1980 e 90, morto em 94, em decorrência da Aids -, o interesse de ambos pelo inexplicável, pelo oculto. Só então veio a dança, já completamente contaminada pelas palavras - para o bem e para o mal.
Acompanhado de um tsuru em negativo - um tsuru preto -, Oxóssi-Fukushima vem armado de lanças para fazer da caça poesia; do movimento, pausa - e novamente movimento -; do agônico, agonístico. Seu discurso inicial, contudo, transforma o caçador em guerreiro e todo seu solo - que não soa tão solo - um embate, carregado de uma tensão nos gestos e nos tempos - como trazer para o presente um passado não assistido diretamente pelo artista, mas que ainda assim o marca? 
É uma dança contida, destoa dos solos a que assisti de Fukushima - talvez porque seja um solo apenas em aparência. A fala inicial de Fukushima contamina os gestos, sua expressão é séria - seja no combate com as lanças, seja na contemplação sob o leque. A homenagem dele a Denilto apresenta a arte como poesia e política, como confronto e beleza. Como Brasil e Japão, e não é nenhum dos dois - Denilto foi um dos primeiros a trazer o butoh para a dança contemporânea, Fukushima tem forte influência oriental (para além de sua ascendência), com estágio no outro ponto do globo.
Fukushima sai, o público aplaude, Fukushima retorna e continua a dança - é agradecimento, mas ainda é parte do espetáculo. Sua expressão agora é leve, seus gestos soam mais soltos e fluidos - mais a cara do que estou acostumado dele. Associo ao título da obra esses dois "atos": no primeiro, seu solo é, na verdade, um duo, de alguma outra dimensão, Denilto dança com ele; no segundo, um solo seu, sua homenagem particular para Denilto. Em todo o espetáculo, o trazer o invisível para a ribalta, o passado para o presente; a dança em suas muitas possibilidades, o corpo em suas dificuldades - como no discurso inicial - e em toda sua expressividade - inclusive, dançar com os ausentes.

06 de setembro de 2017.