terça-feira, 10 de outubro de 2017

Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc

Em agosto fez estardalhaço a inauguração de uma nova unidade do Sesc de São Paulo, no centro da capital paulistana. Assinatura de Paulo Mendes Rocha no projeto, em meio a uma área que a mídia vende como "desvalorizada" (antessala da "degrada"), com viés de alta - graças à linha amarela do metrô, entre outras razões -, a inauguração acabou acontecendo em um momento propício para reafirmar o Sesc São Paulo como um oásis em meio à crise da área da cultura - de um lado, o poder público tirando todo investimento do setor, do outro, a iniciativa privada interessada apenas em espetáculos com boas taxas de retorno financeiro, como musicais ou os contemplados com a lei Rouanet, e livres de qualquer polêmica com grupos fundamentalistas-cristãos e reacionários-neofascistas. Ganha o Sesc, ganha São Paulo, ganha a cultura - é o que leio na minha bolha virtual, na qual estão muitos artistas, técnicos de artes do palco, pessoas de esquerda da classe média, média-alta, egressas da universidade pública (muitos dos quais funcionários do Sesc). Não discordo, mas ouso dizer que essa é só metade da história - para meus colegas de classe social, que gostam de ser críticos pela metade, até o ponto que não toque seus pequenos privilégios, é o suficiente.
Aproveito passado o momento de loas acríticas para lembrar que nem tudo são flores no Sesc e na sua relação com a cultura.
Não que o Sesc São Paulo não tenha inúmeros pontos positivos. Programação cultural interessante a preços acessíveis, cantina a preços razoáveis; para técnicos de fora da casa, um dos raros locais em que se paga a tabela cheia do sindicato (um dos motivos de eu ter acelerado tirar meu DRT da minha nati-fracassada carreira de iluminador cênico foi estar apto a poder pegar um trabalho no Sesc, caso surgisse); para artistas, paga o cachê combinado e na data - se cair nas graças dos programadores, vai ficar circulando com o espetáculo e ter garantido o dinheiro para o aluguel, sonho de todo artista em início ou meio de carreira, poder não se preocupar se vai ter dinheiro até o fim do mês. Se se pensar individualmente, o Sesc é quase só vantagens. Se formos olhar a cultura - produção e circulação de bens culturais, em especial espetáculos de todos os estilos - como sistema, o Sesc floresce graças à disfuncionalidade do nosso sistema de cultura, e mais se fortalece quanto mais esse sistema é disfuncional - contribuindo para piorar a situação. Culpa do Sesc? Não. Mas daí também não podemos achar que ele seja completamente inocente nessa história.
Começo com um relato pessoal de menor relevância: admito, diferentemente de muitos de meus colegas de faculdade e de classe social, nunca fui tomado de paixão pelo Sesc - pelo contrário, algo nunca me desceu bem nas unidades que frequentei e frequento. Não pela programação cultural e pelos preços, definitivamente, mas por muito tempo não soube precisar o que era. A notícia de que mulheres haviam sido proibidas de amamentar em público em uma unidade deu a primeira deixa de qual minha principal bronca com o Sesc (Sesc avant-garde do nosso estado atual?). A ela se seguiram duas cenas que presenciei: numa, um negro era barrado na entrada; na segunda, um homem com um visual de motoqueiro - ambos entraram após apresentarem suas credenciais. Foi então que entendi: o Sesc tem todo o clima de lugar classe média de novela da Globo (e eu, démodé, estou mais pro cinema novo de Glauber Rocha). Limpo, asséptico, os funcionários uniformizados e servis, uma boa ação vez ou outra - como abrir um dia para uma turma de escola pública - e a quase ausência de negros entre os clientes do lugar. Na verdade, há alguns negros, os que se deram "bem na vida" (segundo a lógica da meritocracia canalha brasileira), o que não há - fora da área de serviçais - são pessoas pobres, diversidade social - e mesmo cultural. Aí ouço de meus colegas de classe elogiarem o Sesc por ele ser "popular", porque os ingressos são baratos - e assim a elite brasileira descolada vai forjando sua noção de povo, na qual não está incluída 60% ou 70% da população nacional. Em tempo: frequento basicamente os Sescs da região central, já me criticaram por esta minha posição, argumentam que nos Sescs da periferia da capital há, sim, negros, pobres e parcelas da população ausente das unidades que freqüento. Não que isso seja muito positivo: é antes um reforço da segregação, um reafirmar que cada um deve ocupar seu lugar (natural?), não se deve misturar: os marginalizados devem permanecer nas franjas, o centro para os "vencedores" - foi a lógica, diga-se de passagem, da cultura na gestão Haddad-Bonduki: segregação e limpeza social dos equipamentos centrais, como o CCSP, na Vergueiro (para quem não é de São Paulo: fica no início da Av. Paulista).
Leio uma entrevista de Paulo Mendes Rocha sobre o novo Sesc. Ele sabe que em alguma medida aquilo é uma farsa, tanto que a entrevista gira em torno de ocupar o centro, pois ele não é perigoso - o próprio arquiteto tem seu escritório há décadas na região da Boca do Lixo, em meio a inferninhos, travestis, prostitutas e michês. Na entrevista ele afirma que o comerciário freqüenta o centro, pois muitos ali trabalham e se divertem - ao menos até ano passado, quintas e sextas feiras à noite era uma região riquíssima de tipos diversos ocupando as ruas e os bares da região, de feirinhas do rolo a baladas na calçada, passando por engravatados tomando chope e funcionários rasos escutando shows de pagode. Seu convite, portanto, não é para os comerciários ocuparem o que seria em tese um prédio a eles destinado - não é para o atendente, o caixa de mercado, que está em trânsito entre seu trabalho, na zona oeste ou zona sul, rumo à zona leste, fazer uma pausa e aproveitar o Sesc no centro -, e sim para a classe média, média-alta, estudantes e egressos da USP e da PUC, criarem coragem de sair dos limpinhos e assépticos bairros da Vila Madalena, Pinheiros e Pompéia e descobrirem que o centro pode oferecer mais do mesmo, sem sobressaltos - afinal, agora há um Sesc! 
Longe de mim defender que se "deve dar ao povo o que ele pede", uma vez que é negado ao mal-chamado povo acesso a diversas formas de arte, limitando seu conhecimento ao que é tido por mais raso e precário (ainda que nem sempre essa valoração social corresponda à realidade da arte em questão). O ponto é o quanto os Sescs centrais não demonstram interesse em dialogar com o público do seu entorno que não seja o de classe média universitária branca. Pego como exemplo o Sesc Pinheiro, na zona Oeste da cidade. A unidade fica a uma quadra do Largo da Batata, atualmente em acelerado processo de gentrificação, mas ainda famoso ponto de forró, ritmo vinculado ao popular (no sentido pejorativo do termo): não há nada na programação do Sesc que proponha aproximação com esse público - poderia, por exemplo, utilizar o forró como isca para unidade, de modo a, com o tempo, apresentar outras linguagens, por que não? Porque, ao que tudo indica, não é do interesse do Sesc ter gente diferenciada sob seu teto - diversidade, só a bem comportada, que aceita ficar sempre sob controle. Até onde me consta, não se trata de lapso: é política deliberada e explícita, conforme comentou uma ex-funcionária da área de música da unidade. Em compensação, música pop de agrado de classe média universitária branca - o outro público das redondezas -, tem toda semana (muitas dessas bandas eu gosto, mas reconheço: são divertimento fajuto, artisticamente nulas). Sobre o novo Sesc, não sei quanto à programação, mas seu apreço pelo diálogo com a população do entorno me soou evidente no número exagerado de seguranças que circulam por ele (ao menos nas três vezes que estive no local). Me lembrou a Unicamp, que com sua segurança ostensiva não resolvia o problema de criminalidade, mas dava um jeito na presença de pobres).
Aqui entro num segundo ponto da relação do Sesc com a cultura. Se se aproveita da sua condição para afirmar certas manifestações artísticas como válidas - valorosas -, em detrimento de outras, excluindo parte da população das suas unidades, para artistas, mesmo dentro dessas linguagens consagradas, o Sesc tem efeito bastante perverso - e mesmo deletério.
O Sesc se firmou como um centro cultural com boa curadoria e bons preços. No senso comum (a classe média, média-alta branca, universitária, descolada e preguiçosa de maiores aprofundamentos), se está em cartaz no Sesc é porque passou por um rigoroso crivo antes e é bom - dá para ir sem medo.
Primeira questão: quais critérios servem de parâmetro para a seleção do que é aceito em seus palcos, do que é recusado? Inovação de linguagem? Experimentalismo? Potencial para provocar debates adormecidos mas necessários? Ou efeitos especiais? Currículo do artista ou grupo? Não ofender a moral e os bons costumes de uma classe média meio progressista? Gosto pessoal do programador ou do gerente da unidade? Ainda que haja brechas, é perceptível que a banda na qual o Sesc seleciona seus espetáculos é bastante estreita. Aos artistas, se apresentar no Sesc é oportunidade de ganhar seus necessários meios de subsistência através de sua arte e se ver como um bom artista, se admirar narcisisticamente no espelho efêmero que é seu guia mensal de programação. O problema: ter se apresentado no Sesc não é ponto no currículo fora do Sesc, pelo contrário: é dificultar sua carreira no circuito extra-Sesc.
Primeiro, na medida que o próprio circuito extra-Sesc é de difícil manutenção: como o Sesc tem ingressos subsidiados, é quase impossível espaços independentes, autônomos, serem economicamente viáveis sem alguma forma de auxílio - estatal ou privado -, e os artistas e grupos poderem fazer temporadas dependendo da receita da bilheteria: dificilmente conseguem pagar as contas.
Segundo ponto: a mentalidade que acaba regendo o público enfeitiçado pelo canto das sesc-sereias é que se não está no Sesc não deve ser bom, não vale a pena arriscar - até porque se for bom, logo entra em cartaz em algum Sesc, com ingressos a metade do preço (ou menos) do que se cobra em teatros que sobrevivem por conta própria. Daí os artistas (não falo dos famosos, globais ou consagrados), para poder viver de arte, terem que se sujeitar ao Sesc ou aos editais governamentais: o Sesc forma público para si, não para artes. Problema um: se o artista já esteve no circuito Sesc, é comum ver pessoas preferirem esperar até ele voltar - lembro de vários amigos terem recusados convites para assistir a shows no finado Studio SP com esse argumento. Problema dois: o quanto o artista precisa reprimir da sua arte para poder ser aceito no circuito Sesc? Problema três: o quanto o artista se acomoda em mais do mesmo, pois melhor garantir o pão com o de sempre a arriscar a fome com qualquer coisa nova? Dois anos atrás fui assistir a um espetáculo de um grupo de teatro de rua que conhecia de Campinas, fazia dez anos. Sabia que eles tinham caído nas graças do Sesc e há anos circulavam no circuito. O espetáculo a que assisti era o mesmo espetáculo que eu vira. Entrei na página do grupo, o repertório é o mesmo de uma década atrás, salvo um, que não sei se é realmente novo ou apenas desconhecido meu.
Pode-se argumentar que, ainda que seja parte menor da sua programação, o Sesc dá abertura a estréias, ou seja, não compra apenas produtos prontos, testados e consagrados. Sobre tais estréias, sei de dois modelos de seleção (salvo as peças do Antunes Filho no Sesc Consolação). Um, o mais comum, o artista ou grupo monta um espetáculo e faz uma apresentação para alguém da programação. Se o programador gostar, o espetáculo está dentro; se não for do agrado, provavelmente o trabalho será jogado fora, ou dormirá em alguma gaveta até conseguir um edital. Para não correr o risco de ter o trabalho jogado fora sem nada receber pelo esforço, é de se imaginar que os artistas se limitem àquilo que soa mais palatável aos programadores do Sesc. E mesmo assim, para poder montar a fundo perdido um espetáculo, ou é preciso um bom capital inicial para queimar sem garantia de retorno, ou então ser um grupo pequeno - um solo ou duo de dança, um espetáculo modesto de teatro, de texto mais curto, sem muita cenografia ou figurino.
O outro modelo, recente, consiste em financiar às cegas algum grupo ou diretor consagrado. Participei, curiosamente, de dois desses processos. O primeiro foi com o Teatro da Vertigem. Foi dado o prazo de quatro meses de trabalho a um grupo habituado a processos criativos de um ano, um ano e meio. Diante da loucura estressante que foi esse processo, não deixou de ser impressionante que o produto final não tenha ficado uma porcaria; mas sem dúvida ficou muito aquém do que o Teatro da Vertigem já fez. Minha segunda experiência foi em um processo de três meses, agora na dança, na residência artística do Eduardo Fukushima. Fukushima foi mais modesto no seu objetivo, e com isso se chocou com os interesses do Sesc - o que tivemos, ao fim, foi uma abertura de processo, e não um espetáculo, com cobrança de ingresso e tudo o mais, como desejava a programadora da unidade. Este ano assisti a outro espetáculo cujo processo de montagem foi financiado pelo Sesc sem ter a obra pronta, Diásporas, com direção de Marcelo Lazzaratto. Simplesmente um dos piores espetáculos teatrais a que já assisti - salvo a ótima sonoplastia e o design gráfico do programa, nada salva, e olha que já vi muita peça de teatro horrível. Contudo, desta feita, ao contrário do ocorrido com o Vertigem, o Sesc deu um ano para sua preparação - não dá para alegar falha do Sesc, portanto, de não dar condições mínimas para o desenvolvimento de um bom trabalho. E só pelo fato de ter 45 atores no palco, além de som ao vivo, é de se imaginar que o montante gasto não foi pequeno. E toda esse dinheiro e esse tempo para ter como resultado um péssimo produto. Entretanto, esse é o risco de fomentar a arte (e não apenas pagar pela sua circulação): não se sabe qual a qualidade do produto final. Pode sair um ótima peça, ganhadora de Prêmio Shell e APCA, pode sair algo bom, e pode sair algo muito ruim. Neste caso, isso acaba por comprometer a imagem do Sesc de "se está no Sesc é bom". Por quanto tempo o Sesc estará disposto a chamuscar essa imagem talhada por tantos anos apenas para cumprir com a função de fomentadora de criação artística?
Já ouvi como réplica a minhas críticas, por parte de alguns amigos técnicos e artistas, de que o Sesc é uma instituição privada, e portanto teria autonomia, não caberia as críticas que faço. Se a instituição é privada, o dinheiro, não - no caso do Sesc, seu orçamento é fruto de um imposto de 1,5% sobre a folha de pagamento. E se o dinheiro é público, a transparência das contas é de empresa privada fechada. Então discutir sobre o Sesc é discutir sobre o destino de um dinheiro público. Ademais, o modelo Sesc é visto tão sem críticas, que frequentemente aventa-se o nome de seu presidente, Danilo Miranda, para o Ministério da Cultura (quando existia de fato), ou o tratam como um ministro paralelo - o que seria ótimo, se nosso sistema de cultura estivesse razoavelmente harmônico, ou se pelo menos o Sesc seguisse diretrizes públicas para sua programação, e se as contas do dinheiro público que o alimenta fossem públicas.
Reitero: não se trata de descartar o modelo Sesc, mas de pensá-lo criticamente dentro de uma estrutura maior de produção, circulação e consumo de cultura - o que implica em rediscutir o que é cultura, quais os papéis da arte numa sociedade como a brasileira (e passo ao largo das discussões iniciadas pelos movimentos neofascistas). Falar sobre o Sesc é falar sobre o papel do Estado na promoção da cultura e das artes, e do quanto nossas instituições democráticas são falhas - vide o exemplo de São Paulo, em que a ascensão de políticos nada comprometidos com a democracia e a participação popular, para ser bem eufemístico com Doria Júnior, Sturm e Cosac, põe abaixo anos de trabalho da classe artística na estruturação de formas de fomento à arte. Apesar do golpe, o Sesc ainda consegue se manter sua função no sistema cultural, sem muita influência dos neoditadores de turno e suas milícias - talvez justo por nunca ousar ir muito longe. Sem descartar os muitos méritos, é urgente discutir o papel do Sesc na cultura, tão logo restabeleçamos um Estado democrático e de direito no Brasil e afastarmos o risco imposto a toda sociedade pelos reacionários religiosos e neofascistas.

10 de outubro de 2017



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