terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A relação da Mídia com o Exército no pós-intervenção do RJ

Ainda estamos tentando entender quais objetivos reais por trás da intervenção federal no Rio de Janeiro, que ganha contornos militares. Interpretações são muitas, de aviso prévio à população para a possibilidade de qualquer revolta popular com a prisão de Lula a um preparo para um golpe militar efetivo. De qualquer forma, não há como não concordar com Nassif, quando fala do crescimento do poder do exército, com Etchegoyen [http://bit.ly/2olkF3E]. A questão é até onde iremos (e coloco o verbo na primeira pessoa do plural porque a população não é parte passiva no processo), até onde os donos do poder estão dispostos a ceder o poder ao militares e até onde os militares estão dispostos a assumir esse abacaxi, digo, esta república bananeira. Também há o elemento imponderável, como em tudo na história.
Se os neoliberais dizem que não existe almoço grátis, nestes Tristes Trópicos podemos dizer que a Grande Imprensa não dá notícia gratuitamente - se não vende a capa por dinheiro vivo, loteia notícias por interesses outros, nunca explicitados. Que faça jogadas erradas é uma coisa, mas a censura e cooptação dos jornalistas é pesada e nada que ganha direito a figurar em suas páginas ou transmissões é isento de avaliação prévia - das delações da JBS às críticas a Pablo Vittar. Notícias sobre a ditadura e a intervenção militar, então, não são por acaso.
Tivemos a intervenção federal no Rio, com ameaça de uso do exército como força policial, legitimado pelo legislativo e aguardando o ok da justiça (sic), com as buscas e apreensões coletivas - como disse Luis Felipe Miguel, isso é um reforço a mais no fim do Estado de Direito nesta terra "sem fé, sem lei, sem rei": "pedidos coletivos de busca e apreensão indicam a percepção de que a lei, ao estabelecer direitos, impede o combate ao crime". Mais impressionante é ver os próprios operadores do direito, aprovarem o fim do império da lei. Certamente essa decisão não foi tomada numa noite. De onde podemos presumir que não foi sem querer que dois dias antes da intervenção, a procuradora geral da república, Raquel Dodge, tenha pedido ao STF para reabrir a discussão sobre a lei de anistia, por se tratar de crimes lesa humanidade os praticados por militares durante a ditadura civil-militar de 1964-85 [http://bit.ly/2oj4mUY]. Nunca é demais que atualmente Globo e MPF praticamente se confundem, com este assumindo o poder de milícia jurídica (sem controle externo) dos interesses vocalizados pela Globo.
Ontem, a notícia de que Villas Bôas, comandante do exército e uma das vozes mais lúcidas da corporação (dentro da limitação luminosa que o exército brasileiro pode ter), pediu maiores garantias de impunidade, para evitar uma nova comissão da verdade do que vierem a fazer (e ocultar) durante a intervenção militar no Rio de Janeiro e alhures [https://glo.bo/2BEihxf]. O general acha pouco a lei de 2017 que põe o exército oficialmente na esbórnia corporativista estatal, onde juízes julgam juízes, políticos julgam políticos, ladrões julgam ladrões (digo do PCC, organização que ficou com a terceirização no combate ao crime e execução da justiça aos reles mortais, ao menos no Tucanistão) e, agora, militares julgam militares - apenas a população e a democracia seguem julgada por outros, com critérios alheios e arbitrários.
Hoje, o Globo noticia a identificação da ossada de Dimas Antônio Casemiro, assassinado e desaparecido pela ditadura [https://glo.bo/2EG4tFt]. No mesmo dia, notícias de como os militares vão ajudar a salvar o Rio de Janeiro da criminalidade, com o próprio general interventor tendo sua narrativa do herói (justiceiro), com o assassinato do irmão pela criminalidade [https://glo.bo/2EVPaYu]), muito mais espetacular para forjar um herói popular (diferentemente do camicie nere Moro); e editorial aplaudindo o efeito saneador dessa intervenção, em revival de 1964: "Intervenção é oportunidade para sanear instituições" [https://glo.bo/2C9Y6bC].
O movimento da mídia com os militares, de morde e assopra, pode ser uma antecipação da estratégia usada com Moro e demais justiceiros da república de Curitiba, que tão logo cumpriram sua função moralizante da nação, condenando Lula, foram desmascarados em uma série de imoralismos e ilegalidades pela mídia que um dia antes os tratava como heróis paladinos da ética. Afinal, exército tem forte senso de hierarquia e as armas à mão, não precisa delegar a tarefa de tiro a ninguém, com o risco de não ser respeitado (como foi a decisão judicial de condução coercitiva de Lula, em 2016), melhor não deixar que eles cresçam demais. O ponto é que isso pode ser jogar gasolina em certos setores da corporação, podendo levar a um fechamento breve e duro do sistema. Interrompem as manifestações a tiro, e calam a mídia na base da censura - com esta podendo posar de vítima daquilo que estimularam e desejam. A internet, essa é fácil de conter, já vimos os ensaios no período de desestabilização do governo petista: basta um juiz de província qualquer ordenar o bloqueio de Facebook, Whatsapp ou outros sites e programas, com base em qualquer argumento - como o combate ao crime organizado (por sinal, se bem notei, depois do golpe, nunca mais a justiça bloqueou o Whatsapp e afins).
A grande incógnita a um reles cidadão como este escriba, sem contatos quentes nas estruturas do poder, é saber a quantas andam as divisões dentro das forças armadas. Há ao menos três correntes identificáveis: os nacional-desenvolvimentistas, talvez ressentidos pela forma como foram tratados pelos aliados no fim da ditadura (Jessé Souza identifica o PND II, em 1974, como ponto de inflexão no apoio da mídia e dos seus patrocinados aos militares), e certamente insatisfeitos com os rumos do golpe atual; os caça-comunistas, em que importante é manter seu status quo frente o grosso da população, ao custo de qualquer aspiração de nação ou projeto de desenvolvimento; e os legalistas, que defendem um papel constitucional e de ação restrita das forças armadas. A disputa interna existe, e ainda que não seja aberta, é visível e não aparenta ser pequena - e nessa briga, a hierarquia fica um tanto esfumada. Convém relembrar que o hoje major Willian Pina Botelho, responsável por forjar um patético flagrante de jovens que protestavam contra o golpe, em 2016 [https://glo.bo/2GwAwEi], estava infiltrado em movimentos sociais há mais de um ano e agiu à revelia da então comandante em chefe das forças armadas do país, Dilma Rousseff - mas certamente não agiu sozinho.
Villas Bôas sempre sinalizou ser do terceiro grupo. As recentes mudanças no discurso, mais que uma mudança de mentalidade do general, apontam uma mudança na correlação de forças dentro da corporação. Diante da inefabilidade (ou da grande probabilidade) de um recrudescimento do regime de exceção e da presença ostensiva do exército, o general trata de tentar dar um verniz legal e civil às arbitrariedades de um futuro regime militar ou semi-militar.
Para o exército (pensando aqui enquanto corporação, alheio às disputas da facções internas e dos interesses do país), o ideal é que o melhor cenário se concretize: a intervenção no Rio se encerre antecipadamente, sem maiores crimes e escândalo; que as eleições aconteçam e não sejam uma farsa, nem incorram em fraude, e que ganhe o mais votado - por ora, Lula. Se assim for, o exército sai de cena sem maiores custos da sua imagem frente a população porém, em compensação, seu poder político cresce enormemente, podendo se transformar em uma espécie de "guarda revolucionária" tupiniquim - ou, para ser mais preciso, guarda antirevolucionária. Se até hoje o preço a se pagar por um enfrentamento dos seus interesses eram altos - mesmo com a modernização da força aérea e a aceleração do navio nuclear, a Comissão da Verdade não foi engolida -, a partir desse cenário serão exorbitantes. A maior possibilidade, entretanto, é de um cenário negativo, com exército envolto em uma série de escândalos, por conta de sua ação policial, e consequente arranhões à sua imagem. Se se começar esse processo de corrosão da sua moral, o golpe pode ser a solução mais rápida para estancar a sangria (com Supremo, com tudo?). E, claro, nessa discussão toda dos círculos de poder, a população que sofra, o país que acabe, a nação que se desmantele.

20 de fevereiro de 2018.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Huck, o candidato

Luciano Huck, a despeito do que diga, segue candidato à presidência da República Bananeira do Brazil. Artigos na Folha e ameaças da Globo são apenas jogo de cena: sua candidatura só pode ser dada como enterrada quando não tiver mais possibilidade de acontecer - abril, conforme as leis atuais, se não acharem mais apropriado mudá-las, tendo em vista a casuística do momento.
Primeiro fator de que segue candidato: Huck não teve essa ideia ano passado, em um jantar na casa de alguma socialite. É projeto acalentado há quase uma década: não achei que foi puro flerte quando li, em entrevista para a revista Alfa, em 2011, que o garoto propaganda da Globo desejava se tornar presidente da República, por mais que desconversasse (glo.bo/2o3cTMG, não achei a entrevista original). São ao menos sete anos desde que foi tornado público esse desejo, tempo para se preparar - não digo para a administração pública, mas para a campanha política -, fazer os contatos políticos e econômicos, preparar a imagem de maior impacto eleitoral. Não por acaso, Huck tem potencial de ser o candidato dos dois extremos da sociedade: dos com muito dinheiro, que saem que ganharão com o marido da Angélica, e dos sem nada que não uma esperança ignorante e vã de um dia tirarem a sorte grande - na Mega sena ou no Caldeirão do Huck.
Segundo fator: a exemplo das igrejas evangélicas, a Rede Globo sempre teve sua bancada legislativa - de Miro Teixeira a Lasier Martins -, e não há por que não ela não querer um testa de ferro seu assumindo o executivo federal (já que os Marinho não tem o carisma de um Berlusconi), ainda mais nestes tempos em que, por mais que siga hegemônica, tem seu poder enfraquecido como nunca antes - vide o caso de não conseguir manter a narrativa do golpe para além de um pequeno círculo de neofascistas, ou de sequer conseguir derrubar Temer, o minúsculo.
Terceiro fator: a crise política e o estado de anomia na (proto)nação são o cavalo selado passando na frente de Huck e Globo. O impedimento de Lula priva parte da população de seu candidato, e Huck tenta justo entrar nessa faixa do eleitorado - de muito trabalho, poucas recompensas, mas confiantes no futuro, sem ressentimentos, mesmo que pague pelo caviar que a elite segue a desfrutar com seu desemprego. Huck pode adiar para o futuro sua candidatura, porém 2018 se mostra momento mais que propício para aventureiros - como 1989.
Quarto fator: é do interesse do PSDB Huck candidato. Alckmin não tem conseguido decolar, apesar de todo apoio midiático e financeiro que tem tido. Um segundo nome de confiança das elites é importante: se Alckmin seguir a patinar, atira-se ao mar e embarca na canoa Huck - o exemplo vem das origens tucanas: PMDB, 1989. Se Alckmin avançar, Huck pode ser um ótimo cabo eleitoral no segundo turno, transferindo parte de seus votos ao Picolé de Chuchu. E não sejamos ingênuos: ao contrário das esquerdas, que adoram se atacar entre si (vide Erundina atacando Haddad, em debate de 2016), a direita, mesmo dividida, sabe que não cabe atirar dentro do próprio campo: Alckmin e Huck, mesmo que adversários, dificilmente entrarão em pugna. (Uma amiga levantava ainda a questão religiosa como outro ponto fraco do apresentador).
Vejo três grandes pontos fracos de Huck. Um deles, sua ligação com a Globo - parte da população já notou que a rede forjou uma série de fake news para pôr no governo Temer e um projeto que arruinou não apenas a nação como a vida das pessoas comuns. O segundo, suas muitas fotos com políticos que ficaram manchados com a atual crise, como Aécio Neves - pode rolar um "eu não sabia", porém ainda assim é vidraça para adversários: "se não conhece seus amigos de confiança, como vai ter controle da máquina estatal, cheio de desconhecidos, e em que responderá pelo ato de todos, podendo ser incriminado por 'ato de ofício indeterminado'?". Por fim, o sucesso eleitoral de Doria Jr e seu fracasso administrativo. Nenhum desses três pontos, por ora, são capazes de naufragar sua candidatura, mas podem custar a eleição. 
A reportagem da Folha de São Paulo, sobre o bolsa-jatinho de Huck, pode ser encarado como balão de ensaio do quanto sua candidatura resiste a ataques. O jornalismo lixo brasileiro é capaz de ir muito abaixo disso, escarafunchar a vida pessoal do apresentador e de sua família propaganda de margarina, e, caso descubra algo nesse campo, feri-lo gravemente frente seu eleitorado. Não defendo esse tipo de jornalismo ou de ativismo político, porém a mídia não se faz de rogada em usá-lo contra quem é de esquerda - e certamente não usará contra quem é amigo seu.
Fica, então, a questão: por que essa dança do "desiste, não desiste, desiste de verdade, não desiste de verdade, desiste, sim, ou não, desdesiste"? Ao que tudo indica, trata-se de estratégia de marketing. Além de deixar seu nome ventilado seguidamente mas não o tempo todo, busca fazer com que Huck entre - caso entre - na disputa como uma onda, um movimento "irresistível" que cresce. Lançou (lançaram, segundo ele) seu nome, as pesquisas deram um dígito, a Globo fez a ceninha de colocá-lo contra a parede: ou candidatura ou contrato; desistiu em artigo na Folha (onde estaria um resto de classe média intelectual liberal não fascista, e até algumas pessoas de esquerda, se é que ainda restam entre os assinantes desse panfleto), com referências à família e à sua caravana pelo país, que conheceria in loco - versão televisiva das caravanas lulistas de 1994? Foi relançado por ninguém menos que o ex-presidente FHC. Nova pesquisa, novamente um dígito, novamente Globo cobrando resposta, novamente ele desistindo do que já disse ter desistido - mas os contatos de bastidores seguem. Seu nome ainda constará nas próximas pesquisas eleitorais, será trazido pela mídia e por políticos, se mostrar um início de crescimento, Huck assumirá a candidatura, e o fim do contrato com a Globo será reforçador de seu "destino manifesto" para a presidência, do chamado das ruas que ele atende, abrindo mão de seus interesses particulares pelo bem do povo e da nação. Ganhará a aura de abnegado e um discurso a la queremismo getulista. Se assim ocorrer, salvo Lula, será difícil freá-lo - inclusive, ideal seria que Lula fosse barrado o quanto antes, para poder começar esse movimento e reinterpretá-lo nessa lógica de movimento espontâneo. Se não decolar nas pesquisas, não se lança candidato, fica tudo como está, e ele se prepara para 2022 (se tiver eleições). Portanto, até abril (ou até quando os neoditadores do judiciário decidirem), não vale o que diz o candidato, digo, o apresentador. 

16 de fevereiro de 2018


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O cão de Pavlov e o atendente de farmácia

Em um de seus experimentos sádico-científicos, Pavlov tocava uma sineta antes de aplicar um choque em um cão, que chorava por conta do sofrimento causado pelo choque. Passado um tempo, o cachorro já começava a chorar só de ouvir a sineta - muitas vezes sequer recebia o choque. Ainda mantendo a associação entre sineta e choque, passado outro tempo, o animal se habituava: ouvia sineta e tomava choque sem reclamar - bovinamente, diríamos hoje.
Não vivemos em laboratório, onde as variáveis estão controlada (ou ao menos assim dizem os cientistas), nem somos cachorros (por mais que no Brasil tenha "pet" que leve vida melhor que boa parte da população humana), mas nosso viver no automático nos leva para um ponto não muito longe dos experimentos pavlovianos - para alegria de publicitários, jornalistas, políticos e engenheiros sociais em geral. Meu exemplo é banal.
Uma amiga pediu para acompanhá-la na Farmácia de Alto Custo, do governo do Estado em parceria com a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que fornece gratuitamente remédios caros à população. Tinha medo de ir sozinha na farmácia, situada na região do baixo do Glicério, na várzea do Carmo, próximo à estação Pedro II do Metrô. Deveras, em meio a viadutos, mendigos, moradores de rua, usuários de drogas pobres, catadores de recicláveis, igrejas, migrantes, imigrantes e outros desvalidos da sorte, não é um local que a classe média se sinta em casa para uma caminhada. Meu cacoete de classe média logo fez com que me questionasse (não verbalizei, para não melindrar minha amiga) por que ela não comprava o medicamento, já que não é tãããao caro assim, e ainda que fosse pesar no seu orçamento, não implicaria cortar de nenhum gasto essencial. Meu anti-cacoete-classe-média logo me lembrou da grande besteira ideológica pequeno burguesa tropical essa ideia de que serviço público é para pobre e não para todos - tirando, claro, a universidade pública e o terceiro nível do SUS, porque aí a classe média não conseguimos bancar sem cortar de algum lado, e então fazemos questão de usar o serviço do Estado, disputando com pobres, porque é nosso direito. E é. Se acesso à saúde é um direito universal garantido pela Constituição, bem faz minha amiga de exigir seu direito, ao invés de pagar por uma relativa comodidade.
O serviço da farmácia pareceu bem organizado, e nesta quarta-feira de cinzas, rápido. Enquanto esperava minha amiga ser atendida, reparei no espaço, que desde que entrara, algum estranhamento me causava. O local era limpo, sinalizado com cores, mas havia algo fora da familiaridade classe média a que estou acostumado. Imaginei que talvez fosse a pintura, que não estava tinindo, como em grandes redes de farmácia ou nos McDonalds médicos que vejo no centro da cidade (sem desmerecer o lanche do Mc, que é ruim mas não para tanto). Talvez a falta de cores fortes preenchendo grandes espaços. Ou um televisor gritando rede Globo ou publicidade? A falta de uma logomarca grande chamando a atenção e uma placa bem a vista com a missão do estabelecimento? Reparei nos atendentes. Estavam todos de preto - incomum para um ambiente de saúde, mas não era isso. Notei que uma delas tinha a marca estampada na roupa, outra uma frase brega, o rapaz que entregava as senhas, camisa de jogo de RPG. Passou por mim a moça da faxina, roupa da terceirizada. Entendi, então, meu estranhamento: os serviçais, salvo da faxina, não estavam uniformizados.
Admito um certo choque ao perceber como naturalizei a visão do uniforme em quem me atende. Passa-se a ideia de profissionalismo, dizem. Diria mais: passa-se a ideia de quem está na sua frente não é bem uma pessoa, mas o meio termo entre um homem ou uma mulher e um androide - na impossibilidade, por enquanto, de serem substituídos por robôs de verdade.
Entendo a necessidade de uniforme em muitas situações - escolas ou fábricas, por exemplo. Durante a idade escolar e ainda hoje sou grande defensor do uniforme: me poupa de pensar nessa maçada que é que roupa vou usar, se já não usei ela semana passada ou coisas do tipo. Porém sou homem, branco, classe média alta: socialmente valho por pessoa por meu fenótipo e renda, ainda que muitos de meus colegas de classe sintam necessidade de se afirmar por outros meios também - carro, restaurantes, roupas, viagens. Mesmo o uniforme para minha classe - o terno - é socialmente valorizado como nobre, com "personalidade".
A situação é diferente na "ralé", como chamou Jessé Souza, e noto como o uniforme de trabalho para essas pessoas tem um aspecto perverso: uma das grandes molas propulsoras do capitalismo espetacular está no vestuário, na moda - isso vem do século XIX, como atesta a literatura. Geralmente as pessoas que fazem o atendimento ao público são pessoas que tiveram menos oportunidades de educação e, consequentemente, de um melhor emprego. São vistos como semipessoas, semicidadãos pelos homens e mulheres "de bem" desta terra do "você sabe com quem você está falando?". Usar uma marca é uma tentativa de ganhar a parte da humanidade (ou toda ela) que lhes foi negada: foi uma das coisas que me chamou a atenção nos imigrantes na Missão Paz, ali perto da Farmácia de Alto Custo, no Glicério; ou o que se lê em romances do Ferréz ou nas letras dos Racionais, por exemplo. Não apenas isso: ideologicamente há a ideia - aceita acriticamente até por gente que se acha crítica - que marca, roupa, estilo, é parte da personalidade de alguém, quando não a define na essência. Portanto, ao serviçal, já considerado semigente, é também recusada a expressão da sua personalidade espetacular. Não é alguém por completo, nem tem direito de tentar sê-lo - tal qual o patrão ou os clientes brancos, classe média, cheios de estilo, que exigem serem recebidos com robóticos "bom dia" por pessoas uniformizadas - ironicamente, as gravações do atendimento no telemarketing tem mais vida e personalidade que os atendentes de carne e osso, que soam submissos serviçais zumbis do outro lado da linha.
Comento esse exemplo banal do desnecessário uniforme para atendentes. Vamos no automático, mal enxergamos, quando vemos, ainda achamos que tem pontos positivos, logo vira natural - pode um atendente sem uniforme? O caso poderia ser levado a outros aspectos do nosso quotidiano, mais emblemáticos. A violência que está aí, como o sol da manhã, a polícia que faz abordagem com arma na mão e dedo no gatilho às três da tarde no centro, os assassinatos pelos policiais, os policiais assassinados - tudo normal, pessoas tombam ao nosso lado, mas a vida segue. Ou o golpe de Estado e todo o desmonte do pacto social que vivenciamos: algum incômodo de início, alguma revolta, mas aos poucos vamos aceitando a sineta e o choque, no máximo engolimos a amargura e temos uma gastrite, camuflada com qualquer narcótico, tudo sem mudar de ritmo, sem perturbar a rotina - afinal a vida é assim,  não? E fugimos de enxergar se ela deveria mesmo ser assim.

14 de fevereiro de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Alguma coisa está fora da ordem no carnaval

Alguma coisa está fora da ordem, fora da velha ordem nacional - e a ascensão do carnaval de São Paulo com seus bloquinhos talvez dê alguma dica do que pode ser essa desordem oculta.
Pouco afeito ao carnaval, já que essa "brazilidade" da alegria esfuziante não me toca, não nutro ódio - como muitos "cidadãos de bem" da minha classe -, apenas tento passar longe, por mais difícil que isso seja, diante do encontro constante nos fins de semana com bandos em trânsito para os blocos, que me lembram uma versão psicodélica dos pequenos grupos de crackeiros no centro paulistano dos dias úteis e inúteis (observação: não há qualquer valoração nessa comparação, apenas uma similitude que enxergo), das centenas de fotos de meus amigos que vejo nas redes sociais e das reportagens que pipocam por todos os lados. Foi amiga minha, Flor di Castro, artista plástica que atualmente reside em Buenos Aires e passa as férias no Brasil, quem me chamou a atenção: antes, carnaval era nos dias de carnaval, quando muito tinha pré-carnaval no fim de semana anterior; hoje, o pré-carnaval já quase emenda com o ano novo. E se questiona: do que as pessoas precisam tanto fugir, que carecem de um mês todo de festa?
Conforme vários antropólogos, rituais de inversão, como o carnaval, são rituais necessários para se manter a ordem: um dia, uma semana por ano, os papéis sociais são invertidos - chefes se vestem comuns, rafuagem se veste de rei, mulher se traja homem, homem vira bicho, adultos se fantasiam crianças -, sem efeitos performativos, mas com profundo efeitos de acomodação - psicológica e social. Isso cabe bem em sociedades tradicionais, com papéis rígidos e bem definidos: a permanência desse tipo de necessidade em uma sociedade moderna não deixa de ter algum estranhamento, uma vez que se sabe que uma saia não faz um homem menos homem, e não há lei que proíba alguém de trajar um unicórnio (desde que acompanhado de roupas que cubram nossas vergonhas, nestas terras altamente moralistas). Como minha companheira questionou: por que as pessoas não saem vestidas o ano inteiro assim, se se sentem bem? Minha questão é o quanto há de se sentir bem nessa ordem pretensamente invertida do carnaval, o quanto há de se sentir bem tão somente na negação do ordinário.
Sim, como disse acima, essa é a função de rituais de inversão, porém quando se faz isso um mês todo, pode-se imaginar muita vontade reprimida; ao fazê-lo num ritual sem maiores conseqüências, é de se questionar por quê não trazemos isso para o quotidiano, em discursos e ações consequentes - função já ocupada prioritariamente por sindicatos, atualmente um tanto capengas, e hoje ocupada por movimentos identitários, que aparentemente não dão conta de cumprir essa função por completo.
A proposta - ratificada pela justiça - de um bloco apologético à tortura (não se trata, como se diz, de apologia à ditadura, na qual pode ser encontrados pontos positivos, o porão do Dops, é sabido, era sala de torturas, de violência covarde e sádica contra pessoas indefesas), em um país em que a tortura e as execuções estatais extra-judiciais aumentaram desde o fim da ditadura, permite questionar que inversão o carnaval representa, e qual a tolerância do atual status quo - que se desenha cada vez mais nazifascista - para pequenos e saudáveis (para o sistema) atos de questionamento. O carnaval seria de fato ainda um ritual de inversão, ou já se tornou outra festa espetacular no calendário de pseudofestas da sociedade do espetáculo, cuja função é gerar lucros e o pior conformismo? É inversão a garantir certa estabilidade social ou pseudoinversão a reforçar uma insuportável ordem dominante?
Outro ponto que chama a atenção é o fato do carnaval de São Paulo já ter mais bloquinhos que o do Rio de Janeiro - e o próprio fato de o carnaval de rua estar em alta, enquanto os desfiles (se não percebo errado) já foram mais valorizados enquanto símbolo-mor da festa. Acredito que parte dessa valorização da rua não se dá pela chegada de uma classe média, média-alta, branca, universitária, criada em shopping centers e que resolveu "viver a cidade", num ato inconsciente de questionamento dos pais. Não teria nada a criticar nisso, se essa cidade em que os hipsters querem viver não fosse uma versão a céu aberto do shopping - limpa, asséptica, homogênea (vide Pinheiros/Vila Madalena ou a Vila Buarque e o Arouche, em processo de higienização social e pasteurização visual/estética. E isso não é exclusividade tupiniquim, como reportado por Benoît Brevilé, no Le Monde Diplomatique de novembro ["grandes cidades, bons sentimentos"]). Os contextos políticos municipais talvez ajudem a explicar o crescimento paulistano: enquanto no Rio prolifera o evangelismo mais reacionário - coroado com a vitória de Crivella para a prefeitura -, São Paulo teve um respiro modernex com Haddad: o ex-prefeito encarna o hipster com louvor: branco, classe média, universitário, descoladão nos costumes e ainda assim família (não por acaso sua derrota se deve à perda da base habitual do PT, as periferias da cidade: sua imagem não era nem a do modelo de sucesso para a maioria, nem a do tipo mais preocupado com as periferias, uma vez que, como canta Criolo, "cientista social, casas Bahia e tragédia, gosta de favelado mais que [de] Nutella"). Doria Júnior bem tentou reverter o movimento, mas não teve força suficiente - ainda que tenha causado algumas baixas importantes, como a do Bloco Soviético, em 2018 - e alguém com tato mínimo deve ter avisado que era melhor não mandar descer o cacete para se fazer respeitar, não nesse caso, uma vez que a festa pode ser popular, mas boa parte dos seus freqüentadores são da classe média.
O declínio dos desfiles em favor dos blocos permite mais duas hipóteses, que não deixa de ser uma: de decadência da Globo e de anseio democrático. Ao invés de público passivo, bem confinado e bem comportado assistindo à vida passar na sua frente - para julgamento de especialistas -, o desejo de ocupar as ruas, os espaços públicos, e ser protagonista anônimo de um movimento sem muito rumo e roteiro - e sem avaliador externo. O discurso de ódio generalizado, esquerdistas, gays, progressistas, mulheres, negros, artistas, rolezeiros, etc (antes, o ódio era mais direcionado, pobres pretos e periféricos), que Globo e mídias satélites impuseram como padrão nos últimos anos talvez possa ser lido como uma tentativa de retomar essa hegemonia quase monolítica de alguns anos atrás: nada melhor que o ódio para unir - e uma ditadura para calar dissonantes e restabelecer cada um no seu lugar.
Não chego a nenhuma conclusão ao fim desta crônica, a não ser, em concordância com Flor, que algo parece estar muito fora da ordem na nossa sociedade - e o carnaval atual, que dura e dura e dura, soa uma tentativa inconsciente (não sei se vã ou efetiva) de lidar com alguma anomia.
07 de fevereiro de 2018