quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Alguma coisa está fora da ordem no carnaval

Alguma coisa está fora da ordem, fora da velha ordem nacional - e a ascensão do carnaval de São Paulo com seus bloquinhos talvez dê alguma dica do que pode ser essa desordem oculta.
Pouco afeito ao carnaval, já que essa "brazilidade" da alegria esfuziante não me toca, não nutro ódio - como muitos "cidadãos de bem" da minha classe -, apenas tento passar longe, por mais difícil que isso seja, diante do encontro constante nos fins de semana com bandos em trânsito para os blocos, que me lembram uma versão psicodélica dos pequenos grupos de crackeiros no centro paulistano dos dias úteis e inúteis (observação: não há qualquer valoração nessa comparação, apenas uma similitude que enxergo), das centenas de fotos de meus amigos que vejo nas redes sociais e das reportagens que pipocam por todos os lados. Foi amiga minha, Flor di Castro, artista plástica que atualmente reside em Buenos Aires e passa as férias no Brasil, quem me chamou a atenção: antes, carnaval era nos dias de carnaval, quando muito tinha pré-carnaval no fim de semana anterior; hoje, o pré-carnaval já quase emenda com o ano novo. E se questiona: do que as pessoas precisam tanto fugir, que carecem de um mês todo de festa?
Conforme vários antropólogos, rituais de inversão, como o carnaval, são rituais necessários para se manter a ordem: um dia, uma semana por ano, os papéis sociais são invertidos - chefes se vestem comuns, rafuagem se veste de rei, mulher se traja homem, homem vira bicho, adultos se fantasiam crianças -, sem efeitos performativos, mas com profundo efeitos de acomodação - psicológica e social. Isso cabe bem em sociedades tradicionais, com papéis rígidos e bem definidos: a permanência desse tipo de necessidade em uma sociedade moderna não deixa de ter algum estranhamento, uma vez que se sabe que uma saia não faz um homem menos homem, e não há lei que proíba alguém de trajar um unicórnio (desde que acompanhado de roupas que cubram nossas vergonhas, nestas terras altamente moralistas). Como minha companheira questionou: por que as pessoas não saem vestidas o ano inteiro assim, se se sentem bem? Minha questão é o quanto há de se sentir bem nessa ordem pretensamente invertida do carnaval, o quanto há de se sentir bem tão somente na negação do ordinário.
Sim, como disse acima, essa é a função de rituais de inversão, porém quando se faz isso um mês todo, pode-se imaginar muita vontade reprimida; ao fazê-lo num ritual sem maiores conseqüências, é de se questionar por quê não trazemos isso para o quotidiano, em discursos e ações consequentes - função já ocupada prioritariamente por sindicatos, atualmente um tanto capengas, e hoje ocupada por movimentos identitários, que aparentemente não dão conta de cumprir essa função por completo.
A proposta - ratificada pela justiça - de um bloco apologético à tortura (não se trata, como se diz, de apologia à ditadura, na qual pode ser encontrados pontos positivos, o porão do Dops, é sabido, era sala de torturas, de violência covarde e sádica contra pessoas indefesas), em um país em que a tortura e as execuções estatais extra-judiciais aumentaram desde o fim da ditadura, permite questionar que inversão o carnaval representa, e qual a tolerância do atual status quo - que se desenha cada vez mais nazifascista - para pequenos e saudáveis (para o sistema) atos de questionamento. O carnaval seria de fato ainda um ritual de inversão, ou já se tornou outra festa espetacular no calendário de pseudofestas da sociedade do espetáculo, cuja função é gerar lucros e o pior conformismo? É inversão a garantir certa estabilidade social ou pseudoinversão a reforçar uma insuportável ordem dominante?
Outro ponto que chama a atenção é o fato do carnaval de São Paulo já ter mais bloquinhos que o do Rio de Janeiro - e o próprio fato de o carnaval de rua estar em alta, enquanto os desfiles (se não percebo errado) já foram mais valorizados enquanto símbolo-mor da festa. Acredito que parte dessa valorização da rua não se dá pela chegada de uma classe média, média-alta, branca, universitária, criada em shopping centers e que resolveu "viver a cidade", num ato inconsciente de questionamento dos pais. Não teria nada a criticar nisso, se essa cidade em que os hipsters querem viver não fosse uma versão a céu aberto do shopping - limpa, asséptica, homogênea (vide Pinheiros/Vila Madalena ou a Vila Buarque e o Arouche, em processo de higienização social e pasteurização visual/estética. E isso não é exclusividade tupiniquim, como reportado por Benoît Brevilé, no Le Monde Diplomatique de novembro ["grandes cidades, bons sentimentos"]). Os contextos políticos municipais talvez ajudem a explicar o crescimento paulistano: enquanto no Rio prolifera o evangelismo mais reacionário - coroado com a vitória de Crivella para a prefeitura -, São Paulo teve um respiro modernex com Haddad: o ex-prefeito encarna o hipster com louvor: branco, classe média, universitário, descoladão nos costumes e ainda assim família (não por acaso sua derrota se deve à perda da base habitual do PT, as periferias da cidade: sua imagem não era nem a do modelo de sucesso para a maioria, nem a do tipo mais preocupado com as periferias, uma vez que, como canta Criolo, "cientista social, casas Bahia e tragédia, gosta de favelado mais que [de] Nutella"). Doria Júnior bem tentou reverter o movimento, mas não teve força suficiente - ainda que tenha causado algumas baixas importantes, como a do Bloco Soviético, em 2018 - e alguém com tato mínimo deve ter avisado que era melhor não mandar descer o cacete para se fazer respeitar, não nesse caso, uma vez que a festa pode ser popular, mas boa parte dos seus freqüentadores são da classe média.
O declínio dos desfiles em favor dos blocos permite mais duas hipóteses, que não deixa de ser uma: de decadência da Globo e de anseio democrático. Ao invés de público passivo, bem confinado e bem comportado assistindo à vida passar na sua frente - para julgamento de especialistas -, o desejo de ocupar as ruas, os espaços públicos, e ser protagonista anônimo de um movimento sem muito rumo e roteiro - e sem avaliador externo. O discurso de ódio generalizado, esquerdistas, gays, progressistas, mulheres, negros, artistas, rolezeiros, etc (antes, o ódio era mais direcionado, pobres pretos e periféricos), que Globo e mídias satélites impuseram como padrão nos últimos anos talvez possa ser lido como uma tentativa de retomar essa hegemonia quase monolítica de alguns anos atrás: nada melhor que o ódio para unir - e uma ditadura para calar dissonantes e restabelecer cada um no seu lugar.
Não chego a nenhuma conclusão ao fim desta crônica, a não ser, em concordância com Flor, que algo parece estar muito fora da ordem na nossa sociedade - e o carnaval atual, que dura e dura e dura, soa uma tentativa inconsciente (não sei se vã ou efetiva) de lidar com alguma anomia.
07 de fevereiro de 2018

Sem comentários: