quinta-feira, 15 de março de 2018

Conseguimos ouvir o que fala quem diz "bem feito aos carteiros"?

Vejo algumas postagens no Fakebook sobre a greve dos funcionários dos Correios. O tom geral era de "bem feito, quem mandou apoiarem o golpe?". Alguns tentaram chamar para a realidade: são trabalhadores se dando mal como todos. Outros rebateram, tentaram ilustrar o merecimento da categoria, dizendo que tiveram perdas durante os anos FHC, receberam dos governos petistas substantivas melhoras, mas foram mal agradecidos, e agora merecem pagar o pato. São pessoas que se consideram de esquerda ou progressistas ou críticas - talvez tudo isso. Vejo nesse discurso, contudo, o outro lado da mesma moeda dos que destilam ódio contra petistas e esquerdistas: trocam os alvos, não a forma de "pensar": com o fígado, com base no ódio, na intolerância. Provavelmente se amanhã uma falácia qualquer convencê-los de que o Mal veste vermelho, trocarão de lado nessa "guerra", e ainda terão sua decrepitude elogiada pelos novos pares - vide Lobão.
Se a grande mídia, o sistema escolar, os aparatos ideológicos paraestatais, e as nossas elites do atraso têm sua boa dose de responsabilidade por esse rebaixamento intelectual, a esquerda não pode ser eximida de responsabilidade. Da extrema-esquerda, que sempre tratou a política em termos bélicos - de inimigos e aliados -, à esquerda moderada, que se arrola um poder salvacionista mágico, passando, é claro, pela vanguarda do atraso, a esquerda acadêmica, produtora de discursos críticos importantes na análise e estéreis na prática; e em praticamente todas as vertentes, esse dom da esquerda tupiniquim de criticar o outro, fugir da autocrítica e sempre dividir, nunca unir. 
O "bem feito" para os carteiros é fruto desse caldo: uma educação para o sucesso individual, uma ideologia que pega do cristianismo um deus revanchista e a ideia de culpa (pecado soaria muito religioso), com a necessidade de purgar-se antes de voltar a ser aceito na comunidade das "pessoas de bem", na esquerda chamadas de "pessoas do lado certo da história"; a heteronomia do olhar para a realidade, que não permite perceber nesse outro um próximo - apenas com equívocos diferentes -, e nessa luta uma oportunidade de aproximação. Não há nuances: sempre o lado certo, inteiramente certo, é o meu.
Do argumento de melhora nos anos petitas, não fui atrás dos dados, e tomo como sendo verdade - é factível, dada a trajetória dos governos tucanos e petistas. Tinha um amigo que trabalhava nos Correios nos anos Lula. Lembro claramente do seu desgaste com mobilizações e greves: se houve melhoras, não foi fruto de benevolência petista, e sim de luta dos trabalhadores por seus direitos - aliado à uma maior abertura do PT, é certo. O fato de carteiros terem caído no canto do pato talvez não seja mal agradecimento contra um governo que só os favoreceu por causa de sua luta, e sim o conto do vigário de que com o golpe todos sairiam ganhando sem precisar de tanto desgaste. A deseducação para refletir estava dada, foi questão de ajustar o discurso goebbelsiano.
Assim, temos parte da plateia comemorando as dificuldades dos carteiros, ao mesmo tempo que a outra xinga professores por estarem reivindicando condições dignas de trabalho - como faziam os carteiros década passada. São bodes expiatórios do ressentimento de vidas pobres de vida - são também bodes na sala para distração das massas. Enquanto isso, Kassab, Meirelles e cia (como mostra reportagem da Carta Capital [http://bit.ly/2peYCNn]) são os que lucram com a empresa - até a hora que esse lucro for repassado para a iniciativa privada, para o lucro dos de sempre, e prejuízo também dos de sempre: trabalhadores e usuários dos serviços.
Um dos grandes pontos que nos cabe: como desfazer esse caldo de ódio, como desarticular essa rede de pequenos narcisismos que preferem romper com o próximo por ninharias a cerrar fileiras contra os graúdos, contra os deflagradores dos problemas? Ouso dizer que parte da resposta está em aguçar nossa escuta para o que estão falando, para o que estamos falando e para aquilo que falam a partir do que falamos. Recusar o diferente é entregar uma pessoa talvez com boa vontade, desejo de mudar, para o pato, agora sapo. Quão oprimido, quão odiado se sente alguém que precisa achar alguém para oprimir e odiar também como forma de sentir que existe? (Sim, Paulo Freire sempre vivo, apesar de esquecido pela esquerda). A partir dessa escuta, é preciso investir maciçamente na educação (formal e, principalmente, não-formal) para a democracia - democracia entendida muito além de eleições formais. Como diz Bernard Shaw: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". E mesmo quando não tem razão, tem suas razões.

15 de março de 2018

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