quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Tempo de campanha e a despolitização das eleições

O assunto é tratado apenas marginalmente nas análises das eleições, porém julgo ser de grande importância para compreender os resultados dos últimos três pleitos, com o crescimento da direita, em especial da extrema: o tempo de campanha eleitoral. Não falo da divisão do tempo da propaganda entre os partidos - ainda que isso também influencie -, e sim do tempo da campanha na rua e nas mídias.

Com 17 segundos, Boulos conseguiu ir ao segundo turno em São Paulo e em duas semanas com dez minutos diários, conseguiu dobrar seus votos, angariando 94% dos votos dos candidatos cujo partidos podem ser postos à esquerda do espectro político (aí incluído, mesmo que a fórceps, os eleitores do Márcio França). Pode ser otimismo irrealista meu, mas julgo que esse resultado teria sido muito melhor se não fossem as reformas políticas operadas desde 2015.

A minirreforma eleitoral de 2015, a pretexto de diminuir os custos das campanhas - proibidas de financiamento empresarial -, reduziu de 90 para 45 dias o tempo da campanha política - e de 45 para 35 o tempo de propaganda no rádio e na tevê. Ademais, para a eleição de 2018, o tempo do horário eleitoral (erroneamente chamado de) gratuito nas concessões públicas de radiodifusão diminuiu de dois blocos diários de 30 minutos para dois de 10 minutos, além de inserções breves ao longo da programação. (Se eu fosse tentar encaixar na terminologia do autor que sou especialista, o francês Guy Debord, diria que tais alterações levaram à reedição da Lei Falcão dentro do modelo do “espetacular difuso”, com o detalhe de que já superamos a dicotomia “espetacular difuso” x “espetacular concentrado”, estaríamos em tempos de “espetacular integrado”, e as regras anteriores se encaixariam nesse recorte).

Faço aqui um exercício de pura especulação: não fosse essa limitação de tempo, os resultados das eleições que levaram Doria Jr à prefeitura, em 2016; Bolsonaro ao Planalto, em 2018, e Covas, à prefeitura de São Paulo, este ano, teriam sido diferentes. Talvez acabassem eleitos, contudo as disputas tenderiam a ser mais acirradas - e, por consequência, muito mais sujas.

A diminuição de tempo do horário eleitoral gratuito de uma hora para vinte minutos diários fez crescer a importância das inserções breves durante a programação, feitos de slogan publicitários imediatos, sem tempo para desenvolver uma ideia - seja proposta ou desconstrução do adversário -, mesmo que altamente ideologizada. É a adestração a la Pavlov: puro ato reflexo, nada de reflexão - algo muito afim aos tempos de internet, caixas de comentários, WhatsApp, fake news e afins. Saem as propostas vazias entram os slogans vazios. É também forçar a política a uma pretensa irrelevância: para não atrapalhar a novela, o futebol, o jornal direcionado, diminui-se a voz dada diretamente aos candidatos: que percam todos, mas que tirem a voz daqueles que podem contradizer William Bonner ou a corrente de WhatsApp (importante em tempos de criminalização das esquerdas e dos movimentos sociais).

O grande momento da despolitização extrema, entretanto, é a diminuição do período eleitoral. A redução de três meses para um mês e meio de campanha nas ruas dificulta o debate e a elaboração de propostas (mesmo que gerais), dificulta o trabalho de desfazer mentiras divulgadas pela internet, de fazer militância na rua, e facilita que candidatos sem qualquer conteúdo vençam. Russomano talvez seja um exemplo do quanto a campanha - e em especial os debates -, por mais precária que seja, é capaz de evidenciar políticos e diferenciá-los dos sabonetes travestidos de políticos: tivéssemos uma semana de campanha e nenhum debate, possível que tivesse sido eleito prefeito da capital; como não é esse o caso, o tempo o força a abrir a boca, e cada vez que faz isso perde apoiadores.

Volto à especulação levantada acima (que pode ser chamada de metafísica, já que impossível de ser posta à prova). Em 2016, Haddad disputava a reeleição. Depois de quatro anos com pouquíssima publicidade - não sei se por estratégia um tanto heterodoxa e arriscada ou se por ingenuidade política arrasadora, em acreditar que haveria, durante seu mandato, “engajamento orgânico”, como se diz na linguagem das redes sociais, enquanto sua gestão e seu partido era massacrados pela mídia -, o então prefeito passa a breve campanha a elencar suas realizações - conforme as pesquisas, sua rejeição cai de 52% para 41%, e sua intenção de votos parte dos 9% para os 16% das urnas, numa onda que começava a crescer, tal qual ocorrera em 2012. Tivesse mais tempo de campanha, Haddad poderia mostrar melhor o que havia feito e pouco publicizado, e talvez fosse para o segundo turno contra o tucano, o que poderia evidenciar o despreparo deste - se suficiente para desbancá-la, é outra história, mas Doria Jr acabaria comprometendo em parte sua imagem. Campanha curta, venceu o candidato do slogan vazio e das fake news (no caso, sobre si próprio, a tal do “João trabalhador”).

Em 2018 a eleição presidencial foi marcada pela facada em Bolsonaro (que muitos preferem chamar de “fakeada”). Até o evento, haviam ocorrido dois debates. Neles o desempenho de Bolsonaro foi pífio, ombro a ombro com Álvaro Dias e Henrique Meirelles, sendo “papado” até pelo Cabo Daciolo. A facada vem em momento mais que oportuno: permite que fuja dos demais debates sob a alegação de estar em recuperação, sem ficar com a pecha de covarde; pode então centrar a campanha nas redes sociais e redes de fake news, ambiente que domina. A se imaginar se tivéssemos um mês e meio a mais de campanha: ou Bolsonaro desidrataria a la Russomano nos debates, ou precisaria de uma facada muito cedo a ponto de poder ser posto em dúvida sua ausência nos últimos debates do turno. Se seria suficiente para que não fosse eleito, impossível até especular, mas é de se acreditar que a dinâmica da eleição seria muito diferente, ou com denúncias de fake news despontando antes, ou com investimentos ainda mais altos nesses meios (para desespero do Véio sonegador da Havan), ou com ataques mais diretos ao seu fascismo por parte, por exemplo, de Alckmin, se notasse que ele não estava garantido no segundo turno.

Do exemplo de 2020, basta lembrar que Covas é um candidato fraquíssimo, não possuía  nada da sua administração para mostrar e sem o antipetismo radical em seu ápice para animar as bases, como ocorrera com seu padrinho: mais tempo de exposição sem as verbas do passado para banhos diários de marketing o obrigaria a se expôr de modo comprometedor. Novamente: não sei se isso alteraria o resultado da eleição, certamente alteraria a dinâmica da disputa. E tão importante nessa desidratação do candidato da direita: as campanhas de Boulos e Tatto retomaram muito da política e da politização há tempos deixado de lado pelas esquerdas com chances de vitória, que preferiam aderir ao discurso centrista do que a ciência política chama de “catch all party” (partido cata-tudo, em tradução livre).

Em resumo, o que quero levantar é que se as esquerdas querem não apenas voltar a ter chances nas disputas eleitorais como, principalmente, ter chances de politizar o debate, vai ser preciso fazer uma contraminirreforma eleitoral, que reestabeleça um tempo razoável para a discussão de programas, propostas, problemas e ideias. Claro, só disputa eleitoral não garante a politização, contudo esses movimentos de redução das campanhas - assim como propostas de eleição geral integrada, cada quatro anos - beneficiam principalmente as candidaturas de direita (muito mais do que as candidaturas dos ocupantes dos cargos, como interpretam alguns analistas). E mais importante que isso: campanha eleitoral serve para aprofundar e exacerbar a discussão sobre política, sobre os rumos da cidade, do estado, do país*, o trabalho político efetivo deve ser feito o tempo todo, todos os anos - aqui, o pós-eleição de Boulos, chamando para discutir os próximos passos e como colaborar na construção de um movimento de massas, mostra que o líder do MTST compreendeu esse ponto e, mais importante, não se furtou da responsabilidade, como fez Haddad e o PT, em 2018. São boas sementes que começam a ser plantadas, ainda que tardiamente; nos cabe agora persistência para semeá-las e paciência para esperar o momento em que esse trabalho render seus frutos.


09 de dezembro de 2020.


* É curioso notar o temor das elites frente às eleições, mesmo numa democracia de baixíssima intensidade como a Brasileira - isso enquanto não derem um golpe ditatorial explícito.


domingo, 29 de novembro de 2020

Análise geral das eleições de 2020: derrota das esquerdas, mas com sinais de alento

Terminado de contar os votos, é a vez das análises sobre os resultados, tentativa de definir quem ganhou, quem perdeu, quais as tendências, que lições tirar.

Para começar esta análise, parto de um fato objetivo: vivemos em democracia liberal burguesa, marcada por eleições periódicas livres (teoricamente, bem teoricamente), onde sai vencedor quem tem o maior número de votos e leva o executivo (e consegue garantir o legislativo, mas isso dá para resolver depois das eleições). 

Assim, em 2020, ganharam os partidos ultra-fisiológicos, do (mal) chamado "centrão", partidos que são sempre aliados do governo de turno: mais uma vez mostraram que sabem se apropriar das verbas federais para fazer valer seus interesses em suas praças, desta vez com a novidade de fazerem-no sem se atrelar ao governo; e que sabem utilizar a máquina estadual para tratorar dissidências, como é o caso do Paraná, governado pelo filho do apresentador Ratinho.

A extrema-direita só pode ser considerada como uma das perdedoras do pleito municipal se entrarmos na velha ladainha dos analistas da grande mídia (em especial durante os anos petistas), de querer comparar as eleições municipais às eleições legislativas de meio de mandato nos EUA. Nada mais equivocado: ainda que tenham influência da política federal e estadual - e seja de grande influência nas eleições legislativas de dali dois anos -, o pleito municipal tem sua dinâmica própria. Não cabe comparar 2020 com 2018, e sim com 2016. PSL, PSC, PRTB, Republicanos e Novo elegeram 467 prefeitos em 2020, sendo Vitória a única capital, contra 234 em 2016. Se formos comparar ao PT do início do século, o Partido de Lula tinha elegido 200 prefeitos em 2000 (é certo que dentre eles estava São Paulo e outras 5 capitais) e foi para 411 em 2004 (sendo 9 capitais). O tal fogo de palha que muitos vêem no resultado fraco da extrema direita parece ser uma tendência porém não pode ser comprovado com os resultados de 2020: a extrema direita não tem força e penetração como o PT com o qual comparei, o discurso de ódio e as fake news tem encontrado seus limites, mas isso não quer dizer que não possam reencontrar o caminho.

O PSDB, transformado em Partido à Serviço de Dória e seu Balcão de negócios, em aliança com o DEM, garante força no tabuleiro para 2022. Preparando o discurso para daqui 2 anos, o atual governador engole seu discurso fascistóide e agora fala contra o ódio. A estratégia do detentores do capital já se mostra clara e será a mesma de 2018: apresentar seu candidato como o centro moderado, contra extremismos - e agora contra aventureiros também, como foi o discurso de campanha de Covas contra Boulos. (Tenho realmente dúvidas se o prefeito disputará o governo do estado daqui dois anos: não por qualquer coerência à sua promessa de campanha, mas porque se mostrou fraco demais para uma disputa majoritária - que o diga o apelo à máquina do município, conforme denúncia registrada em vídeo -, e além da rejeição que pode adquirir ao deixar a prefeitura, pode acrescentar pouco com seu estilo). É um discurso que deu certo por um tempo, mas tenho dúvidas se vai vingar novamente: ainda que a tendência seja essa volta ao centro, a crise econômica-social que se avizinha pode embaralhar novamente o cenário, como foi a crise econômica-política em 2018.

As esquerdas, por seu turno, são as grandes perdedoras. Não adianta retomar o discurso de Freixo em 2016 e falar em vitória moral: o que conta acima de tudo numa eleição, aos partidos que entram em disputas visando a vitória e não candidaturas de denúncia, é vencer nas urnas. Há outros elementos a serem considerados, mas em termos factuais, o ponto é o quanto ganhou.

O PCdoB bem que tentou em Porto Alegre, mas no fim, se tornou um partido maranhense e baiano (respectivamente 22 e 16 prefeitos, de um total de 46). O PDT se manteve com seus trezentos e poucos, com destaque aos 68 do Ceará, mostrando que o partido não tem projeção nacional para os anseios de Ciro. O PSB também perdeu prefeitos: é um partido sem base e sem grande projeção, tentou em São Paulo manter o discurso ambíguo que vinha da época de Eduardo Campos e não teve sucesso; mancha sua reputação quando João Campos abandona qualquer pudor e adere às piores práticas consagradas pelo gabinete do ódio, na disputa por Recife.

O PT segue caindo, fruto de anos de perseguição midiática-judiciária, que fez com que muitos de seus quadros mudassem para siglas do mesmo campo, como forma de contornar o macarthismo que perseguiu o partido. Ainda é um partido com considerável base militante, espalhada pelo país e que ao menos em São Paulo mostrou vontade de voltar a atuar - a escolha de Tatto, volto a dizer, foi acertadíssima. As três grandes questões para o PT são: se livrar da Luladependência, algo por ora fora do horizonte, conseguir atualizar seus quadros e suas formas de mobilização, aceitar que mesmo sendo o principal e mais bem estruturado partido de esquerda, pode ser mais sensato ceder o protagonismo nas próximas eleições (algo como fez Cristina Kirchner na Argentina). O PSOL é um dos exemplos em quem o PT deve se inspirar: abrindo o partido para movimentos sociais, sabendo usar as redes sociais, e garantindo militância nas ruas e não de gabinete, o partido de Boulos e Erundina retoma a velha forma do PT de fazer política, baseado em trabalho de base, com outros objetivos que não o mero resultado eleitoral (comentarei de Boulos em outro texto). É um alento, porém tem limitações graves, e é nesse ponto talvez por onde o PT possa utilizar da sua experiência e sua capilaridade para avançar: conforme apontou Alceu Castilho, editor do site De Olho nos Ruralistas, em comentário nas redes sociais, essa renovação política nas câmaras municipais é um fenômeno urbano dos grandes centros: no Brasil profundo, a tendência é manutenção daquela política que nada deixa a desejar à república velha: conservadora, violenta, sem espaço para qualquer respiro (não que as mesmas práticas não sejam encontradas nos grandes centros, vide os eleitos para as câmaras de São Paulo e Rio de Janeiro).

Diante desse quadro, pode-se dizer que a tendência não é das piores para a esquerda e para o campo progressista como um todo. A questão essencial é não se limitar à política parlamentar, disputar o discurso com o que a mídia chama de 'centro' (uma extrema direita que bebe água Perrier e segue a cartilha Globo News de análise), o que implica se reapropriar das ruas, se apropriar das redes sociais e da internet, recomeçar e reconstruir o trabalho de base - em suma, religitimar a política e os partidos. É trabalhoso, mas é como se faz política para além dos conchavos de gabinete - Boulos é prova disso.


29 de novembro de 2020

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Banalizar o anormal

No metrô, o desempregado convertido em empreendedor - colega de classe de Amoêdo, Huck, véio sonegador da Havan e tantos outros - anuncia máscaras de “neopraime” - uma por três, duas por cinco, seca em meia hora, aceita crédito e débito - enquanto se certifica de que não há segurança na plataforma da estação. No vagão, todos com máscara, alguns usam modelos lisos, outros tentam fazer arte com a tragédia, outros mostram qualquer insígnia que julgam relevante: a empresa que paga seu salário, o time de futebol, a fé que finge acreditar - mas que precisa gritar com tamanha ostentação porque sabe que é só um engodo e no fundo se está sozinho. Então é natal, e o que você fez? Quantos conhecidos você não vai mais poder encontrar, de quantas pessoas próximas você não pode se despedir? Então é natal e o ano termina... vai começar outra vez? 

A vida volta ao normal. A curva da morte, que vinha anormal, se anormaliza um pouco mais - normal. A morte é banal, as gripes são banais, as pestes são banais. Banal se tornou o desdém pela vida: isso não é resposta inconsciente ao medo da morte, é a dessacralização do fim que a todos espera - quem teme a morte e pensa na vida (para além da sobrevivência econômica) não é produtivo, não gera lucro: a pandemia provou isso, a gripezinha provou isso. Se a morte é banal, a vida não deveria sê-lo. Mas nestes tempos anormais, somos forçados a normalizar - mais do que antes - tanta coisa que não deveríamos. Pois é anormal (é inédito) a contabilidade em tempo real do número de infectados e de números de mortos em todo o mundo. É anormal ver gráficos de cadáveres, curvas que sobem, barras que formam uma escada para o sem sentido, para o absurdo - tudo isso em horário nobre, junto com os resultados do futebol. Sim, admito, é um avanço termos noção do risco invisível mas palpável que nos cerca como num ataque medieval de bárbaros infiéis (por mais que comam com talheres, leiam Aristóteles e tenham fé) contra uma cidadela de pretensos civilizados - mas é também a banalização do ser humano, transformado em estatística, curvas, barras, números. 

Na rua passo por pessoas sem máscara. Há as que se negam a usá-la por recusarem a ciência assim como recusam a realidade: não raro são pessoas de fé e certezas cegas - por isso a ciência não os agrada, ela é feita de verdades transitórias, devires ébrios e tentativas arriscadas. E há as que não a utilizam porque confiam na ciência e acreditam em deus: não, elas não são mais fortes que ninguém: tomar banho no esgoto, dormir com os ratos e comer restos de lixo não as tornaram imunes aos vírus; não, deus não as protege com especial atenção: deus as utiliza para brincar de todo poderoso e exercitar seu lado sádico; a recusa dessas pessoas em usar máscara é atender a esse desejo de um deus que faz pouco caso das pessoas marginalizadas pelos pretensos eleitos - e pelos eleitores.

Uma pessoa sem máscara, encostada num muro da marginal Tietê (esse fluxo que um dia foi um rio, tinha peixes e vida), uma garrafa de corote ao lado, me pede ajuda porque tem fome. Há todo um absurdo nessa cena, banalizada, normalizada (normatizada?), que nos rouba pouco a pouco a nossa humanidade e nos faz ver pessoas como números numa curva macabra - não, não falo dos mortos por Covid, falo do balanço das empresas e do quanto uma pessoa pode produzir e render em um trabalho que lhe suga a vida em troca da sobrevivência. Hoje, no Brasil, foram mais de 680 mortos e tantos milhões de não-vivos, amanhã, no primeiro grupo, pode ser alguém com nome, pode ser você, pode ser eu. 


27 de novembro de 2020

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Análise do primeiro turno da eleição para a prefeitura de São Paulo

Há cerca de 15 anos, na sua coluna no jornal Valor Econômico, Maria Inês Nassif (com cuja leitura dos textos aprendi a manejar o instrumental aprendido no curso de ciências sociais para fazer análise política de fato e não fanfic ou paper acadêmico estéril, só não aprendi a ser sucinto e preciso no que escrevo, sigo prolixo) comentava que a vitória de Lula com suas concessões ao capital deixara a oposição sem plataforma e sem discurso, com a grande mídia assumindo a partir de então o papel de partido de oposição. Se nas democracias europeias são os partidos que dão as diretrizes para a imprensa com eles afinada, nestes Tristes Trópicos quem passou a ditar a pauta, desde o mensalão, foi a mídia corporativa, com PSDB e DEM (então PFL) indo a reboque: mensalão, petrolão, antipetismo, Lava Jato, discurso de ódio de extrema-direita, todos surgiram na mídia para depois serem encorpados por políticos e partidos. Bolsonaro foi apenas um acidente de percurso, um oportunista que soube melhor se utilizar da plataforma política da mídia para chegar ao poder.

Essa introdução é necessária para fazer uma análise do estado da obra da eleição à prefeitura de São Paulo, mesmo que breve. Ainda que as pesquisas apontassem, não deixa de ser surpreendente a ida de Guilherme Boulos ao segundo turno, não apenas por ser do PSOL, mas principalmente pela ligação (presente e muito atuante) com movimento social de contestação. Seu segundo lugar já mostra uma primeira falha da estratégia midiática-tucana: ao cancelar os debates sob o estapafúrdio argumento de coronavírus, o esperado era tentar garantir ou vitória em primeiro turno de Covas ou um segundo turno contra Russomano - os dois são péssimos oradores e ocos de propostas -, em que a esquerda não veria nenhuma “escolha muito difícil”, e sim “um voto muito muito indigesto”, e garantiria mais quatro anos de tucanato na capital. Jogando na retranca, sem o ápice do lavajatismo e perseguição macarthista às esquerdas e à política como um todo, e sem a máquina de Doria Jr, foi impossível repetir o padrinho (vale lembrar que a votação de 2016 do hoje governador foi aquém da de Haddad em 2012, apesar da base maior de eleitores, e correspondeu a pouco mais de 1/3 do eleitorado). Para este segundo turno, começou a campanha do “racional contra o radical”, mas Boulos, ao invés de se justificar, dizer “não é bem assim”, tem reiterado sua posição e colocado o caráter ideológico dessa posição da mídia e do atual prefeito. Antes de chegar ao embate do segundo turno, uma breve análise de quem ficou pelo caminho.

Joice Hasselman entrou como uma das concorrentes da extrema-direita puro sangue, e teve o dissabor de saber que num país machista como o Brasil, seu fascismo é igualmente machista - isso de mulher liderar extrema-direita é pra lugar onde direitos humanos e igualdade de gênero são (até o momento, ao menos) tratados seriamente, como Alemanha; para uma república bananeira, o neofascismo mantém muitas das cores do fascismo tradicional, acrescido de bizarros tons antinacionalistas (mas patrióticos). Talvez tenha sido a perdedora da eleição.

O outro concorrente da extrema-direita puro sangue mostrou que as classes abastadas paulistanas estão sedentas de um Auschwitz para chamar de seu. Os quase 10% do Mamãe Falei não me surpreenderam: há vinte anos o filhote dileto da ditadura, Paulo Maluf, disputava o segundo turno da eleição para a prefeitura; o candidato do Patriotas acolhe um considerável contingente desses viúvos, viúvas, órfãos e órfãs dos “bons” tempos dos generais, além de parte dos pupilos do Messias que nos conduz ao deserto desde o planalto central. É no sul rico que ele conseguiu suas melhores votações: Santo Amaro, Pinheiros, Butantã (o bairro onde está a USP, o que acho bastante emblemático), Indianópolis e o indefectível Jardim Paulista. Por ora, não é um nome que parece poder ir além desse nicho, portanto, restrito a disputas proporcionais; sua presença apenas escancara aquilo que o Vox na Espanha também trouxe à luz: os filhotes da ditadura apenas fingiram civilidade e se disfarçaram em partidos com verniz democrático, esperando o momento de mostrar todo seu ódio, suas pulsões reprimidas e sua sede de sangue.

Os 630 mil votos dessa extrema-direita ideológica podem ser em parte desaguados em Covas, se ele souber nutrir o sentimento anticomunista - um passo arriscado ao tucano -, ou se abusar de fake news (algo que, por ora, não parece ser da índole dos partidos tradicionais); do contrário, boa parte deles deve anular, para não votar em um “esquerdista” - Boulos pode dá-los por perdido.

O outro concorrente da direita/extrema-direita é Celso Russomano, o cavalo paraguaio de São Paulo (com todo respeito aos cavalos e aos paraguaios). Não o ponho como extrema-direita pura porque seu eleitorado é menos ideológico, mais movimentado pelo populismo midiático de direita, pelo apoio do presidente (com certa popularidade, graças ao auxílio emergencial posto pela oposição para o governo pagar durante a pandemia) e pelo voto de cabresto do neocoronelismo das igrejas neopentecostais (não sejamos preconceituosos e simplistas, em achar que quem vai a uma dessas igrejas seja seguidor fanático do pastor, mas não ignoremos que esses pastores possuem muito poder e capacidade de influenciar seus rebanhos). Teve melhor votação nos extremos norte e leste da cidade, ou seja, as regiões mais pobres que não na esfera da Tattolândia; e seus piores índices nos bairros abastados - não é um candidato das elites, ainda que não possa ser adotado por elas, se for para “uma escolha muito difícil”. Não acrescentou nada, fez o que era esperado (abriu a boca e caiu, não abriu e caiu também), e pode ter queimado parte de seu capital político, graças à desconstrução de sua imagem feita pelas campanhas adversárias. Seus 560 mil votos estão em disputa aberta pelos dois candidatos, ambos com argumentos igualmente “sedutores”: Boulos falando em mudança - afinal, foi um voto pela mudança da direção da cidade -, Covas falando em conservar - pois se trata de um voto conservador. A parte de cabresto desse voto vai depender muito das negociações de bastidores, quanto o PSDB está disposto a ceder já e no futuro para os líderes religiosos, que por ora estão fechados com Bolsonaro - a vitória de Covas seria trampolim para Doria Jr disputar o Planalto, e tendo a acreditar que o atual presidente vai preferir um esquerdista a alguém que vai disputar seu nicho do eleitorado; inclusive, daria munição ao seu discurso: o PSDB foi incapaz de derrotar o comunismo mais radical, algo que só ele conseguiu (vejo, na revisão do texto, que o Republicanos declarou apoio a Covas. Não deixa de ser uma surpresa, não deve ter saído um apoio barato, e resta ver qual vai ser o engajamento na campanha tucana, em especial dos pastores).

Márcio França fez 60% dos votos que havia feito no município na disputa pelo Estado, em 2018. É um candidato sem base bem definida, de um partido sem base. Admito dificuldade em entender o voto nele. Imaginava que atrairia eleitores classe média branca que se pretendem mais racionais, menos ideológicos e que buscam uma imaginária terceira via entre tucanos e petistas, sem cair nos “extremos” e nos extremos que se apresentam como alternativa, porém teve seus melhores números nas periferias - não que as periferias não possam ser racionais, só não são classe média. Por oscilar entre um discurso progressista e um discurso conservador, criticando tucanos e petistas (e psolistas), seus 730 mil votos também estão em disputa aberta.

Tatto foi-me uma surpresa positiva. Preciso admitir que, contrariamente ao que disse no início da disputa, a escolha não foi equivocada. Teve poucos votos, porém mais do que eu imaginava. E se ficou atrás de Russomano e Mamãe Falei, vale lembrar que houve voto útil em Boulos no primeiro turno - não fosse assim, provavelmente estaria no mesmo patamar que eles. Tatto perdeu os para Boulos votos da classe média descolada (e um tanto desconectada da realidade das periferias), que teria abraçado empolgada Haddad (Fernando ou Ana Estela) ou aderido sem tanto entusiasmo a Bonduki ou Padilha, mas reforçou a presença no partido na periferia e junto à militância. Por conta disso, foi um acerto: evitou que o PT invertesse de papel com o PSOL e se tornasse um partido academicista classe média e pouco conectado com a realidade, enquanto sua dissidência abandona seu ethos inicial e se torna uma versão atualizada do que o PT foi antigamente: um partido ônibus (conforme Luis Nassif), que incorpora movimentos sociais, inclusive nas suas novas formas de atuação. De volta ao PT. A questão é que o partido está envelhecido, burocratizado, engessado, desatualizado. Tatto é uma mostra disso. Difere por mostrar que ao menos tem noção de contexto e conjuntura - daí não atacar Boulos e não hesitar em apoiá-lo tão logo foram divulgados os resultados, e mesmo sua atuação junto à militância. A questão ao PT é descobrir como atualizar essa militância, como fazer trabalho de base no século XXI, como conseguir aliar experiência administrativa - discurso que tem sido repetido pelo PSDB há tempos e que o PT não conseguiu tomar, ainda que tenha mais direito a utilizá-lo que o partido de Doria Jr - com inovação na ação. O partido perdeu tamanho diante do que teve no auge, estas eleições apontam para uma perda de hegemonia na esquerda (que pode ser temporária ou permanente), porém ainda é um partido dos mais relevantes no quadro político nacional - se não for o mais -, e não tem porque duvidar da sua capacidade de voltar a crescer. Dificilmente os 460 mil eleitores de Tatto não votarão em Boulos.

Enfim, chego à análise dos dois candidatos que seguem na disputa. De Covas, pouco a dizer. Tenta seguir na inércia, na blindagem da mídia, no antipetismo e na visibilidade que a máquina pública lhe deu e lhe dá. É o favorito, mas sabe que o páreo não é fácil, tanto que sua aparição junto à Marta ex-Suplicy atesta o receio da sua equipe: a presença da ex-prefeita é uma tentativa de dar alguma entrada a ele nas periferias simpáticas ao petismo, à Erundina ou às esquerdas, que não pela inércia do cargo. A ver qual o tamanho da presença dela, pois pode afugentar votos dados como certos vindos dos eleitores dos candidatos da direita/extrema-direita. Outro problema nessa estratégia é que Boulos não é do PT, e, principalmente, é alguém extremamente preparado para debater ideias e notar pegadinhas postas nos debates - fruto tanto de sua experiência prática no MTST quanto de sua formação acadêmica (melhor nem fazer uma comparação entre ambos). Se quiser jogar mais baixo, o atual prefeito pode apelar para o “já está ganho”, como forma de desinteressar a população do pleito e garantir a inércia. O risco é desengajar seus eleitores ou potenciais eleitores, e diante da eleição ganha irem para a praia ou preferirem não se arriscar indo votar (enquanto reviso este texto sai a primeira pesquisa. A diferença ainda é grande, um cientista político que nunca tive em boa estima e que tem se provado muito aquém do que eu imaginava, já anunciou que a eleição está encerrada). O grande receio de Covas é que ele sabe que seu eleitores não são eleitores fieis, boa parte é vulnerável a mudar de voto.

Boulos também sabe disso, e seus apoiadores também. A militância vista é algo há muito tempo ausente da política nacional: graças à presença de coletivos e movimentos sociais na disputa para a vereança, houve um engajamento maior. Não apenas isso: a presença de Erundina e a oratória do Boulos inflam outra parte do eleitorado progressista. A panfletagem na rua foi feita de forma espontânea e tinha uma diferença abissal para o vira voto de 2018: foi feita não com medo, mas com esperança: isso gera uma outra forma de engajamento. A forma como lidou com a primeira pesquisa também mostra que a tática principal vai ser militância na rua, no boca a boca: fez questão de ressaltar a queda de 18% (quase 50%) na diferença para Covas. Fora da questão da militância, a equipe foi primorosa na campanha pela internet: se até pouco tempo atrás esse era um campo em que a direita dominava inconteste, seu acomodamento nas redes de WhatsApp e fake news impediu que se renovasse - o que a equipe de Boulos fez direitinho. Há ainda o tempo na tevê, que se for bem explorado como na internet, vai fazer diferença, e tem os oito debates previstos, que se forem mantidos e Covas não fugir, vão ser mais que palanque, vão ser geradores de memes para o psolista. Seu grande ponto fraco não é Covas, o partido da mídia, o partido das igrejas, a Marta ex-Suplicy, o grande empecilho para sua campanha é o tempo para o segundo turno, apenas duas semanas (tempo, a mesma questão que, na minha opinião, tirou Haddad do segundo turno em 2016). Vai ser uma campanha estressante, de alta intensidade, de ritmo alucinado, enquanto do outro lado Covas posa de racional, parcimonioso, bem relacionado (com os poderosos) e experiente. E há sempre, caso a maré vermelha avance sobre a cidade, o expediente das fake news - a questão é se os detentores do estado da arte no Brasil estão dispostos a ajudá-lo, correndo o risco de um concorrente forte em 2022.


17 de novembro de 2020

 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Existe estupro culposo, sim!

 Nas redes sociais, a pretensa ágora destes tempos pós-modernos (tão pré-apocalípticos), ganha destaque neste dia 3 de novembro, a expressão "não existe estupro culposo", por conta das imagens divulgadas hoje, pelo InterceptBr [https://bit.ly/3jSbsKZ], do julgamento em que o juiz Rudson Marcos acata a tese do promotor Thiago Carriço de Oliveira e absolve o empresário André de Camargo Aranha da acusação estupro da modelo Mariana Ferrer: ainda que haja a fala da vítima, vídeos, esperma e sêmem, o juiz entendeu que não houve intenção de estuprar - que fez com que o InterceptBr criasse o termo "estupro culposo" para mais esse caso de estupro sem a intenção de estuprar.

Mesmo não sendo advogado com programa na tevê para dizer qual a sacrossanta verdade do direito*, ouso discordar das milhões de pessoas indignadas que estão a repetir "não existe estupro culposo" e afirmo que existe estupro culposo, sim! Talvez não exista no ordenamento jurídico brasileiro, mas isso é uma questão de detalhe: Rudson Marcos tão somente realizou o direito defendido pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso, e julgou de acordo com "a voz das ruas", que eles ouvem de suas janelas (que, creio, não dão para Rocinha, Sol Nascente, Heliópolis, Complexo Curado, nem mesmo para Guadalupe ou Guaianazes) [https://bit.ly/3jUe2jC]. Aranha é branco, rico, influente, alguém assim não comete estupro: se o sexo não foi consentido, pode ter sido por desatenção, por nunca ter tido antes (nem depois) essa experiência de alguma mulher não querer transar com ele. Compreensível. Mariana quem estava errada, por não ceder aos encantos do empresário, isso depois de colocar fotos suas - que não em traje de freira - nas redes sociais. Mais errada ainda por não aceitar satisfazer aos desejos de um macho poderoso: pecadora.

Dizer "não existe estupro culposo" é como dizer "não existe pena de morte no Brasil", enquanto só a PM de São Paulo já matou 442 pessoas em 2020, um ano de baixa criminalidade, por conta da pandemia de coronavírus; é como dizer "todos são iguais perante a lei" num país em que os jornais apresentam como "traficante" um jovem negro preso com três trouxinhas de maconha e como "estudante" jovem branco preso "comercializando" drogas, em que roubar um pacote de bolacha ou ter um baseado no bolso dá prisão e ser pego com um helicóptero com cocaína não acontece nada; é dizer "não existe preconceito no Brasil" e aceitar como consequência meritocrática as diferenças nas oportunidades de emprego ou as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, entre brancos e negros. 

Precisamos encarar o mundo como ele, não como gostaríamos que fosse, não para nos conformar com isso, mas parar podermos transformá-lo de fato. Ainda que com outro nome, essa modalidade de estupro é uma constante na sociedade brasileira, machista, violenta, misógina: sacanagem, escorregão, mancada, até mesmo esperteza, fodão, comedor.

O estupro culposo é aquele em que a mulher pediu pra ser estuprada por estar usando roupas curtas demais, ou ousadas demais, ou qualquer outra desculpa usada para justificar a perda de controle do macho sobre seu próprio corpo, impelido a atacá-la contra sua vontade; é aquele em que a mulher "merece" ser estuprada - sei lá por qual motivo poderia haver tal merecimento, se por castigo social ou só por ser bonita, mesmo -; é aquele da mulher que pode ser forçada a transar porque é puta, ou forçada porque é mulher trans; é aquele que ocorre porque a mulher está bêbada, ou drogada, ou porque não se dá valor; aquele da empregada doméstica que cala (se cala, consente, dizem) para não perder o emprego, enquanto satisfaz as taras do patrão e seu filho - não nos esqueçamos que há também os homens que sofrem estupro, e deixemos para outro momento falar das crianças que são abusadas, ainda que para certos religiosos esses seriam outros casos de "estupro culposo". 

Sabemos de várias variações, eu tenho dois casos que desde muito me indignam. O primeiro é de uma conversa que ouvi há uns dez, quinze anos, no Bandejão da Unicamp: um grupo de amigos achava que um deles tinha feito "sacanagem" ao embebedar uma colega para "convencê-la" a fazer sexo anal, e ainda completavam: "com puta tudo bem fazer isso". Eu não sei por onde começo a me indignar, se por acharem estupro mera sacanagem ou por julgarem que profissional do sexo nem é gente. Enfim. O outro caso é de um casal de conhecidos - ela feminista radical que não aceita críticas, ele, "feministo" também radical - e seu grupo de engajados na luta, que acharam que dava para desculpar um amigo em comum - branco, morador de bairro nobre, formado na USP e na PUC, então cursando mestrado -, que não resistindo aos encantos de outra pessoa do grupo, numa viagem ao exterior, a embebedara até que ela dormisse - acordou com suas calças sendo arriadas. O casal feminista achou que era demais chamá-lo de estuprador, afinal, ele estava bêbado e não quis fazer o que tentou fazer; e só tentou, não fez realmente, e sendo da luta, tendo um futuro promissor, não tinha porque comprometê-lo. No fim, todo mundo continuou amigo, só a vítima e sua companheira ficaram de frescura e se afastaram (eu já havia me afastado deles há tempos).

Vivemos numa sociedade que normaliza as diversas formas de violência - dentre elas contra a mulher -, que julga o caso conforme o grau de importância ou de amizade, que relativiza o estupro, que aceita como liberdade de opinião - ou como brincadeira de mau gosto - o que é crime de incitação à violência; a figura do "estupro culposo" poderia ter sido criado Carriço de Oliveira e Rudson Marcos: daria um verniz jurídico ainda carente a essa violência que de tão quotidiana boa parte dos brasileiros considera banal. De qualquer modo, mesmo sem nomeá-lo, o fato de o juiz permitir que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho conduza sua fala abjeta, execrável sem ser impoturnado, apenas com admoestações tardias e débeis, praticamente pro forma, deixa à mostra que a função do judiciário brasileiro é ser um legitimador de toda forma de violência que seja aplicada de cima para baixo - toda forma de violência do opressor contra o oprimido, para usar o jargão de Paulo Freire. O que se vê no vídeo da audiência é uma cena grotesca e indigna de um julgamento de um crime hediondo, onde Mariana Ferrer é "estuprada psicologica e dolosamente" pelo advogado, com anuência do juiz e do membro do Ministério Público. Caberia muito bem em um remake de "Häxan - A Feitiçaria Através dos Tempos", filme de 1922, de Benjamin Christensen, a mostrar como se dava a caça às bruxas na idade média europeia.

Um homem (branco, cristão, rico, de bem e de bens) atacando, acusando e humilhando uma mulher violentada no passado, acuada no presente, sob o olhar complacente de outros dois homens (brancos, de bem e de bens), com o objetivo de defender um homem (branco, rico, influente, de bem e de bens), sai vitorioso num julgamento graças ao "sentir" do juiz. É por isso que digo que estupro culposo existe, e nossa luta é para que ele seja exposto como mais uma modalidade estupro - talvez a mais comum -, e que o estupro seja combatido sem nenhum nuançar - se a vítima estava nua ou de burca, se era virgem ou era puta, se era feia ou era bonita, se estava bêbada ou estava sóbria, se queria e na hora h desistiu, se era desconhecida ou era da família. Evidenciar essas violências escondidas, escandidas, silentes, presentes, marcantes no dia a dia de tantas pessoas; permitir que entre um pouco de luz nesses cantos a meia luz da nossa "cordialidade" brasileira, na verdade complacência - muitas vezes por covardia - com a dominação de alguns, dos de sempre.

04 de novembro de 2020

* Por não ser operador do direito, não perguntei "E o PeTê?", nem coloquei o Lula no meio, mas fiquei na dúvida de qual a imparcialidade de alguém cujo companheiro se apresentou numa das edições do evento em que houve o estupro, teria conseguido manter a tecnicidade na sua hermenêutica do direito?


terça-feira, 29 de setembro de 2020

Da urgência de religiosos progressistas na política (ou, porque apoio Sheik Rodrigo Jalloul à Câmara de São Paulo)

Alguns amigos estranharam meu apoio a um candidato religioso à câmara municipal de São Paulo - o sheik Rodrigo Jalloul, do PSOL. Até agora ninguém veio me perguntar se eu me converti, como aconteceu quando comecei a colaborar com a Pastoral dos Migrantes, há cinco anos. Porém, antes que alguém distraído faça a pergunta, me antecipo: não, sigo ateu, e pra mim deus segue uma contradição lógica absurda, o que não me permite acreditar na sua existência. 

Também sigo achando que líderes religiosos não devem participar de política, tanto como candidatos quanto como cabos eleitorais. 

Falei em contradição logo antes, e a atenta leitora, o detalhista leitor pode logo disparar: e não há contradição em apoiar um líder religioso quando acho que religiosos deveriam se abster da política? Há - e nem precisa ser muito atento ou detalhista para notar. Contudo, como o que existe é o mundo real e não o que desejamos dele, e no real o que vemos são líderes religiosos reacionários tomando a política de assalto, seguir agindo como se vivêssemos uma situação ideal apenas nos deixa mais longe do ideal que almejamos.

A talebanização-cristã do Brasil torna urgente a presença de religiosos progressistas na política. Sua necessidade não é apenas a de fazer frente aos fundamentalistas cristãos: tem também uma função pedagógica, de dar voz a leituras alternativas das religiões (seja do cristianismo, seja das não-cristãs), que não encontram vez na mídia hegemônica, dominada pelo deus dinheiro - seja em sua versão com verniz cristão, seja na sua versão religiosa puro-sangue. Posso estar com a impressão errada, mas o que percebo é que a participação de Boulos na eleição presidencial de 2018 fez com que o MTST e congêneres, fora dos círculos mais extremistas, deixassem de ser automaticamente associados a "baderna" e "bandidos", ganhando direito de existir em suas reivindicações; o mesmo, penso, pode acontecer com os religiosos "comunistas", se tiverem a oportunidade de falar sem cortes: mostrar que o discurso social é pertinente, coerente e atraente, e que um deus amoroso e compreensivo pode existir sem abdicar de sua onipotência.

A esquerda, ao menos boa parte dela (em especial a esquerda acadêmica, limpinha e cheirosa, que deve ter conversado com alguém da periferia pela primeira (e última) vez em 2018, no vira voto), precisa relembrar sua história e a história das resistências populares na construção do Brasil, e repensar a questão religiosa (me senti no século XIX agora, falando em questão religiosa, sendo que outra questão que merece ser abordada seriamente é a questão militar), compreendendo que muitos movimentos populares costumam ter a religião como um amparo - da resistência dos escravos aos movimentos messiânicos do início do século XX, até chegar às CEBs e ao PT -, e aceitando que a religiosidade popular não é inferior à sua (me chama a atenção a proliferação de "religiosidades" individualistas na última década e meia, criadoras de uma pseudo-comunidade que faz sentido somente a uma classe média diplomada, individualista, preconceituosa e carente: astrologia, sagrado feminino, constelação familiar, reiki e uma miríade de crenças que não são capazes de criar uma rede de solidariedade como as religiões estabelecidas o fazem), e mesmo que a crença em deus é uma demanda legítima e que merece ser não apenas respeitada como satisfeita - isso eu demorei pra entender, inebriado pelo cosmopolitismo iluminista-liberal; e noto que a própria igreja católica, em seu braço social, preocupado em respeitar a opção de quem ajuda, e sem exigir contrapartidas, tem muita dificuldade em dar acolhida religiosa; os neopentecostais reacionários, por seu turno, bem atinados ao mercado, perceberam que onde há demanda convém prover oferta. 

Ou a esquerda volta a unir religião com política, ou mercadores e milicianos da fé seguirão avançando celeremente tanto na política institucional quanto na micropolítica dos corpos e hábitos, indiferentes aos princípios que gritamos que devem ser respeitados por serem avanços civilizatórios, além de cláusulas pétreas da constituição - não teve juiz federal que disse que o livro que ele seguia antes de qualquer outro era a bíblia e não a constituição?


Há uma série de religiosos comprometidos com a palavra de amor que as religiões trazem, o que os impele a agir com veemência diante da obscena injustiça social que vivenciamos. Notei o sheik Rodrigo Jalloul há um tempo, nas postagens do padre Julio Lancelotti, a quem tenho enorme admiração (pra mim, é o Eduardo Suplicy da igreja católica); além do apoio aos moradores de rua, junto com padre Julio e outros religiosos, também tem trabalho em comunidades carentes e com animais abandonados; tem o apoio de vários líderes religiosos, defende o estado laico e - condição imprescindível para uma eleição proporcional - disputa por um partido comprometido com as causas sociais, o PSOL (ou seja, se não for eleito, meu voto pode ajudar a eleição de alguma outra candidatura progressista, como o Juntas). 

Diante do contexto que presenciamos no país, ter na política institucional uma voz religiosa dissonante, comprometida com a democracia, a laicidade do estado e as causas sociais pode trincar o discurso fundamentalista cristão sobre o diferente, ajudando a gerar uma dissonância cognitiva em parte da população, de modo a reverter o quadro de talebanização-cristã para o qual caminhamos. 


29 de setembro de 2020

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Eleições paulistanas 2020: retrato de momento (à espera de Marta)


Ainda que desperte interesse da mídia, por ser a principal cidade do país, a eleição paulistana este ano tem gerado menos “frison” que em 2016. A explicação parece simples: além da questão sanitária do coronavírus (e nossa eterna disputa sobre se é gripe ou pandemia, se se combate com ozônio no reto e cloroquina ou com medidas sérias de isolamento social), o atual prefeito é do PSDB e favorito, e o perigo vermelho, por ora parece distante, com as esquerdas ainda enfraquecidas por anos de macarthismo midiático-judiciário.

Pesquisas recentes (RealTimeBigData, de 12 e 13 de agosto, e a sempre suspeitíssima Paraná Pesquisas, de 15 a 19) indicam empate entre Russomano e Covas, com França e Boulos distantes.

Primeiro ponto a destacar sobre estas eleições: se estamos analisando e discutindo como se estivéssemos dentro do jogo democrático é porque as esquerdas estão fortemente enfraquecidas, ainda no rescaldo de 2016, capazes de almejar uma ou outra vitória - seja em praças importantes, seja em locais secundários -, mas com baixíssimas chances de uma votação expressiva que dê algum recado, algo como em 1974 (temos uma pandemia em curso e um despreparado em Brasília, não sabemos o que isso pode gerar).

Segundo ponto: tal qual as eleições de 2016, estas devem tratar de temas federais também, não tão centradas apenas nas questões locais. Se lá estávamos no auge da criminalização da esquerda, já um tanto desgastada por anos no poder, para além do bombardeio midiático-judiciário; com golpe de estado em curso, crise econômica começando e mudanças em cima da hora sobre as regras da campanha (o que prejudicou Haddad e favoreceu Doria Jr. Creio que se houvesse segundo turno, o tucano teria muita dificuldade para se eleger); agora temos as esquerdas ainda na lona, precariamente tentando se recompor; um neofascista ocupando o Palácio do Planalto há pouco e jogando politicamente sem se preocupar com custos humanos, e uma enorme crise econômica, potencializada e obnubilada pela pandemia. E a pandemia, para além da mudança da data do pleito, deve trazer uma nova dinâmica às campanhas, diminuindo o corpo a corpo dos candidatos, dando ainda maior destaque à internet e televisão. No caso paulistano, quem tem tempo de tevê são os candidatos do sistema, quem tem conhecimento da internet são as equipes dos candidatos de extrema-direita e quem tem, a princípio, maior possibilidade de corpo a corpo é o candidato de direita. As esquerdas, bem... ainda estamos tentando nos desapegar do mimeógrafo.


Extrema-direita: o tamanho do fascismo na cidade

Discurso de ódio aberto, preconceito contra pobre, instrumentalização da democracia e do estado de direito (eufemismo para não democráticos) e projeto ultraliberal marcam essas candidaturas. São azarões, mas azarão também era Doria Júnior em 2016. Claro, há a diferença: Doria Jr tinha dinheiro para pagar uma competente equipe de marketing e tinha a estrutura (e a grife) do PSDB. Provavelmente um deles deve ter alguma votação um pouco mais de relevo, mas será interessante notar que os votos dados a esses candidatos (salvo um movimento de migração de voto no fim do primeiro turno para evitar um segundo turno com a esquerda) servirão para mostrar o tamanho do neofascismo puro e sem disfarces na cidade. Tem conhecimento e financiamento para uso das redes sociais - e um judiciário tímido em coagir abusos -, o que pode favorecer Hasselmann, Athur do Val ou Sabará (Fidelix e Paiva apenas completam o grupo, sem qualquer chance de destaque, me parece).


Direita: Russomano, o eterno cavalo paraguaio?

Russomano tem fama de cavalo paraguaio: bom de largada, ruim de chegada. Não se deve subestimá-lo, contudo. Classifico-o como direita apenas por conta de ter algum traquejo político e por seu discurso, tanto o econômico quanto o de ódio, ser mais mitigado (e discurso não é irrelevante, palavras, ainda mais de líderes, têm poder de induzir comportamentos). Disputando pelo partido da Igreja Universal, tem púlpito onde fazer campanha presencial com mais facilidade, o que pode lhe dar grande vantagem, além de cobertura favorável da tevê do partido, digo, da igreja. Por conta disso, tem forte penetração entre os evangélicos (o candidato do PSC não me parece ter chance). Se agir como bom político da direita e fugir dos debates (como fizeram, nas presidenciais, Collor, FHC e Bolsonaro), pode evitar tropeçar nas pernas e chegar forte no fim da campanha, com chances de segundo turno.


Centro-direita: Covas favorito

A princípio, Bruno Covas é favorito na disputa, não tanto por mérito próprio, mas por falta de um adversário à altura. Sua ascensão seguiu o modelo tucano de formação de novos quadros em São Paulo: o “vicismo” - rompido por Doria Jr pelas condições excepcionais de 2016. Destoa bastante de quem o pôs no cargo, e remete ao velho e finado PSDB de Montoro e seu avô Covas - uma centro-direita progressista (ou, dadas as cores locais da política, poderia ser até mesmo tido por centro-esquerda). Cometeu algumas falhas (eleitoralmente falando) na gestão da pandemia, como o rodízio radical, mas em geral se portou discretamente, retomando muitas das ações de Haddad no campo de direitos humanos e seguindo o projeto de privatização e criação de agências de controle do PSDB, sem apelar para o discurso de ódio. Tem no novo Anhangabaú (projeto de Haddad) outra provável vitrine - ou telhado, a depender de como mídia e redes sociais explorarão o fato. Com apoio da grande mídia, de vários partidos e a tendência do eleitorado paulistado a clicar 45, é improvável que fique fora do segundo turno. E muito provavelmente será o nome do partido em 2022 (supondo que nossa anormal normalidade democrática atual se mantenha), mas abandonar o cargo não parece ser um problema ao eleitorado da capital, até que isso se realize.

Márcio França é outro que emergiu com o vicismo tucano: foi receber de Alckmin o governo estadual que ganhou a projeção que permite pleitear a prefeitura paulistana - lembremos que no segundo turno de 2018 ganhou de Doria Jr na capital. Flertou com o bolsonarismo mas recuou, e se alia ao PDT de Ciro, provavelmente de olho no Palácio dos Bandeirantes em 2022. É com o “recall” de 2018, se equilibrando entre um “progressismo sui generis”, um discurso de endurecimento penal, que vai tentar pintar como candidato anti-tucano que não é nem de esquerda nem de extrema direita. Se chegar ao segundo turno, tem alguma chance, por poder aglutinar votos das esquerdas - mas não devemos esquecer que o não-voto em Doria Jr foi antes por este ter não cumprido a promessa de campanha.


Esquerdas: para o PT aprender por bem ou por mal

Acho horrível a expressão “se não aprende por bem, aprende por mal”. Geralmente os aprendizados que vem por mal chegam tarde e servem apenas para lamentação de quem aprendeu e regozijo impotente de quem avisou. É o caso do PT, ao que tudo indica: vai aprender por mal - resta saber quão tarde terá vindo esse aprendizado.

O nome do campo da esquerda nestas eleições, não resta dúvida, é o de Guilerme Boulos, do PSOL. O partido, por sinal, acerta, finalmente, ao ampliar sua base, antes restrita à esquerda acadêmica sectária, e dialogar mais de igual pra igual com movimentos populares menos escolarizados. Com Erundina como vice, deve conseguir algum apoio dos mais velhos e das periferias - os que vivenciaram sua gestão. Tem alguma chance de ir para o segundo turno, a depender do quanto estará fragmentado a direita e centro-direita: uma fragmentação média, com dois nomes fortes, podem tirá-lo do páreo; vários nomes ou um nome muito acima dos outros, dão-nos esperanças.

Há dois problemas principais para o PT ter candidatura própria em São Paulo este ano. O primeiro é a escolha do nome: em tempos de calamidade de saúde, na escolha entre um médico e alguém ligado aos transportes, optaram por este. Jilmar Tatto anima apenas a base mais sectária do PT e tem uma plataforma política coerente para 2013 - estamos em 2020, não sei se precisava lembrar. O segundo: ele tem tudo para passar mais vergonha que Alckmin em 2018, com a diferença de quem vai sair como grande perdedor não é ele, mas o partido: a insistência na candidatura, sem um argumento válido que a justifique, servirá, para analistas comprometidos com os donos do poder, como evidência do enfraquecimento do PT - salvo caso o partido consiga vitórias expressivas em outras cidades importantes do estado e do país.

Sua candidatura seria justificável se entrasse como candidatura de denúncia e se pusesse (abertamente) como linha auxiliar da candidatura de Boulos; contudo, para isso seria preciso abandonar anos de moderação do PT em favor de um discurso incisivo, de ataque aos adversários da direita e às instituições; contudo, se em 2018 Haddad ainda fazia elogios à Lava Jato, não parece que será Tatto, em 2020, quem elevará o tom. Para dificultar a vida de Tatto: o PT também vem um tanto rescaldado nas periferias, por conta da administração Haddad, que fez uma boa administração - mostrando que o velho PSDB poderia ter feito uma boa gestão da cidade -, mas bastante distante das periferias e muito voltada à classe média e à região central. A tentativa de Ana Estela Haddad como vice é a tentativa de ganhar essa classe média “haddadiana”, mas que dificilmente se empolgará com seu nome.


A grande incógnita: Marta

Todo esse cenário acima pode ser drasticamente mudado se Marta Suplicy (ou ex-Suplicy, não sei) entrar na disputa, seja como cabeça de chapa, seja como vice. A ausência de um nome convincente no PT, e seu apelo nas periferias da cidade podem lhe render votos. Sua saída do PT, da forma como foi feita, foi um passo bastante infeliz nas suas pretensões eleitorais: sem nunca deixar de ser vista como petista pelos antipetistas, passou a ser vista (justificadamente) como traidora pelos petistas e pela esquerda em geral - diferentemente de Erundina.

Se entrar na disputa, cresceria tirando alguns votos da centro-direita, do PT e do Boulos, porém depende de uma boa estratégia de marketing para que esse crescimento seja suficiente para pô-la no segundo turno. Ainda assim, mesmo se chegasse no segundo turno, nada garante que teria força suficiente para vencer o estado em 2022.

Se optar por ser vice de Covas, com tem sido alentado, além de trazer ao atual prefeito o voto das periferias, permite que ela assuma a prefeitura daqui dois anos, tenha outros dois para impingir sua cara na gestão e volte a disputar com força em 2024. A questão que ao ter uma “petista” como vice, Covas pode perder alguns dos votos para outros candidatos do espectro político - provavelmente menos do que ganharia, mas não convém subestimar as filiais do gabinete do ódio.


No fundo, parece mais que presenciamos uma eleição café-com-leite, que fingimos ser pra valer, impotentes de levar adiante a denúncia do estado de exceção que estamos vivendo - com beneplácito de PSDB, judiciário, grande mídia, grande capital, etc.



28 de agosto de 2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A foto da reforma do Vale do Anhangabaú e as críticas precipitadas e tardias

Foto de como está ficando o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, gerou uma série de reações, de críticas, e algumas poucas reflexões. Como sói com críticas basicamente reativas, são rasas e pouco acrescentam, além de ressaltar a ignorância no assunto de quem a faz - há quem consiga fazer uma crítica com mais refletida, mas aí cai numa idealização que perde um bom tanto do contato com a realidade, como o caso do artigo “Como era verde o meu Vale: o Anhangabaú e o paisagismo inóspito de São Paulo”, por Antonio Hélio Junqueira, publicado no Jornal GGN, e falo isso como usuário pedestre frequente do Vale entre 2012 e 2018.
A crítica com base na foto atual é ao mesmo tempo precipitada e muito atrasada. Precipitada porque o vale ainda está sendo reformado. Poderia se questionar onde estão as árvores que constam no projeto. Contudo, para tal pressuporia o conhecimento do projeto - e nisso se mostra o quanto é tardia. Porque o projeto não é do Bruno Covas, e sim do Fernando Haddad. Foi pouco discutido com a sociedade, apresentado sem a mesma grita da esquerda que vejo agora em minha bolha branca-classe média-universitária-de esquerda, e desde o início era medonho, com poucas árvores, muito cimento - e centrado na gentrificação do centro.
Para agora, a grande questão - que chega a ser abordada muitas vezes, mas raramente como principal crítica - é a necessidade de uma reforma dessas, essencialmente cosmética (uma vez que não inaugura nada marcante, como um centro cultural ou esportivo), em um momento de crise econômica (mesmo antes da pandemia) e com uma série de problemas importantes e mais urgentes, inclusive no próprio centro - como a questão da moradia. Mas não deixa de suscitar outros temas importantes para o debate.
Para além da moradia, desde quando o projeto foi apresentado, ficou escamoteada a discussão dos usos - atuais e desejados - do centro da cidade e da população que o frequenta, e da qual se deseja que o frequente também. Pergunta mais que pertinente: esses novos frequentadores querem estar no centro, querem estar em contato com “gente diferenciada”? Porque dificilmente será apenas uma praça - ainda mais num país que costuma vê-las como mero locais de passagem ou de moradia de população marginalizada - que fará com que certas porções da população passem a ocupar um espaço (o exemplo do Largo da Batata citado por Junqueira não parece condizente, uma vez que se localiza numa região já devidamente habitada e gentrificada). Há um exemplo logo ao lado: o Sesc 24 de maio, na República, atraiu pessoas novas apenas o restrito espaço do seu interior super policiado, tanto que oferece transporte para o metrô e estacionamentos, como forma de evitar que seu público entre em contato com o populacho da região. 
Quais os usos que se quer do centro: moradia popular, moradia hipster, lazer para quem pode pagar? Lazer popular já há (ou havia, antes da pandemia), com vários bares com som ao vivo e grupos de pagode; e mesmo boa oferta cultural, com Galeria Olido (antigamente, andou sendo posta de lado, infelizmente), Centro de Referência da Dança, Trackers, cinema de rua, além do novo Sesc. Se é para lazer da classe média - poderia ser uma alternativa para a vida noturna, aproveitando que já é subaproveitado para moradia -, caberia pensar a reforma do Vale a partir do seu uso efetivo - mesmo que em transição - e não de uma ocupação idealizada e pouco factível no momento - a gentrificação por ora está (estava) centrada na região da República próxima à Vila Buarque e Santa Cecília, não aponta na direção da Sé. 
E, claro, outro ponto a se criticar: se é para gastar dinheiro público em praças e afins, é no centro que esse dinheiro deveria ser aplicado? Não faria mais sentido ampliar as áreas verdes e de convivência nas regiões de moradia já densamente povoadas?
As críticas que vejo na internet, via de regra, são de quem já não frequentava o Vale do Anhangabaú, desconhece que há muito não é arborizado (talvez tenha sido enquanto durou o projeto de Bouvard, de cidade jardim), e que nada ali convidava a estar, a permanecer, a ser local de convívio - quem a ocupava de fato eram os moradores de rua, como costuma acontecer nestes Tristes Trópicos. Não sei se o novo Anhangabaú mudará essa topologia humana, de qualquer forma, não vejo muita possibilidade de piorar - pode, quem sabe, ser uma alternativa menos radical à praça Roosevelt para skatistas, patinadores e afins. De qualquer modo, cabe criticar o momento em que se está executando e mais que isso, o projeto desde seu início; e isso implica em criticar a conversão do PT a ideais classe média hipster, em detrimento das necessidades e anseios das classes trabalhadoras das periferias.

06 de agosto de 2020

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Bloco sanitário para caixa acoplada

Pouco depois de me mudar para São Paulo, dividi apartamento com um arquiteto recém chegado da Europa, contratado para trabalhar num dos escritórios de grife da arquitetura nacional. 
Um dos pontos interessantes da convivência com ele foi saber (ou melhor confirmar) alguns comportamentos das nossas elites econômicas, em especial as diferenças entre um novo rico - que vai para Nova Iorque, perdão, New York, escolher as banquetas para sua casa, a três mil dólares cada - e um rico tradicional - que acha extorsivo o valor do projeto do puxadinho para sua mansão nos Jardins, ainda que seja um valor irrisório para quem está na lista da Forbes como dos mais ricos do mundo, com alguns bilhões de dólares.
Outro ponto interessante foi ver que estar um (bom) tanto desconectado das coisas práticas da vida não é privilégio de filósofos, sociólogos, economistas e escritores (ainda que estes possam fazer bom uso desse alheamento). Pouco depois que ele mudou, perguntei se ele teria alguma sugestão de ocupar melhor o espaço do apartamento com os móveis que eu tinha. Na noite do mesmo dia me veio com a sugestão de quebrar a parede da sala, fazendo uma cozinha gurmê no meio, com um grande… interrompi suas ideias não tanto pelo clichê, antes porque o que eu queria era mudar móveis de lugar e não fazer uma reforma estrutural num apartamento alugado. Certa feita, veio intrigado contar da conversa no elevador que tivera com os vizinhos de cima, que questionaram se estava tudo certo em nosso banheiro. Disse que respondeu afirmativamente e vinha então me perguntar se tinha acontecido algo. Sim, tinha: do spot de luz gotejava há quatro dias um líquido viscoso preto e todo o teto estava pipocado de água infiltrada, por conta de um cano que estourara no apartamento de cima; mas ele não havia notado nada - e era o único banheiro da casa. Fosse ele o filósofo, eu até, quem sabe, poderia dar um desconto, mas ele era arquiteto!
O melhor foi uma vez que saído do banheiro veio ter comigo, que estava na sala, lendo. Diante do bloco sanitário em gel que eu havia posto no vaso, me contou que na Europa havia blocos sanitários para caixa acoplada, que se jogava na respectiva caixa e era desnecessário limpar o vaso (os três moradores da casa nos revezávamos na faxina, uma semana um limpava o banheiro, outro o resto da casa e o terceiro folgava), e me sugeriu que adotássemos tal expediente. Nem pontuei o fato de não acreditar que um bloco sanitário fosse capaz de substituir uma faxina feita com uma escova, apenas levantei que tínhamos um problema capital: nosso vaso sanitário não possuía caixa acoplada. Ele ainda ficou um tempo pensativo, levemente perplexo, levemente decepcionado com minha objeção, ao que, enfim, concluiu: "que coisa, então não vai dar para usar". Eu sei que parece piada, mas aconteceu.
Lembrei desse antigo colega de habitação porque na residência em que vivo atualmente o vaso sanitário possui caixa acoplada - e eu compro os tais blocos sanitários específicos, ainda que faça questão de passar a escova uma vez por semana, no mínimo.
Em geral, compro o bloco sanitário para caixa acoplada mais barato, "sabor" lavanda, que tem uma cor que não sei se é azul, roxo, índigo - sim, eu sou daltônico, e isso me traz algumas dificuldades com certos tons de cores (o que não me impediu de tentar ser iluminador cênico, o que permitia que eu me apresentasse como um dos poucos filósofo das luzes devidamente registrado no MEC e no MTE). Esses dias resolvi trocar de cheiro. Me chamou a atenção o silvestre: não pelo cheiro - pois eu estava de máscara e só pude ver sua cor, verde -, mas pela possibilidade de dar um ar mais bucólico ao meu banheiro, que às vezes, quando chego do trabalho, tem um acentuado cheiro de xixi dos meus gatos. Imaginei algo meio fazenda, que rememoraria passeio da infância: o cheiro da relva misturado ao das excretas bovinas - meu gato Guile, com quase dez quilos, já parece mesmo um boi. O cheiro do tal silvestre até era gostoso, mas as memórias antigas não vieram, e achei que deixava a água do vaso com uma cor estranha. Decidi não encafifar com isso, afinal, provavelmente devia ser obra do meu daltonismo.
Foi quando Sabrina veio passar o fim de semana em casa. Ao sair do banheiro, perguntou se havia algum problema com o vaso, pois dava a descarga e o xixi continuava ali - ao menos assim parecia -, algum problema com a água? com a caixa acoplada? Sabrina não é daltônica, de modo que vi que minha impressão era real. Expliquei que não, não havia nenhum problema e a urina que aparentemente se acumulava na retrete era bloco sanitário de "sabor" silvestre - ela acreditou. Espero não ter mentido.

03 de agosto de 2020.

terça-feira, 28 de julho de 2020

O momento para a esquerda pautar a discussão sobre a escola e a educação

Talvez não tenha havido nos últimos anos momento mais oportuno para impôr uma pauta progressista na discussão sobre os rumos da educação no Brasil - perdemos essa oportunidade quando nos governos petistas, talvez impelidos por questões mais prementes e que avançavam, como financiamento. Com Fundeb aprovado e Weitraub fugido, a principal discussão da área deve ser sobre a volta às aulas no contexto da pandemia. Ainda que envolva aspectos pedagógicos, não é exatamente uma questão pedagógica: eis o momento de colocar certas questões essenciais em pauta, antes que o governo o faça - ou movimentos privatistas/predadores da educação, tão bem representados na figura da deputada Tábata Amaral.
Aliado ao respiro que a aprovação do Fundeb trouxe, a entrada de Milton Ribeiro no ministério da educação não deixa de ser um alento: sai a proposta de destruição pura e simples de educação - parte da guerra contra o "marxismo cultural", entendido como tudo aquilo que não seja adestramento para a brutalidade e a submissão -, e entra uma proposta, péssima, mas uma proposta: privatista, reacionária ao extremo - ao que tudo indica -, que crê que se educa pela dor, pelo autoritarismo (sempre confundido com autoridade, apesar de serem conceitos bastante distintos, por mais que possam ter intersecções) com vistas à formação de força de trabalho servil (portanto acrítica e desconhecedora da própria cidadania) e para os valores da família e da igreja (substitutos da cidadania negada). É um retrocesso, mas é um avanço: sem a estridência do pupilo olavista e provavelmente trabalhando mais nos bastidores, dá para entrar em algum debate público racional.
E o contexto permite que as esquerdas, o campo progressista, os pedagogos e pesquisadores da área consigam colocar e balizar o debate agora. A pandemia e a forma como ela atingiu a educação em todos os níveis (até mesmo a educação à distância, falo por experiência!), com a suspensão das aulas e os arremedos ensaiados pela internet, dão a oportunidade de ouro para se perguntar: para quê serve a escola? Qual deve ser a função da escola? Qual o papel da educação na dita sociedade do conhecimento e o que deve ser ensinado - na escola e fora dela? Ensino à distância substitui o ensino presencial?
Não sou pesquisador da área, apenas um diletante que desde sempre gostou de pensar e refletir sobre o que vivencia quotidianamente. Tenho experiência tanto com educação presencial quanto à distância, como professor (ensino superior EaD e educação popular presencial) e como aluno (dois diplomas de graduação e um mestrado presenciais (fora três graduações inc ompletas), uma graduação e uma especialização à distância, e cursando mais uma graduação EaD). Como professor, EaD é frustrante. Como aluno, tem seus aspectos positivos - mas realmente não sei o quanto as crianças estão preparadas para lidar com um meio altamente dispersivo como a internet, se sequer os adultos estão. É interessante para ir direto ao ponto de certo assunto, sem que o professor se perca eventualmente (não raro) em digressões, facilitando entender a linha de raciocínio. Para uma aula expositiva de fixação de conteúdo, vale, para formação de pensamento crítico é um instrumento precário: não substitui as trocas em sala de aula e outros ambientes escolares - os fóruns são arremedos cansativos e pouco produtivos. 
E o "ensino EaD" é um dos temas na pauta, não só pela pandemia como desde que foi aprovado que 30% do Ensino Médio pode ser ministrado nessa modalidade, pela reforma do golpista Temer, e com a proposta do governo Bolsonaro de ampliar para todo o ensino fundamental (trata-se de um prato cheio para aliciação das igrejas evangélicas, que poderão cuidar da merenda e da formação do "caráter" das crianças, enquanto os pais trabalham e o Estado se desobriga e economiza). A experiência da pandemia vai fazer alguns defenderem, outros criticarem, vai ter quem levantará o ponto da popularização da internet no país, e nessa discussão vai passar que essa não é uma questão essencial - eu diria que beira a irrelevância, se não se aceitar os termos postos por quem vê educação como mera formação de força de trabalho.
Antes de discutirmos o que ensinar e como - e mesmo para quê -, cabe perguntar qual a função da escola no mundo hoje. A ideia de um ensino conteudista (que é o que está por trás da defesa do ensino EaD) é totalmente pertinente para a década de 1950, quando ter uma fonte de pesquisa, como uma enciclopédia, significava morar perto de uma (rara) biblioteca pública ou ter boas posses para comprar uma e deixá-la na sala - diante desse empecilho, o mais recomendado era que as pessoas tivessem vários dados e datas guardados na memória. Isso para não falar das fontes de informação, também escassas e unidirecionais. Hoje tem-se todo esse conteúdo facilmente à mão e em qualquer lugar, graças à internet. Tal aparente facilidade, claro, não substitui o conhecimento prévio: se não se souber que houve ditadura militar na Argentina, por exemplo, não se vai pesquisar o nome dos ditadores do período; não conseguir entender e interpretar um exercício de análise combinatória não vai permitir pesquisar as fórmulas que permitam resolvê-la. Conteúdo segue importante, porém não deveria ser o centro do processo de educação - sei que há muito não há mais essa centralidade, ao menos dentre os teóricos da educação, contudo é a visão senso comum da escola e da educação, daí que tanto a questionam.
Se os novos meios de comunicação rebaixaram a importância da escola quanto ao repasse de conteúdos, eles aumentaram a importância que ela tem no ensino da socialização das crianças e jovens: em uma sociedade do medo, onde cada um fica fechado em sua casa ou condomínio - todos consumindo, pensamento, agindo, se comportando de modo muito semelhante -, interagindo por meio de telas - que podem ser desligadas ao primeiro sinal de desavença e encerrar a discussão -, a escola pode surgir como centro dessa socialização, dessa forma de interação humana que a sociedade do espetáculo tenta minar. Interagir cara a cara com alguém é se responsabilizar imediatamente pelo que é dito e a forma como é feito, é entender que o tempo não é infinito e que não dá para falar tudo o que deseja a qualquer momento, é ser educado não para a tolerância com o diferente, e sim para a convivência com ele, sem se sentir ameaçado por isso - porque não há mesmo ameaça. 
E se aceitarmos que a socialização e a convivência são as funções principais da escola na sociedade atual, a própria ideia de educação privada pode ser questionada num segundo momento: se a proposta é a de conviver com o diferente, é preciso que estejam presentes no mesmo ambiente diferentes classes sociais, diferentes experiências de vida, diferentes visões de mundo. E se é um centro de socialização e convivência, logo pode servir para educar os pais também - quem sabe tirá-los do lodo fascista onde chafurdam contentes por pentercer a uma pretensa irmandade de puro coração e valores -, servir para engajar a sociedade toda na educação das crianças - não só -, tirando essa responsabilização excessiva da escola e dos educadores - os CEUs da gestão Marta podem ser encarados como um primeiro e tímido ensaio.
O que estou propondo não é nada revolucionário. É uma proposta de educação liberal, afim a muitos valores da sociedade, ao menos dos valores cultivados pela e para as elites - não por acaso, alguns colégios e métodos já há tempos equilibram conteúdo e convivência. É contudo, uma forma de escaparmos da armadilha de discutirmos questões posteriores, como métodos e objetivos - forma de se manter tudo como está, ainda mais na atual correlação de forças, com avanço do fundamentalismo religioso. Discutir a função da escola é pôr em questionamento a própria sociedade, sua forma de produção, os valores que reproduz, os ideais que almeja. É preciso que saiamos de uma posição reativa e de negação e avancemos com propostas e questionamentos que mobilizem o debate público e criem o ambiente para, no futuro, possam ser discutidas reformas mais transformadoras da educação formal - e de toda a sociedade.


28 de julho de 2020

PS: Enquanto pensava neste texto, lembrava do problema da educação durante a pandemia, o fato de muitas pessoas não terem acesso a celular e internet. No início da pandemia até houve um movimento pedindo que fosse liberada internet gratuita para todos - até como forma de estimular ficar em casa -, isso antes de entrarmos no debate se o vírus existia de verdade ou não era invenção e outros non senses do tipo. Curiosamente, não se pensou que há concessões públicas de televisão que abrangem todo o território nacional, e que tem nos termos de sua concessão a utilidade pública e fins educativos. Com programas suspensos por causa da pandemia e crise financeira das emissoras, daria para o governo negociar os horários da manhã para oferecer teleaulas, das oito ao meio dia. São cinco emissoras de abrangência nacional (Globo, Record, SBT, Band e Rede TV!), isso totaliza 20 horas todas as manhãs; dá para ter um canal somente para crianças não alfabetizadas e outra só de revisão para Enem, e ainda sobraria uma hora para cada série. Certamente pedagogos saberiam fazer a coisa render melhor, ainda assim seria algo bastante precário; contudo, ao menos as crianças não ficariam totalmente paradas, e os pais também teriam um momento de folga (por sinal, falou-se muito do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia, é de se questionar se não houve também aumento da violência contra as crianças no período). Esta ideia soa meio descontextualizada a um texto que fala em questionar o ensino baseado no conteúdo, a expus porque é serviu para me lembrar que há outros meios que podem ser usado para educação, estão à mão desde muito tempo, e deixamos passar.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Vagabundos, bandidos, zumbis - o vocabulário conservador entranhado nas hostes progressistas

Desde que tive que começar a trabalhar presencialmente, em fins de abril, faço ao menos um dos trajetos (ida ou volta) até o trabalho à pé, como forma de me exercitar (são 9 km) e acompanhar como vai a cidade. Semana passada, o trajeto pela manhã parecia que saímos não de uma quarentena (que nunca foi efetivamente), mas de um feriado frio e chuvoso, em que o não deu para correr no parque, então o pessoal aproveita para fazer o jogging, o cooper, o footing na ciclovia ou na calçada. No mais, trabalhadores se encaminhando para seu tripalium, os "espaço imantados" dos ambulantes de café da manhã, os nacos de conversas que pego pelo caminho. São Paulo volta ao normal e seu "novo normal" não parece ir além das máscaras - se me é novidade, não é fruto de pandemia, um grupo de três jovens da periferia pelo qual passo, máscaras no queixo, que caminham com uma caixa de som de onde extrapola rap gospel a quem queira e não queira ouvir: a salvação da alma, já que, ao que tudo indica, os pastores já vaticinaram nossa danação na terra (atualmente em coro com cientistas e gente sensata).
Se no início do meu trabalho presencial a única rua em que eu precisava esperar pelo sinal para atravessar era a avenida do Estado, isso às seis da tarde, pouco a pouco meu tempo de espera foi se alongando até que agora é preciso esperar o sinal de pedestre abrir para atravessar, como no velho normal.
Foi esperando num momento desses que pego um fio de conversa entre dois moradores de rua. Questiona um deles: "e por que que dar dinheiro pra vagabundo, se ele não acrescenta nada para a sociedade?". O sinal abre e eu atravesso, sem saber se ele reproduzia aquele pensamento para fazer a crítica a seguir ou, como parecia pelo tom que usava, se reproduzia aquele discurso por ter incorporado como verdade. Quem ele vê como vagabundo? 
Lembro que vagabundo não é quem não trabalha, vagabundo é termo usado para desqualificar o outro, desumanizá-lo. Assim como bandido: um bandido é um homo sacer, alguém que não é mais digno do tratamento dado às pessoas e pode, portanto, ser morto sem as considerações formais, como julgamento ou direito à defesa, e sem remorsos de quem o mata. E isso me faz recordar de Jean Wyllys, e o tamanho do desafio que ainda temos pela frente.
Admiro Jean Wyllys, concordo com muitas de suas posições, discordo de algumas, como acontece com todas as pessoas que conheço e desconheço - comigo próprio, inclusive. Desde muito acho que o twitter não deveria ser material para discussão política: aquilo não é uma arena política, não é a nova ágora pública: é um ringue virtual para rinha de egos e pouca coisa além. Porém, foi alçado a um dos principais meios de comunicação política da atualidade (a estreiteza dos seus 240 caracteres é bem significativo do nível do debate político mundial). Enfim, em 13 de maio, quando o presidente da República finalmente divulgou seu resultado de coronavírus - negativos -, para descrença geral da nação, o político do PSOL escreveu: "Só tenho a relembrar o seguinte: os Bolsonaro me levaram ao Conselho de Ética com um vídeo CRIMINOSAMENTE ADULTERADO (segundo perícia da Polícia Civil do DF). Quem adultera vídeo criminosamente adultera também resultado de exame pra COVID-19. Uma vez bandidos sempre bandidos." (sic)
O texto foi escrito no calor do momento, talvez sem a devida reflexão, e justo por isso ele acaba trazendo cristalino o tamanho do nosso o problema, o quanto a mentalidade conservadora permeia até ativistas os mais progressistas do país. Quando Jean Wyllys generaliza a fala aos Bolsonaro com o "uma vez bandidos sempre bandidos", ele está reproduzindo dois elementos centrais do pensamento mais reacionário e violento do Brasil: primeiro o uso do termo bandido. 
Poderia ter dito criminosos, falsificadores, gângster, mafiosos, ou qualquer outro termo do tipo, bandido há muito não tem mais essa função no léxico comum brasileiro, não serve para apontar alguém que cometeu um crime, mas para marcar alguém que não merece viver em sociedade, ou melhor, não merece viver. Bruno, ex-goleiro do Flamento e assassino de Eliza Samudio, foi cristalino nessa percepção, quando disse: "Cometi um erro grave, mas não sou bandido", tanto que a seguir ele pede uma oportunidade [https://bit.ly/3fzjoPV]. Se bandido fosse sinônimo de alguém que cometeu crime, ele poderia se assumir um bandido e pedir a oportunidade; contudo, por ser bandido ele não tem mais direito algum, conforme nossas leis do senso comum - e ele sabe disso.
O segundo ponto é a inefabilidade: "uma vez, então para sempre". É o argumento de qualquer policialesco, dos defensores da pena de morte, do bandido bom é bandido morto, do excludente de ilicitude. Ainda que direcionado ao presidente e seus familiares, sua frase reforça que bandido é bandido de nascença, por natureza, é irrecuperável e, portanto, não merece outra chance, não merece tentar recomeçar a vida, não merece viver em sociedade, no limite, novamente, não merece viver. É reforçar a marca que um ex-condenado, um ex-presidiário traz no corpo, reiterar o estereótipo, estimular a ideia de que prisão não recupera e nem serve para isso - digo aqui não na prática, não no que seria seu ideal pronunciado -, e que bem faz o Brasil em manter masmorras, pocilgas sem qualquer estrutura para os criminosos.
Passo pela Sé, abarrotada de moradores de rua. É muita gente! Como assinalou uma colega, vez que voltamos juntos do trabalho: muitos dos que estão ali são neófitos (talvez seduzidos pelos atrativos das ruas, como julga a primeira dama do estado?), como dá para perceber pelas roupas, pelas mochilas e pelas barracas, ainda não gastas pelo uso e pelas intempéries. Os pastores voltaram e atraem pequenos grupos de desvalidos abandonados por deus, pelas autoridades públicas e pela solidariedade. Vejo o rapa passar, acompanhando da GCM, recolhendo os pertences de quem nada tem: é feito de tal modo que parece um trabalho burocrático, tão natural quanto o nascer do sol. Afinal, ali os que não são bandidos são vagabundos, e os que não são vagabundos são "zumbis das drogas". E nesse trecho de um quilometro quase completo as categorias dos sub-humanos tupiniquins autorizados a serem mortos - ficou faltando os indígenas, desde 1500 sem direito à humanidade plena (e temos os esquerdistas, que ainda resistem a entrarem no grupo, a despeito do desejo do presidente e de seus seguidores, mesmo os arrependidos, como Sérgio Moro). 
Sigo meu trajeto. Ambulantes vendem máscaras, o hispanohablante vende suas cinco paçoquinhas por um real no lugar de sempre, bares oferecem salgados nas suas portas, funcionários da assistência social, GCM, PM, trânsito, o novo normal é a velha ordem, com a sutil mas capital diferença, sensação do que senti quando visitei a Venezuela, ano passado: nosso tecido social está roto - talvez ainda tenhamos um fiapo para romper de vez, como presenciei lá. Isso parece secundário, ou invisível: agimos como se fôssemos uma nação, como se ainda houvesse solidariedade, como se não estivéssemos todos tomados pelo ódio: de um lado, fascistas que pregam a morte de todo mundo que não pense como o mito; do outro, aqueles que se não desejamos agir com as próprias mãos, por uma questão moral, torcemos para o destino dar cabo o quanto antes dos fascistas, como se fossem todos eles irrecuperáveis (ok, admito que alguns o são mesmo, vide nosso presidente, mas poderia falar de alguns parentes), "uma vez fascista, então sempre fascista" - um acréscimo progressista (?) aos bandidos, vagabundos, zumbis e indígenas.

15 de julho de 2020

quarta-feira, 1 de julho de 2020

As ciências sociais brasileiras e aquele país distante e exótico chamado Brasil


Em minha bolha virtual de esquerda, meu orientador do TCC novamente despontou, semana passada, com uma polêmica inútil. Ano passado havia conseguido iniciar um debate sobre a presença de um stalinista na revista Jacobin e pôs muito da esquerda acadêmica a discutir sobre stalinismo x trotskysmo, em um momento tranquilo do Brasil, governado por Jair Bolsonaro, com universidade atacadas, movimentos sociais criminalizados e o Estado de Direito na lona. Questão de prioridades: combater o fascismo é secundário diante de ver quem tem razão (ou seria a verdade?) frente um colega de luta stalinista.

A polêmica agora é sobre como se escrever um artigo acadêmico. Fosse em tempos de normalidade democrática - seja lá o que isso signifique nestes Tristes Trópicos, tentei pôr um ano para ilustrar, mas não achei um em que não houvesse uma tentativa de golpe (branco, que seja) em curso -, vá lá entrar nesse tópico, para 2020 serve para ilustrar a distância que existe entre parte da universidade pública brasileira e essa terra longínqua chamada Brasil.

Há tempo acompanho a prudente distância esse professor do IFCH (que não se recusou a entrar na Unicamp e ser colega de um notório stalinista, por sinal). Até hoje vinha evitando comentar, por certo respeito e gratidão (afinal, é inesperado um professor chamar um mau aluno, que dorme em todas aulas e quase toda a aula, para ser seu orientando), mas há um limite, e me parece ser pertinente uma crítica - ácida que seja.

Como muitos de seus colegas de IFCH, esse professor é um bom exemplo de classe média que adora se fantasiar de revolucionária (de gabinete): revolucionária no discurso, conservadora nas práticas. Viva a luta dos povos oprimidos, a greve operária, mas greve de aluno não pode; greve de professores pode, mas os alunos de pós tem que entregar os trabalhos na data, por conta das agências de avaliação, e por conta delas também, todo apoio aos trabalhadores do mundo, mas se o orientando for atrasar o prazo de defesa do mestrado ou doutorado porque precisa trabalhar pra ganhar o pão de cada dia, então melhor que nem termine, para não prejudicar sua avaliação de rendimento. Terceirizado precarizados limpando banheiro e sofrendo assédio? Bom objeto de pesquisa, só não venham pedir apoio, a universidade não pode parar por causa de gente sem formação.

No caso específico que me move a escrever este texto, suas dicas de como escrever um artigo científico em ciências humanas preza pela defesa de um texto árido e que siga um modelinho padrão (ele até fala que é possível um estilo, criatividade, mas trata-se de uma suavizada pro-forma). Como pus acima, dicas desse tipo neste momento são da mais absoluta pertinência: sigamos normalmente a vida, fingindo que nada acontece fora dos muros da academia e de nossas casas. Mais: por conta da pandemia e dos protestos antirracistas iniciados nos EUA (país que o referido pesquisador aparenta ter não observado a fundo quando teve oportunidade in loco), uma série de instituições tem sido questionadas profundamente - por ora, a polícia, em especial, mas é de se esperar que logo as escolas e universidades também o sejam.

Nessa defesa do modelo habitual do artigo científico, cabe pontuar algumas coisas. Primeiro é se um texto acadêmico/científico precisa ser árido, se isso é condição para um texto rigoroso, ou se se trata apenas de um modo sutil de afastar o grande público da produção de conhecimento.

Parênteses: egocentricamente vou contrapor minha dissertação de mestrado ao que meu ex-orientador defende (por sorte, meu orientador de mestrado seguia um pensamento de priorizar a prática contestadora, sem esquecer o discurso, claro), por eu ter tentado justo conciliar crítica formal com conteúdo crítico. Fecha parênteses.

Que haja certa linguagem própria, certo manusear conceitos, certo hermetismo, não nego, mas tornar um texto de ciências humanas incompreensível ao público não iniciado, não especializado é necessário? Não haveria como garantir uma compreensão, mesmo que parcial, sem perder o rigor? Talvez meu 9,5 no mestrado, num texto que não seguia padrão ABNT e tentava inovar na forma, numa banca muito rigorosa (Jeanne Marie Gagnebin, Vladimir Safatle e Peter Pal Pélbart), seja indicativo que dá para ser rigoroso e não árido (ainda que tenha me rendido críticas bastante pesadas).

Um segundo ponto é que tal defesa por um modelo padrão revela uma preguiça do professor (afim à preocupação extrema com produtividade), pois o poupa de pensar demais, dá pra pôr o cérebro no semi-automático e ler o artigo sem preocupações formais, só ver se as ideias se encadeiam bem dentro dentro do esquema. Lembro minha pequena desavença com o Peter, meu orientador do mestrado, que perguntava por que não havia intertítulos em meu texto de 180 páginas, questionava o excesso de notas com referências bibliográficas (1518), mas depois da minha insistência e de reler minha dissertação entendeu qual a lógica interna do meu trabalho, que não seguia o padrão academicista e pretendia ser uma crítica formal também, afim ao autor que eu estudara - se fui feliz no intento, é outra questão (por sinal, foi essa dificuldade que me fez desistir do intuito inicial, de ser um texto de parágrafo único e com o título de “Trabalhinho para a obtenção de um título de mestrado em filosofia que por acaso versa sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord”).

Essa preguiça levanta uma primeira grande questão: forma e conteúdo são dissociáveis? A forma não implica em certa forma de produção do conhecimento? Não que a forma atual não seja válida, porém se limitar a ela não é restringir formas alternativas de produção de conhecimento e, portanto, cercear a crítica - em especial uma metacrítica à própria ciência e seus produtos? Ou será que o professor marxista do IFCH acha que os meios são neutros e é o uso que os homens fazem deles que faz a diferença? A energia atômica pode ser usada tanto para a bomba quanto para a eletricidade, a escolha do uso a ser feito é dos homens. Será? Haveria energia atômica se não fosse o interesse na bomba, na guerra, na dominação?

Pode-se ainda questionar se o modelo de artigo científico é realmente relevante para as ciências humanas. Por conta de meu trabalho, mesmo não sendo da área, tenho lido vários artigos sobre o coronavírus: ali faz sentido soltar pesquisas parciais, pois outros pesquisadores podem não apenas replicá-las, como retomá-las a partir daquele ponto, levando a outros lugares. Em ciências humanas, a pesquisa não segue esse padrão e não raro o caminhar do pensamento é tão importante quanto o resultado. Não com isto quero renegar a escrita de artigos (“papers” como o pensamento colonizado gosta de chamar), e sim questionar sua centralidade como índice de produtividade científica e forma de divulgação de ideias. Mas penso, por exemplo, que em ciência política, um artigo publicado em um meio de grande visibilidade, como o Jornal GGN, deveria ser mais relevante que numa revista especializada, de público restrito.

Para encerrar este texto, reitero porque julgo relevante levantar esta questão neste momento: pandemia, isolamento social, crise econômica severa, levantes antirracistas: os questionamentos à ordem que vivíamos até ano passado serão amplos. Já vinham sendo questionados, por sinal. Curiosamente, são questões postas originalmente pelas esquerdas, mas que foram muito bem apropriadas e instrumentalizadas pela extrema direita. Um dos aspectos que será questionado é o sistema educacional como um todo: papel da escola, pertinência da educação à distância, função dos pais na educação das crianças, possibilidade de “home schooling”, produção e divulgação do conhecimento. Neste ponto, as ciências biológicas, que no Brasil são a face visível das universidades públicas, por onde se consegue adesão da população a sua defesa, saem fortalecidas. Poderia ser o caso também das ciências humanas, mas parece que os acadêmicos da área (não todos, claro), preferem insistir em suas hermenêuticas, criticar Átila Iamarino por ter feito uma defesa rasa das ciências humanas no Roda Viva (coisa muito acima do que eles conseguiram até hoje junto ao grande público, independente da profundidade), marcar pontos no currículo Lattes, agir como se o mundo seguisse o mesmo - ou ao menos vai seguir quando este período estranho passar -, assim como os dias seguem às noites, os ciclones bombas explodem no litoral e as nuvens de gafanhoto passam, a sair da torre de marfim que se encastelaram e de onde se julgam os soberanos do saber.



01 de julho de 2020