terça-feira, 28 de abril de 2020

O pensamento mágico ao qual nos agarramos

Uma das (muitas) coisas que a pandemia de coronavírus escancarou é nossa (extrema) dependência do pensamento mágico. Trata-se de algo desde sempre evidente e utilizado, mas que neste momento ganha contornos grotescos - justo por não estarmos (ainda) no fim da linha, quando vale apelar para (quase) qualquer coisa.
Foto de Adrien Olichon
https://bit.ly/2WjA0Tn
Como seres inseridos na cultura e sujeitos do inconsciente, penso que o que chamo aqui de "pensamento mágico" seja algo normal na nossa forma de se relacionar com o mundo: não damos conta de compreender plenamente o que acontece em nosso entorno, não somos capazes de entender tudo o que se passa em nosso interior, o apelo a causalidades simplistas e "mágicas" é uma forma de podermos lidar com esses desconhecimentos e seguirmos nossa vida quotidiana. A questão maior é até que ponto esse tipo de pensar (e sentir) está arraigado em nós, forçando negar a realidade óbvia - a começar pela nossa própria ignorância (e impotência) - em favor de projeções simplistas, frutos do desejo - individual ou socialmente compartilhado.
Os exemplos nesta pandemia abundam. Logo no início, minha mãe conta que uma mulher na farmácia a interpelou e explicou: bastava não ficar pensando no vírus, que isso resolvia: o problema era que o pensamento atraía o vírus. Minha mãe, ainda que sem formação universitária, é consideravelmente cética e inteligente, respondeu que não sabia do vírus ser capaz de ler pensamentos, e por ora preferia seguir o isolamento social, mesmo. A mulher era a versão quântica da ação do presidente: enquanto no mundo se discutia como minimizar a pandemia e proteger a população, aqui discutíamos se o vírus existia realmente (afinal, ninguém nunca viu o vírus transitando pela cidade), se a pandemia era de verdade; e caso fosse, se era fruto do avanço humano sobre biomas desconhecidos ou uma arma comunista feita em laboratório. Mortos? Todo mundo vai morrer um dia.
Desde o início, pastores mercadores da fé e aproveitadores da ignorância já venderam rezas milagrosas aos borbotões, já exorcizaram o vírus, intimaram-no a sair do país - e isso feito não como um pedido de ajuda a um deus todo poderoso e déspota, mas como ordem a um deus vertido em office boy de treisoitão na cintura. E se não é deus em pessoa, ciências milagrosas que despontam: por quanto tempo, sem qualquer base que não achismos, discutimos a cura instantânea e perfeita com cloroquina, ao invés de insistirmos no isolamento social? Com a ciência não messiânica demonstrando que a cloroquina não é tão milagrosa, busca-se um novo elixir: o vermífugo do astronauta não durou dois dias, agora temos o anticoagulante - os EUA já tiveram água sanitária. E não se trata de dizer que há um remédio com possibilidade de alta eficácia no tratamento contra o vírus, o anúncio é que a descoberta seria da cura pura e simples: um estalar de dedos, dois comprimidos e a vida normal de volta em quarenta e oito horas.
Como disse, esse tipo de pensamento só floresce com mais força agora, mas não é novidade. Lembro do professor de tapeçaria no Senai, que anunciava que sei lá que raiz curava tal doença, que havia um óculos que acabava com a miopia, mas que os médicos e as farmacêuticas ocultavam da população porque com a cura acabaria sua fonte de lucro - médicos, segundo ele, não são confiáveis. Claro, médicos prescrevem, muitas vezes, tratamentos longos, custosos (economicamente e mesmo de tempo e paciência), não raro querem alterar dietas, hábitos de vida do paciente - e comumente cometem erros médicos por displicência. A internet está cheia de diagnósticos irrefutáveis e curas infalíveis: médico para quê? Perda de tempo (e tempo é dinheiro!). Que venha o novo emplastro!
Das religiões, os exemplos são ostensivos, desnecessários de serem elencados. Mesmo em certas camadas da classe média dita progressista e ilustrada abundam crenças pseudoreligiosas (ou seriam pseudocrenças religiosas) de puro pensamento mágico: coaching quântico, animal ancestral, vidas passadas, astrologia, reiki e outras coisas do tipo. Porém, a "boa" religião, aquela que não se utiliza da boa-fé alheia para enriquecer e/ou acumular poder (e não me refiro apenas a seitas cristãs), também ela trabalha com o pensamento mágico, e se souber seu papel, serve justo para canalizar essa necessidade, assim como para conformar a pessoa à sua insuperável ignorância, por mais conhecimento que adquira (neste ponto, lembro sempre que me decidi ateu e parei com intermináveis discussões sobre deus ao ler um artigo do Frei Betto, em que ele pontuava que fé e conhecimento são duas áreas separadas, sem correlação). Há também a pseudociência - e nem falo dos sites de internet, e sim dos charlatões com PhD, mesmo: antes de Didier Raoult e o milagre da cloroquina, tivemos Lair Ribeiro acabando com o câncer de Marcelo Rezende sem quimioterapia (dizem que depois de morto, a doença estancou).
A espera do milagre pela ciência, se em parte se dá pela nossa subjetivação ainda fortemente influenciada pelo pensamento religioso - em que a necessidade de crer é imperativo, duvidar (sem ser em nome de outra crença) seria o inferno na Terra -, em outra é fruto da própria omissão das ciências e da academia em favor um ensino mais amplo e mais robusto da ciência, seus pressupostos, suas bases. O que temos é a apresentação, seja no ensino básico, seja na imprensa, de uma vulgata científica que apela à crença, a vulgarização extremamente rasa e rasteira de resultados ou, pior, de possíveis resultados. Para o vulgo, a ciência é apenas outra crença e os métodos de uma pesquisa exitosa não diferem em muito de uma boa reza: não adianta culpar o ignorante se quem tem o conhecimento e a possibilidade de instruí-lo é negligente ao repassá-lo. No cinema, uma boa caricatura de como a ciência é chega ciência aos grande público, de como são vistos os cientistas, está num filme dos seus primórdios: Viagem à Lua, do Georges Meliès, de 1902. Nele, homens com conhecimentos vindo da tradição (ao estilo da escolástica), vestidos em túnicas de magos, que fazem mágicas (como transformar as lunetas em banquetas) e tem ideias mirabolantes (como viajar à lua)! E só na hora de se apresentarem fora de seu círculo é que vestem fato completo, para ganhar a impressão de pessoas sérias e sisudas.
Por fim, o pensamento mágico na política e no pensamento social. Apesar de todos os alertas dos cientistas, dos pesquisadores, da OMS, muitos não acham que vai ser assim tão grave, porque o Brasil seria, sei lá, uma terra abençoada por deus, porque o brasileiro pega imunidade de tudo pulando no esgoto. Antes do grotesco com o vírus, já tínhamos um exemplo grotesco com o "vírus da corrupção": era tirar o PT (depois virou acabar com o PT), que a corrupção acabaria no país: 500 anos de história permeadas por relações pouco republicanas e alienar um partido resolveria. Ou então as reformas milagrosas dos neoliberais: das privatizações de FHC à reforma previdenciária de Bolsonaro-Guedes-Globo-STF, passando pela reforma trabalhista de temer. Que tal o fato de um homem, dotado apenas da vontade, ser capaz de mudar "tudo isso que está aí"? Convém lembrar que antes dele, no início deste século, havia quem dissesse que era "só você querer que amanhã assim será", miraculosamente, num estalo de dedo: em 48 horas o Brasil se resolveria. Ainda que hoje esse pensamento mágico na política seja instrumentalizado pela extrema direita (PSDB de Doria Jr é extrema direita, e sua repaginação durante o coronavírus não oculta sua política genocida nas periferias), ele já o foi também pela esquerda, que muitas vezes não sentiu necessidade de combatê-lo. Novamente a um exemplo do cinema: Encouraçado Potenkin, de Sergei Einsensteim (1925): basta um chamado à consciência de um dos marinheiros revoltados para que os artilheiros da embarcação deixem de cumprir a ordem do comandante, sem ninguém titubear, e estar pronta a revolta dos opressores contra os oprimidos. Consciência de classe instantânea, não dá tempo nem de preparar um miojo.
Talvez quem chegou até este ponto do texto esteja se perguntando: e como sair desta encruzilhada? Imaginar que haja uma resposta e que ela viria num texto é outro sintoma de apego a um pensamento mágico. O que podemos saber é que não há uma resposta pronta, sequer que acharemos algo de aplicação imediata para sairmos desse cipoal. Se a crise do coronavírus abre uma janela de oportunidades para começar a nos desvencilhar do pensamento mágico nessa (des)medida (o podcast Luz no Fim da Quarentena, do Foro de Teresina, me parece ser uma boa forma de divulgação científica sem vulgarização, mas não tenho condições de avaliar se alguém sem qualquer familiaridade com ciência dá conta de acompanhá-lo), é também uma janela de oportunidades para os oportunistas de plantão aprofundarem esse irracionalismo.
O que não podemos é seguir achando que a falta de reflexão e autorreflexão é privilégio de determinado grupo - de direita ou esquerda: por conta do espírito do tempo, estamos imersos nesse desejo de respostas rápidas, de fácil aplicação, que não demandam muitos esforços e não tem efeitos colaterais, alternativas que só podem ser milagres ou engodos. Ou aceitamos que precisamos trabalhar, trabalho pequeno, de dia a dia, sem glamour, com raros eventos interessantes para serem postados nas redes sociais, acompanhado de profunda reflexão crítica de nosso fazer e de nossas crenças - assim como nossa necessidade de crer -, ou não haverá novo mundo como consequência da pandemia: apenas novos elementos de um velho mundo conhecido, cômodo e sufocante.

28 de abril de 2020

sábado, 25 de abril de 2020

Moro foge antes de começar a chacina provocada por Bolsonaro

Moro sempre foi candidato – a questão sempre foi quando e não se. Um projeto pessoal, porém também mais amplo: é o candidato da Rede Globo, como se viu no Jornal Nacional do dia 24, e, segundo Boaventura de Sousa Santos, o candidato dos EUA – desde seus tempos de juiz maroto mostrou completo servilismo ao DoJ. Mesmo que ganhasse a cadeira no STF, é difícil crer que aceitaria em ser mais um, ao invés de ser o Um: provavelmente esperaria o momento oportuno e daria o bote, com boa parte do aparato midiático e institucional dando suporte.
Apesar da confissão da prevaricação do justiceiro para trocar a toga pelo terno (e camisas de futebol e desfiles em tanques), as vantagens mútuas nesse acordo sempre foram óbvias: ele emprestara sua reputação a um presidente fraco, sem base e querendo atuar na base do triunfo da vontade e da truculência, enquanto organizava mais amplamente as estruturas de vigilância e repressão do estado para estarem afinadas ao seu projeto. Duas eventualidades atrapalharam seus planos: não imaginava que política fosse tão difícil e não permitisse agir livremente, como um déspota, não conseguindo acumular o poder que desejava; e a #VazaJato, que o enfraqueceu sobremaneira, de modo que deixou de ser avalista de Bolsonaro para necessitar ser avalizado por ele.
A crise do coronavírus e a resposta precária de Bolsonaro permitiram um equilíbrio maior de força, e nesse momento o marreco de Maringá (ou seria o rato de Curitiba?) encontrou seu melhor momento para pular fora do barco. Provavelmente não tomou essa escolha sozinho, deve ter sido aconselhado e preparado pela sua grande parceira, a Rede Globo.
Ao que tudo indica, o motivo para sua demissão não foi a troca no comando da PF ou qualquer coisa do tipo: sua capacidade de ser servil e engolir humilhações tendo em vista seus interesses não o fariam arriscar uma vaga no STF – ou mesmo a exposição que tem como ministro da justiça (sic) – por tão pouco. Provavelmente ele tensionou um cerco da PF à “familícia” para forçar sua demissão, num momento em que Bolsonaro acenava com o centrão para tentar alguma força, diante do seu poder que se esvai por conta do vírus – assim, Bolsonaro fica com a pecha de velha política corrupta.
Está no seu twitter, na frase que pôs após sair do governo, o provável motivo de sua saída precoce: “sallus (sic) populi suprema lex esto” (para quem não sabe sequer o português da norma culta (e não me refiro à conja), sua citação em latim mostrou que nem recortar e colar ele sabe). “Seja a salvação do povo a lei suprema” (sendo que “salus” também pode significar saúde, segundo o dicionário Santos Saraiva, seja a saúde do povo a lei suprema). Em época de pandemia e negação da ciência, ou melhor, de combate à ciência, os mais vivos estão fugindo antes da bomba estourar com as pencas de mortos.
Até a saída de Moro, Bolsonaro mantinha seu terço radical do eleitorado, considerado suficiente para chegar ao segundo turno em 2022. Era um eleitorado bastante consolidado, daí Moro abraçar o figurino da força – visto que o apoio a ele vai além desse reduto fascista descarado – e sua mulher dizer que Moro e Bolsonaro eram “uma coisa só”. Outros concorrentes da extrema-direita trataram de buscar outras paragens, a de centro-direita democrática (disputando com o vice, general Mourão, que por mais que se esforce e tenha tomado um banho de verniz de civilidade sofre da síndrome de Dr. Strangelove e levanta o braço em horas inoportunas), tão logo se abriu uma brecha para mudarem o figurino sem serem acusados de traidores – no caso, o coronavírus.
Se o coronavírus não serviu de álibi para Moro, sua previsíveis consequências devem ter dado o alerta de que era hora de se desligar dessa “coisa só” que ele é com o capitão. Provavelmente ele percebeu que esse apoio irrestrito de um terço vai mudar quando a conversa das pessoas comuns – dentre os quais incluo bolsonaristas, apesar de sua incomum capacidade de negar a realidade mais óbvia – passar de  “hoje morreram 400”, “ontem morreram cinco mil” para “hoje morreu meu pai”, “ontem morreu minha filha”. Nesse momento a discussão se no início era o verbo ou a verba, se existe pessoas sem economia ou economia sem pessoas será tragada pela dura realidade dos mortos com nome (coisa que sequer os filhos do presidente tem para o pai, que o diga o zero quatro, rapaz que rodou pelas mãos do condomínio mais que cuia de chimarrão entre gaúchos expatriados). Moro se antecipa (como fez Mandetta) e escapa para não ser acusado de cúmplice da matança anunciada: dificilmente alguém que estiver ao lado do presidente nessa hora sobreviverá politicamente – mesmo que haja um milagre econômico depois.
Ao mesmo tempo, racha esse terço de apoio irrestrito a Bolsonaro, e é apresentado pela rede Globo vestindo um figurino centrista, de defensor do Estado de Direito, eterno paladino anticorrupção e não-político (o que implica em não tergiversar em seus princípios). Este, inclusive, seu grande trunfo, a arapuca armada contra Bolsonaro, para roubar dele o discurso da antipolítica: poderá dizer que tentou agir desde dentro do “mecanismo”, mas foi impedido pelos políticos, e que pretende ter ele o poder, para não ter que ceder um milímetro na construção de um Brasil puro, limpo, livre de toda corrupção (e de todo esquerdismo).
Agora é ver como a direita organiza suas forças: há cacique demais para pouco índio. Se for compôr com algum governador ou político de turno, Witzel parece o mais apto para aceitar o risco. Doria Jr, ungido a candidato do establishment, em especial depois da crise do coronavirus, sabe o que é fechar com pessoas gananciosas e sem escrúpulos: vai ciceronear Moro, tentar ganhar simpatia de parte de seus apoiadores, para atirá-lo ao mar no momento certo. Mesmo as elites, depois de darem com os burros n’água com Bolsonaro, primeiro apresentado como boi de piranha, para garantir que o antipetismo em alta levasse à vitória tucana, depois ao apoiá-lo, crendo que poderiam controlá-lo uma vez no Palácio do Planalto, devem estar pesando muito antes de se meter com outro aventureiro antipolítico e personalista – Doria Jr já mostrou que uma vez no poder é confiável com seus financiadores.
A Rede Globo já deu início à campanha para 2022, falta a esquerda decidir se entra nela agora ou segue na janela, vendo a banda passar.


25 de abril de 2020

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Em meio à pandemia, uma cidade habitada por pessoas invisíveis

Foto de André Conceição.
Instagram: @andre.conceicao.ac
Salvo duas idas ao mercadinho da esquina, a última vez que havia me afastado de casa tinha sido dia 18 de março, por conta de trabalho. Ainda que as ruas estivessem um pouco mais vazias, o comércio seguia aberto. Novamente por conta de trabalho, quarta dia 22 precisei sair de casa. Tinha três opções: a tradicional, tomar um metrô ao lado de casa e ir até a estação Tietê; chamar um motorista por aplicativo ou uma caminhada de uma hora e meia. Claro, não perdi a oportunidade de fazer o "trekking urbano" que tanto gosto.
Álcool gel no bolso, coloco a máscara e me lembro de quando fazia yoga, a hora da meditação: quando precisava ficar parado e concentrar, coceiras pelo corpo todo, como se pulgas surgissem do nada e avançassem famintas. A mesma coisa com a máscara: coça nariz, coça queixo, coça bochecha, coça, coça, coça, e eu sem poder pôr a mão. E segue coçando.
Isolado em casa, numa rua sem saída e sem movimento, não tenho noção do que acontece pela cidade. Imaginava-a mais movimentada, pelo que leio de quem saiu por esses dias. O movimento não é grande, mas também não é pequeno. No trajeto que fiz, São Paulo tinha um ar muito estranho.
Desço a rua Vergueiro e a avenida da Liberdade. Exceção à proximidade do Hospital do Servidor, pouco, muito pouco movimento, até chegar na praça da Liberdade. Não tem cara de domingo tampouco: aos domingos as lanchonetes estão abertas, há mais bicicletas na ciclovia, mais carros.
Na praça da Liberdade acontece uma feira livre, há um pouco de movimento, nada que se pareça com a Liberdade em qualquer dia semana. Há mais pessoas sentadas pela praça, para usar a internet (lembro no início da quarentena que se discutiu oferecer internet grátis, como forma de ajudar as pessoas a ficarem em casa, mas diante de um governo que não foi capaz de disponibilizar a contento dinheiro e meios de sobrevivência, discutir internet é luxo).
O movimento começa de fato na praça da Sé. Perto de um dia comum, há mais GCMs, há mais moradores de rua, há menos pregadores, menos transeuntes e turistas. Uma viatura da GCM vai em direção a uma fumaça que sai do centro da praça. Passa por ela como se fosse algo banal. Ao me aproximar, vejo uma mulher num fogão improvisado esquentando água, batatas doce ao seu lado. Um outro morador de rua comenta: "vão ficar boas essas batatas". Me lembro do conto da sopa de pedra, que li quando era inocente puro e besta de pouca idade, em um livro com contos e lendas da América Latina. Não entendi: por que o homem jogava fora as pedras da sopa? Precisei que meu pai explicasse a esperteza do protagonista. A sopa da mulher não tem nada de esperteza, nem de ingenuidade: é sobrevivência, é a estética da fome desprovida de toda arte. Ao avançar, descobrirei que essa uma nova tendência do centro menos nobre de São Paulo: fogões improvisados para preparar refeições possíveis - se até 'chefs' estão tendo que se reinventar durante a crise, como várias reportagens não cansam de mostrar esse "drama", que dirá dos esfomeados...
Desço a General Carneiro até a 25 de março. Alguns poucos ambulantes vendem meias e máscaras. Quase ninguém na rua, mas ainda assim a 25 tem um ar de estar movimentada: como se seu tropel habitual fosse um moto perpétuo que acontece independente das passadas serem reais ou apenas espectros. Nas proximidades do mercadão noto mais de movimento - inclusive de carros -, nada que aproxime de um domingo. Com boa vontade, metade das pessoas está de máscaras, muitas delas deixam o nariz de fora, para melhor respirar, outras protegem do vírus entrar pelo cavanhaque ou pela papada, as orientais são disparadamente os mais diligentes no quesito de precaução. Avançando depois da Senador Queiros, pessoas na porta de seus estabelecimentos brincam com conhecidos que transitam: "não vai ficar em casa?", "saí, mas é rapidinho".
O que mais chama a atenção nesse trajeto do centro, sempre tão movimentado, é como emergiram os invisíveis: são muitos e muitos, mais que nos dias de antanhos, que hoje chamamos de "normais" - apesar dessa anormalidade sempre estar presente na Sé. Esse tanto de mendigos e moradores de rua sempre esteve ali? Talvez sim, mas diluídos no mar de gente que transita, a proporção faz perdermos a noção de quantos realmente são. Talvez porque muitas pessoas estejam em sua casa, eles, nas deles - a rua -, surja tão gritante aos meus olhos. Ou talvez mais pessoas hoje residam na rua, não sei. Pelo jeito, o rapa da GCM contra moradores de rua também anda em baixa: vi várias casas improvisadas, com razoável estrutura montada. Novamente me lembro da minha infância, minhas cabanas de cobertor, almofadas e caixas de papelão. Já no Canindé, passo por uma que aparenta ser um cantinho bastante aconchegante, admito. A dona da "casa" está do lado de fora, acende o fogo com o qual vai preparar seu almoço. Pouco adiante, cruzo com alguns adolescentes que caminham despreocupadamente, com a soberba imunidade autorizada pelo presidente da república. O clima de férias destoa deles destoa do que presenciei em todo o resto do trajeto, onde uma pinta de preocupação é notável, mesmo que se faça piada da pandemia.
Cumpro minhas obrigações laborais e volto pelo mesmo trajeto. Na casa que havia comentado antes, a panela já está no fogo, a entrada do barraco está fechado com algo que faz a vez de uma precária porta, reparo que há um tapete na entrada: a mulher tirou os chinelos para entrar em casa. Ao passar pela feira livre que acontece no Canindé, pego um resto de conversa entre dois homens, o sem máscara está terminando sua frase "...um irresponsável!", ao que o mascarado complementa: "alguém tinha que chegar e matar esse filho da puta, que não deixa a gente trabalhar". Desconfio que falem do governador do estado, mas o que mais me chama a atenção é ao que foi reduzida a política: solução é via derrubada ou - melhor ainda? - assassinato puro e simples. O mundo não será o mesmo, dizem, depois da pandemia. Também creio nisso, e sou otimista. Porém ao ouvir coisas como essa sei que o trabalho não será pouco e não será breve para a reconstrução de um mundo onde a convivência pacífica seja um direito, não um privilégio.

24 de abril de 2020

domingo, 5 de abril de 2020

Entre orações, afagos e intervenções: as movimentações das forças políticas.

Ainda que a pandemia de coronavírus force a ações urgentes dos governantes de turno, necessárias para o aqui e o agora, atropelando convicções e conveniências partidárias, os políticos não deixam de agir também visando ganhos futuros - por mais nebuloso que seja o pós-pandemia.

O coronavírus trouxe uma oportunidade impressionante para quem está no poder, ainda mais nestas plagas: é capaz de fazer até o mais medíocre parecer bem preparado: se a crise financeira de 2008 se espalhou pelo mundo de maneira muito rápida, dado o estado da arte das comunicações e do dinheiro virtual, a pandemia ainda respeita minimamente os tempos da natureza - por mais que potencializado pelo estado da arte dos meios de transporte -, e até chegar na América Latina precisou de um tempo relativamente longo, em que dava para se preparar o mínimo, e uma vez aqui, tendo já experiências de sucesso e fracasso na China e na Europa, não era preciso inventar muita coisa - como foi em 2008 -, apenas acompanhar e adaptar o que deu certo. Mendetta, tido hoje como grande homem, na verdade é alguém que fez, se muito, o básico. Na Argentina, Alberto Fernández tampouco tem inventado qualquer coisa de excepcional, mas por seguir o recomendado, tem tudo para se tornar uma grande força política dos próximos anos, basta não cometer nenhum grande erro no pós-pandemia.

Nestes Tristes Trópicos, fala-se muito do governo federal - com boas razões -, mas convém ressaltar que os governadores tampouco se prepararam a contento, preferindo confiar que o coronavírus não se espalharia da forma como o fez. Quando veio, aí, sim, salvo patéticas exceções, não hesitaram em agir conforme os protocolos internacionais mais indicados. Há um movimento que deve ser observado depois, de como o pacto federativo será posto após isto passar, visto a organização de governadores e outros atores políticos e estatais à revelia do poder executivo nacional - desde sempre hipertrofiado, mas atualmente subutilizado.

Bolsonaro, como vários analistas já levantaram, parece arriscar (alto) em duas alternativas: a primeira, na senda do terraplanismo olavista e dos empreendedores de sucesso (e dos crimes fiscais e outros, bem ao gosto das sugestões do mito), ao insistir no discurso de manter a economia funcionando, é de que a quarentena imposta pelos governadores dará resultado, a pandemia não será tão grave como pode ser, e ele teria o discurso de que tinha razão ao querer que as pessoas não parassem. A segunda, em conluio com Guedes, parte de forças de segurança e do crime organizado, das igrejas evangélicas reacionárias e das protomilícias fascistas, é a de levar o país ao caos e permitir um estado de sítio, uma ditadura - que permitiria fazer "um trabalho que a ditadura militar não fez, matando uns 30 mil". Há quem diga que ele ainda não foi apeado do poder justo por receio de levante dessa massa fascista que o apoia. Contudo, mantê-lo como chefe de Estado, mesmo sem o poder utilizar a caneta presidencial, não o imobiliza como agente performativo: suas palavras tem poder de mobilização, inclusive por conta do cargo que está investido. Esse arranjo garante que pessoas sérias tenham um controle um pouco melhor da pandemia, mas não resolve o problema político - para 2022, por exemplo.

A chamada de jejum e oração do governo, para este domingo, dia 05, bastante ridicularizado pela porção mais ilustrada da população, não é um ato inócuo, pelo contrário: em momento de desespero, em um país onde as pessoas precisam crer em forças invisíveis - que o diga não apenas o crescimento evangélico que segue pastores charlatões, mas os terraplanismos quânticos, astrológicos, constelacionais familiares, wikkas, yogers e outros que animam parte das pessoas comuns afinadas com a esquerda progressista -, ele passa a imagem de alguém humilde perante os desígnios insondáveis de deus, reforça o elo com líderes religiosos reacionários, e dá a estes uma oportunidade de maior controle sobre o rebanho: quando a fome bater à porta com mais vigor, quando a doença se abater sobre as periferias, mesmo que haja leito para todos, estará ao lado o líder religioso para lembrar que trata-se de um recado de deus - e tal líder, claro, fará o trabalho de decifrá-lo aos desesperados incautos.

O outro fato marcante da semana foi o afago de Doria Jr a Lula. O gesto é um passo além do político neofascista tucano para repaginar sua imagem política e se gabaritar ainda mais como nome de consenso (e de combate) para 2022 - se houver eleições em 2022.

Como comentei em outro texto, da peleja entre Bolsonaro e governadores, Doria Jr soube se cacifar como o grande nome do confronto: tem feito o básico, sabido divulgar isso (com ajuda da grande mídia, claro) e ainda peitou sem medo o presidente [bit.ly/cG200327]. A bandeira branca acenada para Lula o mostra como alguém que saberia superar divergências no momento de urgência, disposto a conversar e compor com todos. Para o futuro, está pronto o discurso caso PT ou a esquerda se recuse a um pacto nos termos que ele impuser: a esquerda é intolerante. Com isto não quero dizer que o gesto não seja importante, até para baixar um pouco a polarização insuflada por ele e seus colegas de extrema direita - políticos e também jornalistas, inclusive os que posam de moderados e isentos -, como reabilitar o debate político em termos racionais como legítimo.

Para além da eleição de 2022, o outro motivo para o gesto do governador paulista talvez esteja na possibilidade de não haver eleição - e então ser necessário compor uma frente democrática. A intervenção no governo feita pelos militares, com o deslocamento de Bolsonaro para "Rainha louca da Inglaterra", aliado a um arrepio legalista do judiciário, podem animar parcelas das elites a apoiar um golpe latino americano clássico, isto é, um golpe militar, o que interromperia seus anseios políticos. Certamente, se esse cenário não avançar e voltarmos ao que era antes - um grande acordo nacional, com Supremo, com tudo -, o político não levantará a voz para defender o PT da cassação de seu registro, por exemplo.

Por seu turno, Ciro Gomes parece um dançarino de valsa: dois pra lá, dois pra cá. Quando parece que pode se reabilitar como voz do campo progressista, como no episódio da retroescavadeira antifascista protagonizado pelo seu irmão, que lhe dava até um álibi para o retiro em Paris no segundo turno de 2018, volta a deixar o ressentimento pessoal se sobrepôr a qualquer interesse maior: seu comentário sobre Lula na entrevista à revista Carta Capital mostra que ele pode ser alguém bem preparado, mas sua mediocridade pessoal se sobrepõe ao homem público. Já Lula tem se mantido discreto, o problema é a Luladependência do PT e das esquerdas, que não ocupam o palco livre - para agradecimento de Doria Jr.



05 de abril de 2020