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sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Por onde (não) andam os porcos? [Diálogos com a dança]

Entro na sala de espetáculo II do Sesc Belenzinho, para assistir a Por onde andam os porcos, com direção de Iara Izidoro e atuação de Marcela Aragão, Foster, Meujaela Gonzaga, Marcela Felipe e Iara Izidoro - os pernambucanos haviam vindo para o MITSP de 2020, mas eu não conseguira ingresso. As janelas estão abertas e por elas a cidade desponta na ruas e nos prédios, nas luzes do parque de diversões, logo ao lado, e no Edifício Platina 220, ao fundo - há um choque entre o antigo e o pós-moderno, entre a decadência do primeiro e a decadência do segundo. A distinção público-palco é sutil, pelo piso de linóleo, e ao cabo não existe: os artistas não se limitarão àquele quadrado, assim como o público que, se quiser, pode adentrar. A luz de serviço está acesa, porém a cena já corre e nela estão sete pessoas: os cinco dançarinos - duas mulheres cis, duas mulheres trans e um homem cis - e duas pessoas do público, que só descobrirei ao final que eram público. Eles correm pelo espaço, ora indo para frente, ora para trás. Às vezes param, se tocam - por pouco tempo: são pausas e toques efêmeros. Há uma banalidade, um ar desvitalizado nesse correr, nesse parar, nesse se tocar. Não há sinal de urgência, nem uma ansiedade latente: há apenas a necessidade de seguir em movimento. Nossa pressa-moto-contínuo do dia a dia, os porcos a correr por sobre as pérolas do tempo, cegos a tudo que é presente.

Quando começo a me familiarizar com esse preâmbulo, as cortinas se fecham, a cidade some, e o espetáculo entra em uma nova fase. Os dançarinos se despem e agora além do correr há o pular, os contatos tem outra intensidade, há risadas histéricas, há gestos mais densos, há o se atirar no chão - ao estilo Cena 11. A mudança, ainda que não seja brusca, leva o público de volta ao estado de estranhamento. A luz se torna mais cálida - noto que o que achei que era luz de serviço é, na verdade, a geral, a iluminar todo o espaço. É esse tom mais quente, junto a todo o gestual das cinco pessoas, que me remetem ao Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosh. Contudo, é um Jardim das Delícias sem cor, sem seres fantásticos, sem paisagem alucinógena. Há uma loucura que se pretende diversão mas é só desespero: o exuberante bacanal daquele jardim substituído pela pobreza da vida nua e desvitalizada do capital - o sem sentido e permanente crescer de mais do igual -, do correr correr correr por correr, e o parar sem de fato estancar o movimento; a nossa total falta de consciência do nosso agir e do nosso entorno, ali representada pelo palco nu, pelos atores nus. O ato termina com todos parados lado a lado, expostos para a contemplação do público, com um drone sobre suas cabeças a nos vigiar também - neste ponto, admito, senti falta de um corpo gordo para compôr o quadro.

Novamente, quando estou a me familiarizar, novo corte - desta vez abrupto -, novo jogar o público no estranhamento. É quando a “bad trip” se evidencia: a sala escura e os cinco apenas com lanternas em suas testas, de início tentando achar um caminho naquele vazio, com focos a iluminar pouco além do próprio nariz, a seguir em giro alucinado - e angustiante - por longos minutos, para terminar apenas com os rostos iluminados: seriam fantasmas ou demônios a vagar sem rumo?

Novo corte. Os dançarinos despontam por trás de placas semi-transparentes postas num canto da sala - quase como se fossem televisores. Os corpos aparecem recortados e deformados. Ao saírem de trás desse biombo, de fato estão deformados - me fez lembrar de um espetáculo da Taanteatro. Um deles traz longos braços, os demais possuem deformações menores. Do lado oposto da sala, outro dançarino pula, ri e se joga no chão, com um “equipamento” que liga seu anus ao rosto. A bad trip do Jardim das Delícias Terrenas está de volta - o homem-máquina almejado pela contemporaneidade transformado em impotente monstro de si próprio. No fim, o drone volta sobrevoar os dançarinos, até eles saírem de cena, sobrando apenas a máquina, à qual assistimos passivos e bestializados por longos minutos, até sua bateria acabar. As cortinas para a cidade se abrem, as palmas surgem hesitantes, sem saber se se trata mesmo do fim.

São Paulo, 26 de agosto de 2022

 

sábado, 9 de julho de 2022

O Idiota, de Marcos Abranches e Sandro Borelli [diálogos com a dança]

Não sou crítico de dança, não tenho bagagem para tanto, por isso acho complicado classificar um espetáculo: pode ser muitas vezes que eu esteja guiado por uma questão de gosto, ignorando todas as referências artísticas que são trazidas. Assim, prefiro dizer que O idiota, espetáculo mais recente do dançarino Marcos Abranches, me foi uma decepção do início ao fim e além. Sim, eu tinha expectativas altas, por conta do que conhecia do trabalho de Abranches, mas não foi só por isso. 

O trabalho de corpo de Marcos está presente, mas parece desvitalizado; poucas camadas de interpretação se sobrepõem, as falas são rasas, óbvias, beiram o eruditês estéril, um professor sem carisma dando uma aula por obrigação; a dramaturgia parece pretensiosa, mas é superficial e tediosa. Há ainda a impressão de que havia problemas com o projetor (ou com o operador), que acabam chamando mais a atenção que o próprio artista, na expectativa de algo que amarre tudo aquilo e permita um salto qualitativo. Nada: a projeção, quando surge, muito pouco acrescenta. São poucos os momentos em que vejo aquele corpo que tanto me impressionou em 2014, com Corpo sobre tela, e em 2015, com a primeira versão de O grito. Me pergunto se o fato de eu não ter lido O idiota, do Dostoievski, no qual o espetáculo se inspira, não seria o problema, mas rejeito essa ideia: conhecer a obra poderia até me ajudar a fruir melhor a coreografia, mas depender de conhecimentos prévios é algo para uma tese, para uma discussão academicista, não para uma obra de arte. Com vinte minutos estou conferindo o relógio - pouco depois noto uma pessoa ao lado fazer o mesmo. É quando lembro do outro nome que está no programa: Sandro Borelli. Isso ajuda a entender: no palco está Marcos, mas o ritmo e a (falta de) profundidade é típico das coreografias que já vi de Sandro.

Acompanho a cena de dança paulistana há dez anos, nunca entendi toda a importância e deferência que Borelli tem. Do que conheço da sua produção, faz uma arte pretensiosa e superficial nos seus melhores momentos [https://bit.ly/cG140330], e revoltantemente racista nos seus piores (o blackface na capa de sua revista Murro em Ponta de Faca criticando os "privilégios" dados aos artistas negros é asqueroso). Uma arte branca, cis-hetero e classe média - ou seja, uma arte medrosa e limitada, feita a partir de um ponto de vista de um privilegiado que não se reconhece como tal. Talvez aconteça na dança o mesmo que acontece no teatro paulistano: um jovem branco, de classe média, heterossexual, que se diz de esquerda, com posições "polêmicas" sobre temas identitários, e adora cenas com algum tipo de violência escancarada, que ganhou um prêmio uma vez e passou a ser cultuado por tudo o que fez e faz depois, mesmo que não tenha produzido mais nada de relevante e poucas vezes tenha ido além de mais do mesmo, reiteradamente chamado para falar do que não entende e nem tem sensilidade para compreender (que seja a própria incompetência no assunto).

A hora que O Idiota mais perturba é quando o som sai alto e estridente das caixas, me forçando a tapar os ouvidos. O enunciar do ato a ser feito - "pôr o braço esquerdo", "colocar o paletó na cadeira" -, não quebra qualquer quarta parede, apenas puxa o espetáculo para o raso, justo num breve momento em que camadas começavam a se sobrepor - a conversa do personagem bêbado com o casaco e seu se apresentar como bailarino. Repetir o slogan da campanha de 2018 de Bolsonaro enquanto toca o hino nacional e faz posição de sentido foi um tapa na minha cara, que esperava algo que não fosse tão literal e óbvio.

Em dado momento as tatuagens de Marcos me fizeram divagar sobre o quanto a assimilação da cultura marginal não serve para incluir essas pessoas que estão à margem, apenas jogá-las ainda mais em guetos. Luis, que me acompanhava, disse ao final que também "fugiu" da sala em algum momento - sua divagação tinha sido sobre Duchamp na história da arte. Duchamp, tatuagens, beber uma cerveja do Bixiga Sem Medo depois; enquanto isso, diante de nós, um espetáculo baseado em Dostoievski corria sem nos causar impacto.

A outra decepção veio logo após os aplausos, quando Marcos voltou e conversou brevemente com o público.

Disse ele que quer ser um “adulto da dança”, quer ser visto como artista e não mais como “um coitadinho que se supera”. Esse tipo de fala é decepcionante: um artista com o trabalho que Abranches possui tendo que reivindicar que o olhem por quem ele é e não pelo preconceito com que muitos ainda o vêem: sua diferença como uma incapacidade - quando a única incapacidade está em quem tem essa visão, de ser incapaz de sair de seu preconceito alienante. Certamente ele não é tido por "adulto" não pela qualidade de sua obra, mas por outras razões - a começar pelo preconceito. Mas se a maioridade artística vier com O Idiota, não será sem profundo significado: essa passagem não com a apresentação de uma obra maior, mas justo o contrário, um espetáculo menor de sua carreira. Que ele sirva de combustível para se reinventar, rever suas parcerias e seguir experimentando e desenvolvendo aquilo que tem de melhor - sua dança como um reflexo do nosso quotidiano desajustado todo ele.

Lembro da primeira vez que assisti a uma dança sua: entrar na sala da Galeria Olido (que muita falta faz: a mudança das apresentações de dança para o CRD foi lamentável: interrompeu o processo de formação de público e fez da dança paulista uma arte de gueto para amigos e iniciados) sem saber nada da sua história, ficar impressionado com seu espetáculo, com seu trabalho de corpo, e me surpreender, no final, ao descobrir que aquele corpo cênico era construído a partir do corpo do próprio artista - a diferença imposta pela sua paralisia cerebral - e não era todo ele apenas interpretação. Assim, nunca o vi como um coitadinho, nem vi no palco superação: vi o trabalho de um artista a explorar todas as suas potencialidades e a nos jogar na cara nosso quotidiano opaco, conformado, limitado [https://bit.ly/cG131116]. 

Um artista do porte de Marcos Abranches ter que pedir esse tipo de respeito é decepcionante, e não podemos pôr na conta da extrema-direita e do bolsonarismo: é nosso fracasso enquanto sociedade, nosso olhar normativo querendo nos pôr como superiores aos diferentes.


09 de julho de 2022

domingo, 18 de novembro de 2018

Metacrítica do fazer artístico e democrático [Diálogos com a dança]

Acontece até dia 13 de dezembro, na Funarte São Paulo, nos Campos Elíseos, o Dança se move ocupa!, intervenção dos artistas da dança de São Paulo. Fui nas aberturas de processo do último sábado - Ato Infinito e Dança para Camille
Não há como não desvincular a abertura de processo de Ato Infinito, da iN SAiO Cia de Arte, do contexto em que foi apresentado - uma ocupação da Funarte, sem aporte financeiro, após a eleição do Messias do apocalipse - e da fala trazida antes de adentrarmos a sala - em que se assinalou o golpe, a ascensão do neofascismo, o ataque à arte e à cultura, seguido do pedido de desligar celulares e de circular pelo palco. Ato Infinito acabou ganhando ares de crítica metalinguística do fazer artístico (e democrático), um convite à leitura das exigências (mais que das possibilidades) da arte, talvez esquecidas, ou melhor, subestimadas, nos últimos anos.
A arte formada pela proximidade, pelo contato, pela tensão. A arte enquanto equilíbrio tenso e instável - porque movimento e porque inserido num mundo para além da arte, em constante mutação -, de conflitos e quedas e retornos e retomadas. Os cinco bailarinos o tempo todo em tensão, em contato, em improvisação, sem rumo certo, perdendo o foco - ou sendo perdido pelo foco, que algumas vezes não acompanha o trajeto dos cinco, quando não tenta se adiantar e se equivoca -, exigem do público permanente atenção. Parte desse público preferiu se sentar na plateia, evitar a fadiga de oscilar pelo palco, sob o risco de ser acertado pelos artistas suados. A música, em tensão permanente também, sem se desenvolver e sem se resolver, é o gozo da repetição do sintoma - poderia, deveria ir além, mas fica nesse ponto de tensão em que se foge de enfrentar sua resolução.
Pus a me perguntar o quanto não nos acomodamos - artistas, intelectuais, movimentos sociais, campo progressista - numa pretensa pax democrática-liberal, quase ao sabor de Fukuyama; quanto não acreditamos na perenidade desse momento quando deveríamos saber era uma situação institucional transitória, isso num Estado que nunca se mostrou confiável que não ao 1%. O quanto esquecemos, por deslumbre, comodismo, preguiça, que democracia - tal qual a arte - é uma construção permanente, um "ato infinito", de atenção, tensão e criação. O quanto não fugimos do contato desgastante com o outro, com o diferente, seguros e satisfeitos em nossas bolhas de mais do mesmo. Me chamou a atenção que os cinco bailarinos tinham tênis novos, solas intactas: soou como a coroação dessa crítica à arte que não sai de si, que não vai para as periferias, que se recusa a ouvir o que não for elogios - e digo isso assumindo que Claudia Palma é das que, ao meu ver, mais se aventuram e com maior sucesso nessa tarefa de tirar a arte desse casulo para eruditos iniciados, sem com isso se rebaixar a fórmulas simplórias e massificadas, não apenas pondo o público no palco como levando seus espetáculos para a rua, estações de trem, viadutos, praças, centro e periferias, sem qualquer solenidade, mas com impacto, como já pude conferir [bit.ly/cG141218].
A segunda apresentação da noite, Dança para Camille, da Cia Fragmento de Dança, serviu de reforço à minha leitura da metacrítica de Ato Infinito. Um espetáculo bonito, poético, onírico, um sonho de um mundo harmônico, duas pessoas com a mesma roupa, no mesmo passo (literalmente). Sem tensão e sem conflito, a abertura ao outro que não passa de um duplo, um espelho de si - um sonho pequeno burguês de solidão a dois, deixando do lado de fora tudo o que é dissonante. É a saída que considerável parte da arte buscou nestes últimos tempos, mesmo que o texto fosse crítico, não deixou de ser uma arte de fuga - fuga da busca do diálogo com quem não é habitual das artes, de atrair novos públicos para uma arte que não é a massificada, mas nem por isso precisa(ria) ficar restrita aos iniciados. E se no início deste século esse tipo de sonho de evasão soava inofensivo, hoje, dormir pode significar ser atropelado, queimado vivo - por ora, apenas metaforicamente, por ora. Pior, se se substituir a poesia pela brutalidade, o mesmo anseio de Dança para Camille embala os discursos dos fanáticos do "mito": a arte precisa estar mais vigilante do que nunca, precisa ser mais combativa que foi nos últimos tempos - e isso não significa adesão a nenhum didatismo ou realismo socialista.
Contudo, como atestam as recentes perseguições às artes pelas patrulhas moralista-fundamentalista, além da unidão (tensa) dos artistas comprometidos com a democracia, os direitos humanos e um fazer artístico que não seja publicidade da brutalidade fascista (neo ou old, tanto faz), a arte precisa ir além da crítica, precisa também propôr, convidar ao sonhar, a um outro mundo, sugerir, induzir a novos fazeres sociais, novas sociabilidades. A abertura conjunta de Ato InfinitoDança para Camille mostram essas duas pernas do fazer artístico, e convidam pensar formas que atuem sincronicamente.

18 de novembro de 2018.

domingo, 23 de setembro de 2018

Blasé tropical [DIálogos com a dança]

O olhar estrangeiro sobre nós nos permite desenxergar muitas coisas que nos soavam tão naturais que sequer necessitavam ser vistas. Esse olhar pode ser ao ir para o exterior, se pôr em contato com uma outra realidade (dentro do próprio país), ou quando o estrangeiro (ou migrante) vem até nós e se surpreende com aquilo que nos é óbvio. A questão é o quanto estamos abertos (ou seria aptos?) para ir além do familiar, sem preconceitos e sem temores paralisantes. Frantz Fanon só é Frantz Fanon porque soube se desenxergar e se enxergar de outros modos - ou então seria apenas outro zé ninguém na Martinica, arrotando prepotência para outros zé ninguéns tão negros quanto ele, mas mais zé ninguéns porque não moraram na França nem falavam o francês "correto". Soube - de modo fenológico, arrisco dizer - aceitar a forma como era visto na França como a verdade, não a verdade absoluta, mas a verdade dessa visão - parcial, preconceituosa, rebaixadora, formadora das verdade das elites da Martinica e da França. E se deu conta que ser capitão do mato poderia lhe dar alguns privilégios, sem o salvar, porém, de ser um dos condenados da Terra - o colonialismo europeu, sempre presente, é como a hospedagem de Polifemo com Odisseu: daria a Fanon o privilégio de ser comido por último. E como Odisseu, Fanon soube que se assumir um ninguém, um zé ninguém, era a chance de salvação de todos os que estavam na mesma condição.
Escrevo isso pensando em amigos, conhecidos e desconhecidos que foram para o exterior e voltaram tal qual foram - ou sequer voltaram, mas seguiram os mesmos. Visitar os pontos turísticos consagrados pelo roteiro da circulação de pessoas é bonito, interessante - eu mesmo gosto -, porém nada, muito pouco acrescenta - uma professora (suíça) do mestrado dizia que se era para viajar só para ver os locais consagrados, melhor, fotografar ponto turístico melhor ir numa livraria de São Paulo, mesmo, e comprar um postal, sai mais barato e dá na mesma. Amiga que mora no Canadá comenta que recebe seguidamente da comunidade brasileira abaixo-assinados contra o aborto, o casamento homoafetivo e outros avanços legais canadenses. Não se trata de defender um adesismo cego, porém, se ser chauvinista já não é bom, quando se mantém essa mentalidade morando no exterior, só mostra a incapacidade de qualquer reflexão, para além da dos espelhos bem polidos (e vale para os que aderem ao chauvinismo local, como um (ex) amigo que foi morar nos EUA e não cansa de louvar a terra da liberdade, onde só há pontos positivos - tirando os mexicanos e os árabes). Como cantam os Racionais Mc's em "Negro Dama": não dá para tirar a favela de dentro de quem nasceu nela: saber assumir sua origem, trazer suas referências consigo, entretanto aberto ao que surge de novo. Não é destino, mas é parte da história. 
Na verdade, ao começar a escrever, pensava mesmo em exemplos menos drásticos, criticar meus colegas de fração de classe, homens e mulheres na faixa dos trinta, quarenta anos, universitários, mestres, doutores, brancos, de esquerda, descolados, cosmopolitas com toques nacionalistas (anos-luz do patriotismo chulo de um Galvão Bueno), que geralmente passaram uma temporada no exterior - de alguns meses, ao menos. Como parte do discurso de valorização do Brasil, não raro gostam de samba, sabem até a letra de alguns famosos, como "Trem das onze" (ultimamente alguns até ousam um funk ou afim, depois que parte dessa cultura foi valorizada por teses universitárias), mas também não dispensam um rock alternativo internacional - se hoje odeiam hypster é porque não podem se assumir, pois pegaria mal a eles, antigamente emos ou indies, dançar de moda em moda, deixando evidente sua preocupação em estar up to date, na ausência de algo mais sólido com o que conseguiriam se apresentar. Em meio a estes meus amigos, é comum os que mantém uma pose blasé: aquele que quer fazer o estilinho intelectual ou artista parisiense desolado do pós guerra, o entediado com cara de bunda, o "descolado descolado" - a pessoa especial que não tem lugar nestes Tristes Trópicos. Admito que blasés são dos que mais me cansam - acho só perdem pros indies ressentidos que odeiam hypsters.
Todo essa conversinha de cerca lourenço acima por conta de dois espetáculos de dança a que assisti recentemente. Um deles foi este fim de semana, "O que ainda guardo", da Quasar Cia. de Dança, de Goiânia. Uma hora de dança embalada por bossa nova. O espetáculo é bom, bonito, divertido de um humor sutil (como no rapaz guache (para usar um termo franco-drummondiano) que ensaia se aproximar da mulher que se insinua ao som de "Só danço samba"), com uma leveza gostosa (como em "O Pato"); porém me fez lembrar que, ainda que eu goste de bossa nova, não aguento muito: dá sono. Sambas do sono. Sambas brancos, classe média, jazzísticos: a retomada antropofágica de Oswald de Andrade ao ethos (ou seria ao pathos?) das elites nos anos sessenta. E qual seria esse ethos ou pathos?
Quem me deu a deixa foi a companhia francesa Cie. DCA Philippe Decouflé, que apresentou em São Paulo, no final de agosto, a ótima e divertidíssima "Nouvelles Pièces Courtes". Não sei se é o original, ou foi adaptado para o Brasil, porém no ato anterior aos bailarinos embarcarem para o Japão oitentista, com seu consumismo bizarro e sua programação televisiva bizonha, a cena do aeroporto tocando bossa nova, num clima sessentista e blasé, me fez entender que é isso - esse som que orna com certa cara de bunda e tédio enquanto se toma água de coco e fuma um cigarro em Ipanema - que tanto me cansa: seu "blasésismo", mesmo que abrasileirado. Se acaso foi adaptado para a apresentação aqui, a junção entre bossa nova e o estilo blasé foi de uma harmonia perfeita: aquele samba contido, de bons modos, voz e violão, para não incomodar os vizinhos do andar de baixo em algum edifício da Avenida Vieira Souto, o chique cosmopolita tentando fugir do tédio com uma versão para gringo ouvir do samba que se faz no morro. Som brasileiro-cosmopolita de altíssima qualidade adaptado para harmonizar com não-lugares - no caso de "Nouvelles Pièces Courtes", o aeroporto. Um blasé tropical, mais leve, mais solto, e com uma pitada de melancolia para quem a vida não tem prestações a pagar nem faz sentido.
Fecho este texto retomando o que havia falado antes, o complexo de vira latas tupiniquim: meus amigos da minha fração de classe, ilustrados e de esquerda, vividos em Paris, Berlim, Londres, Barcelona e alhures, cosmopolitas - como bons cidadãos globais -, porém admiradores do samba - como bons brasileiros -, apreciadores das artes e dos pensadores mais refinados, na sua pretensão de artistas ou intelectuais, mesmo que apenas entre seus pares (já que fazer sucesso é difícil), seguem tendo Europa e EUA como único norte: que não seja para ser um blasé, mas para se referir a esse estilo, nossa referência é sempre a França de Truffaut, Godard, Sartre, Camus e Piaf, os cafés, os cachecóis, os óculos de aro grosso (e isso não é uma dedução minha, era explícito em nossas conversas). Talvez porque para nós o Brasil, esta terra quente e tropical, de gente extrovertida e espontânea, do samba-caipirinha-futebol (que negamos e acusamos de simplista sempre que ouvimos tal definição que, no fundo, seguimos), não orna com os altos esforços intelectuais, com a reflexão profunda sobre o ser, com o tédio, com a melancolia. Neste ponto, parece que com o dueto ditadura militar e pacto democrático de 88, o Brasil dos grandes centros, da "alta cultura" e da "alta intelectualidade" andou para trás, e sequer consegue ser antropofágico, preferindo o mimetismo simples e acrítico (ou com apenas um verniz de crítica superficial). 


23 de setembro de 2018

PS: sim, vejo uma base muito próxima no estar no mundo entre a intelectualidade universitária de esquerda e o fascismo que hoje ocupa boa parte da nossa discussão política.



segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Flores negras nos subterrâneos dos brancos [Diálogos com a dança]

O que guardam os subterraneos de nossa sociedade, de nossa historia, de nosso ser? O quanto esses subterrâneos sugam da vida de pessoas tidas por descartáveis, o quanto fertilizam o que os proprietários das terras desejavam que fosse árido e estéril, de fértil basta os lucros do agrobusiness?
Subterrâneo, da Gumboot Dance Brasil, é um espetáculo de lavar a alma, de hipnotizar pelo trabalho de corpo e fazer acreditar que nos subterrâneos da sociedade e da história fervem devires que não enxergamos na superfície - e por isso devemos seguir lutando, a despeito das últimas notícias que tentam nos desalentar.
Dos escravos aos mineiros, a miséria de uma vida transformada em instrumento para o enriquecimento de algumas poucas pessoas e algumas poucas nações se torna em uma cultura rica, potente, forte e delicada, instrumento de afirmação de um povo - um povo difuso, sem limites territoriais e étnicos bem delimitados e por isso muito mais perigoso aos nacionalismos ocidentais.
Os grilhões da escravidão transformados em chocalhos, corpos negros transformados de objetos de trabalho em sujeitos de cultura: a humanidade pulsa e resiste onde homens brancos (e seus asseclas) gostariam que restasse apenas o conformismo e a força bruta instrumentalizada para seus lucros. Se os negros foram forçados a migrar para a América, servir de mão de obra em plantações brancas, que esta terra dê origem a uma nova cultura, de resistência e afirmação, mescla do passado que não conseguiram apagar e de possibilidades de futuro que senhores tentam em vão negar, fermentado nos nos vãos dessa sociedade racista, na luta e no reconhecimento da dor do próximo - é isso que me passa a primeira parte do espetáculo.
Subterrâneo me deu a forte impressão de que, ainda que sem contato direto com os povos andinos, os negros aportados no dito novo mundo souberam fazer do novo solo uma Pachamama: se não há ancestralidades milenares aqui, o suor e o sangue da primeira geração já teria bastado para fazer desta terra um solo sagrado e de pertencimento. 
Não por acaso, nestes tempos de golpe e neofascismos, os brasileiros que gritaram e gritam que querem seu país de volta não tem com a terra relação além de mercantil e mal vêem a hora para migrar para alguma terra branca - Miami ou Portugal (esquerdista). Nossa intelectualidade de esquerda, branca, não fica muito longe. Se não se reconhece no chauvinismo de seus pares egressos da academia, na primeira oportunidade tratam de migrar para os países centrais, em seus doutorados sanduíches que se transformam em oportunidade de empregos além-mar. É nos EUA e Europa onde estariam as melhores cabeças, dizem - coincidentemente brancas ou que pensam como brancos. Também eu tenho meus cacoetes de formação branca, e junto da tensão dos gestos e do ritmo do tambor, a primeira parte de Subterrâneo tem uma leveza que me remeteu aos barrocos Vivaldi e Boccherini.
A segunda parte do espetáculo, onde entram em cena mineiros no lugar de escravos, tão brutalizados e instrumentalizados quanto estes, me fez pensar no quanto essa categoria é sintomática do capitalismo: os escravos das Minas Gerais, no século XVIII, que financiaram a revolução industrial na Inglaterra; os escravos não declarados como tal das minas inglesas que sustentaram as indústrias de "seu" país no século XIX, para honra e glória do rei e alguns poucos; os escravos descarados das minas de diamante europeias em solo africano, até 1970 (ou mais), para brilho e glamour de brancos que lucram com suor negro. Se os mineiros ingleses eram brancos, o trabalho nas minas os transformava em negros, a fuligem imprimia-lhes a cor e o rótulo que brancos impingem a negros ou a quem faça trabalhos equivalentes: não-pessoas; descartáveis.
Se hoje a Europa vê a retomada do racismo, convém lembrar que ela não aguentou meio século livre da escravidão (e nenhum ano sem imperialismo): dizem que o Brasil foi último país a abolir a escravidão, meia verdade: quando vemos o que europeus faziam na África - a Diamang, em Angola, por exemplo -, é notável que a Europa manteve escravidão até o último quarto do século XX, mas, como bons civilizados, mantiveram-na longe de suas vistas, de suas cidades, apenas desfrutaram das riquezas extraídas do sangue negro enquanto proferiam belos discursos pela liberdade. O mundo Ocidental civilizado nunca foi contra a escravidão, apenas não gosta dela no seu jardim (o que mostra o atraso civilizacional da elite brasileira e seus patinhos amestrados).
Se vi leveza na primeira parte, na segunda, os mineiros do capitalismo consolidado me pareceram pesados, a tensão sem alívio, a necessidade da ordem militarizada: as botas dos mineiros mimetizando os coturnos dos soldados que os oprimem em nome da ordem e do progresso - sempre com os negros, nunca para os negros. O capitalismo enquanto guerra permanente, em várias frentes: guerra contra os trabalhadores, guerra contra o meio ambiente, a água, a terra, as florestas, as geleiras, os oceanos, os animais de todos os biomas; guerra contra os negros, indígenas e todos que ousam questionar a supremacia do lucro sobre a vida; guerra contra a Vida. Guerra generalizada, ideologicamente ampliada numa guerra de todos contra todos, trabalhadores brancos contra trabalhadores negros, tralhadores homens contra trabalhadores mulheres, trabalhadores nacionais contra trabalhadores migrantes...
Mas em meio a todas essas guerras, Subterrâneo nos mostra que a humanidade resiste e faz frente à desrazão da civilização branca. No melhor do espírito da dialética moderna, mostra que a cultura advinda da escravidão e da exploração negra foi capaz de sublimar a dor e ressignificar o quotidiano, transformando o que era dado por destino em futuro aberto ao devir, o que era submissão e vergonha em afirmação e beleza. Subterrâneo é a afirmação do negativo que muitos tentam negar - a escravidão e a dívida histórica que ainda temos com a população negra - e a afirmação do positivo que a cultura dita superior resiste a aceitar como tendo valor: o quanto as culturas negras, tidas por inferiores, bárbaras, sem refinamento, podem e devem se afirmar, com valor por si ou na sua capacidade antropofágica, em tudo o que pode ampliar os limites estreitos que vêm da Europa e seus imitadores (me recordo do artigo "A tradição viva", de A. Hampaté Bâ, uma amostra do quanto o mundo perdeu por causa do eurocentrismo, surdo ao outro). Enquanto cultura segura de si, pode ser altiva sem precisar depreciar as outras, não que baste por si, mas por reconhecer a si própria, saber de onde vem, e isso faz com que saiba de seu valor, e do valor de expressão cultural autônoma. Portanto, Subterrâneo não é um tapa na cara dos brancos, é um sopro de vida e alegria para todos abertos a e desejoso da construção de um outro mundo.

10 de setembro de 2018

PS: o espetáculo está em circulação por São Paulo. Infos na página do grupo: www.facebook.com/gumbootdancebrasil/


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Estudo de ficção, elementos de ideologia [Diálogos com a dança]

De início é um som, um som e um corpo de costas - blusa preta, capuz sobre a cabeça. Um corpo sem rosto. Um corpo sem rosto e que se mexe. Se mexe e parece não poder parar. Gestos acelerados, hesitantes muitas vezes, se vão ou não - para onde? O som não dura muito - Estudo de ficção, de Beatriz Sano, correrá boa parte em silêncio, e os sons que transpassam o espetáculo, ainda que ornem com a coreografia, em geral tem algo de descolado da intérprete. Descompasso. Bia se vira, os gestos ganham rosto, mas seguem ansiosos, corridos - um imperativo subjaz: mova! Objetos brotam durante o espetáculo: partos rápidos - Bia não pode parar. Há uma história por narrar - parece. Porém, a necessidade de dizer impede uma elaboração do que se quer contar - gesticula-se, simplesmente, na expectativa de que o Outro compreenda e dê um contorno que junte aquela fala numa narrativa. Ou talvez não haja realmente uma história para contar, e todo movimento se dá pelo imperativo de falar, sempre, sem parar, sem pensar, sem nada a dizer. Mova!
Há três momentos bem marcados de pausa ou de gestos mais lentos: numa contagem para coisa alguma, pouco antes de convulsionar e diante do som de carros passando. Esta, a primeira pausa, me faz lembrar de Ernst Jünger, que na década de 1930 anunciava que com o automóvel até deficientes físicos poderiam lutar na guerra: um corpo sadio capaz de se movimentar não era mais condição para ser soldado e morrer pela pátria. Democracia! Inclusão! Guerra! Diante do automóvel, Bia pára: a desnecessidade do movimento diante do bólido que nos leva - ao destino (final)? Em tempos de Acelera SP e aumento de mortes no trânsito da cidade (nosso trânsito, nossa segunda guerra civil), estamos à espera do carro bêbado que nos colherá no cruzamento de um semáforo quebrado ou no ponto de ônibus. "Stop/a vida parou/ou foi o automóvel?". Paremos, se a ordem (e o progresso?) nos permitirem.
Que a segunda pausa seja para em seguida convulsionar não é menos significativo: há um imperativo em nossa sociedade de estar sempre em movimento - mesmo que parados diante do computador, em nossas bolhas fakebookianas. E essa necessidade de se mover me traz um segundo filósofo, o francês Paul Virilio que, na senda de Jünger, apresenta o mundo contemporâneo calcado no imperativo do não parar, do movimento permanente - movimento entendido em sentido amplo, não necessariamente no deslocamento no espaço -, tanto no plano macro - das nações e suas frotas a singrar os mares, do capital a sangrar economias e vidas -, como no micro - dos indivíduos, obrigados a trabalhar, consumir, fotografar, filmar e falar quando não há nada a mostrar ou a ser dito, apenas para terem a impressão de existir; e existir submersos em imagens e marcas que nos exigem contínuo esforço e movimento para adquiri-las na esperança ilusória de um dia sermos (algo ou alguém?).
A referência ao Fakebook nessa lógica do imperativo do movimento permanente me veio por uma feliz coincidência: uma das paredes da sala era espelhada, e do ponto onde eu estava sentado, Bia às vezes se duplicava e se triplicava naquela parede. Se no palco a dançarina tinha presença, ocupava-o com plenitude, seu duplo (ou triplo) na parede era solitário, melancólico: o espectro de sua presença refletida era uma imagem pequena, perdida numa imensidão escura - gestos soltos num vazio. Vazio como o que se sucedeu à contagem - um dois três - feita com entusiamo, duas vezes: nada.
Houve um quarto momento que poderia ser encarado como pausa: quando Bia pára para rir. Ou não pára, porque o riso soa se encaixar na mesma obrigação de movimento. Na primeira vez, ainda há a impressão de um riso natural a uma situação forçada. Na segunda, sentada na ribalta, o riso é descaradamente forçado, compulsivo, estereotipado - o único gesto descaradamente estereotipado do espetáculo. Traços grosseiros na face do riso que não cessa - a referência que me vem é Oscar Wilde e Dorian Gray (o original, não o prefake de SP). A referência é também eu e todos meus amigos no Fakebook, em nossas caras felizes ou poses "estilosas" para foto - que traços grosseiros de nossas vidas não estamos escondendo por trás de nossos sorrisos forçados, obrigados a estarmos sempre em movimento, sempre aparecendo, sempre em evidência, enquanto nossa existência se perde em poses e gestos (e gostos) vazios de significados, alheios (alienados, para usar palavrão marxista), para um Outro que nada se importa conosco, fazendo a máquina girar - e nos moer, ao cabo -, a economia funcionar, disfuncional?
Estudos de ficção talvez fosse para ser um espetáculo leve - não sei, não perguntei qual o objetivo da artista, se é que ela tinha um objetivo específico, uma moral da história. A mim, ao fim, soou uma pequena fábula de horror pós-moderno - a ser encarada na realidade tão logo eu saísse da sala de espetáculo.

25 de setembro de 2017

PS: não lembro se cheguei a escrever, ou pensei e não escrevi, mas não é a primeira vez que Virilio me surge forte ao assistir a uma dança; ao menos em um espetáculo de Eduardo Fukushima, habitual parceiro de Beatriz Sano, ainda que por outro caminho, também me veio essa idéia do imperativo do movimento na sociedade tardo-capitalista.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Um Oxóssi guerreiro [Diálogos com a dança]

Tempos como os atuais exigem saídas do script. Atacada por todos os lados, a cultura que ousa se afirmar cultura, na medida em que se recusa enquanto publicidade oficial, precisou começar a trazer explícito o discurso político. Entretanto, não é todo artista, todo grupo que utiliza a política institucional como material criativo, para daí sair algo para ser posto em cena artisticamente. Assim, cabe ao menos, junto com os agradecimento aos patrocinadores, no fim da apresentação, o jargão "Fora Temer", nem que seja para marcar uma posição de defesa da democracia. Isso para grupos menores. Grupos maiores, consagrados internacionalmente e dependentes de financiamento público (uma vez que o privado se recusa a patrocinar o que não traz bons lucros), se não explicitam o discurso político, acabam por trazê-lo indiretamente, como é o caso do Grupo Corpo, um dos principais (se não o principal) grupo de dança contemporânea do Brasil, reconhecido internacionalmente, que desde 2015 passa o pires atrás de dinheiro, por ter parte do patrocínio da Petrobrás cortado (afinal, diziam que a petroleira estava à beira da falência, com reservas enormes de petróleo a baixo custo de extração).
Em São Paulo, em 2017, a ascensão de um político de extrema-direita, sem qualquer apreço pela convivência democrática e republicana, com um secretário de cultura com iguais valores (e que gosta de brincar de machão (protegido por meia dúzia de guarda-civis, sempre) chamando para o braço quem o critica), pôs poder público e artistas em guerra aberta. E a dança foi um dos grupos mais articulados nessa resistência contra o desmonte da cultura em São Paulo.
Uma das mais recentes cartadas democráticas da gestão Doria-Sturm foi a substituição da curadora de dança do CCSP, sob o argumento de "porque sim, porque eu quis". E o primeiro gesto da nova curadora, Lara Pinheiro, foi boicotar o artista Eduardo Fukushima da programação - já que o dinheiro pago para construir seu espetáculo já havia sido pago e ficaria feio mandar ele para casa sem apresentar o resultado do investimento público. Fukushima é uma das (muitas) vozes que se levantam contra Doria-Sturm-Lara, dando a cara a tapa, levando o tapa, e devolvendo o tapa à altura.
O espetáculo de Fukushima apresentado dias 1, 2 e 3 no CCSP, Da percepção à memória: Oxóssi com/para Denilto Gomes, possui uma série de discursos, nem todos identificáveis logo de cara. O primeiro deles, por escolha do artista e evidente, é o político. Invertendo a ordem habitual, antes de entrar o palco para dançar, Fukushima subiu à ribalta para falar sua situação, o boicote à sua obra na programação da Semanas de dança do CCSP - pode ter sido uma falha técnica, mas é surpreendente como há demasiadas e sempre pertinentes falhas técnicas quando políticos antidemocráticos tomam o poder -, e da situação calamitosa para a qual a cultura tem sido impelida pela prefeitura de São Paulo, em parceria com o governo do Estado e o governo federal. Preferiu pôr a política à frente de sua obra, um ato ousado numa época em que artistas costumam ter como grande preocupação estar sempre de bem - ousado e marcante, dado sua dificuldade óbvia com a fala. A seguir explicou os pontos de intersecção que via dele com Denilto Gomes - grande expoente da dança contemporânea brasileira nas décadas de 1980 e 90, morto em 94, em decorrência da Aids -, o interesse de ambos pelo inexplicável, pelo oculto. Só então veio a dança, já completamente contaminada pelas palavras - para o bem e para o mal.
Acompanhado de um tsuru em negativo - um tsuru preto -, Oxóssi-Fukushima vem armado de lanças para fazer da caça poesia; do movimento, pausa - e novamente movimento -; do agônico, agonístico. Seu discurso inicial, contudo, transforma o caçador em guerreiro e todo seu solo - que não soa tão solo - um embate, carregado de uma tensão nos gestos e nos tempos - como trazer para o presente um passado não assistido diretamente pelo artista, mas que ainda assim o marca? 
É uma dança contida, destoa dos solos a que assisti de Fukushima - talvez porque seja um solo apenas em aparência. A fala inicial de Fukushima contamina os gestos, sua expressão é séria - seja no combate com as lanças, seja na contemplação sob o leque. A homenagem dele a Denilto apresenta a arte como poesia e política, como confronto e beleza. Como Brasil e Japão, e não é nenhum dos dois - Denilto foi um dos primeiros a trazer o butoh para a dança contemporânea, Fukushima tem forte influência oriental (para além de sua ascendência), com estágio no outro ponto do globo.
Fukushima sai, o público aplaude, Fukushima retorna e continua a dança - é agradecimento, mas ainda é parte do espetáculo. Sua expressão agora é leve, seus gestos soam mais soltos e fluidos - mais a cara do que estou acostumado dele. Associo ao título da obra esses dois "atos": no primeiro, seu solo é, na verdade, um duo, de alguma outra dimensão, Denilto dança com ele; no segundo, um solo seu, sua homenagem particular para Denilto. Em todo o espetáculo, o trazer o invisível para a ribalta, o passado para o presente; a dança em suas muitas possibilidades, o corpo em suas dificuldades - como no discurso inicial - e em toda sua expressividade - inclusive, dançar com os ausentes.

06 de setembro de 2017.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poética feminista para dramas humanos [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Vértigo (vertigem em espanhol) é claramente um espetáculo feminista, de um feminismo de pouco eco nestes Tristes Trópicos: o que põe a mulher, antes de representante de um gênero ontologicamente único, como representante da humanidade. A bailarina Camila Bilbao e a escritora Camila Urioste (ambas da Bolívia) trabalham o corpo dentro de um duplo registro: como local da política, portanto receptáculo de linhas de força e poder, predominantemente passivo; e como Político, isto é, constituinte de um sujeito ativo que intervém no mundo. Se no primeiro aspecto corpo masculino e feminino guardam grandes distâncias na forma como sofrem a dominação masculina, o segundo põe mulher e homem dentro de um mesmo registro, apesar das diferenças: o de sujeitos políticos, que refletem a sociedade em que vivem, mas são capazes de refletir, reflexionar sobre essa mesma sociedade, e intervir ativamente na sua transformação. Daí a capacidade dessa poética feminista tocar e comover uma pessoa, independente do seu gênero.
O espetáculo começa com Camila a analisar e lamentar as imperfeições da pele e do corpo diante de um espelho-câmera-Outro. Ainda que essa objetificação aguda do corpo recaia especialmente sobre as mulheres, também eu me pergunto: a que olhar tento me adequar? Que Outro invisível-mas-ostensivo faz com que eu me imponha determinados comportamentos? Que mecanismo é esse que nos reduz a imagem para permitir nossa existência dentro do espetáculo? A câmera de vídeo que flagra a insegurança de Camila não é olho de Deus, que está morto, não é o da autoridade do pai, que está capenga, é então o olho de quem que ela representa - para além do nosso, capturado por esse Outro? Que artifício é esse que nos faz reduzir também os demais a imagens, a fragmentá-los em pedaços como que independentes do todo, e a julgá-los e desprezá-los por terem o que nos falta e desejamos, exatamente da forma como fazem conosco e tanto reclamamos? 
Como corpos-objetos privilegiados para consumo, as mulheres são mais visadas por esse círculo perverso - que domina a sociedade do espetáculo de alto a baixo. Camila afirma explicitamente: "mi cuerpo es político". Dessa assunção decorre uma série de conseqüências, todas elas políticas: de ter um filho ou não a subir no tubo de pole dance, passando pelo usar rosa (cor de mulher) e observar seu corpo e o corpo das demais mulheres com um distanciamento cruel. É por ser um corpo político, iminentemente e radicalmente político, que Camila precisa também estar "siempre en guardia": não é em guarda temerosa do ataque do próximo homem, é em guarda do seu próximo ato: agirá ela com relação a outra mulher como a sociedade que a oprime? A questão de gênero não é posta mais em termos de vítima e carrasco, mas da dialética oprimido-opressor exposta por Paulo Freire.
Vértigo não é a recusa de um estado, é mais profundo: é o questionar radical de si, carregando junto com esse questionamento a sociedade toda - seus defensores e seus críticos. "El abismo abajo", que ela fala próximo ao fim do espetáculo, talvez seja tudo isso que levamos sem questionar, e que ela se põe corajosamente a encarar. Camila enumera as regras para uma "boa mulher": bonita, calada, sempre maquiada, sempre sexy, sempre submissa, sempre servil, sempre sorridente. Recusa o que não serve, incorpora o que acha válido para si - seu percurso dialético a autoriza a incorporar valores "positivos" da sociedade machista, sem que nisso haja contradição ou traição da causa. Recebe admoestações por ser sujeito autônomo, que vejo fácil na boca de algumas feministas-acadêmicas que conheci:  que é "demasiado sexy para ser feminista", que o tubo do pole dace é um símbolo fálico. Pois ela não vê assim: como sujeito é capaz de ressignificar elementos do quotidiano, sem se prender a determinações heterônomas, mostra que pode ser sexy E ser feminista; que o pole dance, fora dos inferninhos, é um instrumento de conhecer o próprio corpo de forma lúdica. Vértigo se autoriza a ser feminista e combativo ao mesmo tempo que é poético e delicado. Quem a repreende por não ter asas quando ela diz que vive uma "crisis de las alas" é porque não se dignou a enxergá-la, insiste em vê-la com os velhos olhos de um velho mundo - me dou um alento de que, sim, acho que vi asas em Camila. É por ter asas - ainda que em crise -, que Camila enxerga o abismo sob seus pés e ainda assim tem a coragem de dar "un paso fuera de mi". É quando o mundo muda: do "abismo abajo, infinito arriba" ela pode se deparar com a riqueza de sua humanidade: "el abismo abajo, el infinito adentro".

04 de agosto de 2016

ps: não coube no diálogo acima, mas destaco, a exemplo do espetáculo colombiano Elogio de guerra, que comentei em outro texto, o uso da palavra, do discurso, no espetáculo: um texto muito tocante e bem inserido na coreografia - coisa que não costumo ver em obras brasileiras.


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Dançar um discurso acadêmico-político [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Em geral evito comentar um espetáculo de dança se não tenho nada positivo a acrescentar - não tenho conhecimento para ser crítico de dança, tento estabelecer diálogos, o mais construtivo possível. Para falar de Z.i.g.o.t.o. eu não conseguirei ser muito construtivo - ao menos positivo -, mas não deixa de ser diálogo - e talvez este retorno seja uma das respostas esperadas pela artista e sua provocação.
Tocado pela questão de gênero levantada por Prelúdio para danças caboclas, vou assistir ao segundo espetáculo da noite do Dança à Deriva, Z.i.g.o.t.o., que trata explicitamente da questão de gênero. Até aí, nenhum problema - comentei na minha crônica anterior da dimensão política que a dança contemporânea possui. O que mais me incomodou, entretanto, foi a forma como o espetáculo pareceu ser feito: soou antes uma tentativa de instrumentalização de um discurso pronto do que uma construção artística que trazia junto, no seu fazer, a questão política abordada. Um discurso pré-fabricado preenchido com um corpo (objeto?).
Uma mulher negra que não se enquadra no padrão de beleza (ainda que não se enquadre tampouco no padrão de feiura que a sociedade possui) me parece ser um manancial de experiências sobre as muitas formas de exclusão em nossa sociedade. Se Patrícia Pina Cruz trouxe isso para cena, não consegui perceber; o máximo que me pareceu foi uma mulher que, por conta de ser mulher, teve seu sucesso profissional limitado - dado o figurino (masculino) do início do espetáculo, que remetia a executiva de banco -, e se ressente com isso, a ponto de imitar o gestual masculino, numa tentativa de demonstrar que ela também é capaz de fazer o que um homem faz - no início achei que esse imitar fosse levar a uma crítica daquilo que Bourdieu chamou de "nobreza do masculino", mas me pareceu antes seu reforço (inconsciente).
A personagem apresentada em cena estava antes para uma construção ideal-típica da mulher-vítima, bem ao gosto do feminismo-acadêmico que hegemoniza o discurso de gênero no Brasil (de linha estadunidense, criticada com precisão pela feminista francesa Elisabeth Badinter), a uma construção feita a partir de vivências reais, sentidas no corpo - impressão coroada pela alusão infeliz do estupro coletivo no Rio de Janeiro, verdadeiro clichê do ativismo (de esquerda) de Facebook (comentei em outro texto que o que chocou tanto não foi o estupro, foi o número, e isso deveria ser um alerta para nossa perda de humanidade e reificação da dor do Outro [http://bit.ly/cG16528]).
A forma mais positiva que consigo ver Z.i.g.o.t.o., dentro da perspectiva de um homem não-machista, mas independente disso, um homem, é que é parte de um processo analítico ainda no começo, em que o sujeito começa a se dar conta de si, mas passa ao largo de uma crítica social, da condição que a faz se sentir diminuída, a ponto de soar mais um elogio ao masculino que uma crítica ao machismo.
A preocupação com o discurso político enlatado prejudicou a produção artística e acabou por fazer os dois ficarem muito aquém das suas potencialidades. Ou talvez não, talvez Cruz seja das feministas radicais que acha, como em foto de pichação que vi recentemente, que "feminismo que agrada homem não é revolucionário", e este meu texto seja um elogio para ela - desejo muito que não seja o caso.

03 de agosto de 2016

PS: por ser um texto bastante ranzinza, não iria publicá-lo, mas depois de assistir a Vertigo, no dia seguinte, achei que cabia, até para deixar marcado o contraponto entre dois discursos feministas.


Danças Caboclas, Política Pós-Moderna [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Talvez parte do que eu diga aqui seja o óbvio para quem é da dança - como sou um mero espectador, para mim ainda tem um frescor de caminho pouco desbravado. 
A dança contemporânea me parece um campo privilegiado de arte política - questionadora do estar do e no mundo. Centrada no corpo - cuja representação oscila entre o negativo e o marginal na cultural Ocidental-judaico-cristã-iluminista -, sem exigir desse corpo uma forma ideal ou virtuosismo de movimentos - ainda que tampouco seja rechaçado -, aceitando, inclusive, limitações físicas com naturalidade, a dança é capaz de levar para o palco o gesto mais banal e ressignificá-lo, prescindindo da palavra, do discurso racional: seu discurso, racional ou não, passa por outras discursividades, além do logos, de forma que muitas vezes o simples estar ganha enorme força crítica e política. Esse potencial político deixa à mostra também a dificuldade em ser dançarino, em experimentar outras formas de se relacionar com o corpo - próprio e do outro.
Essas foram algumas das reflexões que Prelúdio para danças caboclas, da Balé Baião Dança Contemporânea, me despertou. 
Tentei imaginar o que é fazer dança contemporânea numa cidade do interior. Três homens que afirmam elementos masculinos - facão, chicote, cachaça, chapéu de cangaceiro - ao mesmo tempo que desafiam esse ser-macho em requebros sensuais - identificados com o feminino. Me pergunto quantas pessoas vão assistir a suas apresentações em Itapipoca, sessenta mil habitantes, no interior do Ceará. Quantos ficam até o final? Talvez depois de mais de vinte anos de trabalho tenham conseguido formar público - quanto de resistência e combate não há nessas duas décadas de arte?
O grande momentos de contestação da coreografia - contestação do machismo, de uma masculinidade imposta, do corpo-tabu - é quando dois bailarinos banham o terceiro, completamente nu, em uma cena que não soa ritualística, muito menos sexual: são duas pessoas banhando uma terceira, só isso - o suficiente para fazer com que pessoas deixassem a sala.
Prelúdio para danças caboclas afirma a cultura tradicional ao mesmo tempo que questiona seus arcaísmos nefastos - os quais se tornam tecnicamente equipados, ao sobreviverem em sintonia com a Modernidade e a Pós-Modernidade. Seria reducionismo falar que é política em forma de dança, mas não há como ignorar a dimensão política e contestatória de seu trabalho.

03 de agosto de 2016

ps: outra coisa que me fez pensar e que aqui trago: por que insisto em ver o interior do nordeste - no sentido de fora da orla litorânea - como se estivesse petrificado na década de 1930 dos romances regionalistas ou, no máximo, no cenário de Abril Despedaçado? Preconceito arraigado que tenho dificuldade em me livrar, admito. Prelúdio para Danças Caboclas ajudou a balançar esse preconceito, ao fazer com que aflorasse na minha leitura da obra.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O epitáfio de nossa humanidade [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

O que esperar de um espetáculo que faz o Elogio de Guerra, como o apresentado pela Compañia Hombrebuho, vinda da Colômbia famosa por tanto conflitos armados? Tiros, mortes, desespero, a dificuldade em seguir vivo diante da ameaça de tanta tecnologia de morte e destruição? O que há de se elogiar na guerra?
Yenzer Pinilla García nos convida, contudo, a se desfazer do imediato como forma de compreender o que se passa diante de nós - seja o espetáculo a que assistimos, seja o mundo em que vivemos. O título é uma metacrítica sutil e feliz: se hoje elogio é sinônimo de louvor, a origem da palavra remete a epitáfio (do latim elogium) ou a palavras (do grego λογιον). E é isso que o artista faz em cena: uma seqüência de palavras em tom de palestra - longe de qualquer empostação teatral -, com a qual elenca aquilo que o encaminha para a morte da sua própria humanidade, derrotada por uma guerra em que a tanatotecnologia é feita não de destruição imediata, mas de falsos positivos - a começar pela hipocrisia dos laços sociais, incapazes de sustentar qualquer subjetividade. Discurso feito por um sujeito presente, consciente de si, de seu corpo e suas potencialidades - representado na sua grande habilidade corporal do artista, que faz parecer simples e fácil a gama de movimentos e o domínio da gravidade que possui -, mas que tenta se identificar com a própria sombra. 
Elogio da Guerra é feito, portanto, de um discurso humano (racional) em um corpo humano (para além do racional), arruinados por uma sociedade (anti) humana, excessivamente racional. Corpo palavra razão - λογος σομα - são subjugados a uma racionalidade heterônoma ao sujeito: em nenhum momento o intérprete consegue ser por completo: surgido da queda, imerso nos laços sociais que herdou de nossos antepassados, ele não se enxerga que não em fragmentos, e se desarticula, se desfaz do que sequer chegou a ser - mas parece ter vislumbrado em algum momento do passado como possibilidade (talvez ideal) -, a ponto de colapsar, primeiro como uma falha de imagem-espetáculo, até se ver robotizado e reificado, alheio a si próprio: "Estou sempre seguindo em vez de ir para onde quero ir”, diz, ao fim, um corpo humano de gestos mecânicos. 
Saio da Olido rumo à minha casa, que no dia seguinte preciso seguir com a vida produtiva que me faz parecer alguém.

02 de agosto de 2016



quinta-feira, 23 de junho de 2016

Percursos transitórios, tempos percorridos [Diálogos com a dança] [saudades feitas de afetos]

"Que demora pra começar", reclama a mulher atrás de mim, que demora para perceber que o espetáculo Percursos Transitórios, com Zélia Monteiro, já havia começado. Talvez a espectadora não fosse acostumada à dança contemporânea; contudo, antes disso, penso que todos nós andamos com dificuldades para perceber o começo e o fim dos eventos, quando eles não se dão por alguma convenção bem arraigada ou por alguma descarga espetacular de choque. Isso implica em muitas vezes não percebermos sequer o evento. Temos pressa - para tudo. E parafraseando Caiero: o mundo não se fez para apressarmos nele (apressar é estar doente dos olhos). O fruir da arte, muitas vezes, exige o abandono dessa pressa - para que possamos nos irmanar do seu fluir. Percursos transitórios tem seu tempo, feito de sutilezas e paciências. É um tempo estranho, que não é lento, mas é vagaroso. Seu discurso também é tecido vagarosamente, por trás do tule transparente que torna a luz e seus movimentos visíveis - às vezes mais que a própria artista. Melhor: luz que permite que o espetáculo seja visto e que algumas vezes toma toda a visibilidade da cena, impedindo que se veja qualquer coisa além da própria luz: a mesma fonte que revela, re-vela. 
No fluir e no meu fruir da apresentação, havia já desistido de tentar estabelecer qualquer diálogo mais racional com a obra, quando ela transitou para outro registro, numa simples mudança de luz. Notei então que, a exemplo da minha colega de platéia, eu tinha pressa - "que demora para eu entender", eu poderia ter reclamado. Por sorte, há muito sei que uma obra, um espetáculo pode ser aproveitado mesmo que não se compreenda - ainda que isso possa implicar num empobrecimento com aquilo que tal obra carrega (minha relação com a música de concerto vai nessa linha). Nessa variância da luz, o corpo de Zélia ganhou outra textura, rugosidades da pele despontaram, contornos dos músculos se destacaram, tornaram visíveis os efeitos dos anos - e dos treinos. É então que noto o quanto o percurso ali apresentado fala não só de um trajeto como também do tempo, essa coisa que não cabe nos relógios e nos calendários, que corpos denunciam, mas não contam tudo. Na sala está uma professora da PUC - eu fazia uma disciplina dela como ouvinte, ano passado, quando tive que largar as aulas. Isso faz mais seis meses, e eu juro que foi semana passada. Me dou conta que os amigos de quem sinto falta de notícias estão há seis meses eles também esperando resposta às últimas mensagens que me enviaram. Está na sala também minha professora de dança - faz dois anos e meio que tenho aulas com ela, e não seis meses, como sinto. Faz sete meses que não sei mais para quem escrevo - desde que perdi meu pai. Por um ano e meio escrevi à espera de uma resposta impossível da minha melhor amiga. Isso é muito ou pouco tempo? Eu deveria dizer que muito, afinal, é o que aponta o calendário, é o que cobra a sociedade. Não é, entretanto, como sinto - apesar das recriminações que já sofri por ser tão lento e paquidérmico. No palco, Zélia segue na apresentação de seu percurso transitório, provisório, fugaz - feito de referências muitas em muitos anos como artista -, que ocupa dilatados cinqüenta minutos que passam rápidos em meio a gestos lentos. Fico a me perguntar como Zélia não sente o tempo de cada um desses trajetos - o da sua vida, o dessa obra, o dessa apresentação -, qual deles terá durado mais?

23 de junho de 2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Setes mergulhos [diálogos com a dança]

Acostumado a ver os intérpretes se porem à prova no meio da rua ou com o público no palco, Abissal, vai na direção oposta das últimas obras da iN SaiO Cia. de Arte, de Claudia Palma. Desta feita os artistas não estão na rua, em campo aberto para descobrir até onde vai a arte; tampouco o público não está junto, imiscuído aos artistas, mas é posto muito próximo do que foi delimitado como palco - e os artistas, quando não no palco, se tornam eles também público (visível para o grande público). "Delimitado como palco" porque, apresentado no Espaço Missão, do Centro Cultural São Paulo, o grupo teve liberdade para decidir por onde seus intérpretes circulariam. A escolha do Espaço Missão foi interessante, por ser um ambiente imerso, que deixa explícito o tempo todo que estamos abaixo do chão - e estamos todos, artistas e público, no mesmo nível. Sensação geográfica que coaduna com proposta de Abissal: o mergulho de cada intérprete-criador em suas paisagens internas. E esse mergulho está realmente presente, tão presente que, admito, vi não um, mas sete abismos próprios: talvez eu não tenha sido capaz de perceber o fio que percorre todos os artistas e dá alguma unidade a suas danças: com cada um mergulhado em seu abismo não consegui ver o estabelecimento de interação ou diálogo entre eles - realçado pela falta de contato físico. Danças individuais, duos de isolados. O abismo-palco todo iluminado do início ao fim não consegue tornar os intérpretes habitantes de um mesmo momento, apenas corpos ocupantes de um mesmo espaço, e tampouco dá impressão de distanciamento entre eles. É apenas um palco iluminado, que causa um estranhamento e uma expectativa ao se chegar: que abismo é esse, feito de claridade? Ainda mais que chão e a parede de fundo são claros - um prato cheio para se trabalhar com sombras. E foi pelas sombras que criei enorme expectativa - frustrada, o que influenciou na minha percepção geral da obra, admito. Aparecem poucas vezes, sem dar a impressão de terem sido pensadas, nem mesmo notadas positivamente: notei possibilidade de algo a la De Chirico nas sombras do chão, ou da multiplicação dos intérpretes em sombras-fantasmas na parede do fundo; mas foram espasmos de possibilidades. A nudez do espaço aumenta a responsabilidade dos intérpretes e seus abismos, único foco de atenção, passado o momento inicial de aclimação ao abismo-palco. Não decepcionam, tampouco arrebatam. Mergulham, mas não (me) abismam.

03 de junho de 2016


PS: não tem qualquer relação com a dança ou com a companhia, mas como cito o CCSP, apenas reitero meu desacordo com o processo de higienização social (a la Sesc) empreendido pelo Centro Cultural São Paulo durante a gestão Haddad [http://bit.ly/cG140528].

PS2: trocando impressões com uma das artistas do grupo - a partir deste texto, e além -, descobri que entendi errado o folder (e, creio eu, que nem tanto a apresentação): o que assisti foi a uma abertura de processo e não ao espetáculo dado por concluído - daí, creio eu, algumas das lacunas que levantei.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Mariposas, flores, jardineiros e os ventos da morte a cultivar a vida [diálogos com a dança]

O corpo nu, de costas, sob a luz fraca, não permite identificar de início se se trata de homem ou mulher. E a questão principal ali está para além de gênero: temos uma pessoa, um corpo humano. A baixa intensidade da luz cria relevos inusitados no corpo que se retorce. Em certos momentos, o corpo em seu lento mover se deforma - ainda assim, o que há ali, em seus relevos desconhecidos, em sua deformidade, é um corpo humano. Em Uma batida de uma borboleta, Maki Watanabe diz querer dançar como uma mariosa girando em torno de uma lâmpada. O corpo tenso e teso, em agonia, me faz perguntar: seria em volta da luz da Little Boy que Watanabe dança? Ou a referência é pesada demais, e posso ser menor, mais mesquinho, e pensar que a lâmpada que mariposamente giramos em volta não precisa ser de uma destruição instantânea, pode ser do nosso quotidiano baço e banal, feita de brilhos artificais que não nos levam a lugar algum?
Estou no Centro de Referência da Dança de São Paulo, no Viaduto do Chá. É minha segunda experiência com Butô. A primeira, Sankai Juku na imensidão do teatro Alfa, me fez perder algo desse caráter minuciosamente humano que Watanabe e Zaitsu me trazem e me tocam.
Na segunda metade, Gyohei Zaitsu me emociona com seu Uma flor sem nome. Mesmo sem ter lido o programa, é perceptível notar como morte e vida convivem naquele corpo que se apresenta sem gênero - ou com todos os gêneros -, sob a luz inicialmente tênue. Morte e vida, destruição e renascimento, devastação e esperança. Em terra devastada, aquele corpo se faz esperança - de inicio, a esperança parece renascer à custa de lucidez. Vale a pena a esperança quando não há sequer solo onde ela possa brotar? me pergunto. Zaitsu defende que sim: a flor a desabrochar - e o que parecia loucura se transforma em realidade. Não é a flor de Drummond, não se deve parar tudo para vê-la surgir no asfalto, porque não há mais asfalto, e é de se questionar se há ainda alguém para poder observá-la. É uma flor e nada mais. Em torno, os seres invisíveis, as almas perdidas, e o jardineiro esperançoso orgulhoso de seu cultivo. Diz o programa: "O vento sopra da terra da morte/ O ar está repleto de seres invisíveis e desconhecidos/ Nele, as almas estão perdidas tranqüilamente/ Nutrindo a loucura de uma flor desabrochando.../ Uma flor se desabrochou graças a todos os cadáveres...".
Saio do CRD com uma frase lancinante que minha mãe falou pouco tempo atrás: "a gente não morre de uma vez, a gente vai morrendo aos poucos. Viver é morrer aos pedaços". Depois desses dois espetáculos, interrogo: para além da morte, o que há? E penso que talvez morrer seja renascer em terras até então aparentemente áridas e estéreis, das mãos de um jardineiro aparentemente louco.

18 de setembro de 2015.

agradeço ao Luis F. pelo convite para a dança!


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Brasília de poucos contatos humanos [Diálogos com a dança]

O branco domina espaço, luzes e roupas, alguns detalhes em cinza evitam a monocromia - e também a monotonia. Os bailarinos são sincrônicos nos movimentos - mesmo que em sentidos diferentes. Sincrônicos e sem contatos. Os raros momentos de encontro entre os três são marcados também pela música "normal", com ritmo e melodia identificáveis - no restante, o que predomina são ruídos eletroacústicos. Vinil de asfalto, espetáculo de Edson Beserra, se propõe a dançar Brasília, e, sem inovar, soa feliz no seu intento. Consegue ser bonito e delicado - com uso de certa linguagem consagrada na dança, sem soar virtuosista -, captar algo da Brasília - típico de qualquer grande cidade baseada em asfalto e concreto -, e apresentar faltas da cidade: a monumentalidade anti-povo, anti-gente, anti-humano, típica da arquitetura modernista de Niemeyer - arquiteto pouco afeito a pessoas, e menos ainda à pólis e à política -, que garante o fluxo e impede encontros, que mantém a ordem e evita contatos. Conceitualmente convidativo, existencialmente árido - de uma aridez que não dialoga com o cerrado ao redor, uma aridez fria, branca, das teorias desprovidas de humanidade -, eis a Brasília sugerida por Vinil de Asfalto. Entretanto, ambos - a cidade e a coreografia - insistem em ser mais que fluxo ordenado, a monotonia monocórdia do poder autocrático: há encontros, há raros momentos em que se aproveita para que entre corpos haja mais que espaços vazios - ou, se preferir, há raros espaços em que se aproveita para que entre corpos haja mais que momentos vazios. Há convite ao diálogo - esse aspecto da sociabilidade moderna tão em falta no mundo atual. O espetáculo ressalta a pertinência de ocupar ao enfatizar o volume dos corpos dos três dançarinos - reforçado pela iluminação preponderantemente feita de contra -, e mostra o ocaso que talvez esteja à nossa vista, mas não enxergamos, ao apresentá-los como sombras de si próprios diante da cidade banal que é projetada ao fundo. A tensão é tênue, fácil de se desfazer na imensidão pastel da Esplanada dos Ministérios, mas importante para que não se esqueça que há homens e mulheres em meio a todo o concreto asfalto lobby e poder da capital federal.

10 de setembro de 2015



quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Grupo Corpo, 40 anos: que venham logo os próximos! [diálogos com a dança]

Conheci o Grupo Corpo há cerca de quinze anos, e me tornei fã de imediato. Mais do que isso: foi com o Grupo Corpo que me tornei apreciador de dança contemporânea - a que muito assisto, quase nada entendo (mas mesmo assim palpito) e há pouco pratico. A companhia de Belo Horizonte tem um nível técnico que salta aos olhos - mesmo leigos -, e não se contenta em seguir caminhos fáceis, de garantida aprovação do público - ainda que seja perceptível a linguagem de Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do grupo (certa feita assisti a uma apresentação da São Paulo Companhia de Dança, sem saber que uma das coreografias era dele, e ao verificar no programa, ao fim do espetáculo, me surpreendi em ter reconhecido o que achei que era somente "influência" dele). Me pergunto se, alcançado esse nível, e com toda essa história, algum dia o Grupo Corpo produzirá um espetáculo de qualidade questionável - como grupo que se arrisca, há altos e baixos nas suas obras, mas os pontos baixos ainda são de um nível excepcional. Esse prolegômeno todo para relativizar minha afirmação de que saí um tanto decepcionado da apresentação das comemorações pelos quarenta anos da companhia, Suíte Branca e Dança Sinfônica. As duas coreografias - inéditas - apresentadas no programa são boas, bonitas, mas eu esperava mais - reconheço uma expectativa excessiva pela comemoração da data redonda. Me pareceu faltar a elas certa dose de tensão que pusesse o coreógrafo - e o público - em um ponto incômodo, um quê de estranhamento, de conflito. São espetáculos comemorativos e são fiéis à acepção positiva que domina o termo ultimamente: alegres, leves, festivos, harmônicos - isso não deveria ser ruim, eu sei, e talvez não seja, mas a mim decepciona um pouco.
Adeptos de uma estética que tenta trabalhar com pouco e disso extrair muito - a luz simples e de recortes precisos em cenários e figurinos elaborados mas reduzidos ao necessário -, tanto Suíte Branca quanto Dança Sinfônica radicalizam no pouco, mas não logram chegar no muito. Na verdade, invertem certo padrão do grupo, e recorrem a desenhos de luz que parecem tentar preencher o que figurinos e cenários mínimos não dão conta de transmitir.
Suíte Branca inova por não ser uma coreografia de Rodrigo Pederneiras - pelo que pude verificar, a quarta apresentada pelo grupo, sendo a última, de Suzanne Linke, em 1989. Assina-a Cassi Abranches, cria da casa, bailarina do grupo por doze anos. É praticamente uma coreografia-homenagem a Pederneiras, tão evidente é a influência deste. Bailarinos de branco, sobre chão branco, diante de um fundo branco - que remete a papel amassado - e sob luzes brancas. Ao leigo que aqui escreve pareceu um espetáculo com alta dose de exigência técnica, dançada com maestria pelos bailarinos. O excesso de técnica, contudo, não oculta o que parece ser uma falta de propósito - de "alma", como comentou a amiga que me acompanhava. Dançam bem, são muito técnicos e causam impacto sem maiores firulas, mas a que dançam? E por falar em impacto, mais que a técnica, o que me impressionou foi o belo efeito produzido pelas luzes laterais incidindo sobre os bailarinos, que dão a eles algo como luz própria, ao provocarem reflexos sob seus corpos (quando estava apenas um bailarino no palco, cheguei a achar que estivessem usando canhão a baixa intensidade, mas quando entraram os demais, vi que tecnicamente não fazia sentido dois canhões por dançarino). Ou, então, quando os dançarinos, enfileirados lado a lado diante do público, sutilmente vão e vem com seus corpos, produzindo diferentes luminescências do "cenário" ao fundo.
Menos homogêneo nos elementos de palco, Dança Sinfônica - essa, sim, de Pederneiras -, causa impacto de cara, mas parece perder vigor no correr da coreografia. Entram dançarinos de preto, caminhando de costas, sustentando dançarinas de vermelho - em pé. No palco, as pernas da caixa preta substituídas por tecido vermelho e luz quente sob intensidade baixa. Apesar da alta verticalidade, há um peso no gesto. Esse peso, contudo, vai se desfazendo no correr do espetáculo, que, diante de Suíte Branca, abusa de movimentos do balé - pode ser fruto de minha ignorância em dança, mas Cassi me soou mais Pederneiras que o próprio. Dança Sinfônica também é menos harmônico: um elemento branco - frio - surge em meio ao quente vermelho e negro. A bailarina destoante no figurino permite mais facilmente uma leitura ao público mais simples (no caso, eu) - numa chave de diferença-tentativa de assimilação-reafirmação e aceitação do diferente, por exemplo -, mas ainda assim, o clima geral é de harmonia, de diferenças que se entendem sem conflito.
Quanto às trilhas sonoras, elas também quebraram minhas expectativas. De Samuel Rosa, da banda Skank, que compôs para Suíte Branca, eu pouco esperava, mas o som que lembra Explosion In The Sky com toques Beatles foi do meu agrado e criou algo de uma leve tensão com todo o resto do espetáculo - não foi outro elemento de virtuosismo branco sobre branco. Já da obra de Marco Antônio Guimarães, do Uakti, teve um diálogo muito sincrônico com a coreografia, o que reforça minha crítica - sem contar que esperava mais por ser do Uakti.
Talvez minha impressão sobre as coreografias seja fruto de certo amargor que me acompanha e busco encontrar também na arte - ou então de querer achar discursos racionais em tudo, sei lá. Talvez tenha mesmo faltado uma faca no pescoço do coreógrafo, como em Triz. Ou talvez eu simplesmente não tenha entendido nada. O certo é que, dado meus precários predicados em dança, a "análise" acima é descaradamente apoiada em questão de gosto (se alguém quiser ter alguma referência, achei as duas coreografias do nível de Ímã, a que menos gostei até agora; sendo Breu Bach minhas favoritas). E, como digo no título, não deixo de esperar que venham logo novos espetáculo do grupo. De qualquer forma, apesar de tudo o que recém disse, são duas obras de grande beleza estética e que valem ser vistas!


13 de agosto de 2015

ps: para quem chegou ao fim desta crônica, sugiro a leitura de uma boa crítica das danças, dizendo o contrário do que falei acima. Por Helena Katz, "Os códigos sutis dos movimentos sempre renovados".

ps2: nas fotos, dois exemplos (pontuais) da beleza plástica das coreografias



sexta-feira, 17 de julho de 2015

Tudo o que é leve se desfaz no chão [Diálogos com a dança]

"Dançar na selva de pedra" - foi a leitura feita pela amiga que me acompanhou ao espetáculo Sim, da KeyZetta&Cia, na Galeria Olido. De minha parte, não saí com leitura alguma, e mesmo depois, pouca coisa consegui captar do que o espetáculo pretendia comunicar. Não, isso não é uma crítica ao espetáculo: não quer dizer que não aproveitei ou não gostei, apenas não entendi, não consegui decifrá-los em códigos que me são familiares - e como o estranho, o estrangeiro, me atrai, estar em território desconhecido, me deparar com signos alienígenas pode ser algo prazeroso, ainda que um prazer diferente de quando me deparo com algo que me é familiar.
Este blablablá sobre mim mesmo pode soar egocêntrico e sem muita relação com o espetáculo que me propus comentar, contudo mostra ou uma severa limitação deste escriba ou algo sobre a companhia. Sem negar limitações razoáveis de minha parte, prefiro atribuir o estranhamento ao mérito de Key Sawao, Ricardo Iazetta e demais integrantes. Sim foi o quarto ou quinto espetáculo da companhia a que assisti - já deveria estar, portanto, mais familiarizado com sua linguagem. Sem contar que há um ano e meio sou aluno da Key Sawao.
A KeyZetta&Cia parece sempre disposta a pesquisar e experimentar elementos exógenos ou pouco usuais à sala de espetáculos e a apresentações de dança: sua veia é claramente na performativa, em jogos - questionadores - com o logos ou com o espaço. Sim dialoga com o espaço - e com a própria dança. Logo de cara, causa estranhamento a paisagem de um bosque pintada ao fundo, como cenário - não parece ornar com dança contemporânea. O chão, coberto de pedras brita, também desloca o espectador da sua zona de conforto - inclusive olfativa (daí haver máscaras cirúrgicas para o público se proteger da poeira) e sonora. A união entre esses dois elementos, admito, eu não consegui concatenar, diferentemente da minha amiga - talvez pelas pedras me remeterem imediatamente a estacionamento (não sou da cidade grande, onde shoppings oferecem estacionamentos asfaltados).
E são as pedras, em especial seu barulho, o que mais me chama a atenção: elas dão um grande peso aos gestos, a toda a dança. Me fazem lembrar de um dos meus trechos favoritos de Em busca do tempo perdido, no qual Proust comenta da importância da audição para dar corpo ao que é visto: “quanto ao surdo integral, visto que a perda de um sentido acrescenta tanta beleza ao mundo como o não faria a sua aquisição, é com delícia que passeia agora por uma Terra quase edênica onde o som ainda não foi criado. As mais altas cascatas se desenrolam, para os seus olhos apenas, mais calmas que o mar imóvel, como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez; a forma perceptível sob a qual jazia a causa de um movimento, os objetos movidos sem rumor parecem movidos sem causa”
Pode não ser agradável, mas Sim está intimamente ligado à audição, ao barulho das pedras sob os corpos que dançam sobre elas. Assim, todo gesto do espetáculo ganha corpo, esse corpo pesado que o balé clássico tenta fazer esquecer em seus saltos, que muito da dança - ao menos para o senso comum - tenta ocultar com seu ideal de leveza e superação da gravidade. Foi nos solos de Beatriz que essa condição e contradição me saltou aos olhos: seus gestos são leves, o movimento de seus braços me soam aquosos, mas o som desfaz a impressão de leveza que os olhos captam. Não querendo acreditar que aqueles gestos fossem capaz de tamanho peso, desconfio que o chão seja microfonado - minha amiga diz que não, e ela tem razão, uma vez que não há variação na altura do som, esperado conforme se aproxima ou se distancia do microfone.
Saio da Olido sem fazer ligação entre os movimentos dos intérpretes com o cenário e a trilha sonora de bosque com os sutis movimentos de luz com o chão cheio de pedras. A única ligação que consegui fazer foi entre a leveza e o peso - e para tanto, alguma coisa, algum preconceito, algum conceito há muito arraigado, se rompeu.

17 de julho de 2015