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domingo, 11 de setembro de 2022

Amores, idealizações e devires [Diálogos com o cinema]


Entrar num relacionamento amoroso íntimo é, em boa medida, se perder: daí que amar não seja um mar de rosas e traga sempre uma dose de angústia. "Dar o que não se tem a quem não o quer", nos diz Lacan: nos entregar em nossa incompletude a um outro que vai não nos completar, mas ressaltar essa falta. Aceitar o outro fora das nossas idealizações e nos enxergar fora das nossas idealizações - com o medo do outro não nos aceitar, isso quando não somos nós mesmos não nos aceitamos sem nossas fantasias. Como nos versos de Álvares de Campos:

“O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.”


Retomo os dois filmes de que falei em minha última crônica [bit.ly/cG220902], Uma relação pornográfica, de Frédéric Fonteyne (1999); e The Lunchbox, de Ritesh Batra (2013).

Como sustentar o desejo e a relação com o outro, quando a idealização cai? É o hábito que sustenta? Que desejo é esse que se torna mera rotina? O quanto conseguimos ter relação com alguém humano, demasiadamente humano - ou "em linha reta", para seguir com Campos/Pessoa? Caída a idealização do apaixonamento inicial, não raro criamos novas e novas idealizações, para esconder os defeitos que emergem - como se nossa fantasia fosse incapaz de lidar com o real.

Em Uma relação pornográfica, há uma passagem que vai nesse ponto da queda da idealização do outro, e como sustentar o desejo depois disso. Quando o entrevistador pergunta se não se cansava dos encontros sempre iguais, ele responde que nunca iria cansar, porque era bom. E arremeda: estava se habituando a ela. Temos aqui o amor romântico apresentado ao mesmo tempo como hábito e como extraordinário. Contudo, quanto tempo sustentamos o fora do ordinário, sem incluí-lo no banal, sem contaminá-lo com nossas pequenas insignificâncias - a dor de cabeça, o dia ruim no trabalho, a notícia que abala?

Mais interessante, contudo, é a forma como a queda da idealização que ele tinha dela foi compensada com uma abstração da mulher: “No início a achava bonita. Depois comecei a ver os defeitos. Aí seus defeitos desapareceram, sua beleza desapareceu”. E isso enquanto, diz ele, estava se habituando a ela. A pessoa amada que desponta como figura do fundo, de repente volta a ser fundo - uma primeira questão: esse tipo de amor permite que novas figuras emerjam desse novo fundo? 

E quem é esse outro que não possui defeitos, que se for preciso, apagamos a beleza, em nome da recusa das pretensas feiuras? Para mim, a construção mais bonita desse trecho é reconhecer os defeitos e ver neles parte da beleza, talvez a própria condição para que esta exista - é nisso que o outro foge do padrão, que deixa de ser genérico, que deixa de ser ideal e passa a ser real. O que teme descobrir o homem nessa sua recusa da mulher real? Teme o que vai encontrar nela ou em si?


Em The Lunchbox, a idealização que o homem não sustenta é a de si próprio (diante, é claro, da idealização que faz da mulher): ao ver Ila no restaurante, Isaajan se reconhece como alguém mais velho, sem atrativos, a ponto de abdicar até mesmo cumprimentá-la pessoalmente, de correr o risco de se ver idealizado por ela e incapaz de sustentar essa imagem. O desejo pelo outro não chega a morrer com essa desidealização de si (como parece temer que aconteça o homem de Uma relação pornográfica), mas sua realização é impossibilitada por isso - a relação se torna impossível de seguir. E que desejo de ideal é esse?

Há ainda, no filme indiano, um outro trecho sobre a perda de si (ou seria a descoberta de si, ou ao menos de que não se era quem sustentava ser?) nesse espelho que pode ser o amor.

Na hora em que ficam sabendo da notícia do suicídio da mulher, junto com a filha, Ila se pergunta o que a mulher teria pensado, com teria agido, e se imagina nessa ação. Tira suas jóias, pulseiras, brincos, cordão de casamento, inventa uma resposta à pergunta da filha do que vão brincar, enquanto a leva para o alto do prédio. No fim de sua carta a Fernandez, pergunta se não deveríamos ter coragem de pular também. 

Quando, numa das últimas cenas do filme, depois de ir atrás de Isaajan em seu serviço - que havia se mudado para Nasik tão logo se aposentara -, ela repete os atos que imaginara da suicida: tira as jóias, brincos, pulseiras, cordão de casamento. Porém acorda de manhã como se fosse um dia normal, escreve a carta a Fernandez - que não terá como, a quem enviar -, conta que vendeu suas jóias e no retorno da filha da escola vai com ela não se jogar do telhado, mas pegar o trem para o Butão.

Há uma espécie de morte aí, de suicídio - a morte, talvez, tivesse acontecido há muito tempo, mas o hábito impedia de enxergar o que de fato acontecia. Seu apaixonamento por Isaajan e a impossibilidade de realizar a faz decidir abandonar a vida, porém não a vida real, e sim a simbólica: aquela que ela sustentava para a sociedade, em nome de sabe-se lá o que - uma promessa de felicidade que se algum dia aconteceu, há muito não se realizava mais -; e agora decide buscá-la no país que se utiliza da "Felicidade Interna Bruta" para medir suas ações políticas. 

Esse amor traz uma perda de sentido de muito do que se vivenciava até então. Isso não quer dizer que a vida até então vivida não tivesse sentido, ainda que, geralmente, quando o sentido se desfaz, parece nunca ter feito - nossa corrida vã atrás dessa crença de que haveria um sentido superior, que daria conta da totalidade da vida e da existência (resquícios de uma promessa de deus nunca efetivado).

Aquele ideal romântico de amor como algo que faria o sujeito se opôr à sociedade aqui se mostra mais pedestre e mais real: se opõe a esse círculo em que se vivia, mobiliza a ir em busca de outras paragens, desfaz sentidos sem necessariamente que os novos sejam mais amplos ou firmes - ou mesmo conhecidos. E a se pensar, com Camus, que os sentidos da vida somos nós quem os criamos, a cada momento, amar seria esse nos atirar na angústia da criação de devires. E é sintomático que Ila não vá atrás de Fernandez: o amor entre eles abriu novas possibilidades, porém não as encerra.


E aqui termino dialogando novamente com meu último texto: que amor é esse que tanto se apregoa e tantas pessoas buscam? É de fato esse amor que faz questionar a si e ao seu entorno, ou é antes um amor que se fecha num narcisismo míope, que acha que atravessar o que passar pela frente em nome de seu ego teria qualquer coisa de revolucionário? Estamos vivenciando, experimentando e defendendo um amor que abre devires e amplia horizontes?


11 de setembro de 2022

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Dois filmes sobre amor [Diálogos com o cinema]

De quantas e quantas camadas são feitas cada uma de nossas relações? Qual a abrangência das linhas com as quais entretecemos nossos afetos? Como decidimos a profundidade com que cerzimos no outro, e a abertura que daremos para o outro penetrar em nosso íntimo? Temos esse poder de escolha? Por que há aquelas relações que de cara se aprofundam e aparentam ser de anos, apesar de novas - e que vão manter o ar de novidade, apesar de terem se passado anos? Quem somos nós fora das relações? O que somos fora delas? Quanto dessas relações não perduram, mesmo finda a presença física? Quanto de nós não frutifica no outro já distante no espaço e no tempo, sem que façamos ideia? 

Relações próximas e profundas de todo tipo são capazes de nos instigar questionamentos como esses, que permitem desdobrá-las em detalhes pela infinitude do real, com cada relação oferecendo um novo caminho por onde seguir. As relações ditas "amorosas" (não sei por que não haveria amor numa relação de amizade, ou porque haveria vários modelos de amor, como produtos no mercado), contudo, são um campo privilegiado, uma vez que abrem uma dimensão existencial a mais na relação com o outro.

Decido rever dois filmes a que havia assistido ainda no cinema: Uma relação pornográfica, do francês Frédéric Fonteyne; e The Lunchbox, do indiano Ritesh Batra. Assisti ao primeiro há vinte e um anos, o segundo, pela primeira vez há oito. Os revi como quem se vê no espelho e leva um susto consigo próprio, não apenas por ter envelhecido, como por nunca ter reparado em algo óbvio da própria feição - um Vitangelo Moscarda, de Um nenhum e cem mil, do Pirandello, ou mesmo, mais melancólico, um Álvares de Campos e sua Tabacaria. Me surpreendo o quanto mudei. E o quanto sigo mudando, às vezes muito em pouco tempo - em tempestade tal qual em meu auge de jovialidade, quinze anos atrás. E o quanto sigo o mesmo, com as mesmas inquietações no que toca às relações humanas e toda Ercília (d'As cidades invisíveis, de Calvino) que povoamos e nos povoam.

O mote dos dois filmes é similar: duas pessoas sem um elo comum, que se conhecem ao acaso (não havia Tinder para catalisar esse tipo de acaso e torná-lo quase que a regra), estabelecem uma relação de amor e afeto intensa e profunda - e breve -, se afastando com os sentimentos ainda pulsantes: renunciam ao seu desejo de estar com o outro justo em nome desse amor que sentem. 


The Lunchbox é sobre afetos do dia a dia, o tecer aos poucos as relações, o ressignificar a si e ao mundo no contato com os outros. Pessoas com suas vidas banais e pequenas angústias. 

Num casamento reduzido ao mais pobre do contrato estabelecido nesse tipo de relação, no qual o marido não se faz presente de fato, Ila tenta ressuscitar alguma paixão antiga dele através do estômago, caprichando na marmita que envia pelo serviço de entrega Mumbai Dabbawallahs. Contudo, a marmita é entregue por engano para Isaajan Fernandez, um apático burocrata prestes a se aposentar, fechado a qualquer relação que tenha algum afeto, desde que sua esposa faleceu - que o diga Shaikh, o novato recém contratado pela empresa para em breve assumir seu lugar. 

À decepção do marido chegar indiferente como todos os dias e ao perceber que seu esforço havia sido entregue a outra pessoa, no dia seguinte decide enviar uma carta junto com a marmita, contando de seu casamento insatisfatório e sua estratégia. Fernandez responde com a frieza e distanciamento de quem não quer nenhum tipo de envolvimento com ninguém - reclama da comida estar muito salgada. Ila se vinga enviando a comida apimentada; a resposta vem ainda distante, falando das pessoas em geral, que almoçam uma ou duas bananas. Ila insiste em achar um interlocutor estranho para suas dores tão ordinárias, e ao mesmo tempo marcantes - dela e de sua tia e vizinha, que cuida do marido em coma -, Fernandez responde ainda dentro do senso comum, mas já se expondo minimamente - falando da falecida esposa. 

Em um dos dias, o suicídio de uma mãe e sua filha - Ila possui uma filha - abala a ambos, que passam a conversar sobre os sentidos da vida - e da morte. 

A troca de cartas passa, então, a ter outra qualidade - um evento ao mesmo tempo ordinário e extraordinário. Falam do comum do dia a dia, de medos, de angústias, de lembranças e de esperanças, de tristezas e alegrias, do banal e do existencial. Um acolhe o outro na sua solidão e outro tipo de afeto passa a circular naquelas linhas, muito mais profundo. 

Com a guarda baixa, Fernandez acaba se deixando afetar também por Shaikh - um “solitário de nascença”, por ser órfão. É num jantar na casa de Shaikh e sua noiva que Fernandez reconhece o que sente por Ila, a ponto de dizer que possui uma namorada - mesmo eles nunca tendo se visto e ela sendo casada. Os afetos tecidos numa malha mais ampla que a do casal, a amplificação (e amplidão) de afetos necessária até para se dar conta do que sente pela pessoa amada.

Ila e Fernandez marcam, então, um encontro em um restaurante, mas o homem prefere ficar a observá-la de longe: seu realismo-amargo faz crer que as convenções sociais serão mais importantes que os sentimentos que um nutre pelo outro - a começar pela convenção monogâmica, que forçaria um exclusivismo. No dia seguinte, em sua carta na marmita, explica que havia ido ao encontro, mas ela era jovem e bonita, ele um velho prestes a se aposentar; e agradece a acolhida. Ela decide tomar a iniciativa, consegue o endereço do serviço dele, mas ele já havia se aposentado - me lembrei de Todos os nomes, de Saramago, senhor José chegando atrasado à amada, restando apenas o amor...


Uma relação pornográfica trabalha em cima da ideia de solidão a dois, de que o amor se bastaria por si, independente de todo o contexto - inclusive da vida de cada um.

O filme tem uma montagem interessante, porque se trata das duas pessoas do casal contando em entrevista do breve relacionamento que tiveram anos antes. Foi marcante para ambos, mas as versões são bastante diferentes. Por exemplo: ele diz que se conheceram por anúncio em revista; ela, por Minitel - de qualquer modo, eram pessoas sem círculos sociais comuns.

O encontro era para ser apenas sexual, para realizar os fetiches dela. Contudo, após a segunda vez que se viram, um convite pra jantar, com a questão sexual já resolvida, fez com que se sentissem à vontade de outro modo - sem que isso afetasse o mais visível de seus encontros futuros, que seguirão acontecendo uma vez por semana, no mesmo café, para se encaminharem ao mesmo quarto de hotel. Não falam de suas vidas pessoais - no que trabalham, se tem filhos, se são ou foram casados -, e ela faz questão de sempre garantir uma distância - como recusar que a leve para casa. 

O filme acaba desenhando a relação deles como um evento fora da vida banal dos dois, algo extraordinário, somente dos dois: talvez justo por isso, por ser algo tão enclausurado, que haja várias idas e vindas nos sentimentos dos personagens, o que de fato querem, desejam, o que sentem um pelo outro - falta-lhes um círculo maior de afetos, por onde possam serem estranhados e reconhecidos, se estranhar e se reconhecer. 

Depois de ela se declarar a ele no café - e ele de início não ter a reação que ela esperava -, combinam de conversar melhor na semana seguinte, decidir se continuam ou não, e confessam estarem com medo: esse se expôr que apresenta todo um flanco existencial frágil aberto ao outro. 

Nesse último encontro, ele conta ao entrevistador que queria continuar, mas notou que ela não, só não possuía coragem para assumir. Decidiu tomar essa iniciativa: argumentou que acabariam se odiando e o que restaria seriam as boas lembranças do tempo que estavam vivendo naquele momento, não havia razão de irem por essa senda. Ela, por seu turno, relata que queria ele para o resto da vida e estava disposta a fazer tudo por isso, mas ao notar que ele não queria, acha que não tinha porque insistir, preferiu apenas concordar em se afastarem. Em nome do amor de um pelo outro, preferiram preservar o sentimento a acabar desrespeitando o desejo do outro.


Além dessa renúncia ao outro por conta do amor que sente, há outros dois pontos interessantes que ambos os filmes tocam. O primeiro, a questão do se expressar pela palavra e, por consequência, dos subentendidos. 

Em Uma relação pornográfica, o falar ganha um sentido de corte e diversão, porém não de sentimentos, o que dá espaços muitos para subentendidos - e “incompreendimentos” -, desde o início. Ela vendo nele o mesmo desejo que ela nutre, enquanto ele hesita sobre o que sente, por exemplo. Precisaria ser tudo explicitado? Não creio. Porém esse guiar-se muito em função do outro parece exigir uma postura mais aberta - que só será tomada no penúltimo encontro, e sem levar às últimas consequências. Ao cabo, esses subentendidos mal entendidos vão minando a relação até culminar no afastamento indesejado pelos dois - assumido com o argumento covarde de evitar o mal futuro.

Já em The Lunchbox, o subentendido entra mais na questão das convenções sociais: o sentimento de ambos está claro, ainda que não explicitado. E são as muitas convenções sociais que reforçam o subentendido de Fernandez, na sua crença de que elas são predominantes e o único amor que existe é o romântico: logo, ela não se interessaria por ele - afinal, no restaurante ela não suspeitou que ele seria seu missivista -; ou que se interessasse, ele não seria uma boa “opção” para ela, que era jovem.


O outro ponto é a crítica ao casamento monogâmico, que desponta em outros casais que aparecem pontualmente nos filmes - e nos dois casos, com a morte do marido a dar a deixa.

No filme francês, os protagonistas são interrompidos pelo barulho de um velho que tem um mal no corredor do hotel. Correm para acudi-lo: ele está tentando se matar. Diz que há 40 anos se mata, que não suporta a mulher. No hospital, na conversa com a esposa do senhor, ela conta o quanto suporta as infidelidades do marido, desde que ele regresse à casa, e que não sabe o que fazer sem ele: sacrificou sua vida pelo outro e sua ausência implicaria o fim de tudo, a evidência do nada - no dia seguinte à morte do velho, irá se matar. A dependência emocional de ambos fazendo da vida deles um inferno, e sem capacidade de se resolverem, que não pela morte.

No indiano, quem morre é o pai de Ila, que já vinha enfermo há muito tempo. A mãe conta que temia como ficaria quando ele partisse, e tudo o que sente é fome e aborrecimento: é só agora que se permite ver o quanto dedicou os últimos anos de sua vida quase que exclusivamente a cuidar dele - há um cansaço nessa sua constatação, que não é do esforço, e sim do tempo que passou. 

Não vou interrogar se e o quanto haveria de amor nesse abdicar de si para cuidar do outro, o que cabe questionar é se isso precisava ser um sacrifício, um estreitar dos horizontes - presentes e futuros - dessa mulher.


Ainda que transitem dentro de certa lógica da monogamia - mesmo fazendo a crítica -, os dois filmes apontam um rompimento com a ideia do amor romântico - egocentrado e egoísta -, em favor de um amor que é dádiva. Há uma renúncia em nome do amor, que não se confunde com o apagamento de si na intenção de satisfazer o outro - que vai gerar uma dívida futura -, típico do amor romântico, e sim com um reconhecer a própria incompletude e, sem arroubos narcísicos, aceitar que a pessoa amada estará melhor em outras paisagens - e por isso a mostra do amor é respeitar a si e o próximo, deixando-o partir.

Nestes tempos em que tanto falamos em combater o ódio, e no qual o amor aparece como contraponto óbvio, vale mais do que nunca voltar a refletir sobre todas as facetas do amor e as formas de amar, para que esse sentimento possa ser libertador e ampliador de horizontes, e não clausura e sofrimento.


02 de setembro de 2022

sábado, 1 de janeiro de 2022

O racismo naturalizado em Não olhe para cima [Diálogos com o cinema]

(Nota prévia: este é um texto de análise do filme, não de promoção, portanto, contém spoiler)

Desde seu lançamento na Netflix, em 24 de dezembro, Não olhe para cima, de Adam McKay, tem causado considerável debate na nossa neoágora, a internet – essa ágora do imediatismo. Muitos acharam – exageradamente – o filme genial. Do outro lado, houve quem apontasse o filme como raso, com uma crítica fraca. É preciso situar a obra: trata-se de um filme comercial, feito com o dinheiro de uma grande produtora – a Netflix –, que visa lucro: é um produto industrial e portanto não vai se pôr além da lógica do capital. Poucos são os filmes que dão conta de uma crítica incisiva do sistema, e não havia nada para imaginar que Não olhe para cima seria um desses. É um filme bom para o que se propõe: passar duas horas e meia de diversão, sem desligar completamente o cérebro, dando umas cutucadas no espectador.

Algumas pessoas disseram se tratar de um espelho da nossa sociedade. A essas, recomendo trocar o espelho de casa. É uma comédia sarcástica, baseada em estereótipos e que tenta tirar o riso do ridículo do outro – sempre do outro. Algumas pessoas – como a jornalista Bárbara Gancia afirmou em seu Twitter –, conseguiram utilizar o filme para enxergar sua própria superioridade – a mesma com que a mãe a enxergava quando ainda era um toco de carne mama-chora-caga-dorme. Ao cabo, creio que consegue passar a mensagem a um público mais amplo de um modo melhor do que muita obra dita séria e pretensiosa – não apresenta uma verdade (conveniente ou não), mas abre uns rasgos por onde pode ser que entre alguma ludidez. Se essa mensagem vai criar raízes e frutificar, é uma questão que abrange toda a sociedade – sociedade do espetáculo, do imediatismo, do entretenimento, do cansaço –, não será um filme a mudar isso, diferentemente do que gostaria Charles Bramesco, em sua crítica no The Guardian.

A película traz alguns pontos relevantes, explicitados sem nenhuma sutileza, mas de tão naturalizadas muitas vezes não notamos seu absurdo – ou notamos pela metade, só quando a estridência é demais. As lógicas perversas das redes sociais e do novo fluxo de informação é um deles: a memeficação do descontrole da cientista Kate Dibiasky, o aproveitamento do episódio por parte do então namorado, a disputa de opiniões sobre uma questão científica, a “platitudificação” de tudo por parte dos apresentadores do programa de entrevistas televisivo (cujo título é irônico, o “rip” de “rasgo”, de “abrir”, mas também de “rest in peace”, “descanse em paz”), o discurso-espetáculo da presidenta. Outro ponto: as relações por demais íntimas entre grandes fortunas e o poder – aqui, com o risco de ficar parecendo que isso é exclusividade de um campo do espectro político, quando sabemos que no sistema democrático liberal (seja a democracia estadunidense, escandinava, brasileira, sul-coreana, japonesa, africana) trocam-se os nomes e os ramos dos afortunados, mas não as práticas do governo com eles (sem falar no legislativo). Há ainda o discurso de sempre dos 1% (devidamente amplificado pelos seus porta-vozes oficiais, a mídia, e oficiosos, as redes sociais aparelhadas), de que toda crise é uma oportunidade para acabar com a miséria do mundo, de criar novos parâmetros de sociabilidade, um “novo normal”, mais fraterno, mais "humano"; isso a um pequeno risco de extinção da humanidade – e um grande aumento da sua fortuna.

Mas me centro mesmo na última cena – a última ceia. Diante do fim iminente e inexorável, um aproveitar os últimos momentos com seus queridos, sem esperança de salvação e – irrealisticamente – sem pavor, sem choro, sem crises – inclusive com a esposa engolindo a crise recente do casamento. Como Geni Núñez (no Instagram: @genipapos) aponta: na hora do fim, até o mais ateu dos cientistas viraria religioso em busca da salvação da alma. É um discurso conservador, uma vez que desautoriza outras crenças – é o evangélico desgarrado a fazer a última oração –, assim como deslegitima a própria descrença em deus ou no que for (e, pelo exemplo de meu pai, posso afirmar que nem todo ateu na hora H acha que está errado: ele seguiu sendo ateu, como eu também, mesmo quando só um milagre seria capaz de salvá-lo). Vale lembrar que o liberal-fascismo se assenta no cristianismo, ainda que fomente o sectarismo de outras religiões.

Mas na última ceia não está só a família do professor Randall Mindy. Estão também pessoas queridas sem vínculo familiar, muitas das quais surgiram nos últimos momentos – mas nem por isso deixam de ser queridas. Estão lá Kate e Yule, seu namorado novinho, “millennial”, que conheceu há pouco; e também o agente da Coordenação de Defesa Planetária, Teddy Oglethorpe, a quem Randall e Kate conheceram há seis meses e quatorze dias, quando descobriram o cometa em rota de colisão com a Terra. Yule entra na história com dois propósitos: fazer a oração final e reforçar a mensagem de amor romântico, um dos pilares do discurso patriarcal, cristão e capitalista; amor esse que supera tudo e surge a qualquer momento.

Foi a presença de Teddy, contudo, que mais me chamou a atenção. 

Teddy é o personagem negro a compôr a cena – de certa forma cena de redenção, ainda que uma redenção condenada à morte. Sabemos porque Kate e seu namorado estão lá: ambos se desentenderam com seus pais e se uniram porque se amam, ele está com ela e ela está com Randall, seu orientador de longa data; agora, por que Teddy teria viajado de Washington para Michigan, 900 km, para passar seus últimos minutos com uma família desconhecida? Ele não tem pai, mãe? Não tem esposa, esposo, filhos? Não tem amigos? Por que não viajou acompanhado de algum querido seu de longa data, que poderia, inclusive, ser o evangélico desgarrado que faz a oração? Ou será que tudo isso é irrelevante para um personagem negro, porque sua função é somente compôr a cena? Mais: Yule, que chega só no fim da história, apresenta seu passado, sua trajetória, já os dois personagens negros de destaque (secundário) durante toda a trama – Teddy e o apresentador Jack Bremmer –, são desprovidos de qualquer história pessoal: enquanto os brancos tiveram um percurso e chegaram onde estão, os negros só foram postos ali: de Teddy sabemos que há quinze anos trabalha na Coordenação de Defesa Planetária, de Jack, que apresenta um programa de tevê e faz piadas; são pessoas sem história, sem complexidade, sem vínculos, sem relações, quase sem humanidade (ainda mais a se levar em conta a família e o amor romântico como centrais na construção do discurso final): pouco mais que adereços para cumprir a cota racial exigida.

Falei acima que o filme amplifica alguns absurdos que temos presenciado na contemporaneidade, assim como escancara algumas banalizações que acabamos aceitando no nosso dia a dia – até para suportarmos a lógica do choque da sociedade moderna. McKay não precisava fazer do filme um libelo antirracista – não era essa sua intenção –, mas a forma como o apagamento da pessoa negra como sujeito se faz presente em Não olhe para cima mostra o quanto devemos estar atentos às naturalizações que nos são impostas sem estridência. Olhemos para os lados.


01 de janeiro de 2022

sábado, 18 de janeiro de 2020

Democracia em vertigem, país em pedaços [Diálogos com o cinema]

Democracia em Vertigem, de Petra Costa, é um filme-bolha: quem é antipetista, não importa o matiz, não vai chegar perto de assistir ao filme; quem é do campo democrático, petista ou não, bem possível que se anime em vê-lo e não vai ter absolutamente nenhuma novidade, nenhum acréscimo ao que já sabe; já quem é daquela zona cinzenta dos “apolíticos”, dos analfabetos políticos que não aderiram por comodismo ao fascismo, poucos vão encontrar ali algo que mobilize a assisti-lo... salvo a indicação do Oscar para melhor documentário - a reação do governo federal e do PSDB à indicação são um reforço a esse público para assisti-lo, visto que “se incomodou, é porque algo tem”.
Petra Costa, se souber aproveitar da indicação e do apoio (involuntário) dos golpistas, se habilita como figura de proa do cinema engajado nacional - mesmo que não leve a estatueta. Tem tudo para assumir o papel de “Michael Moore do Brasil”, ou seja, uma cineasta engajada à esquerda, afinada com um partido, com um ponto de vista bem marcado, e que faz filmes para atingir também um público que pode se sensibilizar com o que é apresentado - além, claro, das pessoas da bolha.
E tal como Michael Moore, Democracia em Vertigem, apesar de engajado, de ter lado, é um filme superficial, fraco, pouco político: fica antes numa chave emotiva-moralista e apresenta todo o teatro político como algo distante e em boa medida alheio ao povo: as manifestações de rua entram mais como se fossem torcidas de futebol - que em algum passado poderia ter sido o documentário a representar o Brasil -, salvo, talvez, quando fala de 2013. Até para a história que se propõe contar o filme é superficial: a falta de ênfase na trajetória de Eduardo Cunha e Sérgio Moro, por exemplo, não permite que amarre a contento esses dois personagens na história do golpe - deixar passar, no depoimento de Lula, quando Moro tenta a pegadinha de “achamos estas escrituras sem assinatura no seu apartamento”, me pareceu infeliz.
Lula, por seu turno, sai engrandecido do filme - como do golpe, como de toda a história. Os trechos de seus discursos ressalta um orador dos maiores da história; os momentos falando para a cinegrafista, sua defesa da democracia, reiteram o papel de grande líder mundial, ainda mais neste momento de ascensão da extrema direita em todo o globo e da relativização da democracia e do Estado de Direito.
Democracia em Vertigem tem também uma falha no nome - ou seria uma esperança? O que vemos ali - e fora dali também - é uma democracia em pedaços, destroçada, sem chances de voltar ao que era - e sem que consigamos encaminhar uma ação para que democracia queremos construir. Ponto positivo, que o filme antes apresenta os diversos caminhos que acabaram por nos conduzir à encruzilhada na qual estamos, deixando ao espectador juntar da forma que mais lhe faz sentido, e sem apresentar solução, apenas anunciando o problema.
Trata-se de um réquiem do pacto democrático que se extinguiu em 2015. Graças ao Oscar, o filme sai da bolha, deixa de beirar o irrelevante e, mesmo com todos seus defeitos, se torna um saudável sopro de crítica para os nacionais - para os tempos atuais, precários, necessário. Para consumo externo, um filme que desnuda de maneira simples o ponto aonde estamos e indica que o que aconteceu na maior economia e maior democracia da América Latina não é um evento normal, e há algo além, que merece atenção. Não por acaso incomodou Bolsonaro e os tucanos: vão ganhar o mundo como vilões, incapazes de uma justificativa plausível. Ao ganhar visibilidade, pode ajudar a abrir estradas para o país que buscaremos construir quando todo esse pesado for expurgado.

18 de janeiro de 2020

domingo, 17 de novembro de 2019

Bacurau e a volta dos que não foram (como vovó já dizia) [Diálogos com o cinema]

Composta em 1973, "Como Vovó Já Dizia", de Raul Seixas, foi censurada pela ditadura militar - digo, movimento de 64, conforme o presidente do STF -, e ganhou a versão conhecida, com quase nada da original, que não os versos "quem não tem colírio usa óculos escuros" e "a serpente está na terra, o programa está no ar". Ainda que a versão consagrada traga uma série de críticas veladas à ditadura militar e à situação do país, fica muito aquém da versão original - inclusive faz sentido porque usar óculos escuro diante dos olhos "manchados com teus raios de luar". Há cerca de dez anos sua filha lançou uma versão eletrônica a partir da gravação do vocal do pai com a letra original:

"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa luz tá muito forte tenho medo de cegar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Os meus olhos tão manchados com teus raios de luar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Eu deixei a vela acesa para a bruxa não voltar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Acendi a luz do dia para a noite não chiar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Já bebi daquela água, quero agora vomitar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Uma vez a gente aceita, duas tem que reclamar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
A serpente está na terra, o programa está no ar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Vim de longe, de outra terra, pra morder teu calcanhar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tudo tá na mesma coisa, cada coisa em seu lugar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro"

Há ainda uma outra versão que circula na internet, um show ao vivo, com pedaços da letra original e alguns acréscimos:
"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Einstein usa Fitipaldi
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Hitler usa Pelé
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem New York usa São Paulo"

Além de um solo de boca, que pode ser lido tanto com uma ironia à pretensa incompetência artística do artista, como à precariedade em se fazer arte no Brasil dos anos 1970.

Quase meio século depois e a serpente saiu da terra - graças aos programas que estão no ar. O fascismo emerge forte, nascido aparentemente por geração espontânea para boa parte da esquerda e das forças progressistas, que não duvidaram radicalmente do fim da história de Fukuyama, aceitando implicitamente certa irrelevância do presente na história pós queda do muro de Berlin. Agora corremos atrás de entender como tudo isso aconteceu, como chegamos onde estamos tão repentinamente - aparentemente. Parte da esquerda (na qual me incluo) caiu na otimista crença liberal de raiz iluminista de que o bom senso cosmopolita prevaleceria por inércia: questão de tempo para as pessoas se darem conta de que a defesa dos direitos humanos é tão óbvio quanto a circunferência da Terra. Outra parte (ainda muito relevante dentro da academia) prefere seguir negando dados concretos de realidade em favor de fantasias infantis de poderes supra humanos que ocultam sua real impotência: a incapacidade de aceitar pequenos avanços como vitórias, seu "revolução ou deixa tudo como está", que se não falam abertamente, está nas entrelinhas, nada mais é que incapacidade de enxergar a fome real do outro (e seria possível "enxergar" o que é a fome graças à empatia, não é necessário ver alguém morrendo de fome ao vivo, uma experiência que não recomendo). Os revolucionários de gabinete que ontem gritavam contra a pretensa passividade do povo e as leituras erradas d'O Capital, hoje repetem as mesmas querelas [como a atual, iniciada por trotskystas indignados pela revista Jacobin ter dado voz a um intelectual afim ao stalinismo falar da situação atual do país], e amanhã serão os primeiros a fugir do país, ressentidos por não terem sido ouvidos. Dez anos atrás eu ironizava essa esquerda com o "Troféu Peter Pan de Resistência", no Trezenhum. Humor sem graça. No mesmo blogue, ridicularizava alunos que abraçavam polianamente pressupostos nazistas, assim como seitas evangélicas reacionárias e grupelhos abertamente fascistas que brotavam na Unicamp: minha crença no bom senso não me permitia imaginar que algum dia ganhariam não apenas relevância como o poder. Eu vi a bruxa e desacreditei: como tantos, deixei a vela se apagar.

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E cá estamos nós, 2019, lambendo as feridas e tentando achar linhas de fuga para um devir menos aterrorizante, mas ainda temerosos de enfrentar a noite, o escuro - herança iluminista que achou que o mundo poderia viver num dia eterno, e que o capitalismo tem tentado tornar realidade em seu expediente 24/7 (eu mesmo escrevo este texto já passado da meia noite).
Kleber Mendonça é um desses artistas argutos e que tem lado, cuja obra não apresenta soluções, mas escancara problemas e nos permite elaborar melhor possíveis resistências e contraofensivas - seu senso de oportunidade está em descortinar os mecanismos de poder e dominação e não em tecer loas acríticas ao poder, cada vez mais confundido com o fascismo, como outro cineasta brasileiro, que agora se diz arrependido, por não ter lucrado tudo o que esperava.
Talvez um primeiro alerta cinematográfico para o fato da serpente do fascismo estar apenas adormecida tenha sido dado por Stanley Kubrick, em seu "Dr. Fantástico ou como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar a bomba": a integração tranquila de oficiais nazistas nas altas esferas da inteligência estadunidense só poderia ter acontecido se já houvesse algum tipo de afinidade com o regime derrotado em 1945 [assim como nossa democracia, que aceita Delfim Netto e Paulo Guedes como se não fossem símbolos de propostas autoritárias e excludentes de sociedade, e ainda temos a pachorra de nos surpreender com seus "Heil Hitler" bananeiro-tropical]. João Bernardo comenta que não apenas o embrião das milícias fascistas é "made in USA", com as empresas de "segurança privada empresarial", contratadas para agredir trabalhadores, como a distância do liberalismo para o nazifascismo que hoje é consagrado nas ciências humanas, é um projeto de reescrita da história para tentar escamotear o que de fato se passou e as muitas afinidades entre o liberalismo e o totalistarismo - Hannah Arendt seria uma das mais proeminentes vozes dessa vertente. Porém, por muito tempo seguimos achando que o nazifascismo era apenas espectro de um mundo que não existe mais, ideia reforçada pelos filmes hollywoodianos que pintam Hitler como a besta fera da antipatia e grosseria - exatamente o oposto do carisma contagiante retratado por Leni Riefenstahl em "O Triunfo da Vontade", de 1935.
Voltemos ao Brasil de 2019, ou melhor, de daqui a alguns anos, retratado em Bacurau, pequena localidade do Sertão de Pernambuco - estado de tanta história de resistências e guerras. Essa dupla indeterminação - "sertão" e "daqui a alguns anos" - não é fator menor na leitura da realidade que o filme permite.

O sertão é tido, geralmente, como um lugar ermo e perdido também no tempo, na história, no espaço: um território de reserva, para ser utilizado em algum futuro (daqui a alguns anos), quando necessário ampliar fronteira agrícola ou qualquer outro projeto de indução econômica-capitalista. Antes desses momentos de "avanço", de "interiorização", é dado como um lugar vazio, que só desponta ao "país real" em tempos de crise - catástrofes naturais, como secas, ou fanáticos religiosos brotados da pobreza e da violência do estado, como Antônio Conselheiro e Monge José Maria. O sertanejo - antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha - é antes de tudo um não cidadão - ou deveria ser, uma vez que deixou tal condição graças às políticas sociais dos anos petistas, coisas simples e de baixo custo, como Bolsa Família e Programa de Cisternas (por sinal, uma delas aparece no filme). Essa inserção do sertão no mapa do poder, não no modo habitual, como um antro de atraso a ser domesticado, ainda que não completamente inserido na produção de mais-valia, foi suficiente para gerar revoltas do "Brasil do sul", de grileiros de toda espécie (de terras e de capital político) e das altas esferas burocráticas do estado, como a do judiciário - não por acaso, um dos "caubóis" contratados pelos estadunidenses é funcionário do judiciário.
Bacurau é síntese do sertão: mal está no mapa, e pode ser riscada dele, com aval do poder, sem fazer falta alguma ao país.

O "daqui a alguns anos" em que se passa a história é um futuro indefinido que num primeiro momento deixa o espectador perdido, reforçado pelo início tosco do próprio filme: será uma obra sobre uma distopia futura, meio século adiante, em que o sertão, esse lugar do atraso, congelado no tempo, ainda se vale de tecnologia da segunda década do século XXI? Não tarda para notarmos que esse futuro só não é presente por questão de detalhes - que as elites, bem representadas nos governos que tem assumido o poder nos países latino-americanos pela via golpista, militar ou judiciária, estão tentando resolver. O detalhe óbvio que essas elites não são capazes de compreender, deslumbradas consigo própria, enxergando o Big Ben na torre da matriz da cidade, a estátua da liberdade original em porta de lojas de departamentos de cidades caipiras e o skyline novaiorquino na barafunda arquitetônica paulistana (pastiches de modas europeias com toques de modernismo tropical que ignora o que é a vida nos trópicos): não são brancos - nunca serão. A herança grega é exclusividade europeia - não importa que a Igreja Universal tenha suas colunas dóricas -, e a tal tradição judaico cristã só é verdadeira enquanto nos países ocidentais - Israel, Europa Ocidental e Estados Unidos. Jeanine Añez consegue ser, no máximo, uma mexicana pálida empapuçada de maquiagem; Bolsonaro e seu séquito - Bispo Macedo, Malafaia, Dom Orani - são apenas jumentos que podem ser descartados tão logo percam a utilidade. E por não serem brancos, por não serem ocidentais de verdade, são outras espécies de humanos, um degrau abaixo na hierarquia fascista do mundo.
Falta pouco para esse "daqui a alguns anos" ser presente, um tempo em que as pessoas, tocadas pela questão ambiental e buscando saídas saudáveis para suas frustrações - em especial a de serem losers numa sociedade pretensamente de winners  -, que não via massacres de seus colegas e compatriotas estadunidenses, se dediquem a safáris humanos. Primeiro, um presidente estadunidense que retome a tradição europeia de se chocar com violações gritantes dos direitos humanos dentro do seu território, e forçar sua externalização. Como foi feito com trabalho escravo - legal na África até 1960 -, como é feito com pesquisas científicas usando cobaias humanas, proibidas conforme o código de ética dos países centrais, mas realizadas tranquilamente no Brasil e outros países periféricos; como é feito com o tráfico de órgãos (retratado no filme "Coisas belas e sujas", de Stephen Frears). O fim dos safáris de "mexicanos" no Texas parece exigir antes algum lugar onde eles possam acontecer sem problemas - Brasil, Bolívia, Cambodja, Uganda, Moçambique, África do Sul... O Rio de janeiro, por exemplo, mostra um grande potencial para esse tipo de "turismo de aventura": suas favelas, seus morros já tem todo o apelo de anos de divulgação internacional; [bailes funks na periferia de São Paulo talvez possam até despontar antes, além de ter a vantagem de poder matar vários gastando poucas balas, e ainda ser elogiado pelo governador, quem sabe condecorado]. O problema, por ora, é garantir a segurança aos turistas, porque há uma parte da criminalidade que ainda não coadunou o suficiente com o poder na divisão do domínio do território e suas populações. Mas isso é algo que tem se buscado uma solução, via governos comprometidos com milícias, milicianos, traficantes de drogas e paramiliatres - além, é claro, dos comprometidos com lavadores de dinheiro de toda ordem.
Enquanto não se põe ordem nas áreas propícias para safári humano, o que resta é acompanhar à distância, estilo reality shows, a câmera seguindo qualquer policial fascista transformado em um Capitão Nascimento - realizando o fetiche de parte das elites brasileiras -, estimulado por apresentadores de tevê a dar esculacho em um zé ninguém, desarmado e desprotegido, por ser pobre preto e periférico - até o momento da consagração, o assassinato de estado de alguém cuja vida não vale. Nesse ápice, nós, que não temos Hitler, veremos um de nossos líderes sair do helicóptero a comemorar, dando soco no ar como Pelé. Em casa ou acelerando seus potentes carros, os cidadãos de bem comemoram.


17 de novembro de 2019 [com complementos e título (mesmo que péssimo) dia 02 de dezembro]

ps: ainda pretendo escrever um texto sobre outro aspecto levantado pelo filme.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Minimalismo: um documentário branco [Diálogos com o cinema]

Admito: o filme me chamou a atenção porque achei que dizia respeito ao movimento artístico e não a um movimento moral. Passada essa frustração inicial, decidi assistir ao documentário de Matt D’Avella, Minimalism: a documentary about the important things (Minimalismo: um documentário sobre as coisas importantes), em cartaz no Netflix (é assim que fala?).
O documentário mostra um pequeno período da vida de pessoas brancas com dinheiro suficiente para ter uma vida confortável sem necessidade de trabalho alienado que descobriram que não precisam mais trabalhar para ter uma vida confortável, desde que abram mão de alguns excessos. Parece tautológico, e é – na minha escala de valores, isso seria o bom senso: trabalho se preciso, se não, vou aproveitar a vida frugalmente. Minimalismo é uma “filosofia” de vida, uma moral, uma ética pós-moderna pseudocrítica que defende uma vida simples, apenas com o que é necessário. Aqui o filme poderia entrar na ótima questão do que é necessário, inclusive ressaltando nossa “segunda natureza”, como diziam Marx e os antropólogos, que nos (im)põe necessidades vitais para além das biológicas – e que são, em boa medida, legítimas. Mas o documentário, como parece ser a própria ética ali exposta, é para consumo rápido, não para refletir, questionar, pensar: é uma auto-ajuda um pouco menos tosca, um pouco menos caga-regras, e com algum potencial para críticas posteriores – se as pessoas estiverem aptas e dispostas a tanto.
Além da branquitude de todos (exceto um entrevistado de terceiro plano), chama a atenção que nessa vida só com o básico (levando em conta as necessidades culturais, deixemos claro), carro não é excesso, por mais que se possa locomover com outros meios de transporte; notebook Macintosh não é excesso, por mais que um aparelho de marca genérica seja capaz de alimentar um blog; uma casa de subúrbio americano, com todo seu fausto (e fastio?), não é excesso; ou se for, uma casa própria, ainda que hipercompacta, é imprescindível. Por mais que o discurso perto do final fale em aprofundar os laços comunitários, o tal minimalismo é uma ética profundamente individualista-possessiva, afim aos ideias americanos, liberais, neoliberais, apenas levemente repaginado pela pós-modernidade com ares do Vale do Silício. Comunidade é bom, mas minha propriedade primeiro. Não por acaso os dois protagonistas, que tomam a maior parte do filme, Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus – autores de um livro sobre a importância de não consumir o que não é essencial que saem em turnê pelos EUA vendendo um livro supérfluo –, conseguem facilmente adentrar a indústria cultural do país, em programas televisivos, para passar sua mensagem “revolucionária”, conforme o segundo negro que tem voz no filme, um qualquer que assiste à palestra dos dois. Seu potencial questionador é aquele que conhecemos aqui no Brasil com filósofos e historiadores pop, ou seja, inofensivo (dou o braço a torcer, Karnal ainda tem alguma substância, ainda que geralmente fique no rés-do-chão; Cortella é de uma precariedade constrangedora, não por acaso até Olavão e Pondé também se considerem filósofos).
Questionamento sobre o modo de produção? Muito superficialmente o filme passa pelo modo de produção de desejo, induzido pela publicidade, mas muito, muito, e bota muito superficialmente, sem nenhuma crítica, está ali só para lembrar: a publicidade nos induz a querer o que não precisamos. Às vezes. Talvez. Mas é do mundo ser assim, não reclamemos, apenas nos vacinemos contra, se for o caso. Produção material? E isso existe? Desigualdade de renda? De oportunidades? Questões sociais, definitivamente, não entram no horizonte dos minimalistas. Sequer a questão ambiental é trazida: não se apela aos desperdício de recursos naturais que a produção de lixo travestido de produtos traz, é tão somente uma tentativa de resposta super narcisista à crise do hedonismo desesperançado do consumismo desenfreado – menos mal que não se desenha, não no filme, como uma religião laica, onde há pecado porém não há deus. E nisso o título é explícito na precariedade dos ideais ali expostos, do egocentrismo, do etnocentrismo do tal minimalismo ético: ouso dizer que no mundo atual, as coisas importantes ainda são a fome, a miséria, o desmatamento, o trabalho alienado, a falta de perspectivas, questões que atingem a enorme maioria dos seres humanis; diminuir o consumo só é algo importante se você não passa fome, se você tem liberdade para escolher onde trabalhar, se vai trabalhar, se quer morar numa casa grande ou pequena, ter carro ou não. Com muito boa vontade, 10% da população mundial talvez esteja nesse patamar.
Ainda assim, para muitos, mesmo nestes Tristes Trópicos, Minimalism: a documentary about the important things pode ser um despertar da consciência. Se for alguém mais crítico – como este escriba se considera – vai ajudar a repensar alguns hábitos (e se indignar com tudo o que o filme negligencia). Se for crítico só até onde não incomoda (como certo pessoal das esquerdas (brancas) da zona sul carioca, zona oeste paulistana), vai aderir a uma onda que pode ser nova moda hypster de expressão da individualidade via consumo gourmet.

09 de julho de 2019

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Não há inocente em Aquarius [Diálogos com o cinema]

Faz alguns dias, ouvia no rádio reportagem sobre o Parque Augusta, uma área no centro de São Paulo disputada entre a incorporadora Setin e a população - que por não pagar publicidade nos meios de comunicação não tem direito de ser chamada de "sociedade civil", como acontece com interesses de empresas e sindicatos patronais. Em algum momento da reportagem, o dono da incorporadora dizia que estava certo do seu empreendimento, porque “o Brasil não é uma Venezuela”, “uma república bolivariana”, e que aqui se fazia “valer a lei”. Esqueceu de explicar qual lei, mas era claro que se tratava da lei da grana, que dá ao senhor Setin não só o poder de comprar o terreno na Augusta, como de comprar vereadores e prefeitos (Russomano deixou claro, no primeiro debate, que sua política urbana é liberar geral para as empreiteiras), juízes e toda a justiça, se preciso for. A lembrança do Parque Augusta e da fala do Setin me veio por conta do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, selecionado para o Festival de Cannes. Um filme que tem sido muito comentado, bastante por conta de seu protesto, no festival, contra o golpe em curso nestes Tristes Trópicos, e da retaliação do governo golpista via indicação etária (devem ter argumentado que aparecem cinco peitos, uma boceta e dois pênis), mas que merece todas as indicações recebidas pela qualidade excepcional enquanto filme: o cuidado nos detalhes, a qualidade do enredo, as atuações convincentes, a maravilhosa trilha sonora e sua presença ativa na construção da narrativa (destaco a caracterização dos anos 80, no inicio do filme, nas roupas e na própria matiz das cores do filme).
O enredo de Aquarius é singelo: a disputa entre uma construtora (Construtura Bonfim, até rima com Setin) e uma moradora que resiste, por questões afetivas, a vender seu apartamento na praia de Boa Viagem - todo o resto do prédio está desocupado. Está dado, logo na apresentação do embate, o seu final: Clara (Sonia Braga), a moradora, não tem chances, e passamos duas horas e meia a esperar por onde virá o desfecho óbvio.
O corte de classe do filme é o mesmo das novelas das nove da Globo: a classe alta e seus serviçais. O jovem empreiteiro quer mostrar serviço, não por estar na berlinda em seu emprego - é neto do dono da empreiteira -, tão-somente por uma questão de ego, de vaidade; e apesar de entrar no estereótipo de vilão global - o perverso bonitão - é um sombrio retrato da geração que desponta: formado no exterior, cinicamente simpático, sem escrúpulos para alcançar seus objetivos e sem qualquer outra preocupação que não seu sucesso, contabilizado em lucros e em aparições na grande imprensa. Perversão e capitalismo - certa hora do filme me veio essa associação, bastante óbvia, eu sei. Clara, por sua vez, não é uma pobre-coitada assediada pelo vil metal: possui outros cinco imóveis (daí ela poder recusar sem dificuldades generosas propostas da construtora), carro importado, empregada doméstica, e seu círculo de relações inclui pessoas que muito podem por muito saber - e parte do que sabem pode ser repassado mediante alguma gratificação. Não há inocentes em Aquarius - ou talvez haja: os serviçais e desfavorecidos, tanto a doméstica que trabalha para Clara, que acredita fazer parte da família, quanto os jovens negros e de periferia que entram para um exercício de relaxamento onde só há gente branca, causando mal-estar pela sua presença. Por sinal, as questões de conflito de classe surgem esporadicamente no correr do filme, em geral em forma de estocadas diretas e bem postas.
Trata-se de um filme violento, do início ao fim, e nisso me lembra Elefante, do Gus Van Sant, só que sem matança no final: violência simbólica e quotidiana, que preferimos não ver, fingimos ignorar, ou mesmo naturalizamos a tal ponto que sequer enxergamos nisso violência - alguns talvez até achem fraqueza de caráter daqueles que sucumbem a ela. Se em Elefante sabíamos que toda aquela violência simbólica seria coroada com um massacre, em Aquarius, tememos pela integridade física da protagonista, porém sem saber de onde virá o tiro - e quem leu Dance Dance Dance, do Murakami, talvez note a falta que faz (ao menos em Recife, ao menos até 2014) uma Yakusa, um crime organizado mancomunado com o Estado e o capital a realizar a tarefa que a polícia é impedida por lei. Apesar que no caso de Aquarius apelar para a Yakusa seria dar muito à vista, e Clara possui capital econômico e simbólico que a deixa imune de uma violência assim tão descarada - é preciso, portanto, violentá-la por várias maneiras, que não dêem muita bandeira.
A força da grana, que destrói e constrói coisas belas, como canta Caetano, em Aquarius é apresentada em outro nível, em sua força para corromper: corrompe caráter, formação, relações familiares, corrompe a integridade emocional, corrompe a liberdade - todo empecilho ao livre crescer do capital autoriza o uso de violências. Foi nisso que o filme mais me agrediu: me vi espectador de minha própria miséria, no sentido de carente de direitos, por não ter um Estado que me garanta vida digna, nem uma justiça que me proteja em meus direitos, nem dinheiro o bastante que me dê relativa imunidade às arbitrariedades que esse Estado e essa justiça permitem (quando não praticam diretamente) - e olha que estou muito bem colocado na sociedade brasileira, estou anos-luz de quem mora nas periferias e via a democracia ainda como possibilidade futura.
Sim, há um momento catártico no final, porem uma catarse tão inócua que perde sua força no instante seguinte: o que resta é a sensação de desastre, de derrota. Niilista mas necessário, saio da Sala Olido em busca de alternativas - que o filme não aponta.

4 de setembro de 2016


quarta-feira, 15 de junho de 2016

Do outro lado do mar, as sobras da Europa [Diálogos com o cinema]

Atenção: conto trechos do filme, inclusive do final
Em minha última crônica [http://bit.ly/cG16608], comento do meu assombro diante da velocidade que a história parece tomar: em um ano e meio uma peça que usava Federico Gacria Lorca para falar de nosso passado-ainda-presente de ditadura e torturas passa a falar de nosso presente-possível-futuro (também assusta nosso futuro repetir o passado). Além-mar, em Do outro lado do mar, do diretor suíço Pierre Maillard, consegue a proeza de se tornar velho entre ser concebido e ser lançado, em 2015. Causa estranhamento que o filme, ao mesmo tempo que aborda a questão mais premente na Europa - a crise humanitária dos refugiados -, tenha uma abordagem defasada, porque foi claramente concebido num contexto pré-2014: ao invés de desesperados fugindo da morte, desiludidos em busca de esperança. Não apenas isso: um padre desiludido com o que presencia fala em abandonar a igreja para se tornar marxista - agora que temos um papa mais radical e atuante que boa parte das esquerdas marxistas do mundo (a brasileira, desde sempre muito ocupadas em produzir apresentações e "papérs" para seminários e congressos marxistas em que se critica tudo o que é feito e propõe soluções teoricamente perfeitas e fenomenais). Ao mesmo tempo Do outro lado do mar é revelador: a crise que hoje presenciamos é apenas uma versão majorada de algo que está latente no próprio continente: as sobras da dita civilização-ocidental-cristã de matriz européia e seu meio milênio de hegemonia avassaladora.
O filme trata de um ex-fotógrafo de guerra italiano que, traumatizado com o horror que presencia e expõe, passa a fotografar apenas árvores. Decide ir para a Albânia, onde anos antes fez seu último trabalho de guerra - a guerra do Kosovo -, fotografar árvores. Se mete numa pequena cidade perdida, onde quase ninguém fala outro idioma que albanês, do outro lado das montanhas onde presenciou seu horror definitivo, o estupro e enforcamento por militares de uma mulher, queimada a seguir. Sem querer, se vê no meio de uma disputa entre famílias, correndo risco de ser morto.
A Albânia fica nos Bálcãs, fica, portanto, na Europa. Uma Europa que as línguas nobres da civilização escondem, mas que ressurge de tempos em tempos para lembrar que a Europa não é só Paris Londres Roma Berlim, Louvre British Museum Vaticano Pergamon, a concentração de belezas saqueadas de todo o globo: parte do que a Europa civilizada roubou veio da própria Europa - e não falo apenas de obras de arte, mas de riquezas várias, dentre elas a do futuro para novas gerações. Desde a guerra na Bósnia muito se tem alertado que os Bálcãs são a verdadeira Europa, o verdadeiro destino europeu. O caso específico da Albânia: trata-se de país outrora comunista, que na sua transição para o capitalismo foi enviado ao inferno pelo receituário neoliberal do FMI e Banco Mundial e, não saindo da pobreza, sofreu uma rebelião popular com milhares de mortes, depois de parte da população perder o pouco que tinha, devido à bancarrota (óbvia) de uma pirâmide financeira respaldada pelo Estado; não sendo suficiente ser um dos países mais pobres da Europa, recebeu enorme fluxo de refugiados da guerra do Kosovo.
Antes de falar em África ou Síria, o filme mostra que as sobras da Europa estão na própria Europa - são a própria Europa.
A honra da família patriarcal acima de tudo, inclusive da vida. A independência feminina que consiste em fugir dos homens da própria família. Brigas de família que remontam ao terror totalitário comunista e são resolvidas com sangue. Em parte lembra o sertão brasileiro retratado por Abril Despedaçado, mas estamos na civilizada Europa, fonte de luzes para todo o mundo - dizem.
Entretanto, as sobras da Europa estão também no seu centro: é emblemático o fotógrafo que não consegue dormir sem ser despertado no meio de seu sono pelo sonho com a mulher que viu morrer. Ainda que ele possa se dedicar a fotografar pacíficas árvores, está na sua memória, na sua consciência. É essa Europa que no filme já sofria com o desejo de esperança de refugiados africanos, afegãos e das partes preteridas da Europa - e que hoje se diz atacada por aqueles que sempre subjugou.
Regressar à Albânia não é apenas voltar para onde ele se esgotou, é encarar a Europa feita país, uma Europa incompleta, um continente que se pretendeu universal e que hoje está à beira do abismo. A fotografia do filme (que me remeteu muito à série "Escultura do inconsciente", do fotógrafo nipo-brasileiro Tatewaki Nio) revela muito desse desalento, desse futuro que virou passado sem se concretizar em nenhum presente. São planos gerais, ora sob névoa, ora diante de ruínas - de minas, de igrejas, de casas, de civilização -, ora diante de obras inacabadas: soou emblemático para mim uma ponte abandonada no meio do caminho, sob a qual navega um barco a remo cheio de cabras, guiado por uma senhora: ao espoliar o mundo todo para sua glória, a Europa não foi capaz de concluir as pontes para o futuro radioso que ela prometia (e nem entro no mérito sobre aonde essas pontes eurocêntricas levariam, talvez na Europa elas levassem mesmo para um bom caminho).
Tráfico de armas, tráfico de pessoas, tráfico de madeira, com conseqüente destruição acelerada do meio-ambiente; submissão feminina, briga entre famílias por questão de honra, assassinatos; ausência do Estado: sejamos bem vindos à Europa-sobra da civilização européia. Do outro lado do mar mostra à Europa dita civilizada sua própria incompetência, seu fracassado em sua própria terra, que ela por tanto tempo tão bem ocultou. Entretanto, o próprio diretor se mostra reticente em assumir o fracasso completo que é a Europa, e propõe a reconciliação - com o público, ao menos -, ao apresentar a fuga de refugiados feridos e sem dinheiro da polícia como a alegria de um novo porvir. Não posso falar pelos refugiados, mas imagino que a alegria de alguém que vislumbra poder ter esperança seja coisa muito pouca para nós que comodamente assistimos a um filme numa confortável sala de cinema - e sei que o porvir que os espera não é nada radiante. Os bárbaros que hoje a "invadem" em busca de esperança são os sub-produtos da civilização que os europeus tanto se orgulham, sem nunca assumir os ônus. Fora do cinema, ainda não há reconciliação em vista.

15 de junho de 2016



quarta-feira, 20 de março de 2013

Quase-presente, quase-futuro [Diálogos com o cinema]

Em O futuro, filme de Miranda July, o leitmotiv do longa é um casal de namorados que resolve adotar um gato e vê com isso suas acomodadas vidas (a vida do casal, como a de cada um dos parceiros) abaladas pela expectativa do bichado que virá – o gato está em uma clínica veterinária e terá alta em um mês. Com esse enredo simples, July levanta uma série de questões interessantes sobre a atual geração.

Jason e Sophie estão juntos há quatro anos, têm cerca de trinta e cinco anos, moram juntos. Sophie é professora de balé para crianças. Jason, atendente de assistência técnica por telefone, trabalha em casa. Não são desajustados, são desajeitados, principalmente Sophie, que apesar de dançarina não parece ter uma relação muito harmoniosa com o próprio corpo. Nenhum dos dois chega a ser infantil – “kidults” –, porém são muito imaturos, evidenciado pelo desespero de ambos diante da responsabilidade de adotar um gato – cuja expectativa de vida, e eles sabem disso, é de seis meses. Por essa reação, somada ao marasmo, à passividade das suas vidas, parece que terão pela primeira vez uma responsabilidade de fato: até então teriam apenas cumprido tarefas elementares do fluxograma do intervalo obrigatório até a morte.

Como têm um mês para a chegada do peso da vida adulta, decidem aproveitá-lo. Não, nada de viagens e hedonismo desenfreado: é um tentar se encontrar, antes que o gato chegue para acabar de vez com sua liberdade – que nada mais é que poder jogar tudo para o alto, tão-somente. Eles abandonam seus empregos. Ela anuncia aos amigos seu projeto de elaborar trinta danças em trinta dias – uma tentativa de alcançar o “sucesso” da secretária gostosa da academia, que tinha dez mil visitas ao seu vídeo no youtube. Ele prefere se deixar levar, estar aberto ao que a vida pode lhe oferecer. Mesmo sem nunca ter se interessado por questões ecológicas, entra em uma ONG que vende árvores sob a desculpa de salvar o mundo – não que tenha adquirido qualquer convicção, apenas passou por um homem que anunciava as tais árvores e acho que era o sinal.

Se ele passa a sair de casa, ela faz o inverso, e passa a ficar em casa – eis a grande mudança de vida que eles realizam. Ele parece bem – bem adaptado, ao menos – com seu novo emprego, tal como parecia com seu antigo: no fundo, a impressão que se tem é que qualquer coisa lhe é indiferente: assumiu o discurso ecológico como poderia ter assumido outro e como pode abandoná-lo com a mesma facilidade. Ela, por outro lado, segue desajustada: era uma professora sem vitalidade; em casa, com a tarefa auto-imposta e a comparação com a secretária bem sucedida, simplesmente paralisa. É uma exigência acima das suas forças – talvez não por ela não ser capaz, antes porque não parece ser de fato esse o seu desejo: ela apenas tenta fazer o que as outras estão fazendo. Nenhum dos dois demonstra autonomia (por esses e outros detalhes trazidos no filme), e o arroubo de assumir a própria vida que levou a essa reviravolta (aparente) foi somente um gesto irrefletido e inconseqüente, que não alterou a heteronomia de suas ações, de seus desejos, que não fez brotar qualquer plano para longo, médio ou curto prazo nele – nela, talvez as trinta danças, das quais não consegue sequer realizar a primeira.

Por falar em planos, quando eles se dão conta de sua idade – mais seis meses e temos trinta e cinco, trinta e cinco é quarenta, quarenta é praticamente cinqüenta, e cinqüenta é o fim –, fica evidente a precariedade de qualquer auto-reflexão: os planos de Jason são gerais e banais: ser rico, ser líder mundial; os de Sophie não chegam a ser esboçados: está há quinze anos se preparando. O que desejam, o que os realizariam, o que os fazem felizes são questões longe de serem postas – para ele porque já respondidas desde fora, para ela porque sem resposta.

Uma cena curiosa – até por eu ter me identificado – é quando Sophie decide cancelar a assinatura da internet, para não ficar só assistindo a vídeos de suas competidoras e se sentir cada vez mais fracassada: quando Jason chega do serviço, eles têm pouco tempo pra usar a internet, cada um corre para seu computador aproveitar seus últimos instantes na rede para... buscar informações inúteis, mapas desnecessários, e mais algumas nulidades que não fariam falta a uma vida – mas à nossa, faz (são essas inutilidades que fazem falta à vida, ou nossa vida é uma falta que acaba sendo preenchida com isso?).

Esse o panorama que o filme desenha. Contudo, como comenta o crítico Heitor Augusto, na hora do vai ou racha, July cede, ao invés de meter o dedo na ferida, contemporiza com seu público: o filme vira uma questão de casal, tranqüila para conversas pop-cult-bacaninha depois da sessão, sem causar nenhum desconforto de fato ao espectador. Não deixa de ser um filme interessante – poderia ser melhor.

São Paulo, 20 de março de 2013.