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segunda-feira, 17 de abril de 2023

O Brasil para aquém do Brasil [Diálogos com o teatro]

De um dos tantos conflitos e guerras civis suavizados e esquecidos do Brasil - o Cerco de Piratininga, em 1562 -, o Coletivo Estopô Balaio usa como mote para repensar o que foi e o que está o Brasil, e que devires podemos construir a partir daqueles que sempre estiveram às margens, a quem foram negados o estatuto de cidadãos - e mesmo de sujeitos.

Com o teatro documental que marca o trabalho do coletivo (como na excelente A cidade dos rios invisíveis, apresentada no bairro ao lado), Reset Brasil relembra o que muitos talvez sequer saibam, reelabora o que passamos por alto, resiginifca o que está cristalizado na história oficial. 

De um conflito aparentemente distante são puxadas outras tantas histórias, outros tantos conflitos e guerras suavizados e esquecidos no Brasil atual - principalmente esse conflito do dia a dia, banalizado por apresentadores de tevê, políticos e empresários oportunistas, que babam ódio em seus carros blindados e lucram com o sangue das periferias.

Contudo, para além dessas representações (quase abstrações, apesar de tão presentes e palpáveis nas suas consequências), Reset Brasil é feito antes de tudo de carne e concreto, e apresenta a quem estiver disposto a conhecer (levado pela mão, praticamente, já que vão buscar os espectadores na estação Brás) aquele pedaço da cidade e seus habitantes que os centrais, os cidadãos de fato, os mais próximos do sujeito universal (homem branco hetero cristão europeu ocidental*) não conhecem, seja pela distância, seja pelo preconceito, seja pelo medo, seja pelo não saber os códigos do lugar - e que muitos fazem questão de não conhecer, justo para poder manter o preconceito que os garante subjetivamente numa posição de moralmente valorosos e impecáveis.

A história do Cerco de Piratininga, da resistência indigena contra a ocupação pelos portugueses, apoiados por outros indígenas, do território em que hoje está São Paulo, serviu para que na construção do espetáculo pelas ruas de São Miguel Paulista os atores de ascendência indígena buscassem parentes pelo bairro, com quem possam reconstruir uma história de resistências e esboçar devires menos áridos. Descendentes de quem de fato ocupa esta terra desde tempos imemoriais, vindos de todos os cantos do país, mostrando aos brasileiros, aos paulistas e aos paulistanos sua condição de estrangeiros - do território, do solo, da própria história que reivindicam como a única. Uma espécie de “walking tour” por uma área da cidade relegada pelos poderes e pelos cidadãos de fatos, Reset Brasil conta a história de vida de gente tão banal quanto os espectadores - sim, somos banais e descartáveis como um morador da periferia, mesmo com nossa cidadania plena; assim como os habitantes dali são importantes e únicos, mesmo na sua condição de subcidadania.

A resistência desses sujeitos é apresentada na história das pessoas do bairro que emprestam parte de suas narrativas de vida, nas próprias ruas do bairro, nas vielas, nas casas que sobem contra o estado, reivindicando existência e cobrando a dignidade da cidadania que as paragens mais abastadas possuem: as mães de maio exigindo justiça pelos seus filhos mortos pela polícia, os moradores de ascendência indígena exigindo reconhecimento, homens e mulheres exigindo seus direitos - os básicos, de saúde, educação, moradia digna, alimentação, e os básicos-mas-não-tratados-como-tal, como diversão, descanso, qualidade de vida.

A crítica é direta, mas a forma como é construída, a partir do que é vivenciado por sujeitos periféricos (na cidade, na renda, na origem indígena ou negra) garante que o discurso não seja reduzido a jargões simplórios ou clichês de certa esquerda acadêmica (academicista).

Não por menos a peça nos convida a pensar e repensar que pátria é essa da qual tanto falamos em reconstruir, depois de seis anos de violências e de destruição ultra-liberal, militar e fascista-cristã: começar de novo a partir de onde? Dar o "reset" nessa nossa história de exploração e violências vai nos levar até que ponto? De onde seria esse recomeço para um país digno para todos?

Enquanto Haddad e a Faria Lima discutem o novo calabouço fiscal, as famílias milenares, que aqui vivem desde antes desta terra ser marcada pelo vermelho brasil da exploração e do sangue de milhões de pessoas, índios, negros e periféricos seguem resistindo - e suas demonstrações artísticas são momentos em que nós, os brancos colonizadores, conseguimos vislumbrar um pouco do que acontece para além de nossos horizontes limitados. É quando, deixando de lado nosso orgulho e nosso narcisismo, podemos vislumbrar que talvez as pessoas mais aptas a comandar o resgate do Brasil desse inferno tropical transformado pela cultura europeia nos últimos 523 anos não sejam os descendentes de quem fez esta terra ser regada de sangue para depois queimar até se transformar em areia e ódio.

O Cerco de Piratininga continua, com nativos (já confundidos em suas cores e ideias) dos dois lados disputando se seremos uma colônia, se buscaremos ser os novos colonizadores ou se seremos algo anterior a isso, anterior à europeia divisão mundial do trabalho e destruição da Pacha Mama. 


17 de abril de 2023


* Vale ressaltar que o sujeito universal pode ser incorporado por minorias, como tentativa (sempre incompleta) de se tornar um dos opressores - inclusive porque o Brasil não é parte do Ocidente.

PS: Sobre A cidade dos rios invisíveis ainda tenho esperança de um dia conseguir escrever sobre; infelizmente assisti à peça em momento de profunda crise da escrita.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Para quem não soube viver, a morte é sempre desespero [Diálogos com o teatro]

Na internet os algoritmos me indicam o espetáculo de palhaço "Não aprendi dizer adeus", de Bárbara Salomé, com direção de Rafaela Azevedo, na Galeria Olido - espaço que tantas e tantas vezes frequentei, quando as apresentação do Fomento de Dança eram apresentadas ali, e não no “gueto” do CRD. A sinopse pareceu interessante - uma palhaça defronte o inescapável aprendendo a lidar com o fim - e seria um dia depois de eu completar o fim da minha casa de Pato Branco, o fim de um ciclo de 40 anos da minha vida, quando alguns dos móveis que foram de meus pais e meus avós chegariam à minha casa em São Paulo - fosse tempo da perda da Misson, eu buscaria sinais nisso, mas agora apenas acho que foi coincidência, com probabilidade estatística calculável. 

Achei que poderia me ajudar a lidar com mais essa perda de uma forma mais leve: meu DJ Interno (já comentado em alguma outra crônica) tratou de preparar o clima, não me autorizando a falar o nome da peça sem emendar “mas tenho que aceitar/que amores vem e vão” (foram quatro dias dessa tortura interna, toda vez que eu lembrava que não queria perder esse espetáculo!); contudo mais que leve, a peça é leviana.

Bárbara sabe jogar com o público, sabe cativar a plateia para jogar com ela, e ainda que tenha alguns bons momentos - talvez seja um entretenimento razoável, no geral -, o espetáculo em muitos momentos vai por caminhos pobres, com piadas de duplo sentido, dignos de entretenimento televisivo da década de 90, com pitadas que me lembraram os piores comediantes do stand up tupiniquim (cujos nomes nem merecem ser citados aqui). 

Não há leveza nem delicadeza para tratar de um assunto que permeia a vida de todos, mas que é reiteradamente negado pela nossa sociedade: Guy Debord comenta que a ausência social da morte é um reflexo da ausência social da vida. Não por acaso, na indústria cultural, fora da banalização dos filmes de ação, quando a morte de pessoas e de moscas são equivalentes, poucos filmes se arriscam por essa senda. O teatro, sem tanta necessidade de agradar a massa indistintamente, se arrisca mais (e faço questão de destacar a maravilhosa “Buraquinhos, ou o vento é inimigo do Tucumã”, do Jhonny Salaberg, que soube juntar crítica social com esse fato comum a todos os seres vivos). Não foi o caso da peça de Bárbara e Rafaela.

Creio que a demonstração mais eloquente dessa dificuldade em saber estar diante da morte - e, por consequência, da vida -, está quando a personagem aceita que realmente está diante do fim e resolve aproveitar a vida, e o faz bebendo e cheirando tudo o que pode. Num tema tenso, me pareceu de grande a indelicadeza com quem teve perdas por conta do abuso de drogas. A cena arranca risos da platéia, mas me parece mais um riso condicionado, um ato-reflexo, talvez um riso ressentido, não sei, uma convenção de achar graça no abuso de substâncias psicotrópicas, mesmo que a cena não tenha qualquer graça. 

Me lembrou a fala marcante de uma peça a que assisti há mais de dez anos, ainda em Campinas, inspirada em um conto do Mia Couto, com o Eduardo Okamoto: nela um homem gasta o que tem e o que não tem na festa de bodas da filha; instado a parar com aquela festa que se prolonga por dias, o homem pontua que as pessoas ali, naqueles dias, “estão bebendo para comemorar, e não para esquecer”. 

Em "Não aprendi dizer adeus" a protagonista não soube fazer sequer uma elegia à vida que se vai - e que permanece para além dela. Mais que isso: mostrou um grande desconhecimento da vida, inclusive no que psicotrópicos podem ter para o enriquecimento da existência: sua apologia a esse “aproveitar a vida” (o tal "como se fosse o último dia", muito difundido na nossa cultura) é antes um grito mudo de desespero que um efetivo desfrute. Evidenciou também um desconhecimento do que é estar com alguém diante do fim - seja alguém que já não esperava mais nada da vida, seja quem ainda fazia planos, até ver que teria que abrir mão de todos os eles e todos os que poderia vir a ter. Uma conversa (pode ser via livros) com um médico ou médica paliativista já daria um pouco de base para tratar do tema e evitar fazer um espetáculo desse nível.

Ao cabo, saio da peça com a impressão de que, de fato, não aprendemos (enquanto sociedade) a dizer adeus. O pior: é não aprendemos ainda a estar na vida de um modo que ela possa ter sentido na sua completude - inclusive na morte. E não foi “Não aprendi dizer adeus” quem abriu uma possibilidade de repensar.


13 de janeiro de 2023


sábado, 7 de maio de 2022

Zé Celso e o nosso continuar esperando Godot em pleno 2022 [Diálogos com o teatro]

* Atenção: este texto possui spoiler da peça!


Beckett, através de seu teatro - e toda sua literatura - do absurdo, leva ao paroxismo cenas que, no fundo, são o nosso mais banal quotidiano, mas que normalizamos - até como forma de suportar o sem sentido de ações em um mundo (socialmente construído) que reiteradamente nos nega a possibilidade de criar sentido à nossa existência. "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", diz Estragon, talvez numa frase já caduca para o século XXI, primeiro porque a gente não precisa ter a impressão de que existimos, precisamos passar essa impressão; e segundo porque estamos num tempo em que crianças são instadas a obedecer até mesmo em seus momentos de lazer, entretidas e devidamente caladas por parafernálias eletrônicas ou animadores de festas, que negam qualquer tempo vazio por onde a criatividade e a autonomia possam florescer - porque uma pessoa diante do vazio é uma pessoa que questiona e incomoda, uma pessoa que inventa e pode fugir do controle. 

A não ser que seja a pessoa o próprio vazio: desprovido de qualquer relação com o tempo que não seja de tédio, como Estragon, a viver num eterno presente, em que sequer as marcas no corpo - a ferida da perna, do chute de Lucky (ou Felizardo, como na versão do Oficina), a necrosar - conseguem imprimir uma memória, e cujas lembranças são apenas as referências mais óbvias para estar no mundo - um mundo muito estreito, ainda por cima -, como sua amizade com Vladimir. Sim, talvez um avanço para o tipo ideal de sujeito que temos hoje: cidadãos de não-lugares, que não estabelecem mais que relações fugazes, rasas - líquidas - com tudo o que o rodeia (locais, coisas e pessoas), e se movimentam em meio a sinalizações publicitárias.

A montagem de Esperando Godot feita pelo Teatro Oficina, é de uma feliz sutileza ao atualizar a condição do sujeito de hoje à obra de 1952, sem deixar se seguir muito rente ao texto.

Há uma dinamicidade e vivacidade em Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond) que eu ainda não vira em nenhuma das montagens a que assisti - nem noto no texto. Um frescor de novidade e aventura naquele mais do mesmo sem sentido e sem graça que os dois personagens vivenciam. A insistência de Estragão de partirem aparece mais como inquietação e falta de memória, e não de tédio - ainda que, sim, aquela situação é tediosa o suficiente para não querer estar. 

E quem mais deveria estar entediado, cansado de esperar - porque tem noção da espera -, Vladimir, é quem mais se mostra animado a preencher esse vazio de não acontecimentos, como se fosse o mais corriqueiro da vida e não coubesse qualquer negatividade - "good vibes only", como dizem muitas pessoas hoje em dia, desesperadas em negar o mundo e sua própria condição.

Uma das sutilezas da montagem, presente pelo seu não aparecimento, é a ausência de toda pulsão sexual que habitualmente marca as peças do Oficina. A insinuação de cunho mais sexual - no nabo ou cenoura que Vladimir entrega para Estragon comer - soa brincadeira de quinta série (ou do presidente e seus adeptos), os beijos entre os dois tem um quê de demonstração de um afeto desesperado e dessexualizado. É como se Zé Celso nos avisasse: não há tesão possível sob a égide do fascismo, seja ele o fascismo aberto do bolsonarismo, seja o fascismo velado do liberalismo (Viagra, plásticas e Only Fans estão aí para servir de muletas a nossa incapacidade de ter prazer diante da obrigatoriedade de aparecer sempre prontos a gozar).

Outra mudança sutil está na cena em que Felizardo (Roderick Himeros) fala. Ao invés da verborragia ininterrupta e desvitalizada à qual eu estava acostumado em outras montagens, Felizardo atua em sua fala de modo "profissional", sem maneirismos, sem faltas ou excessos nessa atuação - apenas alguns enroscos maquinais. Este ponto, assumo, me incomodou: está por normal demais para a reação dos dois protagonistas de quererem calá-lo a qualquer custo - normal no texto (nada próximo das absurdidades que ouvimos de bolsonaristas, Cantanhede, Sardenberg, Pedro Doria, Vera Magalhães, Oyama e outros jornalistas e "formadores de opinião"), normal na encenação (ou no trejeito espetacular que assimilamos como sendo a normalidade, mas é de uma artificialidade atroz). A fala ininterrupta e desvitalizada, ou uma declamação cheia de kitsch, de maneirismo de classe média forjada nas novelas da Globo me pareceriam mais apropriadas.

Os pontos onde Zé Celso descolou do texto estão no final de cada ato. Primeiro com o menino/mensageiros (Tony Reis) que vai avisar que Godot não irá naquele dia, mas sim no próximo. Ao invés de uma criança insegura e amedrontada, um aprendiz de malandro da velha guarda, com vocabulário devidamente atualizado, que parece recém saído de um terreiro. Karol, a amiga que me acompanhou - e que desconhecia a obra - se disse impressionada com o diálogo entre ele e Vladimir no fim do primeiro ato; eu apenas segurava o riso com o choque que esse personagem me trouxe - e lembrava de outra amiga, professora do ensino básico, comentando dos seus alunos mini-mano de sete anos

A escolha desse menino fica evidenciada ao fim do segundo ato. Quando ele reaparece, e Vladimir segue o diálogo posto por Beckett, de conformismo com a vinda só no dia seguinte. O menino rompe o texto, de início sem ser ouvido por Vladimir. Godot se transmutou em outra entidade - Godot está morto. Não virá - como nunca veio e nunca viria. Não é mais necessário esperá-lo. Vladimir e Estragon estão livres para partir e construir seus caminhos, suas vidas, tentar ser ao invés de apenas dar a impressão. 

Com esse final, Zé Celso nos instiga a agir, a sair da letargia, a parar de esperar. Ele repete isso, em sua fala, após o fim da peça: não esperemos por um Messias, não fiquemos parados esperando a eleição de Lula. Como ateu, faço uma leitura um pouco mais pessimista do final proposto pelo diretor: seguimos esperando. Se não é mais Godot, esperamos alguém que nos anuncie que não precisamos mais esperar. Seguimos passivos, dependentes do animador de festa, do menino recém saído do terreiro, do diretor de teatro, de alguém com alguma "autoridade" que nos diga: vão! Saiam! E saímos todos do teatro. Podemos mesmo sair da espera pela chegada de quem virá consertar tudo quase como em um passe de mágica, mas teremos saído da posição de quem não sabe agir com autonomia, política e eticamente, conseguiremos construir nosso próprio caminho, um caminho que, por vivermos em sociedade, é ao mesmo tempo individual e compartilhado, coletivo?


07 de maio de 2022


A peça está em cartaz no Teatro Oficina Uzona, no Bixiga, até 19 de junho (https://bileto.sympla.com.br/event/72759/d/135340).


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.

 

domingo, 31 de março de 2019

Diários do abismo: uma peça morna sobre um tema quente [Diálogos com o teatro]

Foi com certo incômodo que saí da peça Diários do Abismo, no Sesc 24 de maio. Não aquele incômodo de querer me pôr fora da caixa preta o quanto antes e olhar para o mundo, enxergar com os próprios olhos detalhes que até então deixara passar e o espetáculo me alertava da sua importância; incômodo por deixar o teatro e poder conversar sobre a peça ou sobre a desclassificação do Operário Ferroviário com a mesma despreocupação, a mesma naturalidade. Dado o tema do espetáculo, eu esperava ser tocado mais. 
Nestes tempos sombrios de retrocessos sociais em todas as áreas, inclusive na saúde pública e na saúde mental, com SUS tendo verbas cortadas, financiamento estatal a "comunidades terapêuticas" mui suspeitas em seus tratamentos de drogadictos e a recomendação, pelo ministério da saúde, da volta de eletrochoques como forma de tratamento, uma peça sobre a experiência da escritora Maura Lopes Cançado em hospitais psiquiátricos, na década de 1950, é mais que oportuna. Infelizmente, o monólogo protagonizado por Maria Padilha, em texto adaptado por Pedro Bricio e dirigido por Sergio Módena, passa ao largo de contribuir para o  aprofundamento do debate. 
Reconheço que estou numa posição difícil para comentar a adaptação de uma obra que não li - Hospício é Deus. Porém, tendo alguma noção do que eram hospitais psiquiátricos, e por várias falas da peça, é de se acreditar que um hospício não seja um spa com uma enfermeira chata e um médico sacana. Contudo, a leveza com que corre a peça, a platitude com que as cenas são narradas, faz o público se questionar se se trataria mesmo de um hospital psiquiátrico, com eletrochoques e o horror de seus pátios, ou apenas uma casa de retiro para madames um pouco alteradas. A narrativa do estupro quando criança, foi Maura quem sofreu ou ela teria lido numa nota de jornal e relatava então ao público? A alienação das cenas com relação ao tema poderia causar alguma "dissonância cognitiva" na plateia, um estranhamento, mas não havia tampouco abertura para tanto: a Maura Lopes Cançados de Maria Padilha parecia antes sob efeitos de antipsicóticos bem administrados, de modo a parecer "normal" e relatar suas angústias sem deveras vivê-las - e está tudo bem, o público não é incomodado em seu conforto.
Tudo na montagem é muito tranquilo, ou logo ganha serenidade. O colchão tirado da cama (que fica na vertical) revela as grades de uma prisão - a cena repetida cinco vezes revela falta do que dizer. O uso de recurso audiovisual, que poderia trazer outras camadas à narrativa, se utilizando dos colchões como telas para projeções, por exemplo (para dar algum sentido aos cinco colchões), é pobre e quase nada acrescenta. A atriz, se é feliz ao cambiar de personagem durante a narrativa, seguidamente deixa o público sem entender o que fala, por problema de dicção (e a peça era microfonada)! O figurino, na roupa de interna que cabia bem como uniforme dos profissionais de saúde, e a luz, bem recortada e com áreas de sombras, foram dois pontos felizes da montagem (por questão de gosto, incluiria o som, mas como sou fã de Radiohead e curto Murcof, talvez tenha sido muito influenciado pelos meus gostos). Não necessariamente uma peça, mesmo sobre um tema pesado, precisa ser pesada: há variadas formas de se atingir o público sobre um determinado problema, e o humor é prova cabal de que às vezes abordagens leves são efetivas. Diários do Abismo falha não por ser leve, mas por ser superficial - uma peça gostosa de assisitir e começar a semana relaxado.
Se o debate sobre os limites da loucura e do normal, do desejo de confinar o diferente é tema corrente na nossa sociedade cada vez mais doente e mais patologizada, nestes tempos de ascensão neofascista e desejo político de perfeita homogeneidade - e consequente anseio de excluir e/ou exterminar tudo o que fuja à norma ditada por um líder -, retomar experiências como a de Maura se torna urgente. As violência por ela sofrida não são coisa do passado, assim como não é do tempo de antanho seu anseio por liberdade. Peculiar é seu trajeto nessa busca, e pertinente o questionamento que nos provoca: a loucura dos ditos loucos, é das pessoas, ou da sociedade? As camisas de força no hospício, seriam tentativas de conter quem não aceitou entregar sua autonomia voluntariamente? Onde há maior liberdade, dentro ou fora do hospício?

31 de março de 2019

domingo, 10 de março de 2019

Emergência negra no teatro [Diálogos com o teatro]

A arte negra, produzida por pessoas negras, sempre existiu, ainda que nem sempre visível aos detentores de capital cultural: uma arte de união e combate, que reúne povos diferentes emigrados para a América sob essa marca generalizante - "negros" -, que faz combate de guerrilha contra a opressão estatal e paraestatal, uma arte que resiste contra quem nega seu direito de existir e afirma sua potência de ser.
Presente e marcante na história brasileira, ainda que pouco reconhecida, essa arte e esses artistas quando valorizados - depois de muita luta - costumam ficar restritos aos rótulos de "tradicional" ou "popular", ou seja, para consumo de estrangeiros (nos quais se inclui nossa elite) ou expressão artística menor. Nosso carnaval de rua é um exemplo dessa desvalorização e dessa tática de guerrilha - diferentemente do bem adestrado carnaval do sambódromo, em sua estética rede Globo, por mais que tenha ousado algumas críticas nos últimos anos (algo que os entendidos no assunto dizem que é contingente). As denúncias do "verdadeiro carnaval" por parte de nosso presidente em seu Twitter é a assunção de que essa festa tão preta, tão periférica, tão pobre está sendo valorizada por frações da elite, ocupando bairros nobres, atraindo gente branca e endinheirada, e afrontando os valores da "família", as intenções de domesticação da população por outra parte da elite, que quer formar "cidadões" de bem, bem resignados a uma vida amarga de semi-escravidão.
Se afirmando na base da luta, a "cultura negra" ainda é olhada como tendo potencialidade se está na música, na festa, na dança - populares. Erudição teria a ver com pigmentação cutânea. Artistas que romperam essa barreira branca, não raro acabaram sendo branqueados pela história, como Machado de Assis. Músicos, atores de filmes ou novelas (afinal, é preciso alguém para fazer papel de empregada ou porteiro) que ganharam destaque, que rompera o asfalto como a flor de Drummond, parecem antes reforçar um discurso de que negro realmente está aquém do branco, e esses poucos seriam prova disso: um ou outro que tem a mesma qualidade de um branco.
Recentemente tem emergido uma impressionante "cena negra de teatro paulistano" (não sei em outras cidades). Algo que deve soar "Bichos escrotos", dos Titãs, para parte dos cidadãos de bem: "Bichos escrotos/ Saiam dos esgotos/ Bichos escrotos/ Venham enfeitar/ Meu lar, meu jantar/ Meu nobre paladar!". São dramaturgos, diretores, iluminadores, sonoplastas, cenógrafos, atores e atrizes negros que se juntam para fazer uma peça, invadir esse recinto tido por sagrado que é o teatro, invertendo completamente o "natural" das "artes superiores". 
Os racistas de plantão logo vão duvidar que saia algo que presta de um grupo todo (ou quase) negro (ouço as vozes de meus tios médicos nessas horas). A esses, nunca sei o que responder, minha vontade é de cuspir na cara e mandar beijar o presidente na banheira, enquanto jogam roleta russa com o tambor cheio. 
Mas mesmo os céticos poderiam questionar, legitimamente (movidos pelo preconceito que circula na nossa sociedade sem que percebamos), se essa escolha baseada na cor da pele não afetaria a qualidade da obra, já que se escolheria por critérios outros que artísticos. O que chamei de "cena negra de teatro paulistano" prova que em nada afeta uma escolha baseada na cor: há artistas e profissionais negros talentosos o suficiente para prescindir dos brancos (como iluminador cênico frustrado (e branco), admito que gostaria muito de trabalhar em algumas dessas peças, ao mesmo tempo que reconheço que não seria meu lugar ali, não nesse momento de afirmação positiva); inclusive, ela faz questionar o quanto não são as escolhas dos brancos baseadas na cor da pele e não no talento (exemplo mais evidente que me vem é a peça Branco: o cheiro do formol, do branco Alexandre Dal Farra, para falar do racismo sofrido pelo negro, escolhido pelos seus amigos da MITSP de 2017).
Outra linha de céticos poderia questionar se uma peça toda negra não viraria algo muito específico da realidade negra, periférica, e perderia a universalidade que a grande arte deve almejar. A ideia profundamente arraigada de que seria a humanidade, o universal humano, sempre branco, sempre europeu-ocidental, sempre judaico-cristão, sempre totêmico. Como se os dramas pequenos burgueses de um branquelo de Manhattan fossem universais, qualquer pessoa se identificaria (em maior ou menor grau), mas os de uma criança negra da periferia de São Paulo fosse um caso isolado, específico de negros periféricos de países subdesenvolvidos (da peça Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, de Jhonny Salaberg [bit.ly/cG180702]). O que tais peças tem deixado muito óbvio é que o negro é universal tanto quanto o branco (e tanto quanto o muçulmano, que desponta como o novo condenado da Terra): há especificidades, sim, como são muito específicos os dramas retratados por Woody Allen ou Luigi Pirandello. Já fui além, em afirmar, após assistir a Três pretos: valor de uso, de José Fernando Peixoto de Azevedo, que nestes tempos de ascensão neofascista os brancos podem muito bem se preparar para seu devir-negro junto de toda a humanidade [bit.ly/cG181125].
Todo esse preâmbulo para indicar a peça Gota d'Água {Preta}, dirigida por Jé Oliveira, em cartaz no Centro Cultural São Paulo até o fim do mês. Jé Oliveira que foi o primeiro dessa "cena negra do teatro paulistano" a que assisti, com seu Farinha com açúcar, em homenagem aos Racionais MC's [http://bit.ly/cG170721]. O texto de Chico Buarque e Paulo Pontes ganha uma montagem de impressionante qualidade, impecável em todos os aspectos (ok, para ser chato (ATENÇÃO, SPOILER!): eu tiraria a última cena, a que dá um gran finale, que me pareceu uma gordura desnecessária, e terminaria na cena anterior, deixando no ar o continuum da que a vida segue, com suas festas e lutos), dando cor (óbvia nestes Tristes Trópicos) aos personagens periféricos escritos por Chico Buarque, pondo em diálogo vivo 1975 e 2019, trazendo os Racionais MC's para um merecido lugar de destaque na crônica quotidiana do Brasil. Ao final da peça, resta o arrebatamento, o entusiasmo, e a única coisa a comentar é como foi bom, sempre seguido de palavrões entusiásticos, e tentar em vão decidir quem seria o melhor ator ou atriz (até mesmo Juçara Marçal, em sua estreia como atriz, que num primeiro momento parece estar ali para emprestar apenas sua voz a Joana, tem uma atuação primorosa)!
Mesmo sem saber dos detalhes, é de desconfiar que essa emergência negra em São Paulo não tenha surgido de repente, antes fruto de muita luta (e luto), com algumas frestas durantes os governos petistas nas esferas federal e municipal, que permitiram uma afirmação positiva do ser negro (e periférico) - mesmo dentro de valorações dadas por brancos. Parte de nossa elite e seus asseclas de classe média, ao verem as populações periféricas - bichos escrotos que vivem nos esgotos? - ocupando os mesmos ambientes,  como se fossem pessoas "normais", ganhando prêmios e editais que antes ficavam sempre com os brancos (este escriba teve sua peça na primeira suplência no edital em que Buraquinhos... foi contemplado, e reconhece que a escolha foi mais do que justa), mostrando que ou os brancos se esforçam de verdade ou serão devorados pelos valores meritocráticos que hoje defendem, superados por quem até ontem acusavam de inferiores (como tem sido o caso do rendimento dos cotistas nas universidades públicas), esboçam alguma reação - simbólica, política, estatal. Reação baseada no medo. Medo de perder privilégios - de ser branco, de ser o universal, de ser o melhor independente da qualidade -, medo de ter que se encarar no espelho sem máscaras, sem filtros do Instagram. Bolsonaro, Doria Júnior, Witzel, Zuma são algumas faces mais visíveis que esse medo ganhou. Ironicamente são o próprio espelho dessa classe que vê sua impotência diante da emergência negra - broncos, chulos, torpes, desqualificados, mas detentores do poder. Por isso, por causa do medo de ter sua impotência escancarada para os seus e para o mundo, a necessidade de um pacote anticrime que cala o negro com a morte, de cenas escatológicas a desmerecer o carnaval de rua, mirar na cabecinha negra e atirar, de acabar com a cultura, de trucidar com a educação (já tão capenga) e entregar as crianças às igrejas evangélicas (por mais precária que seja, a escola ainda é minimamente crítica, e permite a elaboração de rotas de fuga da normopatia que o poder deseja).
Gota D'Água {Preta}  é tragédia contemporânea nestes tempos trágicos; e se na cena os personagens caminham para seu destino implacável, o que o palco faz vibrar é o devir em aberto para as lutas que todos - negros e brancos, homens e mulheres, cis e trans, privilegiados e renegados - temos pela frente se desejamos de fato viver numa sociedade democrática, plural e igualitária.

10 de março de 2019

domingo, 25 de novembro de 2018

O devir-negro da humanidade [Diálogos com o teatro]

Três Pretos: Valor de Uso, espetáculo da Sociedade Abolicionista de Teatro, com dramaturgia e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, e em cartaz no Sesc Pompéia até 1º de dezembro, é uma peça densa e intensa, um chacoalhar para nosso quotidiano conflagrado - explicitação do retorno de um passado mal resolvido em uma estrutura caduca e destrutiva. A guerra pelo petróleo do texto apresentado na pele negra dos negros das fazendas de café. A Guerra do Paraguai, a promessa de alforria para os que sobrevivessem à barbárie encetada pela dita civilização - a promessa reiterada e nunca cumprida. Até hoje. A guerra, a guerra contra o terror, a guerra de extermínio; a guerra, o terror e o extermínio - o devir-negro da humanidade, a condição do negro como antecipação da condição de todos.
A montagem de José Fernando segue seus últimos trabalhos: a eliminação da coxia, com as estruturas do teatro a vista e a equipe técnica em palco; três telões ampliam - amplificam - e repetem detalhes da cena: parte da linguagem cinematográfica trazida para o palco, sem com isso abandonar a linguagem teatral (diferentemente da pirotecnia kitsch de um Robert Lepage, que mimetiza o cinema no palco, perdendo as potências possíveis de ambas as linguagens); o texto é denso, mas não ocupa todo o tempo, evitando uma peça muito erudita ou pesada (a última fala é uma crua denúncia da situação atual); a encenação acrescenta camadas que palavras dariam conta com muita dificuldade - se dessem. A cena do estupro, logo no início, é particularmente violenta, não por trazer a violência bruta e embrutecedora (do público, inclusive), já marcada antes pela briga animalesca entre os três - que faz, paradoxalmente, o agradável odor de café sobre o qual lutam ocupar todo o teatro -, e sim por conseguir transmitir a agonia, o lento passar do tempo nos homens que se revezam sobre o corpo da mulher - por mais que não seja uma cena demorada ou arrastada: o corpo vulnerável, os homens que a violam quase burocraticamente, o rosto de agonia da vítima projetado no telão - a violência estampada sutilmente nos detalhes, muito mais que na efetivação do coito forçado.
A peça se passa numa fazenda de café, na Guerra do Paraguai, em algum campo de batalha genérico, em qualquer guerra pelo petróleo no Oriente Médio ou no "oriente americano" - Venezuela ou Brasil pós-pré-sal e pós-golpe. Fronteiras que se multiplicam e ensejam mais motivos para guerras sem razão alguma - que não a perpetuação de um sistema estruturado para implodir a si próprio e ao planeta e às pessoas que o habitam. Estamos todos em perigo: o estado de guerra leva à dissolução do social - e todos sabemos quem serão os primeiros abatidos nessa guerra, também sabemos que após os primeiros, serão abatidos os que se sentiam imunes (e impunes) até então. É luta de classes - porém é também guerra racista, sexista. A peça identifica os corpos vulneráveis da guerra, sem, contudo, apontar culpados: uma questão estrutural, um novo ethos do estar-no-mundo capitalista - eventual desejo de morte do patrão não é em vista de um mundo sem oprimidos, antes o desejo de assumir seu papel de opressor. Que nome dar a essa situação? O autor propõe que o termo fascismo antes nos inibe o enxergar do que uma análise mais acurada do que estamos passando - talvez outras ligações com nosso passado mal contado e mal resolvido.
A Guerra do Paraguai é uma lembrança que deveria ser dolorosa a todo continente - negros transformados em máquina de destruição arrasam um país e quase toda sua população em nome de lucros dos brancos de sempre e com a promessa de uma liberdade que não conhecem nem conhecerão. Humaitá não é um lugar, é uma passagem - se tivéssemos uma história para contar.

25 de novembro de 2018

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Poesia alucinada para uma guerra civil (mal) disfarçada [diálogos com o teatro]

Se eu tivesse que resumir Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã em uma palavra, talvez fosse "fracasso". Ao salientar o fato de que dramaturgo, atores, equipe técnica serem negros, tratando de um tema negro, Buraquinhos deixa claro nosso fracasso enquanto sociedade: somos um enorme  fazendão, uma gigantesca sesmaria, onde casa-grande e sensala seguem firmes, fortes e hipocritamente disfarçados, repaginados de "o agro é pop", um pop onde negros seguem descartáveis e a meritocracia contempla sempre os mesmos, sempre brancos - de novidade um pouco mais democrática, o veneno na comida de quase todos. Quem sabe o dia em que haja realmente igualdade de oportunidades, descartável seja uma peça como Buraquinhos, e dramaturgos negros - assim como trans ou mulheres ou que minoria for - sejam apenas dramaturgos e dramaturgas, e o foco esteja inteiramente no seu texto, no seu trabalho, com sua questão identitária sendo um detalhe que perpassa o texto e não que o marca para fora do palco. Ressalto isso porque me pareceu importante o reforço nessa negritude nos agradecimentos ao fim da peça, ainda mais diante da qualidade do texto e da montagem: o texto de Jhonny Salaberg (que também atua) não entrou ali por cota, mas ser o primeiro negro contemplado em doze peças dos quatro anos de edital do Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, do CCSP (no qual este escriba ficou como primeiro suplente em 2017, com Linha de produção), mostra o quanto de talentos negros e periféricos são descartados pela nossa meritocracia - pela minha experiência, me recuso a acreditar que Jhonny seja um talento fora do comum na periferia, incomum foi ter conseguido sair de lá.
Buraquinhos tem um enredo simples: uma criança negra que vai comprar pão em uma padaria em Guaianases, periferia de São Paulo, no primeiro dia do ano, e é abordada pela polícia militar - essa que tinha autorização de Alckmin para matar quem reagisse (e a ideia de reação é bem elástico nesse caso, respirar pode ser encarado como reação à abordagem da polícia). Nada de novo no front - de comprar pão e do que acontece no caminho. Se se trata de um drama típico da periferia, reverbera como drama humano em todos que resistem ao canto da sereia fascista, como atestam, próximo ao fim da peça, narizes fungando de negros, brancos, amarelos da plateia.
Buraquinhos poderia ir por um caminho fácil, pregar para convertidos, mas opta por uma trilha mais desafiadora e, apesar da temática, não se apresenta como uma peça de denúncia: afinal, o que há de novo para denunciar? Apesar de escrita em 2017, poderia ser a denúncia do assassinato de Marcus Vinicius pelo estado, no Rio de Janeiro. Eles não viram que eu estava com uniforme da escola? Eles não viram que eu tinha doze anos e só fui comprar pão? Daqui dois dias ou dois meses poderia ser a denúncia de outra criança assassinada pelos Estado - ou de jovens, ou de adultos, ou de velhos, sempre pretos pobres periféricos. Salaberg poderia enfileirar nomes e com breves dramaturgias denunciar a situação em que foram assassinadas pelo Estado, numa estratégia que parece antes dessensibilizar as pessoas que mobilizá-las ao agir - ou mesmo ao reflexionar. É, curiosamente, a mesma estratégia do futuro senador Datena e seus seguidores: apresentar tudo explícito, ao ponto de nada mais chocar, e anestesiar para a barbárie, para o sentir, tanto as pessoas que ainda se comovem com o Auschwitz a céu aberto que o Brasil tenta imitar sob a locução de Datena, Galvão Bueno, Bonner e afins - porque não podem se abater com toda atrocidade diária, de hora em hora, de cada 23 minutos, por uma questão de sobrevivência -, como as que não se comovem, porque não conseguem enxergar no outro um igual a si, uma pessoa, por ser negro, periférico, homossexual, transexual, imigrante, nordestino, crackeiro, estigmatizado qualquer (talvez porque essas próprias pessoas abdicaram de se reivindicarem humanas, brutalizadas por cobranças e resultados, no trabalho, na vida social, na vida pessoal, na vida íntima). Enfileirar mais do mesmo, apelar para escatologias (como certos dramaturgos brancos de classe alta que receberam para escrever sobre racismo), poderia servir para o autor se sentir mais leve, convencer as paredes do quarto que está mudando a realidade do país e dormir tranquilo, mas muito pouco serviria para tentar fazer as pessoas enxergarem aquilo que diariamente passa por seus olhos, se darem conta do que realmente significa. É uma criança, foi comprar pão, não voltou para casa porque a polícia a assassinou. Eram cinco jovens, iam a uma balada, foram parados por 111 tiros - o mesmo número de assassinatos na chacina estatal do Carandiru, 111 pessoas mortas covardemente.
Sua tentativa é, sem negar a razão, sensibilizar também pela emoção - pode até ter um efeito catártico, mas quebra com o discurso racional-acadêmico que põe tudo à distância e explica com a pretensa certeza de uma análise de texto de vestibular; ou com a escatologia que gera emoção pela emoção, e ao fim do espetáculo nem lembramos do que tratava, só que deu um aperto no estômago em algum momento e... por falar em aperto no estômago, que tal uma pizza? 
E não parece mesmo fazer sentido se centrar no discurso estritamente racional diante de toda a irracionalidade ali tratada. Um Piva periférico e negro vomitando espasmos de quotidiano e dor - dor evitável de um quotidiano que merece ser revolucionado. O rim, o pulmão que vazam pelos furos de bala enquanto a criança baila por cima os fios que enquadram o céu azul da periferia, preocupada em não deixar os pães cair, são poesia alucinada que emerge das marcas de sangue que o Estado estampa no asfalto; o coração que escapa pela abertura feita pela bala e voa sob a forma de uma borboleta-chuteira (teria feito um gol?) até a mãe arrasta gritos de sonhos que crianças e adultos - pretos - insistem em ter, junto ao cheiro do café, à pressão do feijão, e a casa típica da maioria dos brasileiros - retratada como pitoresca, por não aparecer glamurizada na novela (no máximo escarnecida em programas de "humor"), com carne de segunda, refrigerante de segunda, gente de segunda... gente como os soldados da PM, retratados como cães, verdadeiros chacais - o que me faz perguntar sobre o dito de ser o cão o melhor amigo do homem: o que é a amizade em uma sociedade como a nossa? 
Inclusive, me pergunto como não reagiria um PM sério - que não seja um perverso, como os retratados na peça e os que fazem muito da (má) fama da corporação [http://bit.ly/2KFiPZo] -, que tenha já sido brutalizado mas não de todo, diante de uma peça como essa: conseguirá se emocionar como os demais presentes, reconhecerá a necessidade de mudanças; ou seu espírito corporativo falará mais alto e preferirá negar o óbvio para preservar seus comparsas e a instituição? 
Me faço outro questionamento: diante do caminhar de nosso país, por quanto tempo Buraquinhos poderá ainda ser encenada sem ameaças a dramaturgo, diretor, atores e público? Mais quantas edições um espetáculo como esse poderá ser contemplado - ainda mais por um edital público? Que a presença de Buraquinhos na programação do CCSP este ano não seja recordada como um último suspiro antes de um período de trevas.


02 de julho de 2018

PS: A peça fica em cartaz até dia 15 de julho, de sexta a domingo, no Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, com ingressos a R$ 20,00.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Carne farta para usos quaisquer [Diálogos com o Teatro]

Como assinalou a atriz Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia de Teatro, trezentas apresentações de uma peça como Carne - patriarcado e capitalismo, em um país como o Brasil, não é nada desprezível. Esse Brasil a que me refiro não é o Brasil de Margaridas, Marielles e Renatas Peróns, forjado na luta e na inclusão, mas o Brasil que ruma para o fascismo, na senda aberta por Serra, PSDB, Globo e grande mídia, em 2010, aprofundada com o golpe de Estado de 2016; Brasil em que uma tevê pública apresenta como legítima a falácia de "não há cultura do estupro" (antes dois ou três homens poucos controlados tentados por mulheres que pediram para ser estupradas, se forem bonitas, claro), como ficou claro no Roda Viva com Manuela D'Ávila, ao dar voz (e direito de interrupção da entrevistada por não concordar com ele) a alguém como o coordenador de campanha de Bolsonaro, o latifundiário Frederico D'Avila, ali presente para apresentar as propostas de seu candidato (que com indiscutível hombridade foge de toda sabatinada e situação em que ele não possa se apresentar como poderoso dono da verdade); Brasil em que a própria Kiwi já teve uma peça interrompida (em Curitiba, coincidentemente) aos gritos de uma espectadora que havia pagado para "ver teatro e não ouvir sobre política" [http://bit.ly/2KpCcS7] (episódio que as atrizes - Fernanda divide o palco com Maria Dressler - fazem menção durante Carne); Brasil de uma sociedade rota, de uma sociabilidade esgarçada, levada ao limite por uma elite e seus patos, inconformados em verem diminuir seus privilégios.
O mérito das trezentas apresentações, para além da insistência do grupo, está, sem dúvida, na qualidade do texto e da montagem. É uma peça que mantem do início ao fim um crítico discurso feminista radical, sem cair em simplismos de certos ativismos feministas (que costumo chamar de "acadêmico" [http://bit.ly/cG180114], ironizado na peça), de essencializar um pretenso feminino (ideal?), de fazer uma identificação entre machismo e homem, homem e machismo; e apresentar a mulher como vítima exclusiva e em uma condição que beira a minoridade. Mais que isso, Carne tem um recorte consideravelmente bem delimitado: mulheres em uma sociedade de classes de forte herança escravocrata, e um legado milenar de machismo e patriarcado - se os homens também são vítimas do machismo, não é essa a questão que o texto aborda, nem deslegitima; e ainda  que pincelem violências contra mulheres alhures, é só para mostrar que o Brasil não é o cu do mundo nessa questão, só mais um triste exemplo no globo. Inclusive é com a foto do gabinete de Benjamin Netanyahu, manipulada por jornais religiosos, que Carne vocaliza sem meias palavras e sem qualquer complemento o que a estrutura social baseada no patriarcado identifica como problema: as mulheres. "O problema é as mulheres". O dado é apresentado como uma faticidade que não precisa de análise ou crítica, tal qual vemos em diversos discursos - o deslocamento do contexto dessa frase é o suficiente para fazer emergir seu ridículo, sem necessidade de comentários. Veio à minha memória Flora Tristan, que no século XIX questionava como certos homens lidavam com essa humilhação indelével, de terem nascido de um ser que julgavam tão inferior, a mulher.
Ao trazer juntos o recorte identitário (identitários, melhor dizer, uma vez que fala também do racismo no Brasil) e o de classe é que, ao meu ver, dá ao texto de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas toda sua força problematizadora. Contextualizar as divisões de classe é impedir qualquer grande identidade feminina, feminista, que supere todas as divisões em nome de um ente abstrato idealizado. A cena que trata das patroas na sua relação com suas domésticas - paraguaias ou terroristas que exigem direitos [http://bit.ly/2tG7gWw] - é cristalina ao mostrar que a exploração da mulher não é privilégio de homens, e mais que isso, que essa exploração (como muitas das que homens impingem às mulheres) é apresentada como relação de trabalho - a mesma que a patroa terá com seus clientes em seu escritório em área nobre -, edulcorada com o discurso de uma parceria entre trabalhadoras (tipo motorista-parceiro), uma que sabe e comanda, outra que é pouco mais que um burro de carga, uma criança meio idiota, e que precisa ser conduzida - e que crescerá com isso, para seu próprio bem! Crescerá imersa em desejos de bens como os da patroa, se tornando presa fácil para produtos populares de baixa qualidade e longas prestações a juros elevados - que enriquecerão, ao fim, a patroa e seu grupo. Me fez lembrar história de uma amiga, que tretou em um grupo de e-mail de feministas, no qual feministas brancas, ricas e descoladas da zona oeste pediam (exigiam?) faxina a valores pornográficos a feministas negras, pobres, da zona sul - tudo em nome da "sororidade", sem exploração, porque mulher nunca vai explorar outra mulher...
Por ser uma peça que se propõe provocativa e problematizadora, é óbvio que ela não pretende adesão irrestrita do público a tudo ali apresentado. Vários pontos me fizeram pensar, não sei se concordo, se não seria talvez um pouco diferente, me fizeram repensar alguns conceitos que tenho - sem a obrigação de mudá-los, porém com a necessidade de revisá-los à luz desses novos argumentos. São pontos que vários ângulos são válidos, e eu seria no mínimo contraproducente se ficasse de picuinha. Contudo, contesto dois momentos da peça. 
O primeiro destaque é antes uma questão minha, visto que se trata de uma frase que aparece no fim da peça, sem destaque. Talvez a ideia fosse só ser uma frase provocativa; ela me parece, porém, perigosa - para o próprio movimento feminista e para todos os que têm interesse em uma sociedade igualitária e fraterna. Tal frase é um clichê que já ouvi de várias feministas acadêmicas: "O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias".
São duas sentenças incongruentes, tratam de questões muito diferentes - a não ser que se queira dizer que o feminismo seja uma espécie de machismo ao contrário, e não um questionamento radical das estruturas que garantem dominação de certo tipo de pessoas sobre outros. Que o machismo mata todos os dias, mata mulheres, homens, crianças, trans, isso não há o que questionar. Já a frase sobre o feminismo pode (e deve) ser contestada - Valerie Solanas só não pode ser usada como contraexemplo porque era ruim de mira. Certos grupos mais radicais tem um aberto discurso transfóbico e misândrico, legitimador de muitas violências. Assim, a frase acaba por expressar, ao meu ver, um ideal moderno-iluminista-cristão de pureza e unidade que não encontra respaldo na realidade. São diversos os feminismos - nas suas pautas e nas suas estratégias - e há em meio a esses feminismos alguns com posturas indefensáveis dentro da ótica dos direitos humanos e de um mundo sem discriminações de qualquer espécie - afinal, são movimentos feito por pessoas e não por santos da santa igreja. Negar essa realidade é abrir um caminho para a instrumentalização de bandeiras legítimas por grupos com interesses bastante suspeitos perante tais bandeiras.
O outro destaque é quando as atrizes narram uma série de notícias de jornal com violências de homens contra mulheres - via de regra, parceiros ou ex-parceiros. Aqui, me parece uma falta de calibragem no discurso. Os agressores expostos puderam responder em liberdade às acusações, estão foragidos há décadas, tiveram morosos julgamentos - aparentemente sem fim. Neste Brasil de ditadura judiciária, onde o arbítrio prevalece sobre os direitos das pessoas, é preciso ter cuidado para que a denúncia da impunidade não se confunda com a defesa de medidas de exceção - responder em liberdade é uma garantia individual que merece ser respeitada, a questão está no fato de todo o trâmite do julgamento levar uma década, e ainda deixar oportunidade para o criminoso fugir. Há necessidade de uma justiça célere e justa, para inibir outras violências do tipo - mas isso não pode ser feito ao atropelo do próprio direito, ou logo teremos Dallagnol e Moro nos aplaudindo.
Enfim, são dois pontos menores, que em nada diminuem o espetáculo, o qual, para além do humor abordar de um modo divertido questões delicadas e espinhosas, antes centrando em problematizá-las que a defini-las precisamente, consegue trazer o público para dentro dos diálogos - é preciso muitas vezes se controlar para não querer conversar com alguma das atrizes em certas cenas, "verdade, já tive experiência parecida!" -, que, junto com ótima apresentação multimídia e musical, faz com que não percebamos o tempo passar. 
Como crítica radical da nossa sociedade e da nossa sociabilidade, como desvelamento de comportamentos naturalizados, como denúncia de situações inaceitáveis que aceitamos por comodismo, como problematização desse próprio desvelamento e denúncias - e da própria peça -, Carne não pretende produzir um discurso de verdade, e sim anseia destruir pretensas verdades, por em xeque preconceitos (mesmo os "do bem"), deixando a cada um que veja o mundo que o rodeia por conta própria e compare com o discurso ali apresentado - não vai dar pra seguir enxergando ele tal qual antes, e ainda que ache que "não é bem assim", vai ser obritado a dar alguma razão a Carne. Uma peça necessária - e talvez de difícil compreensão, dado o grau de indigência intelectual que vivenciamos hoje. Ainda assim, necessária. Merece outras trezentas e mais trezentas apresentações.

28 de junho de 2018.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

As desumanidades da fome [Diálogos com o teatro]

Ao fim de duas horas de espetáculo, foi com um certo incômodo que perguntei aos meus amigos se animavam em comer algo: eu tinha fome, havia comido no meio da tarde um pedaço de bolo de chocolate que fizera (diet, devido a minha disfunção metabólica) e nada mais. Fome. É essa minha experiência da fome: um intervalo mais longo entre duas refeições, na qual o organismo reclama que não está satisfeito e ameaça, caso não atendido, de reclamar em voz alta (pela boca do estômago?), me deixar de mau humor e não me deixar dormir. O que entendo por fome faz de 800 milhões de pessoas que passam fome um universo absolutamente desconhecido para mim - um marxista luckasiano talvez assinalasse que as noventa pessoas presentes no CCSP nessa noite chuvosa e fria de domingo são ontologicamente diferentes desses 800 milhões. Universos desconhecidos - que não faço questão nenhuma de conhecer in loco -, mas que nem por isso retira dessas milhões de pessoas o essencial que temos em comum: a humanidade. Humanidade que talvez alguns milhares de pessoas não tenham: os que decidem sobre a fome, se haverá fome no mundo ou não. Fome sempre dos outros, nunca a deles e de seus próximos.
Fome.doc, espetáculo da Kiwi Companhia de Teatro, com roteiro e direção de Fernando Kinas, traz numa de suas primeiras falas essa verdade inconveniente (para usar um termo de um homem que teve poder suficiente para resolver a questão, ex-residente do Observatório Naval, ocupante de um dos três cargos mais importantes dos EUA): a fome é uma decisão. Uma decisão tomada à mesa. Não à mesa dos que têm fome - que geralmente sequer mesa têm -, mas na mesa de decisões, de homens que entre um banquete e outro decidem o futuro de milhares de seus semelhantes - ou ao menos assim imaginamos nós, os humanistas ingênuos: de que todos os humanos são, no fundo, semelhantes, uma grande família.
A fome nestes Tristes Trópicos é a prorrogação da escravidão, a metade não abolida pela abolição de 1888. E se José de Alencar usava das belas letras para justificar as atrocidades benfazejas da escravidão, hoje não faltam os que usem de seus títulos acadêmicos e suas concessões de rádio e tv para justificar a fome - como principal diferença, a ausência de qualquer estilo refinado para edulcorar nossa incivilização. Usa-se números para justificar a inevitabilidade da fome que marca o corpo e a pele de 800 milhões de pessoas - números, esses velhos conhecidos dos campos de extermínio nazista -, usa-se da moral para justificar as humilhações de bilhões de pessoas, que rastejam, comem gilete, vidro, merda, por um tanto insuficiente de comida: quem não trabalha, quem não contribui para a produção, para o crescimento da nação, não merece comer, não merece "vida boa", não merece "bolsa-vagabundagem". E nunca se levanta a questão: se o mundo produz alimentos mais que suficiente para todos, por que, ainda assim, há fome? Nessas horas, mesmo sabendo ser ontologicamente diferente de 800 milhões de pessoas, é desses outros milhões que cospem ódio aprendido na escola e na tv que não consigo reconhecer um semelhante meu.
E se os paladinos neomodernos (neoconservadores, neorreacionários, neomoralistas, neohipócritas, neoliberais, neofascistas, neonazistas) do ódio reduzem tudo a números, numa novalíngua cada vez mais pobre e precária - empobrecedora e precarizante de quem a segue tanto quanto de quem reduzem a coisa -, a fome constrói seu próprio vocabulário, tentando disfarçar a falta do que comer nas palavras que esquadrinham o mundo em que sobrevivem, expressões que escorrem da boca junto com a baba verde dos homens famintos junto ao cais - em cena que se repete árida no interior do Brasil: Josué de Castro elenca as gírias da fome, o "é batata", o "descascar um abacaxi", entre outras, que a nós - bem comidos -, soam apenas pitorescas.
Fome.doc tenta nos tocar nessa experiência que não tivemos, não queremos ter e - espero - não queremos que ninguém tenha: a do corpo que se consome para se manter vivo, na esperança - instintiva, biológica - de em breve algo de fora adentre a boca e percorra a garganta e forneça a energia necessária para a manutenção das funções vitais e - quem sabe - a energia necessária para a abertura de possibilidade de uma vida digna, de uma vida humana. As citações de Primo Levi, com as referências aos campos de extermínio nazista, não são despropositadas. Seus prisioneiros são o kafkiano artista da fome à sua revelia - como o são os personagem de Vidas Secas: desnutridos, jejuantes compulsórios, escassos de palavras como de comida. Artistas da fome. Ao escrever sobre a peça, me lembro quando o atual prefeito de Curitiba (cidade vanguarda do neofascismo tupiniquim), Rafael Greca, então ministro do turismo do governo FHC, no alto de sua obesidade mórbida, morbidamente se alegrava com os famintos esquálidos do país - via neles Carlitos recitando poesia lírica com seus estômagos estufados de vermes, sustentados pela fome de seus corpos esquálidos. Em 2014, depois de doze anos de governos de esquerda, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU - é pouco, não quer dizer que erradicou a fome no país, mas nem por isso deve deixar de ser comemorado. Para muitos, deve ser combatido. Três anos depois, um golpe de Estado perpetrado pelas elites de sempre - econômica, política, midiática, judiciária, burocrática, burra, desumana - ameaça pôr novamente o Brasil nesse mapa cruel, mórbido. Quem sabe daqui 20 anos, quando finda a emenda constitucional com teto para gastos sociais, boa parte do Brasil não possa ser vista como um grande Auschwitz homeopática? Ou quem sabe não retornaremos mais no tempo, aos colonizadores latinos das américas, e oferecemos carne humana para alimentar os cachorros? Parece ser desejo de parte do Brasil acelerar o passo para esse futuro grandioso. Argumentarão que vêem ali poesia, milhares de Chaplins, futuros Primos Levis, artistas da fome? Ou será que dirão que se trata do destino-manifesto de negros, índios e outros rejeitados por seu deus?
Fome.doc tem mais de duas horas de espetáculo, é feita de fragmentos - não fragmentos de cenas, mas de discursos, de textos (autores que citaram ou identifiquei: Carolina de Jesus, José de Alencar, Josué de Castro, Primo Levi, Graciliano Ramos, Glauber Rocha, Oscar Wilde, Eliane Brum, Kafka, Frantz Fannon) -, com um ou outro elemento para quebrar a sisudez que a transformaria numa palestra. Possui uma dinâmica que lembra teatro de rua: é possível entrar a qualquer momento da peça (que possui vários pontos de "imantação", para tentar me apropriar de Lygia Pape) e acompanhá-la a partir daí. E uma vez capturado, é difícil desviar a atenção: os atores conseguem sustentar o interesse do público por duas horas. Não cansa - mas incomoda, perturba. Ainda que não seja na minha mesa que a fome dos outros seja decidida, sequer seja defendida a morte de milhares, milhões de meus semelhantes. Perturba a ponto de perguntar sem graça a meus amigos se se animam em comer - em uma refeição simples comeremos o que pessoas comem em uma semana, em duas. Não se trata de culpa - o espetáculo faz questão de ressaltar que não é da boa vontade que se resolverá o problema -, é a ponta de niilismo que a peça não impede que bata.
Me recordo de meu pai. Lembro, quando criança, de não querer comer algo, ou deixar sobrar alguns grãos de arroz no prato - levava bronca. Eu tentava argumentar, dizia que era comida pouca, barata, ao que ele respondia: "não importa quanto custa, na África tem pessoas catando arroz do chão pra comer e você vai desperdiçar comida?" Apesar de terem beirado a miséria, não me consta que ele ou minha mãe tenham passado fome - essa fome - na infância, mas o senso de humanidade de ambos me ensinou que as experiências que vivi e viverei diretamente não dão conta do mundo. Fome.doc acho que se incluiria nessa didática dos meus pais: mostra ao público aquilo que nunca vivenciaram (nem nunca vivenciarão), a partir daí tenta sensibilizá-los, apelando a sua humanidade - se ainda o tem (certamente não é o caso dos que pedem para SP acelerar, enquanto proíbem sopão aos que tem fome e acordam com água fria os que dormem no frio).
Um dos textos utilizados é de Eliane Brum, sobre a família de ribeirinhos de Otávio e Maria Chagas, desalojada para a construção de Belo Monte. Bonecos entristecidos fazem as vezes da família. Diz Brum, dizem Fernanda Azevedo e Renan Rovida, a sabedoria amarga de quem vive a chaga aberta da fome: "casa é onde não tem fome. Se tem fome, é só teto". Para 800 milhões de pessoas, a Terra não é casa, é só teto, um lugar de penúria e fome. A noite fria e chuvosa de São Paulo me faz lembrar: para muitos, nem teto.

21 de agosto de 2017

PS: a peça voltará a ficar em cartaz em breve, no Galpão do Folias



domingo, 23 de julho de 2017

Sobre homens, violências e um deus que justifica tudo [Diálogos com o Teatro]

Como o nome da peça sugere, Antideus, de Carlos Canhameiro, não é uma peça que tende a agradar pessoas religiosas - pelo contrário, a afronta é clara e direta, desde a segunda cena. Pessoas que acreditam em deus, contudo, talvez não se incomodem tanto. Diferentemente do que indica o título, Antideus fala nem tanto de deus, mas do nome dele, do que se faz evocando um nome em que cabe qualquer ideia - mas que tem sido preferencialmente usado para justificar agressões, assassinatos, destruições a todo aquele que não acredite na mesma forma desse deus tão polimorfo. “Sim enquanto fenômeno, não enquanto númeno” é a resposta mais típica quando me perguntam se acredito em deus e eu, já desconfiado do que deseja meu interlocutor, quero cortar logo o assunto sem causar maior balbúrdia. Se não tiver razoável conhecimento em filosofia não vai sequer entender a última palavra, terei que salientar: “eu disse númeno e não número”, e me recusarei a explicar - esse chamado à ignorância costuma desarmar crentes cheios de certeza.
O exemplo esnobe acima não é despropositado: Antideus é uma peça de muito texto, denso e pesado, um libelo contra as religiões. Poderia ser, por conta disso, uma peça chata e enfadonha, um encadeamento de discursos de um proselitismo rasteiro, a versão ateia do púlpito de algum templo cristão adornado com exógenos elementos pagãos, justificados porque “clássicos” - ainda que tenha sido esse classismo o que matou o messias de tal religião. Impressiona que não o seja - ainda que acabe cansando ao cabo de uma hora e meia: sua densidade pediria um texto mais enxuto. Há contraposições bem postas aos ateus, assim como argumentos fortes contra a religião e aqueles que tentam salvá-la de tudo o que causa sob a justificativa de que seria obra de extremistas, não dos seguidores normais da religião - a cena mais poética e pesada (na minha opinião) é a da criança que vê uma estrela cadente em pleno dia, a alegria ingênua de quem não reconhece a bomba que a dilacerará a seguir, destino comum à da criança refugiada, violada pelo mar posto como barreira aos "extremistas islâmicos", cuja morte os bons cristãos europeus (não estou falando do Papa) lamentam como a do boi que os servem à mesa. 
Ainda que a proposta de Canhameiro seja muito diferente - a começar que não é teatro dramático -, não há como não comparar com In Nomine Dei, do Saramago. Contudo, mais nuançada, Antideus mais que pregar a convertidos, mostra que gostaria, sim, de conversar com os crentes - conversa tensa, porém que aceita ouvir o outro lado.
Da parte técnica: cenografia simples e iluminação muito bem desenhada não roubam a cena e ainda ajudam a quebrar o peso de tanto texto; colabora também a trilha sonora feita ao vivo, e também discreta e bem posta (eu temi que a peça certas horas descambasse para uma espécie de musical).
Por falar em cenografia, do início ao fim, um muro vai sendo erguido na frente do palco, abrindo uma série de possíveis interpretações - de metalinguísticas acerca do teatro até sobre a temática da peça. Um convite a mais para dúvidas ao fim dos noventa minutos. A mim, o que mais me chamou a atenção é que o muro não está ali dividindo opiniões, ateus e crentes, cristão e muçulmanos, e sim fechando todos no mesmo espaço: soa como um aviso de que, ao fim, estamos todos fechados no mesmo espaço - a Terra, o país, a cidade, o bairro, o local de trabalho ou estudo -, independente da crença, e é melhor aprendermos a conviver com o diferente, com o outro, pois o muro que a princípio parece nos separar e garantir nossa integridade, nos confina e não nos deixa alternativas muitas que não matar ou... compreender e tolerar.

23 de julho de 2017
PS1: Soa um pouco contraditório eu afirmar que crentes não se incomodariam tanto, na medida que sou eu também ateu. Pesa a meu favor, o fato de eu ser voluntário da igreja católica, apesar de todas as minhas críticas (sim, há usos da religião e do nome de deus para fins de amor genuíno com o outro, quase como se diz na Bíblia)

PS2: Sobre a iluminação, área que se não consegui me inserir, mas tenho formação e registro, faço questão de salientar: creio ser a primeira peça do ano em que proposta, desenho, afinação e operação foram boas: visibilidade boa, sem buracos negros; escuro nos momentos que pedia menos luz, claros nos momentos que pedia claridade, sombras que faziam sentido. Parabéns a Daniel Gonzalez (desenho) e Cauê Gouveia (operação). Eu já começava a achar que, dada minha pouca experiência prática, estava querendo luzes ideais, impossíveis de serem postas em prática, descobri que eram luzes mal feitas, mesmo.

PS3: Ainda falta a terceira peça contemplada pelo III Edital de dramaturgia em pequenos formatos do CCSP - no qual fiquei como primeiro suplente. Pelas duas que vi - excelentes -, creio que minha peça Linha de produção é melhor do que eu já achava, para ter conseguido o quarto lugar.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Farinha com açúcar: Palestina tropical [Diálogos com o teatro] [Diálogos com a literatura] [Diálogos com a música]

Recentemente reli Contos da Palestina, do escritor palestino Ghassan Kanafani (morto em um atentado em 1972). Como na primeira leitura, dez anos antes, me veio a imagem de que os contos de Kanafani são como passar uma lâmina afiada por toda a extensão do braço - várias vezes. Não é a lâmina que crava fundo, força o grito e abre o braço em dois, inviabilizando-o. É ferida feita na profundidade suficiente para que doa, sangre, marque, mas não interrompa o quotidiano - pior, renovar essa ferida e essa dor é o próprio quotidiano. Como diz uma das personagens de "Os desertores e outros":
"Outra vez, ela me mostrou suas mãos. As feridas eram bem visíveis, como rios secos. Delas emanava algo de extraordinário, alguma coisa parecida com a certeza, a segurança da resistência que é parte integrante do próprio corpo.
- Não se preocupe - eu disse -, essas feridas não são graves.
- Isto? Não vai demorar a desaparecer. Elas vão ser cobertas pelo pó, pela ferrugem das coisas que eu limpo, pela sujeira dos assoalhos que esfrego, a cinza dos cinzeiros que esvazio, por tudo aquilo que suja a água que eu uso todo dia... Estas feridas, meu primo, vão ser apagadas pelo cansaço, pelo suor. Elas vão desaparecer nas rugas de minha pele e ninguém mais vai poder vê-las. Mas eu, meu primo, eu sempre vou saber que elas vão continuar aqui".
Kanafani contava de uma guerra em que havia um exército só - "guerra", eufemismo para massacre, uma vez que no campo de batalha estavam de um lado militares, do outro, civis, com baixas quase que exclusivamente destes. Os exércitos de resistência pouco têm de exército e muito de resistência. "Crime de guerra" seria uma qualificação mais apropriada - para não falar em crime contra a humanidade -, se a Kanafani e seu povo fosse dado o direito à voz. Não era, não é. O pouco que conseguiram, foi com sangue e mobilização. Resta também o grito pelas artes - mais difícil de ser calado pelas armas. Grito que Kanafani grita com sutileza e poesia, em que não se foca no horror da guerra e suas escatologias, como em Lobo Antunes ou Kourouma, e sim na dor de resistir quando não se tem o direito a ser. "O gato", na minha opinião, é o conto mais escatológico, um conto em que a vítima (física) sequer é um humano. Kanafani mais que da guerra fala dos marginalizados, dos condenados da terra, como bem sintetizou Frantz Fanon.
Esta semana me veio que talvez eu sinta Kanafani como lâmina que fere o braço porque não sou palestino. Pensei isso porque fui tomado de igual sensação ao assistir ao espetáculo "Farinha com açúcar: ou sobre a sustância de meninos e homens", de Jé Oliveira e Coletivo Negro, inspirado nos Racionais MC's e em histórias de vida de homens negros da periferia. 
Não sou palestino, tampouco sou negro, sequer de periferia. Se minha avó me oferecia farinha com açúcar de lanche, era por ser uma opção a mais, além de pão, bolachas e outros quitutes, não por ser a única opção (talvez por questão regional, era farinha de milho e não de mandioca). Não sou negro e nunca me perguntaram aonde eu ia ao entrar num shopping center, a única vez que fui barrado de entrar num Sesc foi porque era segunda e ele estava fechado; nunca tive uma arma contra minha cabeça apontada por segurança à paisana de um colégio particular, enquanto esperava ônibus na avenida 23 de maio, e a vez que fui interpelado pela polícia, numa blitz da Polícia Rodoviária Federal ao ônibus em que eu estava, respondi seco e firme às perguntas cretinas do policial, que por fim baixou a cabeça, quase a pedir desculpas, seguiu ajudar seus colegas a revistar dois jovens negros e a humilhar, diante dos demais passageiros, um homem humilde e negro (os únicos negros daquela viagem que vinha do interior do Paraná [http://bit.ly/cG100506]). Não sou negro, não convivo com mortes matadas dos próximos, no máximo com repentinos acidentes automobilísticos, impensáveis enfartos e esperados suicídios; na doença, quando a morte chega, encontra um enfermo a quem se tentou de tudo - corredor de hospital é lugar aonde se vai para arejar do peso do quarto, talvez chorar escondido do doente. Morrer todos vamos, mas a forma com que a morte chega tem cor, gênero, classe social. Meus mortos foram todos velados (nenhum teve tiro no rosto à queima roupa) e enterrados sob lápides com seus nomes (é certo que não vivi a democratização dessas práticas à classe média, na ditadura militar, e uma grande interrogação paira sobre o que nos espera para o futuro breve).
Etnogenocídio. Farinha com açúcar fala sem eufemismo o que a tal guerra (contra o crime? contra os traficantes? contra as drogas? contra os drogados? contra os pobres? contra os trabalhadores? contra os periféricos? contra os marginalizados? contra os negros?) anunciada e louvada nas redes de televisão de fato é. Como no contexto descrito por Kanafani, são militares contra civis - não há guerra em tal assimetria, há massacre, baixas quase exclusivamente de um lado. Os tais "soldados do tráfico" não justificam a barbárie - até porque jovens sem esperança com uma arma na mão sem qualquer treinamento estão longe de compôr um exército militarizado.
Cento e onze tiros para cinco homens pretos em um carro. Cento e onze, o mesmo número de mortos pelo Estado que se responsabilizara em zelar pela sua integridade e reintegrá-los - integrar pessoas que desde o início estão em desvantagem, que nas prisões são tratadas pior que animais, em uma sociedade que as recusa enquanto cidadãos com plenos direitos. Se nosso sistema prisional fosse modelo, seria igual fracasso: nossas prisões só refletem sem camuflagens nossa sociedade medieva e longe de qualquer sopro de civilização. Em "Vida é desafio", os Racionais MC's cantam: "Desde cedo a mãe da gente fala assim:/'Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.'/Aí, passado alguns anos eu pensei:/Como fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como?". É esta a base da disputa meritocrática brasileira - talvez seja coincidência que os vencedores sejam 99% das vezes brancos (uma foto dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo assusta pela meia dúzia de mulheres e ofusca por não ter um negro ou moreno, acho que na Finlândia deve ter, em números absolutos, mais negros em cargos equivalentes [http://bit.ly/2vfl3pL]).
No Le Monde Diplomatique Brasil 119, Alain Gresh fala da nakba palestina ("A Palestina, sempre recomeçando", p. 27). Comenta do sentimento de pertencimento dos palestinos, sua ligação com sua cidade, sua vila, sua terra natal - mesmo que tenham nascido já longe e a cidade sequer exista mais: a resistência do povo de Kanafani é reforçada pela provisoriedade de onde foram obrigados a parar. Para eles há um lugar (territorial) aonde se quer chegar, onde um palestinos tem direito de ser, exercer sua identidade com plenos direitos. Farinha com açúcar traz dessa ligação com a terra dos antigos, essas raízes, contudo, não tem a mesma força dos palestinos: enquanto estes foram abertamente expulsos por um exército ostensivo e opressor, os brasileiros que imigraram de algum sertão seco ou violento, fugidos da miséria e da fome, o fizeram por "livre iniciativa" - e ainda que a memória prefira se ater às boas lembranças, muitas dessas marcas são fortes o suficiente para que a volta não seja uma opção desejada.
A terra onde estão é o que lhes resta como destino - construir ali, na periferia de uma grande cidade, seu ser e seu estar. Porém, como fazê-lo, diante de todo estigma com que serão marcados por nossas ilustradas elites brancas e seus porta-vozes na televisão? Alguns se iludem em mudar para não-lugares de consumo onde, endinheirados, imaginam que ganhariam direito à cidadania branca. Ilusão: o dinheiro "não pode arrancar de dentro dele[s] a favela", suas peles seguirão negras, os acessos, se não bloqueados, seguirão dificultados. 
É na condição de negros e periféricos que deve surgir esse ser e estar - afirmativamente contra todo o estigma que tentam impingi-los, do judiciário à mídia, passando pelas igrejas e escolas, até chegar ao Estado, omisso e ausente em tudo menos na violência. Como fala a peça, as mortes de tantos negros, vidas tidas por descartáveis, não devem ser vingadas, muito menos esquecidas (se é que há como esquecê-las de fato, como as feridas da personagem de Kanafani): a dor dessas perdas - bruscas, brutas, injustas - seguirá, e dela deve vir a resistência para se construir um novo estar no mundo, um mundo que autorize esse estar sem estigmas e preconceitos - e há urgência nessa construção, precisa ser aqui e agora. Como a música dos Racionais, como os contos de Kanafani, Farinha com açúcar é um grito feito arte em uma sociedade que recusa humanidade - ao menos cidadania - a negros, periféricos e tantas minorias marginalizadas. Necessário ouvir esse grito, e dele apurar os ouvidos para tantos outros do gênero, mais crus, porém não menos pungente.

21 de julho de 2017