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quarta-feira, 5 de junho de 2019

A aceitação moral de um novo holocausto está dada [Zeitgeist 2033]

A ameaça feita por Trump ao governo mexicano, de taxar os produtos do país - 5% a partir de 10 de junho, progressivamente até 25% em outubro -, caso o México não dê um jeito nos imigrantes "ilegais" da América Central e do Sul que tentam chegar à "terra da liberdade e da oportunidade" pela via terrestre, é de uma degradação ética e política assustadora - e tão assustadora quanto é a forma como tem sido tratada pela opinião pública internacional.
Se a política criada pela Austrália, na virada do século, para "conter" imigrantes pobres de seu entorno - imitada pela Europa rica, que não quer os pobres que ela produziu em suas ex-colônias enfeiando seu discurso de terra avançada, da civilização e dos direitos humanos -, pagando para que ilhas como Nauru e Papua Nova-Guiné "acolham" tais pessoas em verdadeiros campos de concentração, que passam a viver num limbo sem perspectivas - não por acaso a taxa de suicídio é altíssima [www.bit.ly/2Myqquf] -, é condenável; a atitude do governo dos Estados Unidos, ao obrigar o México a tomar alguma atitude - qualquer atitude - para conter as caravanas de desesperados fugidos da miséria e da violência, sob risco de sanções econômicas capazes de pôr sua própria população - e o Estado - em risco de sobrevivência, é inominável: o horror imposto enquanto política de estado para pessoas indesejadas - e excluídas do rol dos seres humanos. No primeiro caso ainda há uma questionável compensação para arcar com esse ônus, no segundo, é apenas ameaça de miséria, sim ou sim.
Por sorte - "sorte" - dos imigrantes que chegam ao México, López Obrador, mandatário de centro-esquerda do país, não parece ter ligações com a máfia, nem ser entusiasta de seus métodos, e não deve, portanto, fazer uso de expedientes não de todo incomuns no país (na verdade ao sul do Rio Grande), de entes estatais entregarem ao crime organizado pessoas tidas por inimigas, para que esse dê sumiço - o caso mais emblemático é o massacre de 43 estudantes em Iguala, que certamente não foi o primeiro nem o último. O "se vire, pouco me importa como, ou arque com as consequências" posto pelos EUA é um convite a toda forma de desrespeito dos direitos humanos - até porque latinos, como os negros, estão mais para cucarachas que para gente, segundo a cosmovisão da direita americana -, um estímulo para que o trabalho sujo seja feito fora de suas fronteiras e o país não possa ser responsabilizado, mantendo assim seu discurso de país civilizado - algo que a Europa tem notório know how.
Assusta que a ameaça de Trump seja tratada pela opinião pública mundial (e mesmo americana) sem o devido alarme, sem a devida dimensão ética do caso, como se fosse apenas mais um front de guerra comercial que está para ser aberto. O ser humano, milhares, milhões de vidas - uma vez que ameaça a população do México como um todo - tratados como meio para obtenção de vantagens egoístas de um império decadente e degenerado, que segue a tendência do mundo dito judaico-cristão ocidental e civilizado (e também de um certo país tropical que não assume que não é ocidental nem civilizado), e busca "qualificar" sua migração, alegando "segurança" e incremento na produtividade econômica, no fundo o velho discurso de um século atrás, de "branqueamento" e pureza da raça e de homogeneização dos costumes repaginado. Os imigrantes (pobres e não-brancos) são os novos párias. Se não acarretará milhões de mortes como os holocaustos armênio na Turquia de 1910, judeu e cigano na Alemanha de 1930/40, negro da África desde o século XV, vai ser por benevolência de destino: as condições - materiais e morais - foram dadas e poucos viram problema nisso.

05 de junho de 2019

PS: Vejo as notícias, que o México já destacou agentes para a fronteira com a Guatemala. Se seguir princípios básicos de direitos humanos, uma ação tão inócua quanto o muro de Trump.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Petróleo, China e a hegemonia dos EUA em risco [Zeitgeist 2033]

Diante da visível desagregação da ordem liberal - econômica, democrática, das relações
internacionais -, os donos do poder, ao invés de tentarem reverter a situação, alterando algumas de suas bases, preferem acreditar que a ruína não será completa e preferem antes montar o tabuleiro para lucrar com as próximas ações - mesmo que isso implique em uma guerra e toda destruição que ela implica. Compreensível: ao invés de ceder os anéis para não perder os dedos, seguram tudo e a esperança é que na grande fogueira a queimar os escombros da civilização possam derreter os anéis e transformá-los em um colar.
Talvez eu esteja sendo alarmista, mas me parece haver sinais de que a terceirização da desgraça está batendo em seus limites, ou seja, adentrando os países centrais: se governos conseguiram socorrer os mercados e evitar um grande crash em 2008, salvar as empresas e a economia financeira não tem implicado em salvar (bons) empregos e permitir uma vida digna às pessoas.
Enquanto as economias centrais - EUA, Alemanha, Reino Unido, Japão e China - se encontram em situação de pleno emprego, o desemprego e o subemprego são uma constante nas franjas do mundo (nos países "em desenvolvimento", até 75% dos empregos são considerados precários, segundo a OIT [http://bit.ly/2Xa2SNy]). O esgotamento do modelo neoliberal chegou à Europa com a crise de 2008, porém o grosso de seus efeitos só se fez sentir recentemente, e pode ser posto na conta dos imigrantes que chegavam ao Velho Mundo, fugidos das chagas abertas pelos europeus em suas terras pátrias - transformada em terras párias.
Na política, o perigo do crescimento da extrema-direita tem sido minorado pela pretensa "estabilidade das instituições", enquanto a democracia liberal - nunca plenamente realizada -, é substituída por um simulacro de - que Rubens Casara denominou pós-democracia. Macron foi a mais recente tentativa de dar uma nova cara às velhas práticas e manter tudo como está - discurso cosmopolita, de respeito identitário às minorias e favorecimento econômico dos ricos e dos "empreendedores" em detrimento dos trabalhadores assalariados. Os coletes amarelos são a demonstração do fracasso dessa política "centrista", e seu pacote de endurecimento das leis, visando conter futuros tumultos do gênero [https://on.ft.com/2tkaIGL], é a máscara liberal que cai aterrorizada diante das pressões populares por dignidade - sequer exigem os ideais liberais que Macron diz almejar. Renzi anunciá-lo como timoneiro da Europa renovada é prova do descolamento da classe política da realidade [https://on.ft.com/2E7eTuF]. Na Alemanha, Annegret Kramp-Karrenbauer (conhecida como AKK), sucessora de Merkel no Partido Democrata Cristão, parece uma última tentativa de contornar a situação antes de ter que escolher entre a extrema-direita ou o "populismo" de centro-esquerda (toda política que não favoreça primeiramente os detentores do capital é tida como populista pelos neoliberais): AKK venceu Friedrich Merz na luta interna do partido com um discurso cosmopolita que flerta com bandeiras mais comuns à esquerda, como aumento do salário mínimo, fim da energia nuclear, aumento de impostos e quotas para mulheres (ainda que tenha cedido na questão da imigração, prometendo endurecer as regras de asilo); enquanto seu adversário falava em "lei e ordem", "identidade nacional", "valores tradicionais" e "reformas liberais". Vale lembrar que a social democracia europeia, desde que tropeçou na busca de uma terceira via entre a direita e a direita, é um espectro que ronda a Europa - mas espectro no sentido diferente do dito por Marx, no século XIX -, e cabe geralmente a alguma personalidade que desponta, como Corbyn ou Melechon, a construção de alguma alternativa de esquerda, ainda por se realizar. A geringonça lusitana é rara (e feliz) exceção.
Até aqui tentei entender a dinâmica do poder das "instituições estão funcionamento normalmente", em que ameaças como da extrema-direita soam como problema de discurso agressivo e não de encaminhamento para um conflito armado real. A questão ganha uma dimensão mais dramática quando se analisa os aspectos geopolíticos do derretimento liberal. O fim da história apregoado por Fukuyama parecia incontestável: uma superpotência a dominar o globo, com duas forças auxiliares - Japão e Europa ocidental -, e algumas lideranças locais subordinas ao Império, o qual expandia e garantia seu poder via "reformas estruturais" ditadas por organismos "internacionais" pretensamente neutros e apolíticos, como Banco Mundial e FMI. As crises podiam quebrar países periféricos importantes, mas não afetavam o coração da acumulação nos países centrais, suas grandes empresas. Os "neobobos" podiam espernear, mas a ordem estava dada e acabada, e nada sinalizava mudanças.
Mas as pessoas seguiam vivas, e com elas, a história.

A ordem neoliberal e a derrocada soviética
Guy Debord, em 1967, ao analisar o "capitalismo de estado" soviético vaticinara: qualquer abertura do sistema levaria ao seu colapso. Diante da crise econômica na Rússia soviética, a glasnost e perestroika abriram a cova na qual a experiência do (mal denominado) "socialismo real" se enterrou. Como crise geral do capitalismo, concomitante à crise soviética, havia a crise do capitalismo de mercado ocidental, e foi como resposta a esta que surgiram as reformas neoliberais, importantes não apenas para salvar as taxas de lucro, como para reforçar a ordem geopolítica de dominação estadunidense - feito na surdina, sem necessidade de ostentar a dominação de um Estado sobre os demais. A pretensa liberdade de mercados e capitais levou ao rearranjo produtivo no globo e à concentração de capitais, formando megaempresas, via de regra de países centrais - reafirmando a tese de David Harvey, de que o capitalismo tende ao monopólio ou oligopólio, se deixado às "forças do mercado", alterando apenas o território de abrangência desses monopólios, conforme avançam os transportes e as comunicações.

Hugo Chávez, independência frente os EUA, e o preço do petróleo
O mundo ia tranquilo: crise aqui, crise acolá, mas não se cogitava um 11 de setembro, e se repetia diuturnamente que a vida agora, diante do fim da história, se resumiria a (se) consumir até o fim da vida. É quando começam a despontar novos estrategistas no tabuleiro internacional.
O primeiro foi Hugo Chávez, na Venezuela: soube desarticular os arranjos das elites locais, atacando inclusive seu braço midiático, e soube aproveitar da principal riqueza do país, o petróleo - não soube fugir da dependência do ouro negro. Ao assumir, em 1999, a cotação do petróleo estava no seu nível mais baixo, cerca de dez dólares o barril. Chávez foi um dos responsáveis pela rearticulação da OPEP, quando esteve na sua presidência, inclusive foi o primeiro chefe de Estado a visitar Saddam Hussein desde a guerra do Iraque, em 2000 [https://bbc.in/2DWiVae]. O preço do barril passou a ficar sempre acima dos US$ 25, salvo nos seis meses seguintes ao 11 de setembro - valor que, desde o fim da segunda crise do petróleo, havia sido alcançado apenas na guerra no Iraque. Em 2008 chega a US$ 130. O preço cai com a crise desencadeada pelas subprimes, se recupera até próximo dos US$ 120 em 2012 [http://bit.ly/2BotcdL]. Ao compartilhar os dividendos do petróleo com a população e não apenas com os acionistas, Chávez diminui a pobreza e melhora significativamente os indicadores sociais da porção mais pobre do país. Com isso, se garante no poder, não dando chances para a vitória das elites tradicionais, pró-EUA. Não que o governo bolivariano em algum momento tenha deixado de fazer negócios com os EUA (até 2018), contudo, sua não subserviência aos interesses do grande irmão do norte sempre foram tratados como uma afronta pelo Tio Sam, que tenta retomar o controle do país por via direta ou indireta, desde 2002, ao menos - golpes de Estado, locautes, greves, atentados com drones bombas.

BRICS e o grupo dos independentes
A princípio era um acrônimo econômico, as possíveis potências do futuro. Levado a sério pelos países, o BRICS, apesar das diferenças entre seus membros, ao se articular, desde 2006 (formalizado oficialmente em 2009), se tornou um grupo geopolítico relevante, independente da influência imediata dos EUA e de suas forças auxiliares. Se Índia e África do Sul marcavam posição como potências regionais com grande potencial econômico futuro, a Rússia de Putin, a China de Hu Jintao e o Brasil de Lula-Amorim-Mantega aliavam potencial econômico com protagonismo mundial - quase uma versão mais pragmática do terceiro mundismo da década de 1960. Noam Chomsky, por exemplo, citava, em 2014, o Brasil como país mais apto a mediar uma solução verdadeira para o conflito árabe-israelense. A crise de 2008, acelerando a integração do BRICS e a derrocada do ocidente, fez acender o sinal de alerta nos EUA, que passaram a se dedicar intensamente à desarticulação do bloco.

Avanço da OTAN no leste europeu e a reação russa
O fim do fim da história, com os ataques ao World Trade Center, em 2001, teve como uma de suas principais consequências a "doutrina Bush", a guerra preventiva, a autoautorização do Império para atacar e invadir todo país que julgue uma potencial ameaça em algum futuro - sem requisitar para tanto o aval da ONU. A confiança no cumprimento dos acordos e tratados, que garantia a ordem internacional, começa a fazer água pela ação dos EUA. As relações do Ocidente com a Rússia começam a azedar aí, e a OTAN passa a avançar célere para os países do leste europeu - a reanexação da Crimeia pela Rússia é apenas a reação mais visível aos descumprimentos do pacto firmado em 1997. Putin é um político nacionalista de direita, extrema-direita, mas guarda uma grande diferença para seus colegas de campo no ocidente: é inteligente e capaz de pensar estratégias para o Estado, e não apenas para as eleições. Ganhando também com a alta dos combustíveis, investiu inicialmente na política interna, paulatinamente avançando na política externa, via indústria militar (nunca abandonada) e parcerias estratégicas, como o BRICS; a seguir, com a crise advinda da queda dos preços do petróleo, em 2014, e uma política mais agressiva por parte dos EUA, reagiu atuando de forma mais aberta na política externa - a aliança com a China, em especial com a Nova Rota de Seda, talvez seja esse ponto de inflexão, em que começa a se articular de maneira mais orgânica um polo de resistência à hegemonia estadunidense. As atuações militares, mesmo com o cerco econômico recente, fez o país assumir novamente papel de relevo no cenário mundial - em especial após a reanexação da Crimeia e a intervenção na Síria -, inclusive fazendo renascer o mesmo discurso de "perigo russo" da época da União Soviética. As acusações dos EUA de interferência nas suas eleições de 2016, sinalizam que o ataque à Rússia é real, e tal interferência do país eslavo seria uma reação "natural" aos movimentos de Tio Sam no país e seus arredores. O recado dado aos EUA quanto a uma possível interferência na Venezuela de Maduro mostra que pretende expandir sua área de influência - em parceria com a China - muito além das suas vizinhanças.

China, a nova potência mundial
Enquanto potência regional ascendente, com mão de obra intensiva barata e grande mercado consumidor potencial, a China, ainda que com ressalvas, era bem vinda ao sistema de produção internacional. Os avanços geopolíticos e a mudança da forma de inserção na ordem econômica mundial fizeram com que os EUA se preocupassem com seu avanço. No pós crise de 2008, a China foi responsável por manter a demanda econômica em níveis que evitassem maiores danos à economia do planeta. O problema foi que isso fez com que despontasse como potência e começasse a fazer frente aos EUA e suas forças auxiliares, em especial a Europa - com pesados investimentos em infra-estrutura na América Latina e na África. A ascensão chinesa não é de apenas um novo player global, é uma nova forma de organizar a economia e as relações mundiais, uma vez que seu modelo tem a participação evidente do estado na economia - e não apenas disfarçada, como no modelo de "livre mercado" apregoado por EUA e seus asseclas. A preocupação passou a crescer quando o Império do Meio, consolidado como principal parceiro comercial de muitos países-satélites das potências, passou a investir abertamente nos EUA e Europa, com aquisições de empresas dos mais variados ramos - informática, veículos, robótica, química, energia, etc -, afim à sua estratégica "Made in China 2025".

Tentativa de desarticulação dos países independentes produtores de petróleo (iniciada em 2011 e concluída em 2014)
Com a economia mundial se recuperando da crise de 2008, os preços do petróleo voltam a subir vertiginosamente, de US$ 40 para cerca de US$ 80, em 2010. Por coincidência, no meio desse trote para o alto, começam as primaveras árabes, em 2011; em 2012 haveria eleição presidencial na Venezuela; e um acordo nuclear com o Irã era costurado, prometendo acabar com o embargo ao país xiita. A turbulência no Oriente Médio acaba fazendo o preço do ouro negro disparar, chegando a US$ 116. Curiosamente, os principais aliados dos EUA na região, Arábia Saudita e Emirados Árabes, passaram incólume às manifestações. É somente com o apaziguamento do Iraque, em 2014, que o preço do petróleo passa a ficar entre US$ 40 e US$ 50. A baixa na cotação torna economicamente inviável o gás de xisto, que vinha ganhando impulso nos EUA - o que é bom para a Arábia Saudita. Também coincide com quando os EUA estão prontos para assinar o acordo nuclear com o Irã - rival da Arábia Saudita e também produtor de petróleo -, em 2015, levantando o embargo econômico ao país (acordo esse basicamente igual ao proposto por Brasil e Turquia em 2010, e aceito pelo Irã). É quando a Rússia, outra produtora de petróleo, dá um basta ao avanço da OTAN, com a reanexação da Crimeia. E é quando a Venezuela está sem seu estrategista, e Maduro se mostra bastante aquém do que seu cargo exige. É quando, na esteira de um movimento popular, começa uma mui suspeita investigação judiciária sobre corrupção no Brasil (após os EUA espionarem a Petrobrás e a presidenta da República o que, ao que tudo indica, municiou a primeira fase da operação [https://bbc.in/2Smuuva]), e a queda do preço do petróleo, aliada à Operação Lava Jato, acarretam numa óbvia perda de valor das ações, e permitem a construção da narrativa de que Dilma quebrou a Petrobrás, depois ampliada para Dilma quebrou o país com as pedaladas fiscais (remanejamento de incríveis 0,008% do orçamento). A estratégia de golpe parlamentar já havia sido ensaiado pela embaixatriz Liliana Ayalde em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012 - e o juiz "responsável" por desarticular a cadeia de óleo e gás do Brasil, devidamente treinado nos órgãos de segurança dos EUA [http://bit.ly/2HYDCX3]. O novo governo brasileiro, assumido pelo "vice-caução" [http://bit.ly/cG180509], de alinhamento automático com os EUA, ajudou a desarticular em alguma medida o BRICS - contudo, ao que tudo indica, o Brasil precisa mais da China que a China do Brasil.
Com esse movimento, a ordem liberal capitaneada pelos EUA abate alguns dos países que ameaçavam esboçar voos solos - como Venezuela, Síria e Irã - e, principalmente, atinge dois dos países do BRICS - Brasil e Rússia.
(Parênteses: a derrubada do Brasil petista pode ter sido um tiro no pé no projeto de hegemonia americana: ainda que tenha "recuperado" o petróleo e, pelo que se sinaliza, imposto uma agenda favorável aos seus interesses - privatizações e bloqueio chinês -, o Brasil já depende o suficiente da China para não poder barrá-la, sem mais; mas principalmente porque, ainda que de maneira independente, priorizando relações sul-sul, a diplomacia petista - principalmente Lula-Amorim -, era de reforço à lógica favorável aos EUA, de livre mercado - por mais que fosse minorado por políticas de Estado - e defesa de um mundo "multipolar" existente apenas enquanto desejo e ideologia).

Os tratados de livre comércio
O segundo ponto de ação dos EUA para retomar a hegemonia foi costurar novos tratados de livre comércio, de modo a isolar a China e garantir que os governos não participassem de maneira evidente do mercado. Tratados amplos que cercavam o Império do Meio: a Parceria Transpacífica e o Parceria Transatlântica. Sobrariam fora deles, grosso modo, além da China, Rússia, algumas repúblicas asiáticas, Oriente Médio, África, Brasil e Argentina.
Rússia é um calo no projeto americano - ou a justificativa para suas arbitrariedades, para ser mais exato -, as repúblicas asiáticas estariam "naturalmente" na órbita de China e Rússia, o Oriente Médio é em parte controlado pelos EUA, em parte é o caos; na África, os países mais importantes economicamente seguem colônicas de fato da Europa - eis a preocupação com a democracia no Congo, na Nigéria e o silêncio com a tentativa frustrada de golpe no Gabão -; Argentina teve a vitória do candidato "certo", graças ao golpe branco da mídia; e o Brasil com alguma dificuldade - um impeachment, um lawfare, uma ameça de golpe militar e a ameaça de mamadeira de piroca comunista - aprendeu a votar "certo". A China estaria, portanto, isolada, e começaria a definhar caso não aceitasse se adequar à boa governança - as reformas estruturais que Trump tem exigido abertamente.
Ao mesmo tempo, cria uma legislação que permite julgar quem usou moeda americana em transações suspeitas ou criminosas, se tornando, de fato, juiz do mundo, com um sistema judiciário totalmente enviesado para a defesa de seus interesses.

Trump e a mudança de estratégia
A vitória da extrema-direita nos EUA - uma extrema-direita boa de estratégia eleitoral (se jogam sujo é outra história), mas fraca (ao que tem demonstrado até aqui) de estratégia de estado, de poder, de geopolítica -, com Donald Trump, fez com que o Império do Norte abandonasse a estratégia de isolamento da China e partisse para a guerra aberta. Por ora ela é denominada de "guerra comercial", mas o guerra não é uma metáfora, e pode-se dizer que há prisioneiros de guerra, negociados em busca de acordos vantajosos - Meng Wanzhou é apenas a prisioneira mais importante. Aparentemente, a estratégia de Trump era de uma espécie de blietzkrieg, porém sem a eficiência alemã - e correndo sério risco de perder e ter que recuar. Isolamento chinês não mais por tratados comerciais, e sim por tarifas comerciais dos EUA, aliado a vetos abertos dos países aliados a empresas chinesas, sob a justificativa de ameaça à segurança nacional. Ocorre que há um limite do quanto os países aceitam perder dinheiro para se vincular a um lado. Se o "Brasil livre de ideologia" aceita entrar alegremente nessa guerra contra a China, na Argentina já se discute um downgrade na qualidade das exportações de soja, para ganhar a fatia americana no mercado chinês. Se o banimento da Huawei da internet 5G se justifica por conta da segurança, o UK National Cyber Security Centre apresenta relatório [https://on.ft.com/2tuHWTW] apontando a falácia do argumento, sendo possível o uso de equipamentos Huawei sem pôr em risco a segurança nacional - a questão de segurança despertada pela Huawei é, na verdade, de segurança geopolítica.

A Europa tenta se salvar
Em meio a esse conflito, com aliados fazendo jogo duplo e ameaçando desertar, a Europa aproveita que tem um pouco mais de margem de manobra e toma lado - da potência hegemônica -, na esperança de lucrar com a manutenção da ordem atual - sob o risco de se tornar toda ela uma grande Grécia, como único valor positivo a lembrança de ter sido (pretensamente) o berço da civilização ocidental.
A Alemanha é o caso a ser observado, por ser o país mais forte do bloco e por estar dando sinais claros da sua movimentação. De um lado, a tentativa de aprofundar o sistema global em curso, favorável ao capitalismo estadunidense e das potências auxiliares, com a criação de "campeões continentais", eufemismo para permissão de monopólios. O principal caso é a tentativa de união da Alston com a Siemens, no ramo de transporte sobre trilhos. Isso seria um passo a mais na "integração" europeia (integração econômica, azar das pessoas), dificultando separatismos posteriores - como no caso do Brexit -, permitiria ganho de escala para disputar com mais vantagens mercados (e azar das pessoas/consumidores) e, principalmente, permitiria evitar o avanço da chinesa CRRC - até então não se tinha alegado necessidade de conter empresa de um país em especial para mudar as regras de concorrência da União Europeia [https://on.ft.com/2EjfEC8]. A criação de competidores globais, que Altmaier (como Le Maire) defende, é a manutenção da ordem mundial atual, sob os auspícios estadunidenses, de exploração das periferias - inclusive as próximas, como os países do leste europeu - para garantir as taxas de lucro e os dividendos dos acionistas. É um caminho que mantem o status quo, pressupõe que as regras do jogo do mercado mundial seguirão - e, portanto, irá lucrar com isso -, e ainda consegue manter algo do discurso liberal, uma vez que o protecionismo não se faz em base nacional, mas continental, com objetivo explícito de barrar o adversário oriental.
O outro exemplo, também vindo da Alemanha, diz respeito à criação de um fundo para conter compras de empresas nacionais por estrangeiras [https://on.ft.com/2SOl2pG]. Houve quem visse nessa atitude do ministro da economia Peter Altmaier uma defesa da indústria nacional, um caminho que deveria ser seguido pelo Brasil. Vista rapidamente, a atitude é válida. Vista em detalhes, se mostra uma questão mais complexa. Primeiro porque salvar empresas alemãs não implica em salvar empregos na Alemanha. O protecionismo alemão não encontrou críticas a oeste porque, apesar de regra geral, seu alvo é bem específico: barrar as compras de chinesas, cujo modelo "economia dominada pelo estado" acarreta uma competição desigual com modelo de "competição aberta" alemão - em alerta desde a compra da empresa de robótica Kuka, em 2016. A recente compra da alemã Sonnen, do ramo de energia renovável, pela Shell não gerou nenhuma manifestação de preocupação ou crítica quanto a sua aquisição por estrangeiros [https://on.ft.com/2XkVZJB]. A proposta alemã não é nada muito diferente do que explicitado pelo governo Bolsonaro, apenas mais bem elaborado, e com outras significações, dada a importância relativa de ambos os países: barrar o avanço Chinês, custe o que custar. É uma aposta de alto risco, em especial para o Brasil. E o pior: caso ganhe a aposta, não há nenhuma evidência de que isso resultará em ganhos para estes Tristes Trópicos e sua população mais sofrida.

22 de fevereiro de 2019

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A crise da democracia liberal-burguesa [Zeitgeist 2033]

Repentinamente o mídia internacional se interessou pela democracia na República Democrática do Congo, no centro da África - assim como se preocupou com a democracia venezuelana na América do Sul (por sorte, o Brasil passou ileso das atenções internacionais, apesar de suas eleições suspeitas desde o início). Se a Venezuela possui petróleo, o Congo tem enormes jazidas minerais, em especial de cobre o cobalto, essenciais para smartphones e carros elétricos. Em comum nas admoestações do "Ocidente", o discurso de preocupação com direitos humanos, pobreza e democracia - não sei se é relevante, porém é comum também o fato de que os vencedores dos pleitos congolês e venezuelano não agradarem ao capital internacional (por mais que a Venezuela faça negócios com os EUA, não entrega suas reservas a preço de banana de xepa, como certo país tropical). No caso do país africano, não deixa de ser significativo que o candidato declarado vencedor por observadores internacionais - Martin Fayulu - seja ex-executivo de uma petroleira, a Exxon Mobil (parênteses: vale também ressaltar que a tentativa de pintá-lo como um líder abnegado, alguém que se guia apenas por interesses comuns, nunca individuais, raro em qualquer parte do mundo [https://on.ft.com/2FNPo40], é de um farsesco ridículo, mas que tem marcado a mídia nestes tempos de ascensão neofascista, vide o "Mito" que ocupa o Palácio do Planalto, ou mesmo antes dele, a ridícula "necessidade" de Willian Corrêa provar que Michel Temer "é gente como a gente, o senhor existe realmente" [http://bit.ly/2HowEdL], na grotesca tentativa de criar uma mitologia para o golpista, reedição pós-moderna de "Carlos Magno e a Távola Redonda").
Contextualizando rapidamente para quem não tem tido tempo para acompanhar o que acontece além-mar, sufocado por Ibamas, carros, laranjas, milhões em nota de cinco, azuis e rosas, índios mortos, Lula preso, Moro solto e análises de Marx sobre a primeira guerra mundial: Congo era antigamente o Zaire, controlado por Mobutu, deposto por Laurente-Désiré Kabila, em 1997. Em 2001, Laurente-Désiré é morto e assume seu filho, Joseph Kabila, no poder desde então. Em 2016, acuado, Kabila convoca eleições, que são adiadas constantemente. O pleito se realiza, finalmente, em dezembro de 2018. O candidato do governo, Sharaday fica em terceiro; o oposicionista Fayulu, nos resultados oficiais, em segundo, e o oposicionista Félix Tshisekedi, filho do histórico líder oposicionista Etienne Tshisekedi, falecido em 2017, é declarado o vencedor. Observadores da igreja católica e vazamento de dados de urnas apontam vitória de de Fayulu com cerca de 60% dos votos. Tshisekedi, logo após o resultado, se encontra com Kabila, e isso é lido como um acordo entre o atual mandatário e o oposicionista conhecido do status quo do país, mais confiável para garantir uma transição "tranquila" - nem que se use de fraude nas urnas -, a entregar o poder a um outsider aventureiro. É de se acreditar que deveras houve fraude.
Vários questionamentos surgem a partir desse imbróglio, ressalto dois. O primeiro e mais óbvio: por que dois pesos duas medidas? Ainda que fraude no Congo seja grosseira - alteração dos votos -, a fraude na eleição brasileira, não é por ser mais sofisticada que deixa de ser fraude: o principal candidato ao governo é condenado e preso por "crimes" - sem se especificar qual, quando, como, por que: "atos de ofício indeterminado" ou "por causa de umas paradas aí, tá ligado?", para usar uma linguagem mais jovem. Com base em uma lei que não valeu para 1400 outros candidatos, é impedido de concorrer [http://bit.ly/2U9KWjQ]. Vence o candidato neofascista, e o articulador do impedimento de Lula, que tentou interferir na disputa também durante o pleito, assume cargo no novo governo como recompensa pelo bom serviço - causas e efeitos todos muito bem determinados. Outro questionamento nessa linha: por que toda essa atenção ao Congo e nenhuma ao Gabão, país rico em petróleo, onde houve uma tentativa de golpe de estado há duas semanas - será por que o presidente gabonês, Ali Bongo, é moço de recados da França na África enquanto sua família é a dona do petróleo do país (e da cadeira presidencial desde 1967)?

O segundo ponto é um pouco mais estrutural: das promessas do sistema liberal-burguês e sua impossibilidade de entregá-las. Na verdade, ele sequer é capaz (ou tem interesse) de oferecer o mínimo: informações suficientes para uma decisão racional por parte dos cidadãos - isso se é possível uma decisão racional ao molde do que defende a teoria liberal, o que temos visto cada vez mais são escolhas passionais e irrefletidas, mesmo por parte de gente tida por intelectualizada.
E o que promete o sistema democrático liberal-burguês? Basicamente liberdade política para os cidadãos se expressarem e escolherem seus representantes, os quais, durante a corrida eleitoral, apresentam suas propostas do que irão mudar ou manter no funcionamento da máquina pública e na sua relação com a sociedade civil.
Vale questionar o quão limitada é essa "liberdade política": o que pode ser dito, quem tem direito a se candidatar, quem tem o direito de votar, quais as regras do processo eleitoral? Se o discurso de liberdade marca a democracia liberal desde o início, desde seu início também corre em paralelo uma série de restrições - na verdade, desde a democracia grega, quando todos os cidadãos podiam participar dos negócios da pólis, mas apenas a minoria de seus habitantes eram considerados cidadãos. As restrições, contudo, não servem para salvar a democracia liberal - de fato, elas são seu coveiro -, e sim para salvar o modo de produção, que precisa manter a fachada de liberdade (que não se sustenta na realidade, ou alguém acha que a vendinha da esquina pode disputar livremente com o Walmart?). As restrições ao poder de ação do estado que acompanham a ampliação da participação democrática (ou sua possibilidade, ao menos), tem como intuito relegar a política à irrelevância (pontuado por Debord, em 1967, e por Chico de Oliveira, no século XXI), e permitir aos agentes econômicos atuarem pensando apenas na sua maximização de utilidade no mercado - sim, esse ideal de irrelevância política (o fim da história) é acompanhando de pressões contraditórias, desde a necessidade do Estado como balcão de negócios da burguesia até a do Estado limitador da voracidade do capital contra o trabalho.

Para disputar um cargo político, além das regras explícitas que delimitam quem tem esse direito, há a necessidade de capital - econômico e social - para ter realmente chance de vitória: a mera liberdade formal é apenas um faz-de-conta sem efeitos práticos (que o digam os que votaram 54 em 2018). A internet é uma mudança não esperada nessa relação, talvez por alterar os termos do capital social, e também por movimentar de modo bastante nebuloso vultosas somas de capital econômico. Não é um efeito menor, como atestam as eleições de Trump e Bolsonaro, e o Brexit. Entretanto, como seu uso tem sido antes favorável ao sistema, promovendo "revoluções conservadoras", o ímpeto de controlá-la não se faz tão urgente - me questiono agora o quanto a internet 5G vai além de aspectos econômicos, e daí o caso Huawei.
Assim como a ampliação a quem tem direito a disputar um cargo eletivo, a ampliação do direito de voto ocorreu por conta das lutas populares, ao pressionarem as elites, os detentores do poder, a seguirem os próprios ideais que apregoavam. Cada pequeno avanço na ampliação da cidadania é acompanhado de rearranjos do Estado e das regras eleitorais, de modo a tentar garantir que nenhuma grande mudança acontecerá - como a forma de composição de governo (como na Itália pós-guerra) ou mudanças na divisão dos distritos eleitorais (como nos EUA atualmente). Se acaso vence um operário, por exemplo, uma série de salvaguardas - do "vice caução" a uma carta ao "povo" com o dinheiro da nação - são tomadas para ter certeza de que não haverá solavanco.
Porém, não apenas a democracia é limitada por suas regras e sua dinâmica de funcionamento, o próprio Estado, no seu desenho, na sua continuidade no tempo, nas suas relações internas e internacionais, nas relações de forças que o permeiam, é bastante engessado, com poucas aberturas para inovações e rupturas, mesmo que expressas em voto popular - ao menos em tempos normais, em tempos de crise, a coisa muda de figura. Não cabe aqui classificar se tais limitações são boas ou ruins - "do bem" ou "do mal" -, há aspectos positivos e negativos, como tudo. A questão é que o discurso liberal oculta essa face do Estado e da política, e segue não apenas permitindo promessas, como ele próprio reitera tal parlatório que de modo algum tem como entregar - o "tem que mudar tudo o que está aí, tá ok?", ou mesmo a construção de um muro que resolveria todos os principais problemas de um país. Manter viva a esperança de mudanças drásticas e rápidas é uma forma de forçar as pessoas a seguirem acreditando que o imobilismo amanhã vai se tornar movimento - e redenção!
Fayulu, pelo que pude acompanhar, é um outsider do establishment político com ótimas ligações com grupos internacionais. Não que Tshisekedi dê pinta de ser nacionalista, socialista, a favor das causas populares e da independência de fato do país - também ele desembarcou há pouco no Congo, mas pelos laços familiares, soa um político mais bem relacionado com o status quo local, apto a fazer essa ponte com o exterior sem excluir dos novos arranjos os que sempre lucraram com o colonialismo e seu pretenso fim. Não parece haver dúvidas quanto à fraude, porém cabe a pergunta: o país resistiria à vitória de Fayulu sem entrar em uma nova guerra civil? (ou, para usar exemplo brasileiro: o país resistiria a uma vitória de Lula sem um novo golpe militar?).
Não se trata aqui de defender ou justificar a fraude! Estou propondo dar um passo atrás e questionar por quê se chegou a esse ponto: a democracia, no mundo atual, é capaz de realizar seus ideais? Eleições livres, partidos democráticos, liberdades ampas à população, autodeterminação aos povos? Definitivamente, não. Pela democracia liberal não nos é possível alcançar o que ela própria promete de mais básico, que é respeito às suas regras.
Portanto, antes de falar em mudanças, precisamos deixar muito claro qual a situação em que vivemos, encará-la sem ilusões: democracias de fachada, tuteladas, mutiladas, com regras que só valem se o resultado for a que interessa aos donos do poder. É a partir de uma análise desapaixonada da realidade que se pode discutir e articular a construção de novas bases de luta e reivindicações, sem cair na armadilha de esperar que os entes do Estado de Direito sejam garantia dos direitos, ao mesmo tempo em que não se pode negar que a luta institucional, explorando tais contradições e cobrando suas resoluções (afinal, enquanto ideais abstratos, não há muito que se reclamar do que propõe o liberalismo), é parte imprescindível da construção de um mundo melhor.
A falta desse tipo de educação/ilustração política, deixa em aberto o caminho para o desalento com a política, uma porta fácil para apelos a ressentimentos vários - para dar um pouco mais corpo e identidade a esse ressentimento inaugural com a democracia -, culminando na adesão a políticos "antipolíticos" "sinceros": são eles que denunciam o engodo desse ideal inalcançável. Entretanto, ao invés de proporem mudanças, melhorias, apenas convidam a uma adequação radical ao que está dado, de modo a enquadrar a todos - políticos, elites, movimentos sociais - na mesma trilha de conformismo e desesperança - e garantia de lucros aos de sempre.

21 de janeiro de 2019

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O judiciário como linha de frente no avanço neofascista [Zeitgeist 2033]

O ativista português João Bernardo, em seu Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta, se nega a apresentar uma unidade coesa nos diversos fascismos do século XX: identifica quatro eixos, que ora colaboram, ora disputam entre si pelo poder, tendo como base social um grupo bastante heterogêneo, de grandes industriais a camponeses, passando por funcionários de colarinho branco. Na página 216 ele cita que Maurice Bardèche, "o mais sábio dos fascistas franceses, prolongou a lição de Ledesma Ramos [um dos principais ideólogos do fascismo espanhol] chamando a atenção para 'a impossibilidade de o fascismo se desenvolver fora dos períodos de crise. Porque ele não tem um princípio fundamental. Porque não tem uma clientela natural. É uma solução heróica. [...] É o partido da nação em cólera. E principalmente [...] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo'. É certo que aquela situação de crise colocava problemas distintos a cada uma das classes e das camadas sociais, mas o fascismo pretendia possuir uma solução comum para essa diversidade de questões". 
"Nação em cólera em período de crise". Para além do momento interno do país e suas disputas de classe, o fascismo do século XX dependeu de um contexto global - redesenho do mapa geoeconômico e geopolítico, hiperprodução e crise do capitalismo. Nesta segunda década do século XXI, novamente uma crise do capitalismo enceta soluções pela via fascista - ainda que guardadas as diferenças para as experiências do século passado, e com muitas variantes acerca de como tem despontado em cada país. A ilusão, com o colapso do socialismo real, de uma "ordem multipolar" controlada pelos Estados Unidos se vê seriamente ameaçada pela emergência chinesa, que busca redesenhar o mapa da produção mundial conforme seus interesses.
A disputa econômica entre os EUA trumpista e a China acerca de tarifas, e a prisão da executiva da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a pedido dos EUA, é apenas a face mais evidente desse rearranjo de territórios ainda em aberto. Petróleo e tecnologia 5G (que vai muito além de internet rápida, e na qual a China larga em vantagem [https://on.ft.com/2D4EPaN]) são os grandes motores do momento, e o principal veículo para consecução dos objetivos, neste estágio do conflito, está no uso aberto do judiciário como instrumento de perseguição política. Essa nova fase da guerra comercial entre Ocidente e China, atacando diretamente pessoas, não começou com a prisão de Meng Wanzhou: em dezembro, Patrick Ho Chi-ping, executivo de Hong-Kong que trabalhava para empresas chinesas,  preso desde 2017, teve sua prisão confirmada pela corte federal de Manhattan, por propinas pagas aos governos do Chade e Senegal, na África. Agora é a vez da prisão de Piotr D, um executivo da Huawei polonesa - o maior mercado da empresa chinesa no leste europeu [https://on.ft.com/2SPgYBv]. Isso para não falar nas acusações de espionagem por parte da Huawei, ou de hackers sustentados por Beijing.
A China respondeu à prisão de Meng Zanwhou detendo dois canadenses, acusados de atentarem contra a segurança nacional. O Ocidente reagiu dizendo que se tratam de prisões arbitrárias - deixando de lado a seletividade da justiça estadunidense, pois não me consta que o general Keith Alexander esteja preso por espionagem internacional -, ao que o embaixador chinês rebateu, acusando os críticos de "suprematismo branco".
Possuidora de três grandes reservas petrolíferas - México, Venezuela e Brasil -, e considerada quintal do Tio Sam, a América Latina parece ter sido o grande laboratório para novas formas de intervenção política - popularmente conhecidas como golpe de estado -, diante do fracasso da tentativa de "reformas" via "levante popular" no Oriente Médio. Essas novas formas passam pela instrumentalização aberta do judiciário na perseguição de inimigos internos e externos, atuando sob uma frágil base de ritos formais - seguidos conforme a ocasião -, e se utilizando do direito penal para produção de presos políticos - Jorge Mateluna, no Chile, Milagro Sala, na Argentina, Lula, no Brasil (Rafael Corrêa só não faz parte da lista por estar exilado na Bélgica). A atuação do judiciário tem sempre favorecido os EUA e as elites locais aliados aos interesses do Império. Nos casos em que não atua diretamente, o judiciário avaliza o desrespeito às leis e à Constituição, em nome da caça ao inimigo - como no caso dos impeachment farsescos em Honduras, Paraguai e Brasil.
Claro, a justiça sozinha não é capaz de manter o movimento, daí a necessidade de se ocupar o executivo para aplicar o receituário econômico conforme os ritos legais, e haver exército de prontidão para agir em caso de perturbação da ordem, e a mídia em permanente atuação - fator crucial para alimentar a cólera da nação e explorar bodes expiatórios.
Onde o judiciário pode ser um empecilho, intervem-se nele sem maiores pudores, como no caso da Polônia, Romênia e - exemplos bem mais complexos - Venezuela e Turquia. Aqui, Erdorgan talvez já conhecesse as novas técnicas de uso do poder via intervenção judiciária, e cumpriu a cartilha contra seus opositores antes que fosse feito contra ele - inclusive com o mesmo expediente usado por Moro contra Lula, de bloqueio/confisco de dinheiro dos "inimigos". Na Venezuela, o estado de guerra permanente não declarada contra o país, desde 2002, e intensificada nesta década, empurra o país para o colapso, e Maduro se sustenta como pode - diante de uma oposição que não merece qualquer voto de confiança (Gilberto Maringoni tem feito ótimas análises sobre o país) -, com apoio do exército e do judiciário. Isso, contudo, só é possível porque Chavez foi inteligente em repactuar os poderes do estado e desarticular as elites tradicionais, alinhadas com os EUA e o capitalismo de butim - ajudado por essas mesmas elites, de uma incompetência política invejável, talvez por nunca terem feito política -, reinstrumentalizando o judiciário dentro de sua "revolução bolivariana", o que lhe valeu, por não ser aliado dos EUA, a alcunha de "ditador" por parte de quem acha que os militares no Brasil eram um "movimento" ou uma "ditabranda". Tivesse mantido as estruturas herdadas quando assumiu o poder, teria caído há muito tempo, e seu sucessor, se viesse a assumir, já teria sofrido impeachment (não se trata de defender especificamente a reforma por ele feita, mas ressaltar que mudanças do tipo são fundamentais para garantir mudanças sociais e impedir contragolpes institucionais, feitos à revelia dos interesses do país e da maioria da população).
É para se observar como se comportará o judiciário brasileiro no governo Bolsonaro, em especial quando surgirem as crises: após intervir diretamente no resultado das eleições, com seu principal expoente integrando o governo, o judiciário deverá tentar manter a tutela do governo - como já havia ensaiado no governo Dilma. Contudo, essa mesma tutela é disputada pelo exército, que começou no julgamento de Lula e não deve ser aliviado agora que entrou de cabeça no governo fascista. Para fora das esferas de poder, o que podemos esperar é mais perseguição e sentenças arbitrárias contra opositores do governo - sejam da sociedade civil, sejam do próprio parlamento. 
A resistência, ao que tudo indica, deve vir de fora, num primeiro momento, via pressões de ONGs e da sociedade civil internacional. No plano interno, ainda carecemos de uma melhor organização - sociedade civil, movimentos sociais, partidos políticos -, e aceitar que precisamos abrir mão de purezas ideológicas em nome de acordos com aliados de momento - prontos para pular fora assim que não nos convier mais (e Rodrigo Maia não me parece um aliado de momento, diferentemente de Renan Calheiros e Gilmar Mendes). Bolsonaro já mostrou que fará um governo errático; os que se arvoram no poder já mostraram que logo começarão a disputar entre si, precisamos saber utilizar as brechas, antes que o regime se feche ainda mais.
No plano global, o judiciário deve aumentar sua atuação, não apenas arbitrando litígios econômicos, mas atuando na detenção e no indiciamento dos agentes econômicos "inimigos". Isso até o momento que não se puder mais agir apenas com essa carapuça e partirmos para conflitos abertos. A Venezuela parece ser o alvo da vez: enormes reservas petrolíferas, um governo encurralado e ampla crise econômico-social; Trump necessitado de recuperar popularidade para enfrentar a eleição ano que vem, o governo Bolsonaro precisando um bode expiatório para "calar democraticamente" as críticas e unir a nação, a China avançando sobre o petróleo venezuelano, e a Rússia pronta para fazer o que não conseguiu enquanto União Soviética - pôr os pés no quintal americano. Tudo isso, claro, em nome dos mais nobres valores dos direitos humanos, condoídos pela crise humanitária que assola os venezuelanos, como no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque...

11 de janeiro de 2019