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quarta-feira, 17 de abril de 2019

Joaquim L. [retratos feitos de memórias]

Enredado na teia da rotina, mais por comodismo (ainda que incômodo) que por falta de tempo, vou adiando o café, a cerveja, o encontro com algum amigo ou amiga para depois de amanhã, para semana que vem, mês que vem, para sabe-se lá quando (mas será!), até que uma notícia vem me lembrar que o fio que nos liga à vida é tão frágil quanto o fio com o qual tecemos nossas relações.
Conheci Joaquim antes de ele me conhecer - e a recíproca é verdadeira. O fio que nos unia era a Misson - que dizia que  casaria com Joaquim, se ele já não fosse casado (e fosse um pouco mais jovem). Foi no velório da Misson que o conheci pessoalmente, em meio a lágrimas e numa confusão de nomes que eu ouvia falar com rostos que eu havia visto pelo Facebook, sem que eu conseguisse ligar exatamente quem era quem. Pouco depois, por conta de meus textos, passamos a ter contato, por internet seguidamente, pessoalmente esporadicamente a partir de março de 2016, quando ele foi ao lançamento do meu livro sobre nossa amiga. Deram certo os cafés marcados por ele: mais experiente, talvez soubesse que a vida vive sob o espectro da morte e não tem porque ficar adiando os pequenos prazeres da existência, como uma boa conversa - e Joaquim era bom de conversa e ainda tinha o artifício de sair antes do papo esfriar, deixando aquela vontade de encontrá-lo novamente. A última vez que conversamos sobre marcar um encontro, fui eu a sugerir: falou que pretendia comprar meu segundo livro em janeiro, quando liberaria o orçamento, propus entregá-lo em mãos, em Peruíbe, para onde tinha se mudado havia pouco. Janeiro passou, fevereiro também. Pensei que poderia ir logo depois do carnaval, assim que eu recebesse as cópias do terceiro livro; recebi, ficou para outra hora, quem sabe semana que vem. Ou na outra. Ou nunca mais.
Joaquim era um cara engraçado, com muitos causos - Misson me contava vários deles. Era também alguém com uma boa cultura geral, aliada à visão crítica do mundo; tinha lado, consciência de classe e senso de até onde valia a pena se estressar por algo. Era calmo, e conseguia um impressionante equilíbrio entre não comprar briga e não ficar quieto. Da última vez que nos encontramos, ainda antes da eleição, andava amargurado com os rumos tomados pelo país, pelo Metrô - tanto que tratou de sair quando pode -, sem que se tornasse amargo por isso. Se aposentou, porém não parou nem achou que o futuro estava acabado, era só esperar a morte: foi morar na praia, e enquanto se ocupava dos pequenos afazeres do dia a dia, como pequenos consertos, mantinha o sonho de morar no interior - Cunha era uma cidade que gostava muito. Quando soube do seu acidente - caiu quando consertava o telhado de sua casa - não quis acreditar; quando vi que era verdade, quis crer na sua recuperação - lembrei que ainda quero lançar o livro com textos da Misson, achei que era hora de me agilizar, pensei que poderia conversar com ele sobre, para me ajudar, ainda que dissesse que não era bom em pôr as coisas no papel -; quando soube do seu falecimento percebi que ainda que não fosse um amigo próximo, era um amigo muito querido. 
Quando Misson faleceu, passei dois anos tentando acreditar que após a morte deveria haver algo - buscando sinais dela, vindos de não sei onde. Certa feita sonhei com a despedida de Joaquim (que era Lagares, Ian e Misson ao mesmo tempo), subindo uma escada e se perdendo no pôr-do-sol. Quando meu pai faleceu, desacreditei de tudo. Mas... se eu estiver errado, certamente Joaquim está agora em boa companhia, contando seus causos para a Misson, os dois se divertindo, como na época do Metrô.


17 de abril de 2019.

domingo, 10 de maio de 2015

Marilda G. [retratos feitos de memórias]

Não sabia perdoar. Assim como não sabia esquecer. Não sabia porque não queria. Não queria porque apesar de passado, é dessa matéria do tempo (ou seria da mente e dos afetos?) que se reconhece no presente. Não queria esquecer a infância de dificuldades, do labuta árdua do pai, do esforço da mãe, da maçã dividida entre as seis irmãs, do trabalho de bóia-fria em plantação de batata de japoneses, nas férias. Não esquecia também porque não eram lembranças ruins. Não queria esquecer a ascenção social que teve, a qual foi fruto de muito trabalho - mas também não queria esquecer que chegou aonde chegou por sorte: metade de suas irmãs não tiveram a mesma oportunidade, estancaram na rabeira da classe-média. Não esquecia das ajudas recebidas, tampouco esquecia das desfeitas. Mas não é por não esquecer que não sabia perdoar. Não perdoava porque para perdoar é preciso se achar superior à pessoa que merece o perdão, e ela não conseguia ver qualquer hierarquia existencial que justificasse superioridade ou inferioridade - não havia ninguém a perdoar, nem a pedir perdão. Não oferecia a outra face: evitava brigas, mas se se visse compelida a entrar numa, entrava para brigar. E passada a briga, passado o tempo - esse que pode ser cura, mas pode ser um lento veneno -, não alimentava revanchismo, dispensava ódios - não por perdoar, nem por esquecer, mas por saber distinguir presente do passado, por entender que apesar do tempo que sedimenta em nosso ser, somos dinâmicos. E num mundo onde as pessoas se vêem como vítimas do passado, como credores do bem-estar dos próximos e dos distantes, ela não faz esse tipo de leitura, de cálculos - e muitas vezes se pergunta se tem algo de errado consigo, por não cair nesse pensamento viciado de tantos que se dizem cristãos. E então lembra que para esses, ela poderia ser taxada de otária, por deixar o passado enquanto passado - mas prefere assim a mudar. Teimosa? Nesse aspecto, bom que seja. E a humanistas ingênuos, como este escriba, causa admiração: se a mão que outrora a apedrejava agora pede ajuda, não nega nem cobra: acolhe. E nessas horas eu me pergunto: quantos tem não apenas coragem, como dignidade de fazer isso?


10 de maio de 2015.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Frida K. [retratos feitos de memórias]

Quando penso em sons da minha infância, há dois que me marcaram muito. Um deles é o de uma serraria que ficava a uns sessenta metros da minha casa (ao lado dela havia um terreno baldio com pínus, onde eu pegava pinhas para brincar de jogar embaixo dos carros). Aquela serraria, na minha memória, barulhava o dia todo, só dava um intervalo na hora do almoço (assim como os mercados, fechados do meio-dia às duas). O outro som é o de algazarra de crianças no meio da manhã, no recreio da escola que ficava na esquina da minha casa. Frida K. era sua dona. Ela imigrara da Áustria para o Brasil no entreguerras, quando jovem. Migrara para Pato Branco com seu marido quando jovem era a cidade. Mais do que simplesmente uma das pioneiras da cidade, foi organista da igreja matriz, professora de piano e fundadora da segunda escola da cidade, em 1954, que funcionava nos porões da sua casa. Casa na qual entrei poucas vezes, geralmente com minha mãe - numa delas até dedilhei qualquer coisa no piano. Recordo de uma vez ter ido sem minha mãe, se bem lembro, foi também a única vez que fui até a varanda, que dava para os fundos do terreno - o pátio da escola abaixo. Ela havia ido passear em sua terra natal, Viena, e na volta trouxera um presente: uma bola de assoprar, tipo bóia de piscina infantil. Brinquei bastante com ela, mas uma coisa me deixara intrigado: se ela havia ido para a Áustria, por que havia um "Made in China" na bola? (Eu era pequeno e o mundo era outro). Às vezes, de casa, ouvia ela tocar órgão. Mais comum era escutar seus alunos tocando piano quando passava em frente da sua casa. Mais comum ainda era encontrá-la na janela, olhando o movimento da rua. Com o tempo ela foi ficando com a memória recente prejudicada. Encontrei-a uma vez na janela, como de costume. Aquela vez parecia pensativa, olhava para longe, como se tentasse enxergar algo faltante. A cumprimentei, ela encetou conversa. Falou de como Pato Branco havia crescido, brevemente comentou como era antigamente, concluiu com um reticente "é... Pato Branco cresceu...", suspirou, olhou em direção ao centro, aquele olhar distante, e recomeçou a mesma história, exatamente igual. Se repetiu ainda outra vez, antes de eu me despedir e seguir para casa. Ainda não estava assim quando sua escola foi vendida pelo filho e mudou de endereço. Assim estava quando a casa foi vendida a um desses "homens do progresso" da cidade (que encheu as burras com especulação a imobiliária agressiva contra a urbe), no início deste século, que no lugar construiu um prédio - batizado de Residencial Dona Frida, veja que homenagem! Pato Branco deixou de existir para mim nesse momento - e Frida K. ainda viveria quase dez anos mais, se aproximando do centenário. Hoje sonhei que carregava tábuas da madereira da serraria para a casa dos meus pais - era para construir uma estante pros meus livros, e eu era o eu de hoje. Ao atravessar a rua que dava na casa da dona Frida, vi que ela estava numa janela da lateral da casa - que, na vida real, ela pouco freqüentava, por ser alta e numa rua de menos movimento de pedestres -, o olhar melancólico em direção ao centro da cidade (melancólico é um termo que não lembro de poder empregar para ela). A casa já estava pintada de verde, os novos moradores terminavam de arrumar sua mudança, já não havia nada da dona Frida lá, a não ser a própria, esquecida, contemplando uma última vez a cidade do seu canto, como fizera por cinqüenta anos. Ao acordar, lembrei da cena de Frida K., presa ao passado pelo Alzheimer, a repetir "é... Pato Branco cresceu..."


São Paulo, 01 de agosto de 2014.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Jorge C. [Retratos feitos de memórias]

Reconheço que eu possuía um pouco de preconceito com historiadores da arte. Conheço alguns alunos tranqüilos, fazem sua pesquisa, não se acham nem mais nem menos por isso. Conheço outros, em compensação, que arrotam em francês, tão finos e cultos são. Conheço professores assim também - que aliviam um pouco essa postura, passado o contato inicial. É certo que conheço alunos, professores e profissionais de outras áreas do conhecimento que agem do mesmo modo, mas meu foco agora é em história da arte. Ainda que não achasse que todo historiador da arte seria um chato-prepotente, estava sempre preparado para me deparar com um desses. E foi com esse preparo que entrei na sala de aula para assistir ao curso de história de arquitetura um, com o professor Jorge C. Ele havia lecionado na França, escrevia livros (eu havia lido um, bem introdutório), escrevia em jornal. Imaginava que aprenderia muito nesse curso, apenas precisaria tolerar seu mau humor em ter que dar aula para um bando de adolescente de dezessete, dezoito anos. Logo na primeira aula, me dei conta de que me equivocara: qual não foi minha surpresa ao ouvi-lo dizer sobre o quanto gostava de dar aula para calouros - e não era só uma forma de tentar ganhar os alunos, era perceptível seu ânimo, durante o curso todo. Mais: chegou a propôr uma excursão para Paris: aulas de história da arte sem slides, direto na fonte: nas ruas, nos museus da capital francesa (não aconteceu, por desorganização nossa, dos alunos). Apesar de eu não ter mais dezoito anos, sabia tanto ou menos que meus colegas, e aprendi bastante (esqueci boa parte, mas isso é outra história) sobre arquitetura greco-romana e um pouco mais. Mas o que mais aprendi foi ver como aquele homem que poderia se pôr no alto de um pedestal e só dar aula para pós-graduação, assumia que aula para primeiro-anistas não era nenhum rebaixamento, e que a possibilidade de erro, típico da ousadia jovem que ainda não tem o traquejo de mundo, traz junto a possibilidade de descobertas inusitadas e que, como os versos de Pessoa que tanto gosto, "é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,/Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,/E nada que se pareça com isso devia ser o sentido da vida...". Dias atrás li um artigo seu sobre um concerto. Seus cabelos eram brancos e não desbranquearam nesse ínterim, como não mudou seu espírito jovem: não rejeita um programa confortável e sem surpresas, conduzido por um regente escolado, porém não deixa de prestigiar jovens orquestras e jovens maestros, em uma récita sujeita a erros - parece, inclusive, preferir estas.


São Paulo, 29 de julho de 2014

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Mariana D. [retratos feitos de memórias]

De família classe-média conservadora, Mariana D. abandonou consultório, carreira e o futuro "natural" que esperavam para ela - algo próximo do se formar, comprar um carro, casar, ter filho, comprar uma casa, comprar um lote no cemitério - por uma aventura tida por irresponsável. Abdicou esse futuro honroso por um presente que sua família provavelmente não hesitaria em classificar como pertencente a vagabundos e maconheiros, pessoas indignas e perigosas: foi virar artista de rua pela América Latina - andarilha junto com dois rapazes que conheceu nas esquinas da sua cidade. Claro, a enorme coragem de trocar o futuro medíocre que gostariam que ela aceitasse por esse presente rico de experiências e riscos a tornou assunto principal nas reuniões de família. "Quer saber? Não me importo se estou sendo aprovada ou não: sei que sou capaz de assumir minhas escolhas, e toda esta minha experiência tem sido enriquecedora e destruidora de preconceitos", me disse, certa feita, mostrando que sua aventura era decisão de uma pessoa madura - a vida é assim mesmo. De vez em quando coloca em seu Facebook fotos e indicações do seu percurso: onde está, de onde veio, para onde vai - na última estava a caminho do Equador. Nas fotos parece transpirar alegria por assumir o controle da sua vida. À sua família, resta a vergonha e a insegurança, culpam eles essa mulher ingênua que teve coragem para buscar a si própria na liberdade. Mamãe, mamãe, não chore.

São Paulo, 10 de julho de 2014.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Dejanir D. [retratos feitos de memórias]

O diagnóstico de um tumor caiu como uma bomba, como um atestado de óbito: aqui jaz Dejanir D. Entre lamentações no futuro do pretérito e o não se conformar que, mesmo fazendo exames periódicos, não tivesem pego a doença em seu início, se deu conta de que a única coisa que lhe restava era não desanimar e encará-la. Saiu da sala de cirurgia sem forças, a ponto de ter perdido a voz - sussurrava. No hospital, pensou e repensou a vida, mergulhou em memórias, deixou aflorar sentimentos e ressentimentos. Assim como aprendeu que não adiantava se lamentar do que poderia ter sido mas não seria nunca, expurgou também ressentimento que carregava consigo há décadas: era o presente, o efêmero e fugaz presente o que ele tinha - e a ele se agarrava. O passado? Como lembrança e não como um peso. O futuro? Como esperança, não como fuga: pois se quisesse viver não podia fugir. Vieram os tratamentos, os efeitos colaterais, e ele insistiu com seu dia-a-dia, seus negócios, seu interesse por política e relações internacionais. Veio a cura. Um ano depois, a volta - da doença. E ele insistiu com seu dia-a-dia. Mudou alguns hábitos, é certo (nem todos para melhor), por causa do câncer, mas tais mudanças serviam como afirmação da vida: que venha a doença, mas ela que se insira em seu quotidiano, porque viver para ela seria admitir que ela é mais forte. Semana passada, ainda que meio enjoado, discutia a crise na Ucrânia.

São Paulo, 19 de junho de 2014.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Gyorgy L. [retratos feitos de memórias]

Ele bem tentava ir contra sua classe. Criado em condomínio fechado, tendo estudado em boas escolas e universidades particulares, havia feito uma série de bicos para viver por conta própria e por fim se estabilizara num emprego do qual não gostava, não pagava bem, contudo o suficiente para pagar as contas e sem as cobranças de uma empresa mais comprometida com resultados. As intenções podiam até ser boas, mas o resultado deixava a desejar: com as costas quentes de poder pedir ajuda para a mãe (que o ajudava mesmo quando não pedia), apenas brincava de pobre e fingia se rebelar contra a condição social na qual crescera - algo típico em muitos alunos de ciências humanas durante a faculdade, que ele prorrogava para depois de formado. Como é comum nesses alunos, cobrava dos outros adesão a suas teses, tanto da vida teoricamente simples e sofrida - apesar de morar nos Jardins -, quanto da sua pretensa liberalidade nos costumes. Mas não fazia abertamente, como os alunos: sabia ser sutil e criticar normativamente sem parecê-lo, fazendo com que seus interlocutores se sentissem culpados do que faziam - ele e sua namorada eram experts nessa arte. E mais do que se manter nessa vida ilusória de proletário, insistia numa visão absurdamente idílica das classes pobres: aplicava aos desvalidos o mito do bom selvagem com tamanha ingenuidade que era de se perguntar se fizera mesmo faculdade de filosofia. Claro, os desvalidos são pessoas distantes, como sempre foram, fosse quando morava em condomínio, fosse quando estudava na faculdade - um benevolente ente abstrato que sofre as agruras do abstrato capitalismo perverso. Discutia política, os assuntos do momento, acreditava na revolução, falava em construir um mundo melhor - amanhã. Sempre amanhã. Porque quando a realidade se opunha ao seu mundo idealizado, à sua imagem de proletário sofredor, fugia como se não tivesse responsabilidade alguma: era o mundo que era mal, como poderia ser ele culpado de qualquer coisa? O mesmo valia para suas relações próximas: se o desagradavam, se afastava, como se nunca tivessem sido amigos, namorados, pessoas íntimas, o que fosse: com isso colecionava uma série de desafetos, causados por sua omissão e descomprometimento. Mesmo nesses casos ele seguia se vendo como a vítima.

São Paulo, 20 de março de 2014.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Joana C. [retratos feitos de memórias]

Nunca fomos amigos. Fomos colegas alguns anos - não sei precisar quantos. Lembro que por um período não simpatizava com ela, creio antes por brigas entre grupos - fundão contra frentão e vice-versa - do que algo pessoal. Não consigo lembrar quem era do frentão quem era do fundão - porque eu por vários anos fui do fundão, um fundão heterodoxo, que exigia silêncio e tiravas notas boas, mas fundão. Além das antipatias de grupos, achava ela uma guria sem graça fisicamente, mirradinha. Mudei minha opinião ao reencontrá-la, anos depois, quando já não morava em Pato Branco: tinha uns olhos, um olhar muito bonito. Um amigo se surpreendeu que eu nunca tivesse reparado - acho que se embelezou com a idade, foi isso, eis o que respondi. Até ontem, a última notícia que havia tido dela era uma matéria do jornal da cidade, que meus pais guardaram para que eu visse. Falava de Joana despontando como artista, escritora e agitadora cultural em Curitiba. Fiquei contente por ver alguém saído daquela cidadezinha de pequenez classe-média fugindo dos caminhos certos e seguros, tentando agitar uma cidade também classe-média, mas com mais gente. Anotei o blogue ou site que havia na reportagem, planejava visitá-lo e, quem sabe, chamá-la para participar da Casuística, a revista de artes antiartes e heterodoxias que eu agitava. Não entrei em blogue algum nem fiz qualquer convite. A revista acabou (há promessa de uma última edição, a de 2013), desvitalizada com a perda da co-editora e minha melhor amiga (também uma agitadora cultural), a Patrícia Misson, vítima de um ataque cardíaco, aos vinte e oito anos. Descobri ontem que, ainda que a Casuística retorne qualquer dia, não haverá convite algum para Joana: como Misson, ela morreu jovem, quando ainda dava seus primeiros passos (nem por isso pequenos e descartáveis) e ensaiava grandes realizações futuras: parada cardíaca aos trinta e um.

São Paulo, 19 de março de 2014.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Larissa S. [retratos feitos de memórias]

Conhecia os cinco continentes, ainda que não considerasse passar uma semana em Bali como ter conhecido a Ásia. Achei curiosa sua noção conhecer: não que não fizesse mochilões, mas sabia que bater o pé em uma cidade, sem sentir minimamente o aroma do seu quotidiano, não era conhecê-la. Havia ido em trabalho voluntário para Botsuana. Havia trabalhado no Grajaú. Destinos que chocam o interlocutor, quando se sabe que ela estudou nas melhores e mais quadradas escolas da capital - imagino, então, as pessoas próximas, mais afim aos valores que tais escolas ensinam. Ao fim do ensino médio, sem idéia do que fazer ou do que gostava, seguiu uma carreira tradicional em uma faculdade tradicional, como a grande maioria dos seus colegas - administração na FGV. Só depois se deu conta de que gostava de trabalhar com crianças. Fez pedagogia em uma faculdade perto de sua casa. Começou em uma escola bilíngue, por saber inglês; hoje leciona em uma escola socio-construtivista - reconheci minha escola do básico em várias coisas que ela comentou do seu trabalho. Não tem o jeito de "tia", que muitas vezes vi nas estudantes de pedagogia. Não tem o amargor que a grande maioria dos meus amigos que foram ser professores têm depois de menos tempo de trabalho do que ela - talvez por ter tido a sorte de não acabar em uma escola moedora de carne e idealismos, seja pública, seja privada. Bem provável que se tivesse seguido sua primeira carreira, hoje estivesse ganhando melhor do que ganha - ainda que não aparente passar privações. Desconfio que essa mudança de rumo para uma carreira tão desprestigiada não tenha sido tão tranqüila para quem teve o histórico que teve - desde sempre uma aluna bem adaptada. Ela, porém, não contava sua história com o peso dos grandes abandonos. Contava com a leveza das pequenas descobertas. Contava com a tranqüilidade de quem agiu e não só teorizou, enfrentou o mundo, e agora quer dar continuidade à sua mudança. Me lembrou Mia Couto: “Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento”.

São Paulo, 10 de março de 2014.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Olivia V. (retratos feitos de memórias)

Fora assessora de juiz por cinco anos. Concursada em cargo de terceiro grau, comissionada – o desejo de tantos nos dias de hoje. Não consegui saber se tinha sido o desejo dela também, ou apenas estava lá por desejo e pressão do pai, e para seguir o “fluxo normal da vida” pelo melhor caminho – presume-se. Diz que se sentia mal naquele cargo, se dando conta a cada dia mais de que o sistema judiciário servia principalmente para ferrar quem já estava ferrado – ela atuava como homologadora do nosso absurdo status quo. Aproveitou a transferência do companheiro (e seu apoio) para largar tudo e estudar atuação – estava perto dos trinta anos quando fez isso. “Tinha dias que chegava, via aquela pilha de processos e chorava. Eu me perguntava o que estava fazendo da minha vida”. Olhando para ela era difícil acreditar ela em tal situação: hoje parecia uma pessoa tão alegre, tão leve. Quando falava sério, ora tinha um olhar penetrante sem ser duro, ora olhava como se mirasse no tempo, e não no espaço. Quando sorria, seus olhos eram tão expressivos quanto seu sorriso – ela toda encantadora nessas horas. Sua beleza era feita também desse transpirar leveza. Imaginei ela em roupa social, trancada num escritório, uma peça na burocracia judiciária, a comparei encenando a gata da cena que montamos. Mesmo que não consiga ser atriz de sucesso, não consiga chegar perto do salário que teria se seguisse como funcionária do judiciário, sinto que fazia mesmo sentido ela chorar aquela época.

São Paulo, 28 de outubro de 2013.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mariana H. [Retratos feitos de memórias]

Era uma garota toda miúda: um metro e cinquenta e seis de altura, pouco mais de quarenta quilos, calçava trinta e três. Hiper-ativa, estava em mil projetos, confabulava infindas idéias, prestava atenção em tudo. Comunicativa, puxava conversa na rua com uma facilidade que me impressionava, e como uma criança curiosa queria saber onde morava, de onde vinha, o que fazia da vida. Para o futuro, pretendia arrumar um emprego tão logo terminasse a faculdade de arquitetura – no fim do ano –, e começar o curso de audiovisual: queria ser uma artista, uma videomaker. Já ensaiara alguns vídeos e eu me admirava do seu olhar. Ela criticava o excesso de rigor técnico e a falta de poesia dos estudantes de cinema e afins. Um amigo compositor certa vez tentou alertá-la: sem técnica não adiantava inspiração, as idéias não se traduziriam em poesia. Eu sei, mas... e insistiu na sua tese, como uma criança birrenta. Em uma oportunidade questionei como pretendia ser artista e ter muito dinheiro (como dizia ser sua ambição). Trabalho para ganhar dinheiro, faço arte no outro horário. E não teme acabar fazendo vídeos publicitários, sem tempo para se dedicar à sua arte. Será, se questionou, e depois, agoniada: não quero isso, preciso fazer minha arte também! Vou achar um jeito de conciliar. Como disse, eu gostava do seu olhar, dos seus vídeos mais próximos do chão, recortes de detalhes mais ou menos definidos que insinuavam o contexto. Porém temia quão longe chegaria – ou se logo capitularia sua arte – com sua postura imatura frente o mundo. Com um quarto de século e uma pele adolescente (só que sem espinhas), falava reiteradamente em pôr botox quando velha. Eu, de minha parte, torço para que muito antes disso ela aceite as linhas da idade e as marcas do tempo, e consiga conciliar seu sonho de ser artista com a aspereza do mundo.   

São Paulo, 19 de agosto de 2013.