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sábado, 26 de maio de 2018

Ex Africa, Ad Mundo [Diálogos com as artes visuais]

Ex Africa se pretende um breve panorama da arte contemporânea africana, com instalações, vídeos, pop art, fotografias e mais. Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro velho de São Paulo, é uma dessas exposições que ajudam a borrar nosso olhar de conceitos naturalizados - que por serem aparentemente positivos, recusamos o rótulo de preconceito, porém não deixam de sê-lo, como bem descreve Frantz Fanon no livro Pele Negra, Máscaras Brancas
Club Lagos, por onde a exposição começa, mostra videoclipes de música pop nigerianos. Esse brevíssimo apanhado videomusical atesta que na economia-mundo cores locais são diferenciais a serem pasteurizadas dentro de uma estética cosmopolita, embalados em mais do mesmo e aptas para a venda no globo todo. É música nigeriana mas soa quase um funk ostentação paulistano, ou uma Shakira, ou um k-pop - cada um na sua, mas com alguma coisa em comum (como dizia um slogan de cigarro), que o torna facilmente receptível por qualquer espectador adestrado (leia-se, com algum poder de compra para além de víveres básicos) dentro dessa estética global. Ou seja, não cabe um olhar de exotismo à África, como se fôssemos europeus do século XVIII e XIX, complacentes com aqueles seres (humanos?) incultos - para começar que sequer somos europeus. Ali somos convidados a deixar de procurar uma pretensa pureza (infantil) na arte africana e aceitá-la como arte terráquea.
A segunda obra em exposição é a instalação do egípcio Youssef Limoud, Maqam, que trata das ruínas que sobraram após as chamadas primaveras árabes ("ruínas" foi a principal chave que acabei por ler a exposição, mas isso não cabe nesta crônica, quem sabe numa próxima). Mais que a obra, o artista é um belo tapa em muitos, inclusive os carregados de boas intenções - como os politicamente corretos que usam "afro-descendentes" ao invés de "negros" -, que vêem o continente como um "continente negro", mostrando desde o início o quanto o ignoram, incapazes sequer de notar que considerável parte dele é branco - quando não que "a África não é um país" (como canta Emicida) -, e as diferenças entre os países e dentro dos próprios países - diferenças culturais, mas também fenotípica - são imensas [http://bit.ly/cG120619]. Somos ruínas de conceitos errados, errôneos, que carregamos crentes de que são conhecimento, a verdade.
A partir do terceiro andar da exposição, foi minha vez de tomar um doloroso tapa, por acertar no meu preconceito. Em meio a artistas de Zimbábue, Benin, África do Sul, Egito, Nigéria, Gana, Senegal e Angola, eis que surgem artistas brasileiros e ingleses. Estranhei. Logo achei uma explicação: devem ser artistas negros e que tratam de questões pertinentes ao continente, como a escravidão. Tropeço no meu preconceito - que eu julgava livre. Por que precisam ser negros? E porque "questões pertinentes" à África tem que ser escravidão, domínio europeu (e aí não esqueço o exemplo das torturas francesas na Argélia, já no século XX, e que não estão na exposição), pop cosmopolita e não música chaabi ou o som da banda Tinariwen (internacionalmente famosa, mas numa outra chave de apropriação das tradições), a riqueza da sua tradição oral e da sua percepção do mundo (majestosamente descrita (ao menos a leigos como este escriba) por A. Hampaté Bâ no texto "A tradição viva") e a arte que foi criada a partir desse repertório alegre, vivo? E por que precisam ser artistas negros? Talvez sejam, talvez não - isso implica na forma que sua arte é feita, porém não a torna necessariamente mais ou menos legítima. Me recordo do artigo "Seu sofrimento não é como o meu", de Walter Benn Michaels, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil de maio, em que o famigerado "lugar de fala" é usado para negar a possibilidade de alteridade e empatia - do artista e, no limite, também do público, o que, levado ao paroxismo, implica na negação de uma humanidade comum aos humanos, e da própria arte. William Kentridge, por exemplo, é sul-africano e é branco (ele não está na Ex África, esteve na Pinacoteca alguns anos atrás). Continuarei a achar que geografia é destino? Que há um fenótipo oficial para uma região? Negro é africano subsaariano, europeu é branco, e eu, americano, sou um apêndice europeu, cego da minha condição subalterna, preso num narcisismo manco de criança enjeitada pelos pais.
Percebo, então, que a partir das migrações (forçadas) do século XVI, não se pode dizer que a África seja o "continente negro": primeiro porque não é; segundo porque a América é tão negra quanto - os filhos de africanos negros são tão americanos quanto os filhos de europeus branquelos. Recusar que a América é também um continente negro é dar razão aos discursos de extrema direita suprematista de que "os negros devem voltar para seu país". Insistir na África como negra é reafirmar um lugar no mundo que lhe foi fixada no século XVI, de atrasada, exótica, povoada de semigente, seguidora de religiões primitivas, capaz de fazer artesanato, nunca arte, condenada à pobreza, com suas favelas em meio a leões e girafas. E aí cabe aos europeus - e aos que acham que são, a elite colonizada descrita por Albert Memmi - irem salvar esse povo, essa terra, ensinando o verdadeiro deus e os verdadeiros valores - inclusive os artísticos.
Além de um panorama da arte contemporânea africana, Ex Africa reforça a necessidade de pararmos de ver a África como um outro mundo: estamos no século XXI, já foi decidida a questão se negros possuem alma, se muçulmanos são humanos; o mundo todo está conectado e vigiado, regido pela mesma lógica do lucro - e a arte como tentativa de fuga ou de acomodação, de denúncia ou de reforço a essa lógica. A África produz desde pop farofa pasteurizado a potentes obras críticas da sua realidade - que é também, apesar de suas diferenças, a nossa. Seguir ignorando e perder a oportunidade de compreender melhor nosso estar no mundo.

26 de maio de 2018

terça-feira, 6 de março de 2018

O meio sol amarelo de Biafra e o sorriso amarelo da civilidade pela metade no Brasil [Diálogos com a literatura]

Ganhei o livro de uma amiga, que o lera e gostara muito. Não perguntei sobre o que era, agradeci o presente e aceitei a indicação às cegas - como gosto de fazer muitas vezes, na esperança de uma boa surpresa. Os únicos dados que eu tinha antes de começar a leitura de Meio sol amarelo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, eram que a autora era nigeriana e que eu nada sabia da história nigeriana - salvo, por alto, algumas notícias recentes, time caneleiro na copa de 94, petróleo, desigualdade social, caos urbano de Lagos e Hoko Baram.
São quatro partes. A primeira, no início da década de 1960. Percebe-se o contexto de independência nacional, ainda que um tanto alheio, distante. Em uma cidade universitária, em um ambiente que me remeteu ao distrito de Barão Geraldo, onde fica a Unicamp, professores universitários - representantes de uma classe média com boa vontade e pouca autocrítica - discutem a libertação dos povos, a união africana, o fim do racismo, enquanto são servidos por serviçais desprovidos de quaisquer direitos, espécie de cachorros de estimação com a utilidade de limpar a casa, cozinhar e outros afazeres - aqui nestes trópicos conhecidos como a doméstica que não precisa de direitos, se for o caso, nem de salário, porque "é praticamente da família", e que o governo Lula corrompeu esse pilar da família brasileira de bem. Domésticos que apanham por furtar um punhado de arroz, ou escondem restos de frango assado nos bolsos da calça, enquanto na sala os patrões se enlevam em sua superioridade moral e bebem bebidas importadas. Num segundo plano, a alta elite nigeriana, dos negócios com o Estado e com os militares, na base dos dez porcento, com filhos a estudar na Europa, e um discurso não de todo longe dos professores universitários, contudo extremamente pragmático - farinha (pouca ou muita, não importa), meu pirão primeiro.
Até essa primeira parte, estava gostando do livro, contexto que me é algo familiar, mentalidade que lembra a brasileira atual, algum drama familiar se desenhando. Na segunda parte, que passa em fins dos anos 1960, ficou evidente minha ignorância em história recente e, mais que isso, o livro me sugou de forma tal que precisei de dois dias para ler as quase quatrocentas páginas restantes.
O pano de fundo passa a ser então a guerra entre Nigéria e Biafra, entre 1967 e 1970. O segundo golpe de estado nigeriano, as perseguições e massacre dos ibos, a declaração de independência de Biafra e a guerra que se seguiu, com a população do novo país sofrendo sobremaneira - enquanto seus líderes (políticos, militares e empresariais) mantinham relativo padrão de vida, até se cansarem e decidirem fugir para a Europa - com passaportes nigerianos. Procurando mais informações sobre essa guerra, fala-se em um milhão de mortos, ataques militares indiscriminados a alvo civis e bloqueio de ajuda humanitária - alimentos e medicamentos.
O livro não carrega nas tintas escatológicas, como Alá e as crianças soldado, por exemplo, nem adentra muito em um subjetivismo, como Os cus de judas (para ficarmos na África), porém é vigoroso na descrição do dia a dia de fuga e humilhação que a guerra implicou - e olha que os personagens principais, se não foram para os altos escalões de Biafra, tem alguma reserva de dinheiro, contatos importante e um carro, que muito facilita a vida deles. Numa guerra - ainda mais na África, onde a população atingida não é exatamente humana, dessas que geram comoção e revolta nos meios de comunicação de massa do ocidente, e sim negra - , fica claro, não há heroísmo, não há glamour, há apenas decadência - dos corpos e dos "espíritos", da humanidade - e morte - por bomba, tiro, doença ou fome. É um contraponto sensível e enfático ao enaltecimento e banalização da guerra feita pela indústria cultural estadunidense - via filme, jogos e séries, principalmente -, que, ao meu ver, é um dos principais ingredientes para o renascimento fascista neste início do século XXI.
O ritmo narrativo fez com que meu desejo fosse de terminar logo o livro, para que terminasse logo aquela guerra - que parecia sem fim. Não entro em mais detalhes do livro para não prejudicar a leitura de alguém, apenas traço alguns paralelos com a atualidade.
Se na primeira parte vi muita coisa em comum com o Brasil atual, na segunda, guardada as proporções, também vi. Claro, uma opinião baseada na minha posição de observador distanciado: sou branco, classe média, moro na região central - a guerra brasileira acontece nas margens das cidades, da sociedade, nas periferias, nas favelas, no morros, contra negros, "pardos", periféricos, movimentos sociais, etc. Ernst Junger, na década de 1920, um dos primeiros a falar em "democratização" da guerra, graças aos avanços técnicos: para atirar de um rifle no alto de um jipe não é preciso ter mobilidades das pernas, por exemplo. Paul Virilio, na mesma linha dos avanços da técnica, só que no fim do século XX, começa a dissecar ordem mundial atual como uma situação de guerra permanente, sem objetivo específico que não a manutenção da própria guerra. A exemplo do cerco a Biafra, nestes Triste Trópicos, à ação de guerra aberta da Polícia Militar (atualmente no Rio de Janeiro, com exército mesmo) soma-se estrangulamentos econômicos e de subsistência, uma propaganda que diz que a vitória está próxima, ao mesmo tempo que os retrocessos são cada vez mais palpáveis. Se os anos Lula permitiram que o cerco humanitário contra os pobres fosse levantado, os homicídios seguem em crescimento contínuo, e o golpe volta a usar a tática de crime de guerra, de matar a população civil na base das carências básicas. Nada tão ostensivo, claro: o Brasil parece ser um país adepto à homeopatia, ao menos nas questões sociais. Quer dizer, ostensivo, sim, mas não declarado: 60 mil mortes por ano, 78,1 mortes por 100 mil habitantes, como em Fortaleza, é índice de conflito bélico, de guerra - ainda mais quando sabemos claramente o perfil de 90% desses mortos em "combates". Os aplausos de endinheirados à proposta de Bolsomico de metralhar indiscriminadamente a favela mostram o estado da arte dos discursos de ódio ocultos nos ternos bem cortados de Bonner ou no pretenso esquerdismo de Datena.
A diferença essencial entre o cenário brasileiro dos anos 2010 e o de Biafra de 1960 é que lá havia um inimigo e um território delimitado, com um ponto a se chegar - a união nigeriana, com ou sem a população ibo que ocupava os campos petrolíferos biafrenses. No Brasil, territórios se imiscuem - o morador da favela trabalha no shopping dos bacanas, acaba por transitar nas mesmas vias principais - e as funções cumpridas pelas populações "inimigas" não seriam assumidas por "cidadãos de bem e de posses" - lixeiros, seguranças, porteiros, prostitutas, enfermeiras, faxineiros, etc -, de onde o impedimento de simplesmente soltar bombas onde moram e nos trajetos que frequentam essas pessoas "perigosas" que garantem o funcionamento mais elementar da sociedade - quer dizer, cabeças de planilha não conseguem sequer enxergar isso, tamanha sua estultice. Resta o que chamei de doses homeopáticas de guerra, o que também atesta claramente o lado confortável de onde falo: não sofro na pele com toque de recolher não-explícito mas efetivo (111 tiros em 5 homens negros, como canta Jé Oliveira em Farinha com Açúcar) e restrições no direito (teórico) de ir e vir, não tenho parentes assassinados pela polícia em autos de resistência (pelo contrário, parentes que defendem abertamente a tortura e aplaudem toda sorte de violação de direitos humanos e depois ainda vem com papinho de boas energias). Assisto indignado porém sem riscos ao estrangulamento da dignidade humana dessas "populações perigosas", até o ponto onde não aguentam e se revoltam, dando o ensejo esperado para serem abatidas, após ganharem o rótulo de "vagabundos" ou "bandidos". Se meu desejo era terminar logo o livro - que aquela guerra acabasse logo - imagino o que não passa com quem vive sob essa guerra (psicológica e real) brasileira permanentemente, desde que se entende por gente - não creio haver como se habituar a essa situação sem fortes efeitos à saúde mental. Imagino, pela leitura do personagem Odenigbo, que para quem está no meio do fogo cruzado, o presente é um tempo eterno, em que a ameaça de ser atingido não permite pensar em futuro, com tudo o que essa espera desesperançosa implica.
No fundo, a elite brasileira que se julga tão cosmopolita não passa de um arremedo das elites africanas da segunda metade do século XX, um misto de elites nigerianas com a elite sul-africana - preconceito, ódio, servilismo e um exército armado para lutar contra a população do território que julgam sua propriedade.

06 de março de 2018

PS: não sejamos também ingênuos em achar que Europa seja paradigma de respeito a direitos humanos e o que for: a guerra em Biafra ou o golpe no Brasil não aconteceriam sem o know-how e o apoio logísticos dos países autoproclamados civilizados.