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quarta-feira, 9 de março de 2016

Bem-vindo ao senso-comum do espetáculo [Diálogos com o teatro]

As cem pessoas no palco são representativas da cidade de São Paulo, segundo os dados do Censo 2010 do IBGE, em termos de idade, sexo, local de residência, estado civil e cor. São pessoas comuns, estudantes, aposentados, desempregados, taxistas, pesquisadores, pastores, tatuadores, gays, héteros, negros, pardos, amarelos, brancos, direitistas, esquerdistas, cristãos, ateus, umbandistas, espíritas.
Estão no palco do Theatro Municipal de São Paulo por conta do espetáculo 100% São Paulo, do coletivo berlinense Rimini Protokoll - formado por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel -, e em cartaz por conta da terceira Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Antes do espetáculo, ao ler o programa, a idéia parece boa e a expectativa é grande. Ao fim, resta a decepção e a impressão de que a boa idéia foi mal desenvolvida. Após um tempo, concluo que a peça é fiel ao que se propõe, e não poderia esperar nada além de um medíocre reality show. O paralelo com reality show vem da diretora do Goethe-Institut, responsável por trazer a companhia, ao comentar na apresentação do programa que "o resultado é a encenação de uma demografia metropolitana em forma de 'reality show'" - se eu tivesse lido o programa antes, não teria perdido meu tempo no Municipal. Ela é precisa: 100% São Paulo é uma franquia a la Big Brother - a diferença é que o produto da Endemol é para a televisão, e o do Rimini Protokoll para teatro -, replicada em várias partes do mundo e, desconfio, em todas registrando o senso comum mais rasteiro. Talvez se aqui em São Paulo houvessem apresentado 100% Filadélfia ou 100% Atenas ou 100% Taipei, dando ao público a possibilidade de contrapôr suas concepções com outra cultura, poderia ter causado um impacto maior do que um entretenimento de segunda linha. Segunda linha, inclusive, esteticamente - um eficiente e convencional modelo inspirado em programas de televisão.
O início é interessante, as pessoas se apresentam rapidamente, e apresentam o objeto que carregam e que as representa. A seguir, distribuem-se pelo espaço conforme as cinco categorias - um telão ao fundo mostra imagens de cima, que ajudam a visualizar a estatística da cidade. Parece uma aula de geografia animada - e sem questões relevantes, como nível de renda, de endividamento familiar, de ocupação, de acesso a serviços essenciais de qualidade. Ainda assim, cresce a expectativa que depois disso o espetáculo perca esse ar de tele-aula e venha a dramaturgia. Não há vem: o início é o que há de melhor. 100% São Paulo lembra o quadro Tentação do Programa Silvio Santos, em que as pessoas precisam escolher uma das portas que acham conter a resposta correta. No caso de 100% City, as pessoas se distribuem entre o grupo dos "eu sim" e do "eu não", sem que haja resposta certa e prêmio ao final. Longo tempo assim, e muda-se a forma de resposta, primeiro para uma opção de quatro opções pré-determinadas e representada por cores, a seguir para o levantar a mão. Ainda que esse tipo de questionário não abra possibilidade de maiores reflexões, poderia ao menos haver perguntas boas. Não é o caso. O caso aqui é entreter e dar ao distinto público do Municipal a impressão de que poderiam ser eles no palco. Tanto é que muitas das pessoas da platéia também participam, comentando com seus companheiros se sim ou não, ou levantando a mão.
Ao contemplar as respostas dos selecionados, descubro que o ex-PM e atual taxista é a favor da redução da maioridade penal, que o pastor evangélico é contra o aborto, que o patinista gay da Mooca é contra bolsa família e cotas nas universidades, contrariamente ao negro morador do Capão Redondo. Em suma: descubro o que se sabe ao andar por São Paulo, ou ao ler qualquer levantamento de instituto de pesquisa.
Em algumas das brevíssima apresentações que cada uma das pessoas faz de si no início, há indicações de possibilidades que o trio alemão passa ao largo. O ex-PM e taxista, por exemplo, mostra uma foto da sua turma da polícia: segundo ele, dois viraram bandidos, três foram assassinados. Talvez na sua história de vida fosse possível compreender o que o leva à posição de favorável ao porte de armas e redução da maioridade penal - compreender não para ser favorável, mas para não reforçar a polarização que hoje se vê em todo o mundo, do Brasil de coxinhas e petralhas aos Estados Unidos de Trump versus Sanders, passando pela Europa que não sabe se reafirma a civilização ou adere de vez à barbárie. Mas o que os diretores oferecem é apenas uma resposta simplista que reforça preconceito e estereótipo, e causa indignação do casal ao meu lado.
Admito nunca ter me interessado por reality show, e o pouco que vi achei descartável, inclusive como entretenimento; e que tele-aula tampouco me empolga (ok, andei assistindo a uns documentários na TV Escola que gostei, e muito!). Mas não é por isso que 100% São Paulo é fraco. Da possibilidade de sortear trajetórias de vida para serem narradas ao público, de contrapôr visões divergentes de duas ou três das cem pessoas em assuntos polêmicos, de causar estranhamento e mesmo tensão nos participantes ou no público, tudo isso é descartado em favor de um medíocre reality show cara-a-cara, que força identidades precárias - sou palmeirense, sou corinthiano, sou vaidosa, sou da paz, sou da zona sul, da zona leste -, aguça egos e nos oferece uma amostragem do que pretensamente opina o paulistano - não digo pensa porque as respostas "sim" e "não", salvo quando muito bem trabalhadas, não autorizam reflexões nem maiores pensamentos. Ao fim, o que há de mais profundo em todo o espetáculo são os objetos trazidos pelas pessoas.

09 de março de 2016.

O melhor momento da peça, quando cada um representa o que cada um costuma estar fazendo em determinada hora.