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quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Não há inocente em Aquarius [Diálogos com o cinema]

Faz alguns dias, ouvia no rádio reportagem sobre o Parque Augusta, uma área no centro de São Paulo disputada entre a incorporadora Setin e a população - que por não pagar publicidade nos meios de comunicação não tem direito de ser chamada de "sociedade civil", como acontece com interesses de empresas e sindicatos patronais. Em algum momento da reportagem, o dono da incorporadora dizia que estava certo do seu empreendimento, porque “o Brasil não é uma Venezuela”, “uma república bolivariana”, e que aqui se fazia “valer a lei”. Esqueceu de explicar qual lei, mas era claro que se tratava da lei da grana, que dá ao senhor Setin não só o poder de comprar o terreno na Augusta, como de comprar vereadores e prefeitos (Russomano deixou claro, no primeiro debate, que sua política urbana é liberar geral para as empreiteiras), juízes e toda a justiça, se preciso for. A lembrança do Parque Augusta e da fala do Setin me veio por conta do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, selecionado para o Festival de Cannes. Um filme que tem sido muito comentado, bastante por conta de seu protesto, no festival, contra o golpe em curso nestes Tristes Trópicos, e da retaliação do governo golpista via indicação etária (devem ter argumentado que aparecem cinco peitos, uma boceta e dois pênis), mas que merece todas as indicações recebidas pela qualidade excepcional enquanto filme: o cuidado nos detalhes, a qualidade do enredo, as atuações convincentes, a maravilhosa trilha sonora e sua presença ativa na construção da narrativa (destaco a caracterização dos anos 80, no inicio do filme, nas roupas e na própria matiz das cores do filme).
O enredo de Aquarius é singelo: a disputa entre uma construtora (Construtura Bonfim, até rima com Setin) e uma moradora que resiste, por questões afetivas, a vender seu apartamento na praia de Boa Viagem - todo o resto do prédio está desocupado. Está dado, logo na apresentação do embate, o seu final: Clara (Sonia Braga), a moradora, não tem chances, e passamos duas horas e meia a esperar por onde virá o desfecho óbvio.
O corte de classe do filme é o mesmo das novelas das nove da Globo: a classe alta e seus serviçais. O jovem empreiteiro quer mostrar serviço, não por estar na berlinda em seu emprego - é neto do dono da empreiteira -, tão-somente por uma questão de ego, de vaidade; e apesar de entrar no estereótipo de vilão global - o perverso bonitão - é um sombrio retrato da geração que desponta: formado no exterior, cinicamente simpático, sem escrúpulos para alcançar seus objetivos e sem qualquer outra preocupação que não seu sucesso, contabilizado em lucros e em aparições na grande imprensa. Perversão e capitalismo - certa hora do filme me veio essa associação, bastante óbvia, eu sei. Clara, por sua vez, não é uma pobre-coitada assediada pelo vil metal: possui outros cinco imóveis (daí ela poder recusar sem dificuldades generosas propostas da construtora), carro importado, empregada doméstica, e seu círculo de relações inclui pessoas que muito podem por muito saber - e parte do que sabem pode ser repassado mediante alguma gratificação. Não há inocentes em Aquarius - ou talvez haja: os serviçais e desfavorecidos, tanto a doméstica que trabalha para Clara, que acredita fazer parte da família, quanto os jovens negros e de periferia que entram para um exercício de relaxamento onde só há gente branca, causando mal-estar pela sua presença. Por sinal, as questões de conflito de classe surgem esporadicamente no correr do filme, em geral em forma de estocadas diretas e bem postas.
Trata-se de um filme violento, do início ao fim, e nisso me lembra Elefante, do Gus Van Sant, só que sem matança no final: violência simbólica e quotidiana, que preferimos não ver, fingimos ignorar, ou mesmo naturalizamos a tal ponto que sequer enxergamos nisso violência - alguns talvez até achem fraqueza de caráter daqueles que sucumbem a ela. Se em Elefante sabíamos que toda aquela violência simbólica seria coroada com um massacre, em Aquarius, tememos pela integridade física da protagonista, porém sem saber de onde virá o tiro - e quem leu Dance Dance Dance, do Murakami, talvez note a falta que faz (ao menos em Recife, ao menos até 2014) uma Yakusa, um crime organizado mancomunado com o Estado e o capital a realizar a tarefa que a polícia é impedida por lei. Apesar que no caso de Aquarius apelar para a Yakusa seria dar muito à vista, e Clara possui capital econômico e simbólico que a deixa imune de uma violência assim tão descarada - é preciso, portanto, violentá-la por várias maneiras, que não dêem muita bandeira.
A força da grana, que destrói e constrói coisas belas, como canta Caetano, em Aquarius é apresentada em outro nível, em sua força para corromper: corrompe caráter, formação, relações familiares, corrompe a integridade emocional, corrompe a liberdade - todo empecilho ao livre crescer do capital autoriza o uso de violências. Foi nisso que o filme mais me agrediu: me vi espectador de minha própria miséria, no sentido de carente de direitos, por não ter um Estado que me garanta vida digna, nem uma justiça que me proteja em meus direitos, nem dinheiro o bastante que me dê relativa imunidade às arbitrariedades que esse Estado e essa justiça permitem (quando não praticam diretamente) - e olha que estou muito bem colocado na sociedade brasileira, estou anos-luz de quem mora nas periferias e via a democracia ainda como possibilidade futura.
Sim, há um momento catártico no final, porem uma catarse tão inócua que perde sua força no instante seguinte: o que resta é a sensação de desastre, de derrota. Niilista mas necessário, saio da Sala Olido em busca de alternativas - que o filme não aponta.

4 de setembro de 2016