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sábado, 6 de maio de 2017

A negação como condição da afirmação política (ou, sobre pertencimento e afetos políticos)

Ouvi em entrevistas do professor Vladimir Safatle e do rapper Mano Brown que um dos principais - se não o principal - afeto político de hoje é o medo. Construído por uma mídia conservadora sob medida para partidos políticos conservadores, não é de surpreender que a direita saiba fazer bom uso desse afeto - bom aqui no sentido de uso eficiente e não de uso nobre.
Em dado ponto dessa construção política a partir do medo temos o discurso da segurança. Avançando um pouco e temos o "Rota na rua" malufista, repetido por Genoíno, em 2002; mais uma volta no parafuso conservador e encontramos o "quem não reagiu está vivo", com o qual Geraldo Alckmin legitima tribunais de rua e execuções sumárias extra-judiciais por parte de seus subordinados; descambamos, enfim, na extrema-direita de Bolsonaro, Dória Junior (cria de Alckmin), Dallagnol, MBL e que tais, em que o medo e a reação a ele se transformam em ódio aberto, declarado, estimulado, louvado - explicitado na negação do outro como ser humano, passível de tortura e todo tipo de desrespeito. A eleição de um objeto de ódio gera uma sensação de cumplicidade, camaradagem, pertencimento: afetos perdidos com a modernidade e a decadência da comunidade em favor da sociedade e aprofundado pelo discurso do medo generalizado, que apresenta o homem como lobo do próprio homem.
Isso me veio à mente durante a mesa-redonda organizada para o coletivo de formação do Serviço Pastoral do Migrante. Um ponto bastante acentuado foi a questão de pertencimento, seja do quanto o migrante - temporário ou "permanente" - está ligado à sua terra de origem, quanto dos possíveis novos enraizamentos, formados a partir de laços comunitários, e da rede de acolhida, ajuda e cuidado que a idéia de comunidade enseja. Também foi dito, na fala de Verena Glass, da Fundação Rosa Luxemburgo, sobre o bem viver, que além dessa rede de cuidado (que aponta não como projeto para o futuro, mas num fazer-devir presente), o bem viver seria a negação, o embate com a "monocultura colonial" (expressão assaz feliz) imposta desde os países centrais e papagaiada com entusiasmo nas periferias, como pelas elites destes Tristes Trópicos.
O bem viver como negação me fez lembrar de "Operário em Construção", poema de Vinícius de Moraes, assim como da formação do sujeito conforme a psicanálise, que se dá a partir da negação da criança àquilo que lhe é imposto pelo outro, abrindo caminho para se afirmar como sujeito desejante.
Ainda que muito distantes, a negação do outro da extrema-direita e a negação da monocultura colonial do bem viver me parecem ter em comum tanto um desejo de pertencimento quanto um desejo de se afirmar como sujeito. O ponto talvez esteja em como esses desejos são manuseados em função do projeto político de uma sociedade futura. 
De um lado, mobilizados a partir do medo, o discurso do ódio a garantir limites aparentemente firmes (e tranqüilizadores) entre quem é da comunidade, de confiança, quem é o invasor, perigoso, e afirmar (falsamente) a existência do indivíduo enquanto sujeito no comportamento gregário, no assujeitamento à comunidade (ou ao líder que representa essa comunidade), que passa a ser encarnado como desejo próprio. Manter a ordem e negar qualquer dissenso é a garantia de coesão - não pensar autonomamente e nunca se questionar são as condições fundantes para seguir firme nessa senda.
Do outro lado, ainda que também apelando ao medo, mas principalmente ao medo que traz construir coletivamente um devir que não se sabe o que será (a frase é redundante, mas necessária a estes tempos de "museu do amanhã"), a partir de uma multiplicidade de desejos (de sujeitos), a idéia de pertencimento é menos automática - não há um dentro e um fora bem delimitado. Daí, provavelmente, uma das dificuldades em trabalhar a questão da negação - necessária para afirmação do sujeito -, ficando ora em pontos genéricos, abstratos - como a negação do neoliberalismo -, ora numa negação que nada engendra - o "contra burguês, vote..." -, ora em bodes expiatórios, reduções grosseiras de problemas mais amplos - há sempre um nome da vez, já foi Garotinho, Malafaia, Feliciano, agora é Bolsonaro e Doria Junior -, que servem para catarse, muito pouco para política.
Encerro minha divagação com algo dito por Chantal Mouffe em entrevista ao Le Figaro e reproduzido no site O Cafezinho [http://bit.ly/2sMlhnu]: diz a pensadora que a esquerda muitas vezes é racional em excesso, sendo que política também é feita de afeto, e termina por defender um certo populismo de esquerda, que vise não a exclusão do outro, mas a valorização da política enquanto esfera agonística. Talvez um ponto a se pensar e discutir seriamente seja como trabalhar essa negação necessária, essa criação de um "nós" oposto a um "eles", de modo outro que feito até agora, uma negação que não seja meramente reativa, muito menos que leve à negação do outro enquanto ser humano e abra caminho para o ódio. Uma negação que consiga marcar como "eles", como proscrito, não pessoas, mas práticas, discursos e valores que desumanizam homens e mulheres, uma negação que abra caminho para diversas e contraditórias afirmativas, em que o medo do devir, esse desconhecido que povoa o futuro de tudo e de todos, estabeleça a identidade e a solidariedade que permitem a vida em sociedade, ao mesmo tempo que impele a mergulhar nele de cabeça, para ver o que de diferente pode surgir daquilo que hoje temos e somos.

06 de maio de 2017.

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Vinícius de Moraes. Rio de Janeiro , 1959

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.