Mostrar mensagens com a etiqueta Brasília. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Brasília. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Brasília: a distopia moderna envernizada

Conheci há dez dias Brasília. Conheci, vírgula: fui do aeroporto até o endereço em que tinha compromisso pela Pastoral dos Migrantes, na Asa Norte. Fiz o trajeto inverso no dia seguinte, e na noite que passei lá, reencontrei uma amiga e fomos comer um lanche em uma das quadras comerciais, ali perto de onde eu estava (a outra vez que eu estivera no Planalto Central, do aeroporto tomei logo o rumo da periferia de Luziânia, não vendo Plano Piloto, sequer do avião).
Ainda que meu interesse por arquitetura e urbanismo já tenha feito eu ler várias coisas sobre a capital federal (leituras feitas antes de me mudar para SP, quando eu ainda tinha Niemeyer em alta estima), vê-la de fato, em cores e cheiros, em dia ordinário, traz impressões que eu não imaginava.
Brasília parece uma tentativa de provar que a distopia moderna/modernista é possível ser bonita, quase simpática. Os blocos de gabarito igual em meio às árvores dão um ar entre resquícios soviéticos e balneário classe média (na volta, no carro rumo ao aeroporto, perguntei ao Emanoel, alemão que também trabalha no leste europeu, se os prédios não lembravam os de lá; ele assentiu, mas ressaltou que aqui havia detalhes que quebravam com a mesmice vista na arquitetura soviética). Isso, claro, até edifícios espelhados - simulacros de Fosters sem ousadia - darem um ar de não-lugar tipicamente capitalista - minimizado pelo fato de tais edifícios se tornarem enormes outdoors de marcas nacionais. Se eu fosse do tipo que gosta de vingança, diria que tais edifícios são a vingança (ainda que leve) aos monstrengos urbanísticos de Niemeyer, enfiados no centro de São Paulo, o Copan e o Memorial da América Latina - com a diferença que São Paulo é toda ela um monstrengo, de onde o Copan se inserir tão bem na paisagem. 
Contudo, diferentemente das fotos que vejo do leste europeu, ao invés de ruas que proporcionam encontros e contatos, uma highway de sete pistas que faz lembrar cidades de fins de mundo que se desenvolvem à beira da rodovia - sem que esta sirva de divisória, de muro não declarado, entre a parte mais pobre e a cidade dos “cidadãos de bem” -, vastas áreas livres, verdes, sem ninguém a passear nem motivo para fazê-lo. E foi isso o que mais me chamou a atenção nessa alucinação/materialização distópica que é Brasília: às nove horas da manhã de uma quarta-feira, nos vinte quilômetros que percorri, se tivesse me proposto a contar quantas pessoas eu avistei na rua, conseguiria tranquilamente - a única dificuldade seria contar um grupo de jovens que jogava basquete numa quadra um pouco distante, creio que eram uns oito. Não que Brasília estivesse deserta, pelo contrario, estava muito movimentada... de carros. De bolhas metálicas, provavelmente cada uma carregando uma pessoa, quando muito duas. Uma cidade povoada mas sem gente, sem vida visível - apenas concreto, aço, asfalto e fumaça de óleo diesel. Poderia estar nos esboços sonhados por Marinetti, ou até por Mishima.
Debord, em 1968, dizia que o sistema capitalista, ao ver o perigo que os ares da cidade que põe diferentes pessoas em contato, tratou a desenvolver tecnologias de isolamento - o carro, a televisão, o urbanismo, atualmente a internet, ápice da eficiência em isolar dando a aparência de integração. Brasília não é apenas uma cidade anti-manifestação, como eu lia, com seus amplos espaços livres da esplanada dos ministérios capazes de tornar insignificantes multidões que não se conte com seis dígitos: é uma cidade onde os pontos de encontro foram determinados “na planta”. Assim como seu plano urbanístico e seus edifícios foram planejados, partindo do pressuposto de que o bioma ali existia antes era terra arrasada - tão ao gosto da modernidade -, o planejador não deixou de fora desse espaço abstrato tornado cidade-não-lugar os pontos de encontro pensados, autorizados, onde as pessoas se encontrarão de forma fortuita, em conversas rápidas de "oi, tudo bem", que eventualmente se desenrolam em inesperados lampejos sobre a situação de cada um, do mundo: tudo ali tem em vista o controle - no que se podia controlar com a tecnologia dos anos 1950, 60. O poder teme o povo: por isso a necessidade de isolá-lo, delimitar seus pontos de encontro, os assuntos autorizados, por isso estimular o desencontro, os pequenos narcisismos entre vizinhos.
Ainda assim, Brasília foi insuficiente para os anseios do poder neofascista. Mostra disso é o quanto temem os encastelados no executivo, com Sérgio Moro decretando estado de sítio por temer os índios reunidos no Acampamento Terra Livre, entre 23 e 26 de abril. Sem milícias - virtuais ou reais -, sem armas de uso exclusivo do exército, sem proteção do Estado ou da grande mídia, uma reunião, um encontro, um protesto fez Brasília em seu projeto antipovo e antidemocrático se sentir insegura.

25 de abril de 2019

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Brasília de poucos contatos humanos [Diálogos com a dança]

O branco domina espaço, luzes e roupas, alguns detalhes em cinza evitam a monocromia - e também a monotonia. Os bailarinos são sincrônicos nos movimentos - mesmo que em sentidos diferentes. Sincrônicos e sem contatos. Os raros momentos de encontro entre os três são marcados também pela música "normal", com ritmo e melodia identificáveis - no restante, o que predomina são ruídos eletroacústicos. Vinil de asfalto, espetáculo de Edson Beserra, se propõe a dançar Brasília, e, sem inovar, soa feliz no seu intento. Consegue ser bonito e delicado - com uso de certa linguagem consagrada na dança, sem soar virtuosista -, captar algo da Brasília - típico de qualquer grande cidade baseada em asfalto e concreto -, e apresentar faltas da cidade: a monumentalidade anti-povo, anti-gente, anti-humano, típica da arquitetura modernista de Niemeyer - arquiteto pouco afeito a pessoas, e menos ainda à pólis e à política -, que garante o fluxo e impede encontros, que mantém a ordem e evita contatos. Conceitualmente convidativo, existencialmente árido - de uma aridez que não dialoga com o cerrado ao redor, uma aridez fria, branca, das teorias desprovidas de humanidade -, eis a Brasília sugerida por Vinil de Asfalto. Entretanto, ambos - a cidade e a coreografia - insistem em ser mais que fluxo ordenado, a monotonia monocórdia do poder autocrático: há encontros, há raros momentos em que se aproveita para que entre corpos haja mais que espaços vazios - ou, se preferir, há raros espaços em que se aproveita para que entre corpos haja mais que momentos vazios. Há convite ao diálogo - esse aspecto da sociabilidade moderna tão em falta no mundo atual. O espetáculo ressalta a pertinência de ocupar ao enfatizar o volume dos corpos dos três dançarinos - reforçado pela iluminação preponderantemente feita de contra -, e mostra o ocaso que talvez esteja à nossa vista, mas não enxergamos, ao apresentá-los como sombras de si próprios diante da cidade banal que é projetada ao fundo. A tensão é tênue, fácil de se desfazer na imensidão pastel da Esplanada dos Ministérios, mas importante para que não se esqueça que há homens e mulheres em meio a todo o concreto asfalto lobby e poder da capital federal.

10 de setembro de 2015