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sábado, 4 de novembro de 2023

Imprensa, ética e a formação do público para o jornalismo

No jornalismo de manchetes, de impacto imediatista, em um tempo de necessidade constante de novidades de hora em hora, a busca por furos jornalísticos se tornou a tônica de muitos jornalistas na grande imprensa - os sem escrúpulos, ansiosos por crescer na carreira a qualquer custa, sejam eles novatos ou experientes. O importante é dar sempre a notícia antes de todos os demais, na expectativa de que uma dessas seja uma grande notícia - o autor de um Watergate tupiniquim, só que sem todo o trabalho jornalístico de Woodward e Bernstein. Ao invés de investigações detalhadas, checagem dos fatos, dar voz ao outro lado, solta-se a notícia, simplesmente. 

Alguns profissionais da imprensa sabem segurar o andor, não por cuidado jornalístico, mas por terem noção do que é ou não relevante e pode se tornar uma reportagem de causar impacto. Mais que isso, porque costumam ter acesso a fontes de atores políticos importantes (políticos eleitos ou nomeados ou aqueles disfarçados de agentes estatais que atuam como poder à parte), que são quem lhes dão a perspectiva de em algum momento dar o famigerado furo, os primeiros a dar o ato consumado ou escancarar os bastidores desse ato.

O ponto é que para ter acesso a essas fontes, é preciso mais que algum renome e bom relacionamento: é preciso ter a simpatia desses atores. E para ter essa simpatia, esse acesso facilitado a fontes importantes, é preciso fazer o jogo deles até (quem sabe) surgir o grande momento. Ou seja, atuar como quinta coluna na imprensa: ser um amigo desse poder, mandar às favas o jornalismo, atuar como relações públicas ou assessor de comunicação extra-oficial, à espera de um momento em que possa se destacar por uma grande reportagem, que vai apagar esse seu passado “eticamente livre orientado” (para usar expressão do Overman, da Laerte). 

O que sobra é um jornalismo de notas de personagens em off, de denúncias surgidas do nada ao gosto de políticos, promotores ou juízes; de ouvi-dizeres, de ameaças dadas via imprensa, de balões de ensaio. Sim, estou falando dos muitos jornalistas que trabalharam para a Lava Jato (e que agora renegam o passado, não por conta do erro cometido na profissão, mas por terem apostado no cavalo errado - na verdade por terem tomado um cavalo por enxadrista), como estou falando das recentes famigeradas ASCOM de milicos, mas também de quem projetou Demóstenes Torres como paladino da ética (bem documentado no último livro do Nassif), dos mil balões de ensaio de ministros para o STF - ou mesmo Alckmin para vice de Lula. Um desses jornalistas que eventualmente soltou uma balão de ensaio que deu certo, no futuro vai cobrar dessa personalidade por esse serviço prestado.

Alguém mais ingênuo poderia perguntar como as empresas jornalísticas admitem esse tipo de profissional em suas fileiras. A resposta é simples: essas empresas têm o jornalismo como meio, não como fim; sua finalidade é aumento de lucro e poder dos patrões - e isso nem é novidade ou exclusividade brasileira, Orson Welles já denunciava no início da década de 1940 em seu clássico Cidadão Kane. Do apoio nem à ditadura militar (ou seria ditabranda?) ao bolso-guedismo; do golpe branco no Lula, em 1989, ao golpe efetivo na Dilma, em 2016, a imprensa brasileira nunca disfarçou que o Brasil só lhe interessa enquanto lhe der lucros privados - seu projeto de país é o projeto das elites que cá aportaram desde Cabral: saque e fuga para o exterior. 

Daí a importância da imprensa alternativa, que com a internet permitiu que jornalistas reconhecidos e de carreira sólida, forjados na grande imprensa, mas sem negar seus princípios, em especial os de ética e da profissão, pudessem ganhar projeção - ainda que reduzida, frente o poderio das cinco famílias e seus tentáculos na internet, sem falar na imprensa de internet que pratica o mesmo que a imprensa corporativa, publicidade “orgânica” disfarçada de jornalismo. Vale lembrar que essa imprensa alternativa desde sempre existiu, ligada ao contexto de resistência, como a imprensa operária.

Esses jornalistas, aferrados ao fazer correto da profissão, acabam por ter uma dupla tarefa: não apenas noticiar os fatos de maneira justa e fiel aos ocorridos como capitanear um processo de educação, de mostrar o que é notícia e como se faz jornalismo, um processo de formação de público à notícia enquanto bem público e não enquanto mercadoria para negociar com quem paga mais - isso a um povo forjado há gerações nesse ambiente de “empresa de comunicação” e “showrnalismo” (na expressão do Arbex). Não é tarefa pouca, mas é tarefa capital de quem ainda pensa em uma sociedade democrática e mais justa.

04 de novembro de 2023

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Agropeça: o pacto da branquitude está nu [Diálogos com o teatro]



Agropeça, do Teatro da Vertigem, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma crítica profunda ao Brasil contemporâneo. Crítica não apenas ao agro, não apenas ao (mal) chamado “Brasil profundo”, que estaria fora dos grandes centros, não apenas à extrema-direita ultraliberal fascista que tem no agro um de seus pilares; mas ao conjunto da sociedade, a nós - eu e você que me lê -, que habitamos grandes, médias e pequenas cidades; que permitimos chegar ao ponto onde estamos, ora não querendo enxergar o que estava evidente, ora não acreditando na gravidade daquilo que víamos1; que permitimos que uma mentira contada mil vezes - o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo - não apenas se tornasse uma verdade, como escondesse toda a verdade que há por trás dela, quando não embaralhasse e invertesse por completo o verdadeiro e o falso; que na hora de nos comprometermos de fato e nos engajarmos, recuamos e nos sentimos aliviados com uma assinatura em petição online. Uma crítica antes e acima de tudo (e de todos?), ao pacto de branquitude feito entre elites e classes médias, cuja parte do campo progressista, por um comodismo com seus privilégios e por um preconceito de classe e racial arraigados, também entra - mesmo que com a melhor das boas intenções -, e que impede mudanças estruturais tão urgentes não apenas no Brasil, como no mundo.

A peça - escrita por Marcelino Freire e dirigida por Antônio Araújo - tem múltiplas e densas camadas, várias leituras e interpretações possíveis: foram quase dois anos de processo para se chegar onde chegou, e é de se esperar, pela qualidade dos envolvidos, que o resultado tivesse mesmo a qualidade que teve, sem descuidar do espetáculo cênico2. A leitura que faço aqui está longe de esgotar uma dessas possibilidades.


Antes da cena, o espetáculo se ancora (dentro muitos outros pontos) na disputa em torno do que fazer com a obra de Monteiro Lobato. Faz um tempo que, se por um lado a direita tenta manter o autor taubateano como uma referência atemporal para as crianças do país, parte da esquerda e do campo progressista luta para reescrever e pasteurizar suas obras, para serem compatíveis com o ideal que possuem para o século XXI, apagando todo racismo que a percorre3. Agropeça sugere a atualização do autor pelos dois lados - direita e esquerda -, porém com o pacto de branquitude que sustenta ambos4 escancarado.


Tudo se passa no Sítio do Pica Pau Amarelo. Estão presentes Dona Benta, Tia Nastácia (apresentada no programa como Anastácia; seria uma negação daquela Nastácia tão submissa e cordial?), Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Coronel Teodorico, além do Saci - todos postos como alegorias. O sítio é adaptado para dar lucro (maximizar resultados, como dizem os economistas neoclássicos) com um rodeio.

O novo ethos do sítio, assim como o receio de uma batida do Ministério Público do Trabalho por trabalho em condições análogas à escravidão, fazem a pretensa harmonia racial e social ir se desfazendo. A cena do lamento de Narizinho ao Visconde de Sabugosa (alegoria do estrangeiro), tão comum no discurso agro e religioso, de que antigamente tudo era melhor, cada um sabia o seu lugar - pretos e brancos, homens e mulheres - é o ponto que deixa explicitado o pacto de branquitude, quase como síndrome do escorpião, tendo em vista as cenas que eles haviam protagonizado em momentos anteriores da peça.

Em um trecho tenso entre Visconde de Sabugosa e Tia Anastácia - já devidamente questionadora da ordem -, Anastácia lembra o Visconde que foi ela quem o criou. A frase é quase banal no contexto de Lobato, ainda que possa ter uma carga existencial e desdobramentos. Porém, é um petardo forte quando se pensa nas alegorias dos personagens: a descendente de escravos falando para o Europeu erudito que foi ela quem o criou. Diante das acusações do passado que aprisionava até então ela e demais negros, o Visconde argumenta que não é por ser da Europa que ele deve ser responsabilizado: ele é um sujeito apenas, não é toda a Europa, não pode falar pelos outros; ao que Anastácia é enfática ao dizer que ela é mais que um sujeito explorado, ela é toda a África presentificada. É uma construção interessante de como algoz e vítima (e seus descendentes) se portam, assumem suas heranças e cicatrizes. Sob o pacto de branquitude, o Ocidente sempre nega as próprias responsabilidades quando estas são negativas: a civilização europeia aparece como radiante porque toda a sujeira é escondida ou, quando não é possível escondê-la por inteira, isolada e diminuída. Um evento menor. Um caso isolado. Algo que já passou e já foi superado. O negro (e o indígena, e, em menor medida, todo o mundo não ocidental) que sequer tem direito a história e memória, é obrigado a sustentar as consequências do sofrimento passado até o presente. De um lado, as feridas e cicatrizes do açoite; do outro, aquele que, se hoje renega o chicote, não abre mão daquilo que seus antepassados ganharam ao utilizá-lo contra a carne mais barata do mercado. E há, depois, quem diga que a favela venceu porque uma pessoa negra e pode tirar foto de “igual para igual” com brancos, num evento branco, de herança branca, de pensamentos brancos, em meio a espólios negros – a favela venceu, ainda que as balas perdidas sigam acertando sempre pessoas negras e das favelas, em um número absurdamente maior das que venceram.



A cena com Narizinho acontece no início, é o primeiro e talvez o grande quebra-clima do espetáculo. Quando o clima do rodeio ainda estava no começo, com um forte ar festivo, e dava a impressão de que a peça seria uma crítica mimetizando esse tipo de festa com piadas sarcásticas, mas sem bater de frente, Narizinho, ao agradecer a eleição para Rainha Milho, ao citar os vários episódios de violência sexual que sofreu de seus pares, quebra esse clima e nos lembra de todo o ambiente machista do agro, do rodeio, do campo, da tradição5. A cena com Visconde de Sabugosa é um sinal de que ser mulher violentada não é suficiente para romper com a classe - no fundo, são antes de tudo, uma grande família branca e proprietária, que se ama em suas posses, a despeito de eventuais “deslizes”.


O que não quer dizer que o pacto de branquitude advindo da colonização e da civilização europeia não se sustente, depois da exploração e dilapidação dos corpos (e das almas6) negros, na exploração dos corpos femininos e corpos dissidentes. O machismo e toda sua violência inerente é uma constante na peça, na educação de Pedrinho por Coronel Teodorico, nas relações com as mulheres, nas próprias mulheres.

Quem incorpora alguns discursos feministas é Dona Benta - e não Narizinho. Seja o discurso feminista liberal, de que a mulher precisa empreender para se empoderar, não há negatividade a se combatida, basta ações positivas; seja aquele que eu chamo de feminismo acadêmico-branco-de-classe-média, que usa lugar de fala como lugar de cala, ontologiza questões de gênero, tratando mulheres a partir de uma raiz biológica, das “pessoas que menstruam” (a citação à frase da famosa feminista negra de pensamento branco é explícito na peça), sendo estas absolutamente iguais, independente da sua posição social e da cor da sua pele. O feminismo que não expõe e critica a questão de classe e a questão racial, que nivela todas as mulheres como iguais, pode minorar algumas violências, mas é apenas um instrumento a mais de perpetuação da nossa “agrocondição” baseada no patriarcado7.

Uma cena marcante do machismo do agro é a do leilão. Ao invés de gado, a boneca Emília, uma transexual, leiloada para desfrute dos pais da família tradicional brasileira, que ostentam a imagem da macheza e virilidade ao mesmo tempo que são covardes e incapazes de sequer sustentarem os próprios desejos. Emília que, sim, rompe com o pacto da branquitude. E isso não é algo necessário – vale lembrar aquele autor que a extrema-direita tanto adora xingar e a esquerda que o defende pouco lê de fato, Paulo Freire - pois, apesar de que nunca será aceita na mesa da família, nem terá direito a nada na herança, por sua condição “antinatural”, poderia se conformar em ficar com as migalhas, sentindo qualquer poder por procuração; mas talvez por saber que o mundo é hostil demais a pessoas como ela, faz questão de se levantar e se posicionar - mesmo quando não é com ela o problema.



E o Sítio do Pica-Pau Amarelo, antes tão harmônico, de repente se torna conflituoso, por conta de que quem antes era humilhado e expropriado até em sua humanidade, de repente se levanta, e reivindica o que deveria ser seu por direito - não fosse nosso liberalismo de ocasião.


A disputa em torno de Lobato na nossa sociedade mostra o quanto ele é atual no seu racismo. O intento de limpá-lo dessa sua característica indica uma negação de encarar o problema de frente por parte de nossas elites intelectuais brancas - o racismo que nos circunda, nos habita -, e a descrença no poder transformador da educação (formal e não formal). É o pacto da branquitude, que percorre como um fio comum da extrema-direita que assume com brutalidade o que vem da Europa8, a esse progressismo pela metade, que não mexe em seus pequenos privilégios históricos9, viralatamente afeita aos ideais europeus e que renega a própria terra, a própria cultura (talvez com exceção àquilo que é bem visto no além-mar).

O agro é tentativa, por parte da elite brasileira e seus sabujos de classe média, de serem considerados brancos e ocidentais pelos verdadeiros ocidentais - os únicos sujeitos universais verdadeiro -, mesmo que seja como seus serviçais.


25 de maio de 2023

PS: agradeço Bia, Luis e, principalmente, Lia, pelas conversas que me ajudaram a elaborar este diálogo.


1Quando escrevia o Trezenhum. Humor Sem Graça., ironizando o quotidiano da Unicamp (das universidades públicas em geral), várias vezes fiz piada com os neofascistas que surgiam, e mesmo com comportamentos de outros alunos, típicos da extrema-direita - a começar pelo trote -; não acreditei que eles seriam uma força política relevante.

2Fiz estágio em dramaturgismo no Teatro da Vertigem em 2015, tenho noção de como a construção da peça e das cenas acontece – coletivamente. Isso e ainda amparado por um escritor do porte de Freire, era difícil imaginar resultado diferente. Inclusive, meu último livro, com as peças Linha de produção/Linha de descartes (editora Urutau, 2022), a primeira delas foi inspirada nesse estágio.

3Vale ressaltar que esse apagamento, reescritura ou fuga do passado é uma constante brasileira, mas também do que eu chamo de “pensamento branco” (que, assumo, tenho alguma dificuldade para definir exatamente, ainda que o perceba): se no Brasil temos o exemplo da ausência da justiça de transição com o fim da ditadura militar, no mundo é visível na apresentação dos líderes fascistas do século XX pelo cinema estadunidense como pessoas carrancudas que dominavam pelo medo, e não pelo que de fato eram: líderes carismáticos, cuja maioria da população aderia à servidão voluntariamente - por meio do voto, inclusive. A proposta de reescrever as obras de Lobato limpando o “politicamente incorreto” que na época vingava é uma das posições mais cretinas que se pode ter; é negar aprender com o passado - assim como não vimos o neofascismo emergir em figuras sorridentes e com apelo popular por não conhecermos de fato como eram Mussolini e Hitler. Neste ponto, o filme O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, foi um divisor de águas para mim, quando o vi pela primeira vez, em 2004, e passei a ver a possibilidade do líder fascista retornar a qualquer momento, sem ser percebido. Esse politicamente correto levado ao extremo e pretendendo abarcar toda a história é um jogo para manter tudo como está.

4Bob Black, em seu Groucho-Marxismo, dizia que esquerda e direita se fazem uma oposição limitada, de modo a manter o essencial como está.

5Não estou aqui negando a existência de machismo nas grandes cidades, no meio acadêmico, artístico e intelectual, em outras culturas; porém se manifestam de formas diferentes, e são outras formas que se tem para abordar e combater.

6Ainda estou no início do livro, mas não tem como não indicar Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves

7Preciso ser honesto: foi com feministas liberais que pude, finalmente, conversar, ser ouvido, dialogar, e inclusive elaborar melhor minhas próprias questões; elas que permitiram eu notar com clareza que empoderamento feminino é uma luta das mulheres, e a luta contra o machismo é uma luta de todos (até então isso ficava meio nebuloso na minha argumentação). Foi um passo importante para eu conseguir, inclusive, entender melhor minha relação com meu corpo, que falo mais no texto https://bit.ly/cG220110. Nas minhas muitas e infrutíferas tentativas de diálogo com feministas acadêmicas brancas de classe média, sempre fui calado e acusado de ser homem (que a extrema-direita adora utilizar para desqualificar o feminismo como um todo). Dentre as pérolas dessas tentativas de trocas, ouvi de uma graduada em geografia na USP que eu não podia criticar o machismo e o patriarcado porque eu só me favorecia com eles, por ser homem (o que sinaliza certa transfobia, por sinal); de uma graduada em sociologia pela Unicamp, que mulher não pode ser machista, porque é mulher; de uma (então) doutoranda em feminismo na Unicamp e na Alemanha, de que todo homem é um estuprador em potencial (e ela era casada com um estuprador, mesmo que em potência); de uma graduada em jornalismo pela Cásper e artes pela Unesp, vi ela relativizar a tentativa de estupro por parte de um amigo branco, advogado, mestrando em filosofia na USP, residente no Morumbi, porque ele estava bêbado e não havia concretizado o ato, logo não deveríamos ser tão a ferro e fogo com ele.

8Nisto, poderíamos citar a Espanha e Vini Jr, por ser recente, mas poderíamos citar a Alemanha, a França, a Inglaterra, e todo o chamado Ocidente (que não é muito, por sinal), o genocídio ameríndio nos EUA, a Austrália e seus campos de concentração para imigrantes pobres até hoje em funcionamento...

9Atenção! Trabalho digno, salário decente, férias, descanso remunerado não são privilégios!

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

As bases que permitiram o descolamento da realidade dos bolsonaristas estão em toda a sociedade

Em reportagens sobre os “patriotários” presos pelos atos golpistas/terroristas em Brasília, a lista de queixas é surreal, parece saída de uma esquete do Monty Python, e mostra um descolamento da realidade: basicamente se queixam que a prisão não é confortável (não deve seguir o padrão Fifa, desconfio que sequer lembre um hotel três estrelas), não há wi-fi, a comida está muito aquém do churrasco com refrigerante servida nos acampamentos. Há um relato em especial que me chamou a atenção: a da pessoa que se queixava de ter sido presa contra sua vontade (parênteses: boa parte da grande mídia segue chamando essas pessoas de “manifestantes”, numa insistência em normalizar o discurso e a violência neofascista).

Se essa pessoa “presa contra a sua vontade” mostra que o descolamento da realidade foi aprofundado pela manipulação via internet – tão bem instrumentalizada pela extrema-direita -, as bases para se chegar a tanto haviam sido postas desde muito antes. Identifico dois pontos que subjazem a essa queixa.

O primeiro é da liberdade absoluta, defendida pelo neo/ultraliberalismo propagado pela mídia tupiniquim há décadas. O discurso posto é de antagonismo quase completo entre individual e coletivo, em especial o público. Nada estaria acima da liberdade individual de propriedade: daí o imposto ser um roubo, as regras de trânsito tirarem o prazer de dirigir e quanto mais propriedade, mais liberdade – o que seria comprovado pelos acessos que o dinheiro dá, aparentemente todos (ou, talvez, a uma consciência reificada, ele dê acesso a tudo o que ela pode abarcar).

O segundo é da instituição da prisão, de quem seria elegível para se tornar um detento – o que já foi reproduzido por uma juíza de Campinas em uma sentença, por sinal. E novamente a grande mídia tem papel fundamental nessa construção, ao ser a porta-voz de uma elite frustrada com o fato de ter nascido nestes Tristes Trópicos e ressentida com o fim da escravidão – e nem me refiro aqui aos apresentadores de programas policialescos, apolegetas da violência, do racismo, das execuções sumárias e uma série de outros crimes.

Antes de cometer um crime, no senso comum dos patriotários – e de muitas e muitas outras pessoas -, um preso no Brasil é alguém com desvio moral, desvio de caráter (Foucault já levantava isso, mas me parece que a coisa tem tomado uma proporção ainda maior). Uma pessoa comete um delito não porque está sem emprego e precisa de dinheiro para sobreviver, mas porque é “vagabundo” e não quis trabalhar, porque é um “pervertido” e gosta de infligir danos aos demais, porque é “do mal”,  simplesmente um “bandido”, assim como eu sou daltônico (sobre o “vagabundos” e “bandidos”, Pedro Serrano mostra como esse discurso é desumanizante, proto-fascista, e percorre a sociedade brasileira de alto a baixo).

Assim, alguém que se julga um “cidadão de bem”, se crê sem falhas morais – eventuais escorregadas seriam lapsos, justificadas em nome de um bem maior, e que se redimiria com um pedido de desculpas, como Moro fez com Lorenzoni. Essa “perfeição de classe média” é respaldada pelo comportamento gregário do grupo, inflada pelas bolhas criadas pelos algoritmos da internet e chancelada por líderes políticos e religiosos, mas vem sendo construída por um discurso midiático de longa data, eu diria que constitutivo da imprensa burguesa e da indústria cultural – fundamental para garantir que a classe média ressentida pelo seu fracasso se enxergue próxima das elites e atue como seus asseclas.

Esses terroristas estão tendo dificuldades para entender o básico mais concreto da sua realidade: de que foram presas. Debord fala da sociedade do espetáculo entrar num grau de ideologização, abstração e alienação em que as pessoas renegam a realidade vivida em prol do que lhes dizem e fazem crer – estamos presenciando isso num nível paroxístico. Para essas pessoas, se elas são boas (por autoproclamação), se estão agindo em nome do bem (como os mocinhos nos filmes de Hollywood), não importa o que façam, elas não merecem estar presas: presos são os outros, os semi-humanos, os negros, os pobres, os periféricos, os estrageiros, os ateus, os esquerdistas, os diferentes – nunca alguém branco, cristão, com posses, patriota.

Infelizmente, vejo muita gente que tem rido dessas bizarrices (que são, de fato, engraçadas) reproduzir essa base sobre a qual se erigiu a alucinação militar-bolsonarista. O mais clichê na esquerda classe média é o “estar do lado da certo da história”, como se a história fosse teleológica e moral: os lados certo e errado serão dados arbitrariamente por historiadores futuros com uma série de interesses nas suas análises. Na minha concepção, o ponto que se deve levar em consideração é estar do lado dos mais necessitados, dos oprimidos, da maioria explorada, da vida digna para todos – mas assumir isso exige uma postura ativa de ação (quem tem fome tem pressa), não condizente com ficar esperando o julgamento da história enquanto faz postagem nas redes sociais.

Há camadas muito profundas que sustentam o discurso alucinado (alucinógeno?) da extrema-direita brasileira, e que permeia toda a sociedade – estamos todos vivendo sob a égide do espetáculo. Um trabalho de auto-reflexão para identificá-los em nossas próprias posturas e construções mais complexas dos argumentos quando na exposição aos demais (um grande desafio nestes tempos memênicos) são tarefas urgentes para não termos o espectro do fascismo sempre a rondar nosso país.

17 de janeiro de 2023

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Estamos em guerra!

Uma guerra não começa quando é atirada a primeira bomba, ela começa quando, diante de um objetivo de poder, são traçadas as primeiras estratégias e preparadas as primeiras armas.


No Brasil da necropolítica permanente e recentemente potencializada e escancarada, os avisos vem de longo tempo - os sinais são nebulosos mas visíveis desde 2013. Porém, parte da esquerda só passou a desconfiar que a política foi substituída pela guerra nestas eleições, quando o sol ficou oculto atrás do enxame de aviões bombardeiros, e o solo se desfez sob nossos pés, diante do impacto das bombas. Dresden é aqui, Hiroshima é aqui, Nagasaki é aqui (Auschwitz é aqui há 500 anos ininterruptos, para as pessoas eleitas). Até então, essa parte seguia achando que as demonstrações da guerra nas periferias e as cicatrizes por ela deixadas em corpos pretos eram casos isolados, que os tiros na caravana de Lula em 2018 eram pontos fora da curva, e que o futuro nos redimiria milagrosamente, simplesmente porque estaríamos do lado certo da história. 

Ainda assim, não adiantaram as bombas, as mortes, o estado de esgarçamento social e emocional: uma outra parte da esquerda ainda acha que estamos fazendo política, e não guerra, segue achando que tem a verdade e que a história é alguma deusa do Olimpo - que Olimpo ainda influencia algo no mundo. Que tenhamos a verdade, que estejamos do lado certo, isso pouco vale numa guerra. Eis o imobilismo de quem não é capaz de suportar a realidade: esse legado moral só tem valor quando historiadores do futuro se debruçarem sobre nossos tempos, e a depender do lado vencedor - até hoje os europeus estão do lado de certo da história por todas as atrocidades e todo o genocídio cometido fora de seu território. Para agora, cabe é sobreviver, é seguir na história, podendo fazê-la e efetivamente atuando nela conscientemente. 

E para atuar é necessário poder - e não apenas a verdade. Até porque, se a verdade nunca foi condição necessária para vencer guerras, na atual, baseada no irrealismo-especular-espetacular da existência social e quotidiana, a verdade está sendo esvaziada de qualquer lastro imediato, se transformando em um signo vazio. E é por isso que parte da esquerda tem dificuldade em visualizar a guerra que vivemos, com toda a sua consequência, sua mortificação da natureza, dos corpos, dos ânimos, das esperanças. 


Sobreviver até amanhã é o objetivo da maioria das pessoas. E matar, numa autoimplosão que arraste consigo o que conseguir, quando nem esse amanhã puder mais ser vislumbrado. Esqueçam os planos de férias, de casa ou carro novos e outras quinquilharias: isso são ilusões para tirar as pessoas do presente, para não enxergarem que sua vida só está garantida até amanhã, se não se mortificarem hoje e sempre - e sempre é muito tempo. Por isso planejar as férias e as compras são importantes opiáceos - para quem ainda os possui. O neofascismo trabalha com esse encurtamento do horizonte histórico como forma de arregimentar seus fanáticos, seu exército, suas milícias - sim, o fim da história oficialmente é um lema neoliberal, mas o liberalismo nada mais é que um desvio, o fascismo tentando se portar à mesa da velha aristocracia medieval. 


Uma guerra não termina após a batalha principal. Waterloo, Stalingrado apenas inverteram o jogo, a guerra continuou. Quantos da esquerda sabem que estamos em guerra? Não é porque hoje não houve bombas caindo do céu que amanhã elas não cairão novamente. Se abandonarmos a luta e acreditarmos apenas na institucionalidade, como nos primeiros mandatos de Lula, seremos destruídos em menos de quatro anos - ou seguiremos dependentes da dupla Lula-Janones, num personalismo que não nos abre perspectivas.  

Lula venceu o pleito mais fraudado desde 1946. Ainda precisará assumir. Precisará assumir e ter condições de governabilidade. Precisará ter um país que não esteja todo destruído pela máquina de guerra encrustada no parlamento. Precisará enfrentar a guerra de classes travada pelo judiciário em conluio com a mídia. Precisará desarticular milícias formadas por agentes do estado e fanáticos religiosos.

As redes sociais seguirão um campo de batalha, de construção do irrealismo-especular-espetacular, que norteia afetos e ações de milhões de pessoas que nunca tiveram uma existência plena em suas vidas (nem tanto plena de direitos formais, e sim de contato consigo e com seus desejos).

As ruas seguirão palco de disputas, de protestos, de desvarios e de pautas justas - que podem trazer o cavalo de troia do fascismo, como o Passe Livre, em junho 2013 -; palco de violências e mortes, e acusações contra a esquerda. (O trancamento das rodovias que vemos neste pós eleição é um ensaio tosco: o ataque virá com Lula na presidência, a partir de um pauta legítima, talvez puxado por um movimento popular legítimo).


O Brasil é o destaque do momento na guerra mundial que o neofascismo pôs em curso. Por ser um país grande e importante e, ao mesmo tempo, de instituições fracas e vendidas, não desistirão fácil, e não hesitarão em investir nessa guerra, com o objetivo de instituir uma teocracia fundamentalista cristã ultraliberal (semi-escravocata), com a qual embolsarão lucros exorbitantes e exportarão sua noção de liberdade para a periferia do mundo - um arranjo que permitiria aos EUA terceirizarem parte de seu trabalho sujo no globo. Vale ressaltar que nunca tivemos uma ocupação estrangeira desde a separação de Portugal porque o exército brasileiro é essa legião estrangeira ocupando nosso território. A quinta coluna está posta no interior do Estado e paga com dinheiro dos nossos impostos.


Vencemos uma batalha, uma importante batalha, não a guerra. O risco de um contra-ataque rápido e de derrota seguem à espreita. Os neofascistas estão prontos para tomarem o Brasil de assalto (com apoio de boa parte de nossas elites e da burguesia internacional), se acharmos que podemos baixar a guarda. Pelos canais institucionais, Lula, PT e atores políticos relevantes caminham por um campo minado e precisam desarticulá-lo, sem ceder a anistias que deixam feridas abertas. Da nossa parte, mais que ocupar, é imprescindível manter o trabalho de base permanente, não apenas na internet (e de forma organziada e efetiva), como também nas ruas e praças. Estamos em guerra.


02 de novembro de 2022

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Liberdade com estudantes


A Fiorino 1995 para no sinal da rua dos Estudantes com a avenida Liberdade. O carro é vermelho, com a pintura desbotada e cheia de manchas; as janelas estão abertas. Dentro, dois homens “brancos” (no nosso pantone de cores, ganham essa classificação, ainda que Bacurau tenha nos ensinado o que é ser branco; de qualquer modo, se estiverem bem vestidos, não tomarão geral da PM). Um pedinte enrolado em cobertores de doação se aproxima pelo lado do passageiro, estende a mão, fala algo. O motorista responde em tom animado, com certo ar de galhofa - eu identifico algo suspeito nessa atitude e paro para acompanhar a cena. Não escuto o que falam, apenas vejo as expressões. O pedinte sorri, se curva num agradecimento constrangido, se aproxima um pouco mais do carro, mantendo uma distância que poderia soar respeitosa, para não sujar o veículo. É quando o motorista tira de trás do banco uma barra de madeira de cerca de meio metro, muda a fisionomia, fala agora em tom agressivo, enquanto aponta o bastão para a pessoa fora do carro. Esta recua dois passos, o motorista ameaça abrir a porta - outro pequeno recuo do pedinte. O sinal abre, a Fiorino parte, o motorista ri enquanto faz a curva para entrar na avenida, o mendigo se encaminha para a calçada, como se não tivesse acontecido nada fora do ordinário, eu sigo meu trajeto para casa - sem conseguir fingir que foi uma cena banal e inofensiva. Em um país em que só no último mês Genivaldo foi morto em um câmara de gás improvisada num carro da polícia rodoviária federal, em que uma criança estuprada foi tirada do convívio familiar por uma juíza e uma promotora - e então pressionada para não fazer valer seu direito ao aborto -; em que Bruno e Dom foram mortos pelos novos “guardiões da floresta”, o crime organizado; em que pretos pobres e periféricos seguem morrendo a conta gotas, à espera da próxima chacina perpetrada pelo estado, por ação - Vila Cruzeiro ou Jacarezinho ou Castelinho ou Carandiru - ou omissão - covid no atual, meningite no governo militar anterior -, uma ameaça com uma barra de madeira feita por diversão num semáforo qualquer de São Paulo não deveria me causar mais que leve indignação - e sei que foi um pedaço de pau porque o motorista não tinha condições financeira de comprar uma arma para compensar a frustração com a própria vida, para disfarçar a absoluta impotência e irrelevância na qual ele se reconheceria, se fosse sincero consigo próprio. Mas o sentimento vem forte: o estarrecimento, a repugnância, a tristeza, a revolta. Penso nos meus colegas de classe social, que falam em mudar de país - se já não o fizeram. Alguns, poucos, foram para Colômbia, Argentina, México, Polônia. A maioria foi para países centrais, países colonizadores, países que hoje gozam da pretensa civilidade graças a tudo o que nos espoliaram e seguem explorando. Foram viver como cidadãos de segunda classe, servindo nossos algozes. Alguns já me estimularam a seguir o mesmo caminho - eu resisto. Ao menos por agora. Tenho pra mim que não enxergar as violências do dia a dia no Brasil não vai fazer com que elas sumam: a distância vai apenas garantir minha total impotência para mudar, o mínimo que seja, dessa realidade - e isso não deixaria de ser um álibi para minha consciência pequeno burguesa culpada. Quem sabe uma hora eu acabe envelhecendo e desistindo - se acaso o fascismo e o fanatismo cristão tomarem conta e o ar se torne irrespirável, eu ainda sou de uma classe que tem o privilégio de fugir. Até lá, insisto em achar que preciso de algum modo contribuir para transformar essa calamidade social em que vivemos, insisto em achar que há, sim, alternativas, desde que construídas coletivamente - e sempre pela esquerda.

27 de junho de 2022


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Amor - releitura para uma fria tarde paulistana de 13 de maio de 2022


Há setenta anos o banal se apresentava a Ana, personagem de Clarice Lispector no conto "Amor", de modo a perturbá-la profundamente: um homem cego mascava chicletes. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir”.

Não sou Ana nem Clarice nem estamos em 1952. Apesar de calejado sob a lógica do choque e semi-anestesiado da brutalidade quotidiana deste século XXI, o dia a dia ainda me perturba - às vezes demais. Nada que rompa algum eventual “calmo horizonte” ou “vida sadia” que há muito desacredito haver, pelo contrário, o banal desponta para tirar da anestesia, me trazer bruscamente de volta ao “modo moralmente louco de viver” que tratamos por "normal", entre um assédio moral, um xingamento no trânsito e uma criança que pede esmolas.

Há cerca de um mês, por dez dias, passei diariamente duas vezes - uma ao ir, outra ao voltar do trabalho - por uma mulher sentada junto a um muro, numa rua de mão dupla, pernas cruzadas, sacolas em volta. Fazia calor mas ela estava sempre de roupa comprida - a mesma, que não era nova mas tampouco estava puída e pouco aparentou sujar nesses dias. Olhava sempre na mesma direção. Parecia esperar alguém, ainda que sem impaciência, como se tivesse ciência de que havia chegado cedo demais. Esperaria Godot? Ou será que quem espera Godot sou eu? 

Cogitei mudar meu caminho, ao menos o da volta, porém não resistia à tentação de passar por ali, na esperança de que algo acontecesse, alguma resolução, presenciar alguém a conversar com ela, a chegada de Godot - que fosse uma mudança de lado para o qual olhava ou de posição, além da inversão da perna que ficava por cima. O máximo que vi foi uma das vezes ela um pouco mais deitada que o habitual, em outra ela com um café com leite em um copo descartável. Teria ela se levantado para buscar ou alguém lhe trouxera? 

Dez dias ali, exatamente no mesmo lugar, quase que na mesma posição. Até que ela sumiu: quando passei pela manhã o local estava vazio como se aqueles dez dias tivessem sido uma ilusão minha, como se ela não existisse e aquela calçada fosse somente lugar de passagem desde todo o sempre. Sumiu também minha angústia de vê-la sempre ali - restou apenas a angústia.

Hoje a situação foi mais banal ainda - e mais rápida. 

Termino de atravessar a rua. Uma mulher grita "meu celular!", vejo outra mulher correndo na minha direção - quinze metros, pouco mais, nos separam. A mulher que corre é preta e usa havaianas. Está com uma camiseta vermelha manga curta, apesar do frio que faz na cidade e do vento cortante que sopra sobre o viaduto - deve haver algo escrito, não consigo ler. Em seu rosto noto algo como um sorriso - mas não deve ser um sorriso. Se for, deve ser de nervoso. Por que estaria sorrindo a mulher? Ao chegar em casa, creio identificar sua expressão na foto da capa do livreto da peça Galpão de Espera, apresentada no CCSP - mas devo estar influenciável, não há nada na boca da mulher a lhe arreganhar os dentes. Influenciável vou reler Clarice - Amor. Não coloquei Criolo para acompanhar a leitura. Deveria? Existe amor em SP - existe fome também. São coisas separadas, creio - nunca passei fome. 

A cena é rápida, mas esse tempo parece dilatado e me permite pensar e reparar em muita coisa. A mulher passa por três pessoas, que se viram para acompanhá-la; a mulher furtada começa a correr com muito atraso. Eu retardo meu passo e me ponho na linha da mulher. Uma mulher preta de havaianas e camiseta vermelha corre na minha direção. Não esboço nenhum outro movimento. Não pretendo agarrá-la e temo um choque entre nós. Não pelo impacto, mas por temer que as quatro pessoas que presenciam a cena decidam fazer justiça com as próprias mãos por causa de um celular. Ou que ao menos queiram chamar a polícia enquanto seguram aquela mulher como segurariam um animal selvagem, uma escrava fugitiva no 13 de maio de 2022, uma mulher preta e sem perspectivas que arrisca sua integridade física por migalhas que lhe permitam sobreviver até o dia seguinte - e que provavelmente já tem sua integridade emocional e psicológica destroçadas. Nossa bandeira jamais será vermelha como a camisa da mulher, mas nossas calçadas e periferias são desde muito - um vermelho muito mais vivo, de violência e morte. 

A mulher corre direto em minha direção, sua expressão com os dentes à mostra me chama a atenção. Não parece mascar chicletes, nem é cega. Seria um sorriso? Por que sorriria? Ela se insinua para minha esquerda, eu não indico nenhum outro movimento que o seguir caminhando. Ela atira o celular em meus pés, se desvia e foge. Eu não me viro para acompanhar seu trajeto, tampouco me abaixo para pegar o celular do chão. Ninguém ousa persegui-la também, para meu alívio. Seguimos todos a vida, como se aquela cena banal fosse... banal. 

A dona do celular pega seu aparelho, xinga a negra que foge: "vaca! Vacilona!". Depois me agradece. Eu não perco a oportunidade de devolver o impropério que julgo apropriado: "se seguir dando vacilo assim, vai perder o celular, mesmo". Ela agradece mais uma vez - tenho a impressão de não ter entendido quem é a vacilona da cena, mesmo depois de ter-lhe dito. 

Eu, definitivamente, não tenho certeza de ter feito com isso uma boa ação - ainda que se fosse o meu celular eu gostaria de não perdê-lo. Sigo meu caminho, estou a poucas quadras de casa, e a expressão indecifrável mulher preta que corre em minha direção numa tarde de frio e desalento me persegue e me perturba, como o cego que masca chicletes desde 1952, enquanto espera seu ônibus.


13 de maio de 2022

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Lula e o PT precisam de uma leitura crítica e pessimista das nossas elites

Em sua participação no GGN 20h de terça-feira, 01 de fevereiro [https://youtu.be/iKCk-RphfUY], Pedro Serrano comenta sobre sua preocupação com a integridade física do presidente Lula - que já sofreu um atentado a tiro no Paraná (na região do Dallagnol, por sinal), em 2018, nunca investigado. Pego esse gancho para comentar a entrevista dada pelo ex-presidente a parte da imprensa progressista, em 19 de janeiro. O assunto não é o do momento, mas ainda é relevante. 

A entrevista foi ótima, com Lula marcando muito forte a necessidade de construção democrática via participação democrática - há um personalismo, mas que se apresenta como catalizador e não como quem vai resolver. Houve quem analisasse melhor a coletiva; aqui, quero pontuar dois momentos que me chamaram negativamente a atenção. Ambas, creio eu, são frutos da mesma falha de análise das elites brasileiras por parte do PT. 

O primeiro momento diz respeito à segurança de Lula. Aproximadamente aos 32 minutos, Luis Nassif, do GGN, pergunta sobre o risco de algo acontecer a Lula e Alckmin assumir. Após Lula esbanjar seu otimismo, dizendo que Alckmin é leal e ele pretende viver até os 120 anos, Nassif põe a coisa em termos mais concretos: milícias, escritório  do crime, ou seja: um atentado contra o presidente. Lula responde que não trabalha "com essa preocupação, mesmo sabendo que ela possa existir", pois o Brasil "não tem essa cultura" do assassinato do oponente, antes a da mentira.

Primeira falha: vamos aceitar que o Brasil não tenha "essa cultura", acontece que estamos vivendo a ascensão do neofascismo, se espalhando pela sociedade sem controle, com gangues, máfias e milícias, com ex-militares, religiosos e fanáticos de toda sorte. Se não tinha essa cultura, pode vir a ter agora - e os tiros no seu ônibus, em 2018 são uma pequena amostra.

Segunda falha: esse pressuposto de o Brasil não ter essa cultura de violência política. Lula com isso repete uma fantasia criada por parte das nossas elites, a do povo cordial. Talvez boa parte da população brasileira possa ser cordial, mas nossas elites não o são, nunca foram, e seus capatazes atuam exatamente como elas gostariam que atuassem: com violência, com assassinato, com extermínio, com tortura, sob a lógica do medo permanente. Dos capitães do mato a Felinto Muller, do delegado Fleury aos Bolsonaro e seus amigos de negócios, dos assassinatos de indígenas pelo agronegócio e pela mineração ao assassinato do congolês Moïse por cobrar a jornada que lhe era devida, dos 111 mortos da chacina do Carandiru ao mortos diários pela polícia em autos de resistência. A história do Brasil é uma história de violência contra população e resistências várias por parte dela - resistências ignoradas e desdenhadas por boa parte da nossa elite intelectual (inclusive de esquerda), que só sabe enxergar a partir dos modelos importados da Europa e EUA: a capoeira, o carnaval, os terreiros, as CEBs, e tantas outras são vistas como algo menor - resistências de segunda linha -; acusam a população de ser passiva (enquanto ela própria só arrota teorias sem nunca enfrentar as ruas), sendo que em um baile funk a PM mata 9 e tem o aplauso do governador!

O segundo momento complicado foi com cerca de uma hora e dois minutos, na resposta dada a Paulo Donizete, da Rede Brasil Atual, sobre a questão da industrialização e desenvolvimento sustentável. No fim de sua resposta, Lula diz que nossas elites "não se dão conta que não há democracia sólida se a sociedade não estiver bem estruturada do ponto de vista organizacional".

Pergunta que fica: nossas elites não se dão conta ou não tem interesse? Democracia para boa parte da nossa elite é totalmente dispensável, ou não teriam dado todo apoio à ditadura militar (ditabranda, dizem alguns); não teriam apoiado (mesmo que veladamente) e eleição de um candidato que defende a ditadura e cujo vicia anunciava um autogolpe. Para uma parte diminuta das nossas elites, a democracia vale como adorno para se apresentar em salões no exterior: pega mal vir de um país com um ditador (ainda mais um ditador amigo), não é a coisa mais agradável dizer que em seu país não tem eleições. Democracia de fato, nunca houve interesse da maior parte das elites brasileiras (inclusive das elites intelectuais, que se julgam muito acima do povo) e de boa parte de uma classe média que atua como sabujos dessas elites, esperando colher alguma migalha para poder se distinguir de seus pares de classe.

Segundo ponto: nossas elites econômicas são uma elite de rapina, praticam um capitalismo de butim no Brasil, são herdeiras diretas da mentalidade colonial - mesmo que tenham ascendido recentemente.

Parece que falta ao Lula e à inteligência do PT uma leitura crítica e pessimista das elites brasileiras. Quando falo em leitura pessimista não é ser fatalista, achar que é assim mesmo, e não vai mudar. É trabalhar a partir disso, de modo a enquadrar essas elites num projeto de nação de longo prazo, sem chance de usar políticas do governo para deslanchar seus negócios para, em seguida, abrir o capital na Bolsa de Nova Iorque, mudar a sede para os EUA, e a residência para Miami; ou então vender para o primeiro estrangeiro que fizer uma oferta razoável - como nos casos do projeto dos "campeões nacionais" que o PT tentou implementar apostando apenas na boa fé de nosso empresariado, como se capitalistas como Roberto Simonsen fossem a regra e não a exceção.

Lula está certo em defender a reconstrução do Brasil em bases democráticas, com participação de todos os setores da população - ainda que isso vá ocorrer dentro das limitações de uma democracia representativa liberal burguesa, por ora uma democracia de baixa intensidade, sem raízes na sociedade e sem lastro em boa parte da população. Contudo, tão importante quanto trazer o pobre para o orçamento e para as discussões e construções das políticas públicas, está em criar contrapartidas rígidas e de longo prazo para os capitalistas nacionais - as nossas elites. Negociadas até certa altura, mas em outra, restringindo, em favor de todo o país, as liberalidades que os donos do dinheiro sempre tiveram no Brasil. Haverá a ameaça de fuga de capitais, de que vão abandonar o Brasil. Sejamos realistas: como provam até hoje, farão isso assim que tiverem oportunidade, não importa quão pouco impostos paguem aqui, quão poucos direitos sociais tem seus empregados: o Brasil, para a maioria da nossa elite, é só um fazendão para fazer dinheiro que será desfrutado no dito mundo civilizado.


02 de fevereiro de 2022

terça-feira, 23 de novembro de 2021

A reeleição do projeto liberal-fascista prescinde do nome de quem o aplique

Oliver Stuenkel, professor da FGV, em artigo publicado há uns dias no El País, comenta que o autocrata precisaria da reeleição para ganhar força e pôr em xeque a democracia do país. A tese parece razoável: a primeira eleição do "outsider" seria um voto de protesto contra o sistema representativo liberal, já a reeleição seria o aval ao que foi rascunhado no primeiro mandato, dando força para o aprofundamento de mudanças que atentam contra democracia liberal burguesa e o estado democrático de direito. 

A argumentação para corroboração da tese, contudo, pouco (ou nada) colabora para sua defesa: começa com um contraexemplo - Fujimori que deu o golpe em apenas dois anos - e no balaio de casos apresentados, há uma mistura desconexa e sem qualquer contextualização, sem qualquer menção às oposições a esses pretensos autocratas, bem ao gosto de argumentações rasas e ideológicas, em que a conclusão não decorre das premissas, mas dá um verniz de seriedade e pode servir para alguma mobilização, mesmo que virtual [https://bit.ly/30T9yX6].

(Parênteses: essa tese é o argumento usado por cinco eleições federais contra o PT, de que se vencessem o próximo pleito implementariam uma ditadura - aprovando, inclusive, a "PEC da Bengala" para evitar o "aparelhamento" do STF (por petistas como Fux, Barroso, Cármen Lúcia, etc). Ao cabo, Lula e Dilma foram de um republicanismo de almanaque (no sentido de ignorar as condições reais, fora da teoria) e nunca passaram nem perto desse roteiro, enquanto FHC não precisou do segundo mandato para mudar a constituição para atender aos seus anseios pessoais, ou melhor, aos anseios de uma classe que se via encarnado nele e seu governo. Fecha parênteses)

Como eu disse, apesar de mal defendida, a tese de Stuenkel parece razoável - ao menos logicamente. Ainda assim, ele ignora algumas peculiaridades da Terra Brasilis, que poderiam nos ajudar a entender melhor nosso caminho para uma ditadura menos ou mais fechada (ou uma democracia mais ou menos aberta, se se quiser manter as aparências de normalidade que a grande imprensa tupiniquim adora). 

O elemento mais significativo ausente do texto do acadêmico talvez seja o poder que as classes dominantes tem sobre as instituições brasileiras, a ponto de apenas Vargas, entre 1930 e 1945, ter conseguido se sobrepôr ao seu controle estrito - mas era um contexto bem peculiar e um político também extraordinário. Tivemos 21 anos de ditadura militar em que houve revezamento de ditadores eleitos; e a ditadura caiu basicamente pela conjunção de fatores internacionais com um projeto de desenvolvimento mais autônomo por parte dos militares (o II PND), que fizeram com que essas mesmas elites os abandonassem e passassem tentar a balizar a democracia da Nova República - sendo atropeladas pelos movimentos sociais nascentes que confluíram para a finada Constituição Cidadã, de 1988.

Ao caso brasileiro atual. Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro, e o acabar de vez com o fiapo de democracia que resta no país - assim como fez Ortega na Nicarágua -, com implementação de um estado de exceção constitucional (como foi feito pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que nunca revogou a constituição de Weimar). Repare que falo em "segundo governo de extrema-direita" e não "segundo governo Bolsonaro", justo porque, ao gosto da tradição das nossas elites, o que importa mesmo é que o projeto tocado pelo executivo seja do seu agrado (e dos seus financiadores internacionais). 

Como disse Rosângela Moro sobre seu marido e o atual presidente: "Eu vejo uma coisa só". E de fato são: o projeto de ambos, em seus detalhes, é o mesmo. A diferença é a forma de aplicá-lo - e nisso Moro parece ser mais bem assessorado para passar um verniz de pessoa menos tosca, o que agrada nossas elites e seus asseclas de classe média. 

Por isso, uma eventual eleição do ex-juiz de camicie nere me parece mais perigosa do que a reeleição do atual presidente: seria, no fundo, a reeleição do projeto fascista-liberal posto em prática desde o golpe de estado de 2016, agora com aval cego das elites e da mídia corporativa nacionais (e internacionais), o que permitiria uma perseguição feroz a todo tipo de dissidência - dos famélicos que "roubam" comida vencida do lixo, aos movimentos sociais, passando pelas lideranças políticas de envergadura, de qualquer espectro político (ou seja, tirando esse último aspecto, basicamente o que ele fazia como juiz de primeira instância [https://bit.ly/30TvVLv], agora como presidente da república, comandante em chefe das forças armadas e com o poder de nomear os chefes dos órgãos de investigação e espionagem e ministros do STF e STJ). 

O Partido Militar já está com ele (possível que indique o vice, dizem que seria outro egresso do governo Bolsonaro) e o PSDB deve aderir em breve (se é que o partido ainda tem alguma relevância política verdadeira, fora do interiorzão de São Paulo). Os partidos fisiológicos de direita, esses poderiam ser comprados a granel - apesar de toda a antipatia que nutrem pelo ex-juiz. A esquerda não deve fazer uma votação expressiva que lhe garanta poder de veto no congresso. Assim, a eleição de Moro desarticularia a (já enfraquecida) oposição efetiva que há contra Bolsonaro. A assinatura de dois tratados cosméticos na área do clima e da preservação da Amazônia faria ele bem quisto internacionalmente. Mais que Bolsonaro, Moro é fraco e precário, mas quem o sustenta, não.

Restam ainda duas questões essenciais: se Moro vai mesmo concorrer à presidência e se possui chances reais de vitória, com todo seu carisma e empatia. 

Há muitos analistas cantando que Bolsonaro não disputará a reeleição: com isso a faixa da direita e extrema-direita fica aberta para ele, que passa a ser postulante ao segundo turno, caso haja - Ciro tentou entrar nela, mas tudo o que conseguiu foi perder boa parte do que tinha pela faixa de centro-esquerda e centro-direita. Lula é outro empecilho nesse projeto: além de estar muito à frente nas pesquisas e ter uma rejeição baixa, em um debate humilharia Moro de tal jeito, caso este tivesse coragem de participar, que seria difícil o marreco manter os votos - e não haveria edição do Jornal Nacional que o salvasse. Há a alternativa 2018: impedir o ex-presidente de disputar o pleito. Como judicialmente isso parece difícil (no máximo, provável que a campanha petista seja impedida de falar da Lava Jato ou da atuação de Moro como ministro do Bolsonaro), haveria a possibilidade repetir o atentado a Lula, feito em março de 2018, no interior do Paraná, mas dessa vez com profissionais: candidato morto não disputa eleição - o ponto seria só não ser muito próximo da data do sufrágio, de modo que houvesse briga entre seus sucessores a ponto de enfraquecer o PT e a esquerda (Ciro poderia surgir como opção nesse caso, mas se queimou suficiente para ter poucas chances mesmo nesse caso).

Faltando pouco menos de um ano da eleição de 2022, mesmo sem saber quem serão os concorrentes de Lula, já sabemos como correrá a disputa: imprensa corporativa agindo como braço publicitário do seu candidato, demonizando ou invisibilizando as esquerdas e toda fala que não entoe sua cartilha ultra-liberal, e a "terceira via" com as mesmas propostas que o PSDB apresenta desde 2010: anti-petismo raivoso e valores conservadores hipócritas. Deu certo em 2018, quando a terceira via do momento venceu, a despeito de todas as análises dizendo o contrário. Não creio que se repita em 2022, mas é de bom tom não subestimar o poder de nossas elites. 


23 de novembro de 2021

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Prévias do PSDB: incapaz de se atualizar e sem projeto, o partido tenta sobreviver ao que ele próprio criou.

A elite financeira do país busca desesperadamente uma tal "terceira via", algum candidato que rompa com a pretensa polarização entre Lula (ou qualquer nome do PT) e Bolsonaro e garanta não somente seus lucros - que isso o PT fez -, mas o abismo social que impede qualquer questionamento ao status quo

Tirando Ciro Gomes - um coronel esclarecido que parece ter decidido seguir os rumos de José Serra e quer ser presidente a qualquer custo -, são nomes pífios, artificiais, sem nenhum apelo fora das bolhas endinheiradas e de seus asseclas iludidos da classe média. 

O PSDB seria o partido mais consagrado para fazer esse papel - desde que foi deslocado do polo antipetista, que ocupava desde 1994, pelo candidato da terceira via em 2018, Bolsonaro. Contudo, se os anos no poder não ensinaram muita coisa ao partido, os anos na oposição, menos ainda. No máximo - segundo alguns analistas - poderia ter aprendido algo nos anos como coadjuvante ou linha auxiliar em governos militarizados (Temer e Bolsonaro): se acaso o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, aparecesse como viável eleitoralmente para a terceira via, seria de bom tom estar em um partido consolidado (de uma "massa limpinha e cheirosa", como disse certa feita uma publicitária do partido, digo, uma jornalista de um jornal tradicional) para dar o verniz democrático necessário para apresentá-lo ao mundo globalizado. Parece que nem isso o PSDB aprendeu.

Dos nomes que se apresentaram como pré-candidatos, Arthur Virgílio e Tasso Jereissati entraram para marcar posição e tentar evitar que aconteça a nível federal o racha fratricida que houve em São Paulo. 

Eduardo Leite, que enquanto governador do Rio Grande do Sul pratica um neoliberalismo duro, de cartilha, antissocial e incapaz de pensar a curto, médio ou longo prazo, no lançamento de sua pré candidatura ficou entre clichês motivacionais e a incrível tese da grande mídia (que Maria Inês Nassif, há mais de uma década avisava que havia se transformado no verdadeiro partido de oposição) de que foi o PT, principalmente Lula, quem elegeu Bolsonaro - ou seja, está preparando o discurso da derrota. Talvez o mais interessante posto por ele foi uma postura menos personalista - algo que Haddad mostrou ser complicado na tradição política brasileira, mesmo em um partido com uma militância ativa e aguerrida [https://bit.ly/3EPYysv].

Doria Jr., por ser governador do principal estado do país, seria o nome mais natural. Contudo, sua aprovação como "gestor" do estado já mostra suas credenciais. Além disso, vale frisar que suas vitórias nas eleições de 2016 e 2018 se deram muito mais por uma confluência de fatores - bem aproveitados por seus publicitários -, que sincronizavam com seu discurso de ódio há anos exercitado (falei, quando Doria Jr. foi escolhido para ser candidato a prefeito, que isso desabilitava o PSDB do campo democrático [bit.ly/cG160201], e se ainda insistimos no partido como aliado da democracia é porque os padrões de comparação se rebaixaram excessivamente). Por mais que sua equipe de publicidade tenha tentado repaginar seu perfil de fascista que joga golfe para democrata que dialoga e defende a ciência - chegando a enganar alguns incautos muito predispostos a acreditar em qualquer coisa -, o tucano mostra que é o que sempre foi: um bom representante da elite de rapina nacional. Até aí, nenhuma novidade: esperar algo de uma classe que hesitou só de faz-de-conta na hora de apoiar um fascista com ligações com milícias, só para garantir o saque do estado e dos trabalhadores do país mostra qual o caráter dessa classe. Mais: ao fazer um discurso centrado no antipetismo (que é a encarnação de qualquer coisa que cheire a direitos sociais para o povo), sem alusão ao atual mandatário do país, Doria Jr. mostra que o fascismo nunca foi um problema e é, sim, uma opção válida para se atingir o poder.

Fora do discurso antipetista, Doria Jr. não foi além de platitudes de baixa intensidade que ele e seu partido sequer são capazes de seguir - não que isso seja problema eleitoral: a grande mídia vai fazer seu trabalho para que nada disso apareça. Inclusive, não deixa de ser irônico ele falar em pôr uma mulher como vice, quando foi quem articulou para que fosse Ricardo Nunes e não uma mulher, a vice na chapa de Bruno Covas, em 2020 [https://bit.ly/2ZyMBrn].

Do que foi apresentado pelo PSDB, notamos que o partido tenta se viabilizar eleitoralmente, mas não tem mais qualquer projeto de país, mesmo que em linhas gerais - quando muito segue a cartilha neoliberal dos anos 1990 que fracassou em toda a América Latina. 

Desde que Alckmin, em 2006, ao se ver obrigado a apresentar propostas concretas e perder votos do primeiro para o segundo turno com isso, o partido teve que assumir que seu projeto neoliberal não tinha chances de vencer as eleições - e o PT havia achado um flanco por onde vencer sempre -; ao mesmo tempo, seu caráter classista impediu que o partido revisse suas propostas econômicas, mesmo que em detalhes. Se falar de economia era derrota certa, Serra achou a solução em 2010: sua plataforma foi baseada em antipetismo e pautas morais reacionárias. Com isso começou a dinamitar qualquer veleidade do PSDB seguir como um partido sério e, pior, começou a esgarçar a própria democracia liberal do país (análises da Alemanha sob Merkel tem me interessado por permitir ver paralelos com o governo Lula e a forma como o status quo reagiu em cada país), esgarçamento concretizado por Aécio Neves, em 2014 (o que veio depois foi só consequência de uma democracia desacreditada, praticamente de fachada, pois não era respeitada pela oposição nem no básico de reconhecer o resultado eleitoral). 

O partido até largou das pautas morais, mas não consegue ir além do antipetismo e do neoliberalismo - todas essas três pautas apropriadas por Bolsonaro, a última de maneira velada no seu discurso ao grande público. Agora, com Doria Jr. e Leite, mostra que deve tentar se reinventar nas pautas morais, porém sem mexer no essencial da economia política e da exclusão social. Pior, mostra que vai seguir com o processo de fuga da discussão política, com o trato do adversário como inimigo - hesitei em chamar de "satanização do inimigo", mais afim aos tempos necroteopolíticos atuais -, e uso de um bode expiatório que só convence os convertidos - mas prepara terreno para a aceitação de um futuro golpe que termine de enterrar nossa moribunda democracia.


23 de setembro de 2021

domingo, 9 de maio de 2021

Sobre o sacrifício (no Brasil da extrema-direita)

E será que não vivemos num território sagrado, de deuses que nos exigem sacrifícios por sua permissão para ocuparmos uma terra que não nos pertence? O fogo que aparentemente consome Amazônia, Pantanal, Cerrado, o ar puro, a biodiversidade - o corpo indígena ou indigente -, talvez seja deus nos protegendo - nós, leigos, que não o notamos. "Entre os hindus não havia templo. Cada um podia escolher o lugar que quisesse para sacrificar, mas esse lugar devia estar consagrado mediante alguns ritos, dos quais o mais essencial era aquele que consistia em dispor os fogos. O fogo é matador de demônios, mas dizer isso ainda é pouco: ele é deus; é Agni em sua forma completa". A pergunta que talvez devêssemos nos pôr: quem são os demônios que esse fogo tenta expurgar? "Do mesmo modo, segundo certas lendas bíblicas o fogo do sacrifício não é outra coisa senão a própria divindade que devora a vítima ou, para dizer mais exatamente, o sinal da consagração que a inflama". Será a nossa consagração, nessa terra que alguém tornou santa antes que percebêssemos? E inebriados pelos deuses - nos sentindo o próprio deus na Terra -, nos perdemos em rituais que nem nós percebemos - talvez o tilintar de cobres santificados nos cegue para a crua realidade? "No México e em Rodes embriagava-se a vítima. Essa embriaguez era um sinal de possessão, o espírito divino invadindo já a vítima". Nos embrigamos para esquecer os demônios que nos habitam e atormentam, mesmo quando deveríamos estar alegres. Há ainda espaço para possessões? Somos os sacerdotes, a vítima ou o demônio? Seríamos os três e ainda o leigo que assiste a tudo sem entender? "A morte deixava atrás de si uma matéria sagrada, a qual servia para desdobrar os efeitos úteis do sacrifício". Não, não morremos ainda - nós, brancos, classe média, que vemos com ignorância, angústia e medo o horror de tudo isso -, nós não somos as vítimas. Nossa participação nesse sacrifício se dá de outra forma - ao menos por enquanto. "Em Atenas, o sacerdote do sacrifício das Bouphonia fugia jogando fora seu machado, todos os que haviam participado do sacrifício eram citados no Pritaneu e lançavam a culpa uns sobre os outros; por fim condenava-se o cutelo, que era lançado ao mar". Mas em Terras Brasilis, ocupada por europeus errantes ignorantes de sua origem, seu destino e seus pecados irremissíveis, diante da sacralidade bovina, optamos por carne preta, mais abundante e mais barata no mercado - alguns dizem ser humana, como se fosse da mesma matéria da de uma pessoa branca. Porém nessa performance tropical não há troca de acusações, não há exílio para os sacerdotes do sacrifício, pelo contrário: o louvor ao cutelo que transforma imediatamente em bandido todo preto que atinge, num ritual que Marcel Mauss e Henri Hubert não imaginavam. Mas algo estamos fazendo errado nesse sacrifício, que semana passada foi de 28, só em Jacarezinho: "essas precauções, propiciações e honorificações têm uma dupla finalidade. Primeiro, indicam o caráter sagrado da vítima; ao qualificá-la como coisa excelente, como propriedade dos deuses, faz-se que ela o seja". Não somos sequer bárbaros: em que momento teríamos perdido nossa humanidade? Somos incapazes do mais elementar um ritual de sacrifício, apenas o sangue pelo sangue. "Mas trata-se sobretudo de induzi-la a se deixar sacrificar pacificamente para o bem dos homens, a não se vingar depois de ter morrido". Nossos sacerdotes e seus cutelos de pólvora parecem ter se confundido com o próprio deus - um gênio maligno a lhes insuflar o erro, falsos profetas a espalhar a mentira como se fosse boa nova. "É que com a morte do animal liberava-se uma força ambígua, ou melhor, cega, perigosa pela simples razão de ser uma força. Era preciso pois limitá-la, dirigi-la e domá-la. Para isso é que serviam os ritos". Esquecemos os ritos que controlam as forças cegas que nos dominam enquanto cremos estar a dominá-las, dessacralizamos a morte e não reconhecemos a honorificações de quem foi sacrificado em vão. Sacerdotes do vazio (quais os efeitos úteis do nosso próprio sacrifício?), nosso devaneio de imortalidade de tempo em tempo, repentinamente, se desfaz e nos vemos banhados de sangue inocente, com nosso futuro consumido pelo fogo que nada purifica - ou será que somos nós os demônios? Nosso devir é explicitado em quatrocentas mil bocas que, como peixes tirados para fora da água, se afogaram em pleno ar.


09 de maio de 2021

* Trechos do livro Sobre o Sacrifício, de Marcel Mauss e Henri Hubert.

** Trilha sonora incidental: Arvo Pärt, Spiegel im Spiegel: 3.  (https://open.spotify.com/track/7v5raGYZhiVO90qGWj5Leo?si=d320c88f9fa4457b)

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Dia do Livro virou dia do ignorante letrado

Semana passada pipocou em minha bolha virtual que era o dia do livro. Muitas pessoas - basicamente todas elas de esquerda - fazendo loas acríticas a esse objeto, como se fosse qualquer panacéia - o emplasto Brás Cubas que nos tiraria das trevas que atravessamos há meia década. Nada contra livros e quem os lê, eu mesmo sou um ávido leitor, acumulador de livros e tenho três publicados, com um quarto para breve. Porém, um livro é só um livro. Se acaso pode ser tido como o mais importante meio de transmissão de conhecimento intergeracional - pude, graças ao livro, por exemplo, ter acesso direto ao que Descartes escreveu (ainda que meu latim não permitisse uma leitura fluida), sem dependência de uma transmissão boca a boca ao longo do tempo, que acarretaria não só uma dificuldade de acesso às suas ideias, como a deturpação delas nesse telefone sem fio de séculos -, ele é apenas uma das formas de aquisição do conhecimento - imprescindível para pessoas de inteligência mediana, como este escriba, mas longe de ser o principal meio de educação e aprendizagem. Se se bastasse por si, Foucault e Lacan não teriam perdido seu tempo no Colege de France, por exemplo, e o homeschooling deveria ser defendido como alternativa razoável à educação.

Um livro é só um veículo, um monte de papel com letras (ou imagens) dentro. Não torna ninguém nem de esquerda, nem crítico, nem inteligente: Sara Winter já posou com vários livros; Olavo de Carvalho, pelo que li de comentadores, para escrever sobre Gramsci e Aristóteles, teve que ler esses autores; Mainardi assina uma tradução de Ítalo Calvino (o que me faz imaginar que tenha lido o livro); alguém acha que ler algum livro da série "Guia do politicamente incorreto" do que for ajudaria a pessoa a refletir sobre o assunto? Para completar: tenho vários ex-colegas das ciências sociais e filosofia, alguns com doutorados no exterior, capazes de leituras hermenêuticas profundíssimas de marxistas ou de autoras feministas, e incapazes de uma leitura simples da realidade, não indo além de chavões precários (também tive professores universitários assim). 

Um desses chavões é levar a metonímia ao pé da letra, e acreditar que o anti-intelectualismo do fascismo seria um ódio ao objeto livro, olvidando que o mais famoso opositor à escrita (e por consequência, ao livro) foi Sócrates, como aparece em Fédro (275a) - e ninguém acha que Sócrates seria inimigo do conhecimento ou do saber, pelo contrário. 

Parte dessa esquerda, inebriada pelo seu reflexo no espelho (no qual aparecem seus títulos universitários e a lombada dos livros lidos, nem que seja só a orelha), talvez por nunca ter lido Paulo Freire (a direita neofascista fala muito mais do patrono da educação do que a esquerda), muito menos ter sentado frente a frente para uma conversa franca, horizontal, com alguém sem instrução formal, adere fácil a essa retórica simplória, elitista e preconceituosa de apologia do livro, por não acreditar que alguém possa aprender a ler o mundo pela razão dialógica (e não monológica e hierárquica como ela) e ter capacidade crítica que ela, arrotando autores em francês e alemão, adquiriu com dificuldade - quando adquiriu. Eu mesmo era um desses até meus 20 anos, quando fui dar aula de alfabetização para senhoras acima de 60 anos. Depois de me sentir envergonhado pelo meu preconceito, aproveite tudo o que elas me ensinaram (inclusive vocabulário), aprumei os ouvidos, e aprendi mais em conversas com gente que não lê livros (mesmo que letradas) mas consegue ler o mundo, do que o contrário. Depois se questionam como Bolsonaro tem penetração em certas camadas da população (como Lula o tem): talvez porque ele não rechace os iletrados como burros ou inferiores? Esse discurso de "é inteligente quem lê" soa um requento daquele que eu ouvia nos anos 1990, de que nordestino não sabia votar, por isso elegia coronel (como se no sul/sudeste não se fizesse exatamente igual, com famílias donas de seus quinhões nos municípios do interior).

Essa esquerda classe média com formação acadêmica precisa urgentemente entender suas limitações e encontrar seu lugar. Isso não quer dizer que sejam inferiores e nem que não sejam importantes. Porém enquanto esses intelectuais-revolucionários-de-gabinete não reconhecerem seu papel marginal na luta de classes estarão agindo como linha auxiliar da burguesia, dividindo as esquerdas, desarticulando a ação e dando munição ao discurso de extrema-direita, que junto com o inimigo sempre abre um flanco para acolher parcela dos humilhados, estimulando o ressentimento. Essa classe média que se pretende crítica precisa antes de tudo fazer uma autocrítica, compreender seu lugar, sim, de privilégio diante da maioria da população, numa sociedade desigual como a brasileira, e lutar pela democratização dessa condição. Sem isso, o discurso contra os efetivos privilégios do 1% e do 0,1% da população poderá ser facilmente desarticulado como contraditório, incongruente e defesa de interesses mesquinhos. 


28 de abril de 2021


PS: ao buscar uma imagem para ilustrar este texto, achei essa tirinha em inglês. Imaginei que esse preconceito pesado fosse algo mais universal, mas ao buscar sobre o cartunista, descobri que Lucan Levitan é brasileiro. A classe média, mesmo a intelectual, mesmo a artista, ainda tem a casa grande como seu paradigma.

PS2: se alguém se sentiu ofendido pelo título, não me desculpo, mas me explico: considero todo preconceito uma ignorância - e, sim, ela pode ser sanada pelo conhecimento, geralmente um conhecimento concreto do objeto empírico do que move esse preconceito (no caso, o iletrado ou o não leitor).

PS3: Meu próximo livro, Linha de produção/Linha de descartes, sairá em breve pela Editora Urutau. Quando tiver mais detalhes, divulgarei aqui e em minhas redes sociais.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Reabrir as escolas, sim; retomar as aulas presenciais, não

Há dez meses, em 28 de junho de 2020 [https://bit.ly/cG200728], eu comentava que a esquerda e o campo progressista tinham grande oportunidade para puxar um debate sobre educação, ensino e escola: o que é, como pode ser, para que serve, quem participa? Havíamos garantido o Fundeb, a pandemia e o distanciamento social se impunham (com todas as consequências e dificuldades para as escolas), e entrava um ministro da educação que agia nas sombras e deixava, portanto, caminho aberto para que outros atores pautassem a discussão sobre educação. Se houve tal discussão, não chegou até mim. 

O tema só voltou à minha bolha semana passada, com o projeto de lei que põe as aulas presenciais como atividade essencial. Esquerda e professores foram contra, mas para mídia, donos de faculdades e deputados, quem são os professores para falar de educação? Partindo em desvantagem, silenciados pela mídia (não esqueçamos o oligopólio midiático), a forma como foi feita o oposição mostra mais uma vez a fragilidade do discurso da esquerda, incapaz de um pensar mais amplo, para além dos termos postos pelo poder. E a seguir assim, dificilmente conseguirá se impôr nas suas razões, porque a lógica na qual se insere é favorável à simplificação e mercantilização da educação.

A aprovação dessa lei não é apenas de interesse imediato dos donos de escolas e faculdades privadas, mas também de muitos pais de alunos da educação básica. Ao se opôr sem conseguir aprofundar a discussão, sem atentar o suficiente a certas reivindicações legítimas que acabam indo ao encontro de Lemann e seus colegas de classe, a esquerda dá oportunidade para a direita atacá-la como alheia aos problemas do povo, e os professores como "típicos servidores públicos", preguiçosos, que não querem trabalhar - vide o dueto tão bem sincronizado do Ricardo Barros com a Tábata Amaral.

Tábata, como sempre, merece um tratamento à parte. Anda difícil a vida dos sugar babies dos ricaços da nação, que tentam se equilibrar entre o que mandam seus donos e o que reivindicam seus eleitores. Inicialmente Tábata votou a favor da urgência do projeto, fez vídeo se justificando, para uma semana depois votar contra (seus colegas, menos espalhafatosos, puderam manter a coerência com os donos). Esse vídeo merece uma análise [http://bit.ly/tabataeduessen]. A golden girl do partido clandestino dos capitalistas seguiu seu roteiro manjado: "argumentou" que veio da periferia, conhece na prática os problemas do povo humilde, é aliada da educação e por isso votou sim. Também não deixou de se fazer de frágil e vítima indefesa, postura à qual apela toda vez que é questionada pela sua submissão incondicional aos seus daddies: se disse cansada de lacração de redes sociais - só se esqueceu de falar da esquerda antiga e autoritária e da misoginia da qual seria vítima (talvez porque isso já não gere mais efeito). A pequena malandragem da deputada está em se dizer a favor da educação como atividade essencial, sendo que o projeto de lei fala de aula presencial como atividade essencial. Pior, seu argumento apela para as crianças, mas o projeto aprovado põe também como essencial as aulas presenciais nas faculdade, às quais assistem várias mães - mas ela não se mobilizou para que as faculdades sejam obrigadas a oferecer gratuitamente creche para os filhos de suas alunas e funcionárias. O verniz da moça é lindo, mas um leve olhar atento já mostra que ela é tão sincera quanto qualquer notícia que circula nas redes de WhatsApp bolsonaristas.

Aqui eu volto à esquerda - boa parte dela, não toda - que segue em seu cochilo, esperando a pauta vir do governo, ao invés de ela pautá-lo; e que tem tido dificuldades para sair dos conceitos postos pelo poder - inclusive os sindicatos, ainda imprescindíveis mas mambembes.

Assim como a Tábata Amaral, também eu acho que educação é atividade essencial. O ponto é se educação só acontece em sala de aula. Se for, está certa a sugar baby: que se abram as escolas e sobrevivam os mais sortudos (já que a Covid, pelo que parece, não leva em consideração se o organismo é forte ou não). Para dar um ar mais descontraídos, poderíamos chamar o "seu Sílvio" para animar as marchas macabras para as escolas, "sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror". Agora, se educação também é feita fora da sala de aula, é de se questionar o que as concessões públicas de radiodifusão foram obrigadas a fazer por ela nessa pandemia (e antes dela também), o que tem sido feito pelos pais e responsáveis dessas crianças, para que tenham tempo e condições para educar seus filhos (redução da carga horária sem diminuição dos vencimentos, por exemplo), o que tem sido feito a favor da cultura, etc. 

Educação ser essencial não implica em escola ser essencial. Mas onde esteve o debate sobre o que é educação nesta pandemia, em que professores, pais e alunos brigavam com computadores e celulares na esperança de oferecer arremedos de aulas (sendo que praticamente todos os lares tem um televisor que sintoniza emissoras abertas)?

E tendo feita a distinção entre educação e escola, aí, sim, podemos discutir a reabertura das escolas, contudo numa chave completamente diferente da retomada das aulas - o que excluiria as universidades, e parte dos lucros dos daddies da Tábata -, até porque o estresse emocional de conviver com essa pandemia, que nos faz viver num eterno "dia da marmota", é grande tanto para professores quanto para alunos, e fica difícil um bom aproveitamento das aulas nessa situação (falo por experiência própria, ainda que minha graduação atual seja EaD). A manutenção de escolas abertas, num regime especial, deveria ser algo proposto pela esquerda e pelos professores desde o início, não só por uma questão de sensibilidade social, como para tentar ter nas rédeas a condução da discussão. Me explico.

Há necessidade de distanciamento social, mas não são todos que puderam fazer: alguns por serem de atividades essenciais, outros porque entramos nessa surreal discussão sobre economia ou vidas, e tiveram que seguir oferecendo oito horas de trabalho alienado ao lucro do patrão, mesmo correndo risco de vida, para não morrer de fome - porque o lucro não pode diminuir, digo, a economia não pode parar. Uma amiga que trabalha num grande hospital privado contou que tão pronto as escolas foram fechadas, os funcionários se queixaram que não teriam onde ou com quem deixar os filhos, logo, ficava difícil manter o ritmo habitual de trabalho; a solução veio praticamente de imediato: o hospital alugou uma escola próxima, contratou cuidadoras, e vida que segue normal (para os ricos e quem os atende). 

Essa deveria ter sido uma das funções assumidas pelas escolas - as públicas, ao menos: local onde trabalhadoras deixassem seus filhos com alguma segurança quando fosse imprescindível. Crianças não iriam para ter aula, iriam para que suas mães não tivessem que pagar para a vizinha do bairro apinhar quarenta crianças no quintal da sua casa, para que elas não ficassem na rua ou sem um adulto por perto. 

E como fazer isso com alguma segurança? Eis a discussão que o sindicato (e não a Tábata e seus amigos do "centrão") poderia conduzir: redução da jornada para um ou dois dias por semana por professor? Escolas com no máximo 20% dos alunos? Vacinação para seus profissionais como prioritários? EPIs de qualidade e bônus salarial? Contratação emergencial de quem fosse para cumprir essa função, sem obrigatoriedade aos professores? Não sei, os profissionais da área com certeza saberiam melhor como fazer - inclusive se isso seria realmente possível de ser efetivado. 

Contudo, a discussão não feita virou discurso entregue para a direita aprovar o projeto de lei como ela bem quis, e ainda ganhar argumentos contra a esquerda e contra os professores. Na atual conjuntura, com as esquerdas incapazes de articular e/ou emplacar uma resposta à altura da situação, parece que sua demonização só se reverterá se as atuais medidas se transformarem em tragédia.



23 de março de 2021