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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Transitar por Buenos Aires

O transporte de Buenos Aires, em seus vários modais, merece uma crônica. Começo pelos ônibus: a primeira impressão é de que são muito velhos, provavelmente causada pela pintura e seus adereços - mesmos nos novos. Reparando um pouco mais, creio ter visto alguns ônibus que no século passado eu já achava muito velhos - sinal que a impressão não é de todo equivocada. Pelos avisos, Buenos Aires parece estar ampliando (ou implementando) corredores exclusivos - inclusive não me lembrava do metrobus nas pistas centrais da Nove de Julho, mas pode ser que eu não reparara. E causa estranhamento também as pessoas fazerem fila nos pontos - e não apenas quando o ônibus pára, pela questão logística de que não pode entrar todo mundo pela porta do busão (tão logo chego no brasil, ainda no aeroporto, o motorista do ônibus mostra onde deve ser feita a fila, as pessoas seguem sua indicação, e na hora de estacionar para embarcarmos, o mesmo motorista pára no meio da fila).
Ciclovias, essas não vi avisos, mas espero estarem sendo ampliadas, pois há lugares em que a ciclovia se encerra do nada, num meio fio, após atravessar uma avenida movimentada. Em geral, elas me pareceram bem mal feitas, antes com efeitos cosméticos que efetivas - apesar de um número não desprezível de pessoas usar a bicicleta como transporte (e tomo como modelo as ciclovias implementadas em São Paulo por Haddad). Boa parte das ciclovias são apertadas, malemal passa uma bicicleta em cada mão e foram feitas próximas ao meio fio, sem nenhuma reforma e adaptação: algumas têm suas faixas ocupadas por lixeiras, muitas ficam na parte originalmente dedicada ao escoamento da água da chuva. Não é preciso ser gênio para saber que em dias de chuva não há ciclovias. Imagino, contudo, que isso não torne impeditivo o uso da magrela: impressão tive que os motoristas respeitam mais, ou melhor, respeitam (ainda que não tanto quanto creio ser o ideal), desde outros motoristas até pedestres - de onde não ver por que excluir os ciclistas. Esqueitistas vi poucos.
Buenos Aires não tem sinais que fecham todo o tráfego aos carros, para que os pedestres atravessem: sinal verde vale para ambos, e ao dobrar a esquina, a preferência é (de fato) do pedestre. O que talvez me irrite mais dos motoristas portenhos é que eles adoram buzina. Notei dois padrões de buzina: as que chamei de che, e as de boludo. As primeiras são aquele "pi" que eles soltam para qualquer coisa, como quando o sinal recém fica verde. A boludo estende-se no tempo, "piiiiiiiiiiiiiiii", quase vejo os motoristas gritando "boluuudo!" dentro seus carros, e são utilizadas para qualquer coisa, também, como, por exemplo, quando o motorista atrasa dois segundos depois que o sinal abriu. Parece que boludar na buzina alivia de prosseguir com ofensas - mas ajuda bastante na poluição sonora. Uma placa curiosa encontrei em Palermo: uma vaga na rua reservada especificamente para um carro, placa tal. Devia ser um morador com alguma deficiência de locomoção, ok, mas ter um lugar só seu na via pública, isso não lembro de acontecer oficialmente no Brasil
Porém, o que mais me motivou a esta crônica foi o metrô, aqui chamado mais acertadamente de subte - vale lembrar que o Metrô de São Paulo, só com as novas ampliações vai se tornar efetivamente metropolitano. Sem muito contato com o modal paulistano, e talvez sob efeito da comparação com os ônibus, não tinha registro de serem tão antigos assim. Havia os trens de madeira, que iam para a praça de Maio, mas esses eram propagandeados como propositalmente mantidos, serviam como ponto turístico. Para não caminhar tanto antes dos shows, vou de metrô até estação mais ou menos próxima do local do festival (uns quatro quilômetros, talvez). Entro na estação Avenida de Mayo. De lá me encaminho até a Diagonal Norte, troco de linha e vou até a Plaza Italia. Simples, pero no por completo. Além de funcionários mal humorados e pouco dispostos a dar informações (diferença grande para os funcionários do metrô paulistano, e não falo isso para puxar saco de amigos), sinalização ruim e caminhos bizarros tornam a troca de linha uma aventura, quase uma caça ao tesouro: é preciso se encaminhar para o fim da plataforma, onde diz saída tal, virar à esquerda, descer a escada, caminhar por um túnel razoável, entrar na segunda direita, caminhar um tanto mais, subir outra escada e pronto: estou do outro lado da estação, pronto para tomar o metrô de volta para a Avenida de Mayo. Mais uma caminhada pelos subterrâneos portenhos, sobe desce, desce sobe, túnel, vira, corredor, vira, túnel, corredor, salva a princesa, sobe, desce, magia, sobe desce, escada, escada, meia lua xis e, agora, sim, me encontro na plataforma certa para seguir viagem - em companhia de um casal formado por um italiano e uma venezuelana, que não economizou no dedo quando o funcionário nos deu a informação de como chegar aonde gostaríamos.
Por ser antiga (imaginava ser da década de 1920, uma amiga me contou que a rede é de 1913), as estação são apertadas, até um pouco claustrofóbicas, por conta do pé direito baixo. Azulejos as enfeitam e as diferenciam, dando um ar menos padronizado - soa estranho, mas não deixa de ser simpático. Falta um pouco de manutenção, contudo: paredes descascando, cheiro de mofo e grandes ventiladores para fazer o ar circular - para não falar nos trens um tanto antigos, dando aquele ar de modernidade de ontem, que comentei quando falei do nome da empresa que administra o Aeroparque (detalhe: os de madeira, me contou minha amiga, foram tirados por conta de reiterados problemas, talvez circulem de domingo). Entendi o porquê de precisar fechar toda a linha B durante o final de semana para implementar ar-condicionado: não parece ser tarefa simples, antes uma considerável adaptação. O terceiro trilho corre pelo alto, há pedra brita entre os trilhos - para não falar de lixo jogado pelos usuários e água da chuva da noite. Na estação, na plataforma de embarque, um ambulante vende doces em uma mala - tranquilamente, sentado no chão. No trem, um brasileiro abre seu teclado e toca Bob Marley, enrola um portunhês (estágio anterior ao portunhol) e pede uma contribuição. As cinco pessoas sentadas na minha frente dariam um curta: uma jovem com fone de ouvido masca chicletes displicentemente, uma mulher perto dos quarenta sentada rígida tem o olhar perdido, um senhor (desses cinematográficos que não são raros de encontrar em Buenos Aires) apoiado em sua bengala, traz o olhar entre o leve fastio e a leve irritação, e, por fim, dois adolescentes, um com óculos de aro grosso, aparelho, espinhas - visual meio nerd -, e outro com óculos escuros, boné aba reta e estilo mano, cantam empolgados junto com o artista de metrô. Atrás deles propagandas. Primeiro imagino que quase todas irregulares, por parecerem lambe-lambe, mas depois passo a achar que a de "canto y escena" é regular, enquanto a de "sevicio de jardinería", por estar colada muito aleatoriamente, é irregular. Agora já acho que as duas são irregulares. É feriado, o número de passageiros é tranquilo, prefiro nem imaginar como é durante a semana - ou, pior, durante a semana com greve dos ônibus, como dali a dois dias. Chego à Plaza Itália sem sobressaltos, pronto para os shows, depois de uma viagem que começou com a visão de um Jesus Cristo do Porta dos fundos do outro lado da estação.

Buenos Aires - São paulo, 16 de dezembro de 2014

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Um dia qualquer em Buenos Aires



No café da manhã do albergue lembro da viagem com meu irmão, em 2006: toca primeiro Manu Chao e a seguir Layla, do Oasis (foi depois de ouvir essa música, em Puerto Madryn, que decidimos assistir ao show deles, alguns meses depois, em São Paulo). Por falar em albergue, ainda não contei aqui: para entrar na hospedaria é preciso estar com o pulso devidamente equipado com uma pulseira azul clara que te dão, dessas de vip em festa. Me sinto quase uma criança trazendo no pulso o telefone de casa, para o caso de eu me perder dos meus pais. Depois de pensar um pouco, vejo que faz algum sentido: imagino um dos hóspedes, zero de conhecimento de espanhol, bêbado, perdido pela cidade, aquele telefone pode ser de grande valia. 
Vou até o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires. A mostra de Leon Ferrari e a inspirada em Sonia Delaunay me interessam. Nesta segunda um guia conduz um grupo com vários cegos. Ele tenta explicar as formas e as cores da obras - a primeira ainda é capaz de eles imaginarem (ou visualizarem, e aqui me vejo com uma dificuldade em fugir de metáforas visuais), as cores, se forem cegos de nascença, não faz sentido. Para além do guia falando, há obras em relevo ou bordadas - como a de Chiachio & Giannone. O guia conduz a mão de um por um pelas obras nas paredes. Em uma delas, um tapete no chão, autoriza que pisem-na, desde que sem sapatos. Tateiam a arte. Um deles se deita no tapete, a luz forte da obra a iluminar seu sorriso amplo. Uma cena bonita, digna das obras lá expostas. 
Perto do museu, uma "escuela de pasteleros". Nas ruas, crianças saem da aula com seus jalecos brancos - me lembro de Mafalda. Me dou conta que descubro as vestimentas escolares portenhas só nesta terceira viagem porque as outras duas eu viera em época de férias. Ainda em San Telmo, já perto da Casa Rosada, adolescentes passam pintados, roupas rasgadas, parecem os calouros de universidade no Brasil - falta o escárnio com a população mais marginal, o "pedágio" nos sinais. Um rapaz me explica que são os ingressantes do colégio Nacional. Cartazes das eleições do Racing estão por toda parte. Em uma parede, uma pichação pede a igreja fora do Estado. Acho reivindicação não apenas válida como anacrônica - por outro lado, penso que essa ligação com a igreja católica impede uma ascensão ao poder de uma extrema-direita evangélica. Na avenida de Mayo, uma manifestação logo no início da tarde. "Barrios de pie" eu já conhecida das outras vindas. Há bandeiras do MST, Movimento Sin Trabajo. Desta feita nenhuma do PSTU. Em uma rua do centro me deparo com uma "librería y juguetería": a associação da brincadeira com a leitura talvez ajude a explicar um pouco a discrepância quanto à leitura entre a Argentina e o Brasil. Numa banca, uma revista chamada Pensadores traz na capa Getúlio Vargas. Uma mulher tenta enfiar seu cachorro rebelde dentro da sua bolsa. No Café Tortoni, turistas fazem fila para visitar o original transformado em pastiche. Numa esquina da Florida escuto uma banda que não me é estranha - é a Roman Jazz, que eu vira na praça da figueira (que não lembro o nome), em Floripa, e até comprara seu disco. Reparo na mudança de vestuário: ainda que não estejam chiques, não se compara ao camiseta regata - bermuda - chinelo ou descalços. Por falar em roupas, aqui a moda é mais marca esportiva do que californianas - pessoas com roupas destas grifes, em geral são brasileiras ou estadunidenses. E eu com minhas camisetas próprias (uma das funcionárias do albergue elogiou a minha da 3rd Line Buterfly). E sapato feminino rasteiro na Argentina tem pelo menos cinco centímetros. Vou ao parque Las Heras, ler um tanto mais de Los jardines secretos de Mogador (e beber de um chá pronto, mistura de várias ervas, de um amargor muito gostoso!). Uma garota passa vendendo livros usados - recuso e logo me arrependo, mas ela já está longe. Passa também uma garota vendendo incensos - e como tem incenso para vender aqui. Apesar de estar no meio do parque, longe de ruas, a poluição sonora me alcança - Buenos Aires me parece bem mais barulhenta que São Paulo. Crianças treinam futebol nos campos de grama sintética do parque. Outras apenas jogam futebol e se divertem, na grama natural de campos improvisados por entre as árvores. Certa hora dois cachorros enroscam os bigodes, para desespero de um dos donos - o do cachorro menor. No hay peligro, diz o outro. Uma garota lê Cortazar perto de mim. Não sei porque, me vem à memória a francesa que estava no mesmo albergue que eu, em Lisboa, e coincidiu de estarmos no mesmo ônibus para Madri. Ela chorava por ter de voltar à realidade, dizia que tinha passado momentos ótimos na capital lusitana. A tarde cai, tomo o rumo do albergue. Alcanço a Nove de Julho. Levo um susto quando um homem sai da caçamba de lixo. Um cachorro o espera fora, abanando o rabo na espera do dono. Soou uma cena muito Beckettiana - Fim de jogo. O realismo fantástico latino americano ganha os tons sombrios do teatro do absurdo. O sol se põe atrás do congresso.

Buenos Aires - São Paulo, 09 de dezembro de 2014.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Praça San Martín

Caminho até o fim da calle Florida e acabo na praça San Martin. Abro o mapa, estudo que rota seguir: não tenho ponto de chegada. Um homem chega oferecendo ajuda, muito simpático. Diz que o senhor da estátua é Dom Pedro I. "O do Brasil", pergunto intrigado. Não, mas seria o equivalente argentino, ele explica. Ora pois, ou é ou não é. Ensina que para um lado é a Recoleta, para o outro, San Telmo, fala rapidamente de um ou dois pontos turísticos de cada lado. Não consigo me desvencilhar, explicar que não estou perdido, nem em dúvida do que visitar: apenas estudo um caminho qualquer a seguir, um caminho que tenha me chamado a atenção no mapa por seus cruzamentos, suas curvas, ou seus ângulos de noventa graus em cada esquina. Depois disso, me pede ajuda para não sei que instituição - está até com um jaleco verde com uma cruz vermelha e um crachá. Lembro da história do meu irmão em Berlin, lembro das histórias quotidianas dos pedintes da estação Tatuapé, que tiveram ontem a mesma tragédia de anteontem - a morte da filha, a internação da esposa -, contadas pela Misson (minha favorita, depois das muitas dos valorosos moradores de calçada (e antes que alguém enxergue, não há qualquer ironia aqui) era a ceguinha que enxergava). Resisto, ele insiste, cedo. Vasculho moedas, mas lembro que na Argentina moedas valem quase nada e dou uma nota de cinco - valor de uma viagem de metrô. Ele pede pelo menos uma de dez, recuso, explico que trouxe pouco dinheiro e troquei no oficial. Só faltou me chamar de burro por não ter trocado no "negro", mas me deixa em paz. Recordo de quando esperava Camila, a moreninha da balada, em 2012, no cinema na Augusta, e um pedinte me pediu uma ajuda; dei-lhe uma moeda que tinha no bolso, cinqüenta centavos, ele reclamou: pó, dá ao menos um real! Eu já estava p da vida aquele dia, e não fosse o encontro nos próximos minutos, teria pego a moeda de volta. Depois disso, nunca mais dei esmola, saio com meu "hoje não rola". Pedintes aqui, há vários, em geral com crianças juno, o que muito me entristece e preocupa - já comentei sobre isso em outra crônica. Ao meu lado se senta um senhor bem cinematográfico, garboso em seus cabelos brancos, sua begala, paletó e sapatos azul marinho, um lenço vermelho. Atrás de mim, um homem vomita novamente. Cansarei de escutar seus despejos gástricos dentro de outras duas ocorrências - o porre ontem foi grande. Dou um giro pela praça. As construções que a circundam se harmoniza, dialogam entre si, apesar de serem de épocas e estilos muito diferentes: é antagônico ao cada um por si e foda-se a cidade dos prédios em São Paulo - do Martinelli e do Copan aos últimos apartamentos de kitnetes lançados na República. Há o museu nacional de armas, mas desconfio que ficarei deprimido em visitá-lo, melhor caminhar a esmo. Buenos Aires tem suas altas torres, banais edifícios pós-modernos de vidro verde que dão um ar de não-lugar aos grandes centros urbanos. Em Palermo, alguns prédios de alto padrão - na avenida Libertador, mas também na Coronel Díaz - já recusam a convivência em seus térreos: recuos frontais ao invés de comércio - e porteiros para garantir a segurança. Eis, talvez, um dos pontos mais decadente que vi de Buenos Aires.

Buenos Aires - São Paulo, 03 de dezembro de 2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não vá ao Caminito, vá à Califórnia

Devia ser por causa do sono, saí do albergue com a idéia de ir até La Boca, ver se achava uma lembrança do tipo que minha mãe gosta. Idéia fraca: poderia até achar, mas seria a um preço abusivo. Sem contar que o Caminito não me empolga: da primeira vez achei lindo: eu tinha dezesseis anos, era um ingênuo de mundo, de cidades, de leituras. A segunda, com meu irmão, saí com a sensação de tudo ali ser muito falso, montado para turista fotografar e consumir (ou então, pra que turista?). Desta vez, nem passei por lá: depois de entrar em algumas lojas dos arredores (descobri que a moda lá, agora, é show de tango nos restaurantes), só para confirmar o que eu já sabia, acabei me enveredando por ruas que não interessam aos turistas - até uma forma de não perder a viagem. E fiz bem! Segui pela beira do rio, na direção contrária a Puerto Madero - caminhões, pavilhões, guindastes, quase ninguém, a água cheia de lixo. Não adentrei muito, cansado estava e torrando sob o sol do meio dia. Sem escolher a rua pelo nome, entrei na California - havia "centro de integração comunitária" na esquina. Mais à frente, me deparia com uma grande propaganda da eleição no time do Racing, e numa praça, além de dois carros velhos, veria um adesivo de time outro que o Boca Juniors, no posto policial: do Barcelona - só no caminito parece que o Boca Juniors é uma total unanimidade na Boca. Mas, por via das dúvidas, melhor não aparecer por lá com camisa do River, ainda mais depois de uma derrota.
La Boca tem um cheiro diferente dos demais bairros da cidade por qual passei - não sei defini-lo bem. Na ida, virei na rua Brasil, e não sei se por meta-crítica, meta-citação, meta-coincidência, as calçadas começaram a se parecer com as brasileiras. Interessante que mesmo sendo um bairro popular, de calçadas estreitas, as ruas são arborizadas. Ainda sobre as calçadas do bairro, lembro de terem me chamado a atenção em 2006, por possuírem um enorme desnível para a rua, ou mesmo para a calçada da construção ao lado, coisa de um metro. Uma antiga fábrica de "bizcochos y talleres" teve mais que sua fachada preservada (a exemplo do esqueleto do pátio dos bondes, em São Paulo), toda a parte da frente e de trás permanecem, ao que tudo indica, utilizadas, enquanto no meio levanta um prédio moderno, envidraçado. 
Na rua Califórnia, enfim, encontrei casas como a do Caminito, as placas de metal fazendo as vezes de parede. Em geral são amareladas ou esverdeadas, porém estão muito longe das cores vivas da rua pros turistas. Quando conseguem, os proprietários dessas casas as substituem por alvenaria - há algumas em que apenas o térreo foi modificado, a parte de cima segue antiga. Sem mudar a casa, instala-se ao menos um ar-condicionado. Consegui espiar dentro de algumas. Há as que são casas normais, há também as que escondem pequenas vilas, com uma ou duas casas ao fundo. Numa casa de alvenaria, estilo antigo, colada à calçada, uma família está à mesa, almoçando. Pouco depois, uma comedoria escura com mesas e cadeiras muito antigas - lembram da cadeira que creio ser a mais velha da casa dos meus pais, atualmente elevada ao posto de elevação para colher frutas, quando a senhora minha mãe não se inventa de pegar escada ou trepar nas árvores. Meu passeio pela Boca termina na praça Almirante Brown, dos dois carros muito antigos, um deles com teias de aranha crescendo nas janelas. Próximo a eles, grupos de trabalhadores em horário de descanso jogam futebol, seus capacetes como demarcações do gol.

Buenos Aires, 28 de novembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Fotografo com palavras

Da primeira vez que vim a Buenos Aires, o posto de informações turísticas da cidade me entregou um mapa com uns duzentos pontos de interesse - principalmente construções e monumentos. Circulei pela cidade na ânsia de ver o máximo que o mapa apontava - e tirava foto de boa parte desses pontos. Em 2006, quando vim com meu irmão para cá, íamos aos pontos turísticos, tirávamos fotos (menos do que em minha viagem anterior), e eu arriscava algumas crônicas. Além dos pontos específicos (Caminito, Recoleta, Casa Rosada, etc), já me despertava interesse o caminho - eu seguia bastante preso à arquitetura. Um casal argentino que conhecemos nos Bosques Petrificados até tirou sarro da nossa cara, dizendo que fazíamos trekking urbano, quando contamos que fomos da Boca a Palermo à pé (por sinal, foi esse casal que nos sugeriu El Chaltén, parte mais legal da nossa viagem). 
Nesta minha viagem atual, pontos específicos são poucos, um ou dois por dia, e a parte mais importante é o caminho. Me prendo à arquitetura, mas também às questões urbanas, às pessoas, aos personagens anônimos do dia-a-dia. Quanto a monumentos, me tocou o monumento a Roca (que eu achei ser a Bolívar), que me surgiu com ares de De Chirico, mas não por ele, e sim pela evocação do pintor que ele e a cidade ao redor, na solidão de um fim de tarde de domingo, me trouxeram. Vendas, mercados, transeuntes me interessam mais. E volto quase a ser o turista desesperado por fotos de quinze anos atrás - a diferença é que agora fotografo com palavras, minha caderneta sempre à mão. Dizia Dominique Wolton que a fotografia está no olhar, não no dedo. Já eu dizia que toda escrita (escrita para além de palavras no papel ou no computador) começa pelo olhar. Agora penso o quanto do olhar não começa na escrita, em alguma narrativa que queremos contar - para nós e para os outros. Tiramos fotos como lembrança (pelo menos na época do filme se dizia isso), porém quantas vezes pegamos os albuns para rever as fotos, sem a companhia de alguém? Acontece, sim, mas vale perder todo esse tempo para guardar algo que poucas vezes vamos nos interessar em relembrar? Será que o mesmo vale para esta série de crônicas, ou ela serve para contar aos outros que estou viajando - assim como quem tira selfie de si em todo lugar? As crônicas de 2006, pensei em relê-las antes de vir. Não o fiz. A única vez que reli algumas foi quando mostrei para uma futura-ex-namorada. Mas me parece que a viagem perde algo se não tenho com quem compartilhar - não sei se a materialidade, o sentido, ou o quê. Na viagem com meu irmão a urgência de fotos e textos era menor, talvez porque o comentário soltávamos na hora. Ou talvez todas estas crônicas sejam força do hábito, uma forma de apreender o que se passa ao meu redor, de dar conta da lógica do choque imposta pelas metrópoles, o olhar ávidospor entender dinâmicas estranhas, reparar em detalhes insignificantes num primeiro momento, e a palavra para não me perder em meio a tantas informações. Enfim termino estes meus questionamentos com o óbvio: escrevo porque gosto, ainda mais diante desse deslumbramento que me causa Buenos Aires.

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014

Enfim portenhos em Buenos Aires

Enfim Buenos Aires em dia útil - termo que não me agrada, pois fim de semana está longe de ser inútil. Buzinas, carros, pessoas, trânsito. Nos calçadões há anúncios outros que de câmbio. Não sei se houve uma faxina social, me chamou a atenção praticamente não ter mais gente anunciando chicas dos inferninhos locais - me deparei com apenas um. Dólar rende mais que sexo? Também é curioso que, ao menos no centro expandido, não haja vendedores de dvds piratas - encontrei um na avenida Callao, apenas -, em compensação de adaptadores de tomadas... mostra da força do turismo na cidade. Colegiais vestidas de colegiais - saia plissada, meião e sapato. E eu achava que isso era coisa só de pornô japonês. Duas crianças jogam futebol com uma caixa grande na Lavalle. Por sinal, chama a atenção que boa parte dos pedintes do centro estejam acompanhados de crianças - noto isso com bem menos freqüência no Brasil, não sei se resultado das contrapartidas exigidas pelo Bolsa Família, ou da ação do conselho tutelar. Páro numa praça da Recoleta, retomo a leitura de "Los jardines secretos de Morgador". Cinco crianças brincam de esconde-esconde. Devem ter seus sete, oito anos. As mães, uma senhora em cadeiras de rodas e sua acompanhante se divertem ao assistir à brincadeira. Me lembram Mafalda (que sempre imaginei morar por estas quebradas, ao invés de San Telmo, como ficou consagrado, até por uma estátua dela), me lembram também do quanto praça, infância, brincadeiras antigas parecem estar ausentes de São Paulo e outras grandes e médias cidades. Mesmo as pequenas. Quando eu era criança, era comum brincar na rua, jogando futebol, em corrida de skate (sentados), construindo barragens de folhas em dias de chuva, jogando pinhas para os carros atropelarem, andando de bicicleta, riscando o asfalto com gesso... isso que eu era muito do video game. Atualmente, em minhas voltas pra casa, acho o máximo quando vejo um grupo de crianças andando juntas. E não adianta argumentar que estou num bairro rico de Buenos Aires, crianças em situação equivalente em São Paulo estariam ou na área de lazer do prédio, ou no shopping - porque a rua é perigosa, porque o diferente é perigoso e invejoso da nossa superioridade, porque o Outro é, de antemão, uma ameaça. Não adiantou o crescimento econômico e a diminuição das desigualdades da última década, seguimos pobres - de espírito. Sinto frio na sombra, calor no sol, desisto da leitura. Deixo o banco, a bituca de cigarro, a tampa de cerveja e os três pedaços de fio - um azul, um branco e um verde - que jaziam aos meus pés. Buenos Aires é muito mal servida de lixeiras. Cafés e bares aqui costumam ter jornais para os clientes. Páro numa cafeteria que oferece várias opções de café do mundo. No menu, avaliação de corpo, acidez e sabor; o preço é próximo de café em qualquer lugar, na faixa de trinta pesos. Tomo um indonésio, único nota cinco no quesito corpo. Acompanho um tempo o movimento na avenida. Atrás de mim, o garçom acompanha City e Bayern (descubro que perdi de assistir a dois gols no fim do jogo). Passa pela rua uma criança acompanhada por seu pai - deve ter a mesma idade das da praça. O garoto volta da escola, traz na cabeça uma coroa de papel e chora - um pequeno déspota de uma época que todo não é uma recusa ao ser? Talvez o pai não tenha aceitado parar em algum rede de fast-food: aqui os jovens, ao invés de se aglomerarem nos shoppings, parecem preferir redes internacionais de alimentação (sic). Por falar em redes internacionais, Armazém Dom Manolo muito provavelmente seria coisa do passado hoje: lembro de ter passado por apenas três mercadinhos que não eram ou de uma grande rede, ou de chineses - em um destes, mostra da ascensão social, atrás da vitrine em chinês, funcionários andinos. Mesmo os quioscos - que agora se denominam "drugstore", apesar de as únicas drogas vendidas serem alcóol e nicotina -, grandes redes dão a impressão de serem maioria. Buenos Aires segue com muitas livrarias e poucas academias - e os argentinos parecem ser mais magros que os brasileiros. Ler emagrece? Passo pela primeira vez por um restaurante japonês, na verdade demi-japonês, como também é comum no Brasil; a diferença é que aqui é um restaurante peruano-japonês. Faz sentido. E próximo ao Congresso, o Bar Revolucionário, talvez uma versão portenha para o Ecla. Diferentemente do esquerdista brasileiro, o bar vende livros e promove seminários - no caso atual, sobre periodismo y midia -; não sei se tocam tango. Pouco abaixo, outro bar no estilo, o MU, onde está na vitrine o livro "Brasil, ¿un nuevo imperialismo?". No fim do dia, me deparo com um protesto, que saíra do congresso em direção à Casa Rosada - uma cena banal para Buenos Aires, onde a rua, além de local de convivência é também lugar político. Banal não sei se é a participação brasileira nesses protestos. Vejo bandeiras do MST. Em alguns cartazes leio "izquierda unida", em outros, "esquerda unida", em meio a esses cartazes, bandeiras do PSTU - mas não é pela união das esquerdas?

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Um mergulho na avenida General Las Heras

Receoso de algum problema com a retirada do ingresso para o festival (o local que optei por retirá-lo estava fechado devido ao feriado), saio cedo do albuergue, em direção da praça Itália. Pelo que me lembro, gostaria de ter ido até lá em minhas outras passagens, mas algo me desviava do alvo. Desta vez cheguei, e consegui a entrada sem problema (soubesse e teria ido à trés da tarde, que já desceria direto para o show). No metrô vejo uma figura digna de ser protagonista do Portas dos Fundos como Jesus: um homem barbas e cabelos longos, sandália e túnica. Ingresso em mãos volto caminhando para o albergue: Buenos Aires é um convite a um sovina como eu economizar no transporte e caminhar pelas suas calçadas. Buenos Aires também tem a bela idéia de as ruas não mudarem de nome, só porque vereadores de turno querem homenagear alguém com um novo trecho. Saio do local de retirada e dou de cara com a avenida General Las Heras! De um lado, o jardim zoológico, do outro, o jardim botânico, e um quilometro adiante, duas viagens no tempo. Antes de chegar ao conhecido trecho, desvio até um shopping, para necessidades fisiológicas. Ao adentrá-lo, lembro do comentário de meu irmão: shopping é tudo igual? Um não-lugar é sempre um não-lugar, e ali me sobra uma lembrança pelo acaso de não sermos bem adequados ao ambiente. Não sei se foi nesse shopping que meu irmão se empolgou quando começou a tocar Beck, My summer girl - creio que sim, dada a seleção de músicas do pouco tempo que fiquei. Volto à Gral Las Heras. O parque parece menos inclinado do que tinha em mente, o restaurante do garçom que fazia caretas por termos pronunciado errado o prato, em 2006, mudou de nome, e o prédio onde fiquei, século passado, descubro agora, era de esquina. Lembro de, em 1999, ter aceitado o banho oferecido pelo dono apenas por não saber - assim como o aceitar descansar um pouco, eu que não estava cansado, apenas nervoso. Se não me errei, a cafeteria que fui depois desse meu descanso, Pilar, Sergio (era Sergio o nome dele?) e a mãe de Pilar, virou uma rede americana. Lembro de ter ficado horrorizado com o preço do suco de laranja - quatro pesos - e da mãe de Pilar ter dito que eu tinha mãos de pianista - ao que respondi que realmente tocava piano. Um casal de chineses passa por mim falando em castelhano com sotaque chinês (e no albergue, agora, ao meu lado um grupo de australianos fala um inglês difícil de acompanhar, do outro, um grupo fala não sei que língua, parecia francês no início, agora parece árabe, ou um alemão muito estranho. Um canadense se aproxima, pergunta se sou alemão). Passo pela faculdade de engenharia da UBA. Me lembro de um prédio pesado, escuro - talvez confundisse com a igreja há pouco deixada para trás? De qualquer modo não lembrava de um prédio tão imponente. Foi ali perto que numa das minhas primeiras andanças pelo bairro, no início da noite, um grupo de crianças, treze anos, por aí, perguntou minha idade, para me vender uma garrafa de uísque, e eu passei por eles com medo - como pode tanto medo? Acho estranho, quando passei por ali, oito anos atrás, algumas lembranças vieram, sim, mas não me afetaram desse modo. Volto ao albergue, me preparar para o show, tentar me aliviar de algo que me perturba desse passeio.

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014

Três bandas bastam

Três bandas bastam para fazer um bom festival - talvez não para trazer bons lucros. Três bons shows me parece um limite para todas serem bem aproveitadas. Radiohead, Kraftwerk e Los Hermanos, em 2010, por exemplo. Juana Molina, Yann Tiersen e Mogwai, no Music Wins, em 2014. O festival trazia outras bandas, que serviram só para cansar. Sim, havia quem gostasse de Pond, Tame Impala ou Erlend Øye and the Rainbows, mas eram públicos muito distintos.
Cheguei à Costanera Norte quando Pond tocava. Não me agradou, mas circular pela área, reparar no público, foi intetessante. Notei que uma das modas indie em festival argentino, ao menos para las chicas, é galocha ou coturno - muito práticas em caso de chuva e lama. Também que elas mentem na altura, ao usar all-star plataforma, por exemplo. Notei ainda - mas isso foi durante o show da Juana Molina - que argentinos são baixos, e ter um metro e noventa de altura te torna um dos mais altos da platéia, visão livre para o palco. Ponto negativo: você estar na direção da câmera e identificar sem sombra de dúvidas sua careca - e isso (a careca) é algo que me incomoda muito. Enfim, de volta ao festival. Após Pond, achei que viria Juana Molina, mas veio o tal de Øye, chatíssimo - de legal, só que parecia o Bill Gates recém saído da faculdade tentando ser pop. Oquei, eu estava entretido vendo las muchas chicas guapas - em especial uma bochechudinha nariguda, sardenta de olhos verde acizentados (sou daltônico, antes que me perguntem como não soube identificar a cor dos olhos da garota), encantadoramente apaixonante. Mas mesmo esse entretenimento passa a ser cansativo quando a banda não ajuda (porque também não vou ficar olhando fixamente, que seria deselegante, para dizer o mínimo, apesar da vontade de não tirar os olhos da referida guria). A banda seguinte era tão chata quanto. Anunciou uma nova música e tocou mais um The Smiths piorado. Segui a indicação de dois vizinhos de sombra, que saíram às pressas assistir a D.I.E.T.R.I.C.H., no palco para bandas menores. Banda interessante, um eletrônico com batidas meio indígenas, presença de palco marcante, principalmente por estarem todos com os rostros cobertos. Ainda assim, começava a me arrepender do festival.
Foi quando vieram as três apresentações que me interessavam, para tirar qualquer pensamento que soasse um "será?". Molina entrou no lugar de Beirut, e ornou muito bem com as duas seguintes. Conhecia apenas um disco e algumas músicas dela (e gostava), e vê-la trabalhando o som, com loops e distorções - numa delas com inusitadas palmas do público a se repetir com sua voz - foi muito interessante. Seu show acontecendo com o cair da tarde também ornou muito bem - deu um toque que as luzes de palco não dariam. Yann Tiersen fez outro bom show, tocou uma música da trilha da Amelie Poulain, algumas do disco novo, Infinity, e poucas do anterior, Dust Lane, meu favorito. A conclusão a que cheguei foi que o francês sempre faz um prelúdio um tanto etéreo antes de começar a música de verdade. Da estética de palco, luzes de descarga fazendo a frente - muitas vezes como únicas luzes, uma para cada músico - davam um clima interessante. Duro era o moving light (é o que dá ler crônica de estudante de iluminação) passando pela cara do público o tempo todo, cegando-o. Era bonito o efeito, visto pelo telão, daquelas silhuetas vermelhas de cabeças - não era legal a luz no seu rosto (na verdade, esse é um problema de ser alto em shows argentinos, quando me abaixei à altura média, a luz não incomodava tanto).
Enfim, o grande show da noite, para mim: Mogwai. O quinteto de Glasgow, assim como o de Oxford, superam o quarteto de Liverpool, na minha opinião - desconfio que polêmica, mas a mais acertada. O que me chama a atenção é como parece que a banda surgiu pronta: eles tocam músicas do primeiro ao último disco, percebe-se algumas diferenças, mas as antigas não soam datadas (diferentemente de Radiohead, por exemplo, em que Pablo Honey é praticamente dispensável) nem repetitivas. A forma como eles trabalham tensões e sua resolução (ou fim brusco) também impressiona: a música parece ocupar todo o espaço, mesmo em pianíssimos como New Paths to helicon pt 1 ou Mogwai Fear Satan. Por sinal, emendar 2 rights make 1 wrong com Fear Satan dava para ser o fecho do show, se eles não fizessem questão de encerrar com tudo, com Batcat (a exemplo do show no Sónar, em 2012) - até eu fui pra frente (quero dizer, mais para frente), fazer parte da roda de aloprados e alopradas que pulavam ensandecidos. Uma coisa muito legal de assistir a show na Argentina é a tradição de canto das torcidas, e poder acompanhar Rano Pano fazendo ôôô-ôôô-ô-ô-ôô e por aí vai (show do Iron Maiden deve ser um orgasmo geral). Talvez por ser festival, sem muito tempo para montar o palco, talvez por ser na América Latina, talvez porque seja assim mesmo, careceu um trabalho um pouco melhor com as luzes - algo que o show pede. Contras, fumaça e estrobo, por mim, poderiam ser a base.
Do festival, positiva a localização: perto do centro, longe de residências. Os aviões que partiam do Aeroparque, bem ao lado, até poderiam compor bem o cenário, não fosse o barulho (Juana Molina ora comentou o estranhamento de tantos aviões - ninguém deve tê-la avisado). Achei interessante o esquema de só ser autorizada a venda e consumo de cerveja em espaços reservados - em tese para restringir o consumo entre menores, mas só em tese. O negativo para o evento (não para o público) é que vende menos cerveja - ou os argentinos são menos desesperados para encher a cara. Péssima foi a organização: não havia panfleto, cartaz, aviso nos telões, nada, sobre que banda se apresentaria qual horas - fui pra frente do Øye esperando Molina, por exemplo. Houve também atrasos nos shows de Yann Tiersen e Mogwai (apesar de ter sido divertido ver os dois contra-regras como que diaputando quem levantava mais o público com Black Sabbath). E das coisas mais chatas, a passagem de som de um palco atrapalhar o show do outro, a ponto do público ter que pedir silêncio. Preciso admitir, em organização, o Brasil está bem melhor. Mas nenhum desses poréns fez eu me perguntar se valeu a pena ir para a Argentina encarar um festival - depois de já ter me dito várias vezes nunca mais ir a um. 

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014.

De madrugada

Findo o show da Mogwai, queria mais voltar pro albergue: os escoceses foram a cereja do meu bolo que começara com Juana Molina e Yann Tiersen. Fiquei para conhecer a Tame Impala, ver se valia ser a grande atração da noite: duas músicas já me cansaram (na verdade eu já estava cansado depois de aloprar no Mogwai, aprendi a freqüentar festivais de música como se freqüenta museu). Conforme a atendente do albergue, o táxi me cobraria cerca de duzentos pesos para me entregar no meu local de pouso. Fui com pouco mais que isso, e consumi metade em uma água, uma cerveja (que abandonei pela metade, porque havia uma área resteita para consumo etílico, de modo que eu não podia esquentá-la enquanto via um show) e um café. Me restou as alternativas de rachar um táxi (mas com quem? Até pedi a umas gurias que iam para endereço próximo ao meu, mas recusaram dividir a corrida em quatro, ao invés de três) ou voltar a pé. Optei pela segunda, mas com uma grande dose de receio: teria que passar por uma passarela onde na ida havia um morador de rua (uma figura que me tocou bastante), e várias praças. No Brasil, pelo senso comum (que tento quebrar, mas até que isso aconteça, também sigo), seria loucura. Para não me arriscar tanto, esperei até perto do fim do show, quando um número considerável saía - ainda muito longe da multidão que estava no local. Fui atrás de um grupo, poderia ser que estivessem indo para um ônibus de excursão. Não iam. Por sorte, pensei equivocdamente. Passei pelo mendigo, que dormia. A partir de então foi por ele que temi: isolado, dormindo, ao fim de um festival cheio de adolescentes, no Brasil, imagino, não seria difícil algum grupo resolver "zuar" com ele (talvez tenha acontecido aqui também, não creio). Vinham agora os parques e praças. No observatório, quase meia noite, vi flashes: uma família, com crianças pequenas, fotografava os patos dormindo. Isso me deixou bastante perplexo. Nos demais parque pelos quais passei (do outro lado da rua) estavam desertos, mas deles não exalava nenhuma sensação de perigo. Me perguntei se seria possível caminhar com tamanha tranqüilidade meia noite em São Paulo - nunca fui assaltado a sério, mas evito dar qualquer bandeira. Ok, estava eu num bairro rico, mas em São Paulo, amiga comentou que quando precisa voltar pra casa de madrugada, vai pela avenida Angélica, e já passou alguns apuros. Em ruas secundárias, quioques abertos funcionam atrás das grades do estabelecimento - nem tudo são flores, mesmo na parte "in" do sistema argentino de exclusão social, apesar de várias floriculturas abertas na Recoleta. Citei por alto na primeira série destas crônicas da violência simbólica de São Paulo - tinha em mente os apartamentos com seus muitos seguranças, o CCSP se limpando de povo, a polícia militar pedindo documento de pobre com arma na mão, o mendigo que humilha o andino, não me imaginava tão alvo de violências do tipo. Ao caminhar sozinho na madrugada portenha, sinto o quanto também sou vítima da violência simbólica paulistana - ainda que não faça nenhum sentido culpar aqueles que diretamente me amedrontam.

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

Cortázar, De Chirico e música indiana

Achei que o cano de esgoto que passa rente à minha cama e faz um barulho considerável fosse me incomodar mais - menos mal que estava equivocado. Após um café da manhã bom para os padrões de albergue (e o melhor, liberado), parti para minha pernada com a missão de achar uma casa de câmbio - nem que fosse legal, pagando 75% do que pagam no "negro". Eu tinha trinta e dois pesos na carteira, suficiente para comprar duas empanadas, e nada mais. Me encaminhei para a rodoviária, onde esperava encontrar um casa de câmbio aberta. Não precisava ter me preocupado tanto: alguma dúvida que o negro funcionaria durante o domingo numa região tomada por turistas? Por sinal, o microcentro de Buenos Aires no domingo me lembra um pouco Florença, na ocupação por turistas e por pessoas que trabalham em função deles. Saramago, em seu "Manual de caligrafia e escrita" dizia que Florença não pertencia mais aos florentinos - isso, imagino, não acontece com a capital argentina (tirarei a prova ao longo desta semana). De qualquer forma, melhor um centro vivo a um semi abandonado, como a região da Sé, em São Paulo. Mais calmo, fui para a feira de San Telmo. Buscava uma cuia nova e um souvenir para minha mãe. Encontrei Rayuela, do Cortázar. Me pareceu um pouco caro, resolvi pesquisar mais, só achei mais caros e não encontrei novamente o de noventa pesos. Paciência, ou melhor, pressa, porque o tempo passava e eu havia me programado assistir a um show de jazz de um japonês no meio da tarde, e a uma apresentação de dança contempôranea no início da noite (abri uma exceção à minha regra de não emendar atividades culturais). Bilhetes do metrô em mãos, descubro que a linha até esses eventos estava fechada. Desisto e vou a um concerto de música indiana, no centro cultural Borges, nas Galeiras Pacífico. O público argentino, preciso dizer, compete em pé de igualdade com o brasileiro: fotos, celulares tocando, papeis de bala, conversas, crianças chorando. A apresentação foi muito boa, apesar disso, e saí querendo tocar cítara ou aquela caixinha sanfona. Afora o público da apresentação, três coisas me chamam a atenção no shopping: brasileiros tirando foto em frente a uma rede internacional de café (ruim, mas admito que são bons em criar ambiente em que você não se sente pressionado a consumir ou sair), dois homens negociando no negro dentro do banheiro (no Brasil, até onde me consta, banheiro, nas suas hetrodoxias, serve no máximo para "banheirão"), e a árvore de natal fotografada pelos turistas que, ao invés de uma mensagem de feliz natal traz o nome do shopping: não há sequer a tentativa de disfarce de auto-promoção, é a apropriação crua do símbolo, Armazém Don Manolo vende baratíssimo, já anunciava o amigo da Mafalda. Sem meu programa inicial, vou atrás de um livro e uma praça. Encontro um livro intitulado "El placer sexual en el matrimonio" e penso com meus botões: um livro desse é um atestado de tendência ao fracasso do tal matrimônio. Outro livro que vejo é "El jugador", do Dostoievski. Lembro quando o li, aos dezoito anos, por aí, não ter entendido: porque o protagonista se afunda sabendo que vai se afundar? Uma doutoranda da psico, Cris, quem me explicou qe era isso mesmo, meu não entendimento era um entendimento. Acabo comprando "Los jardines secretos de Mogador", de Alberto Ruy Sánchez. Encontrar uma praça para lê-lo não foi difícil, e o livro estava bom quando me decido voltar à feira de San Telmo, comprar a tal cuia nova - a minha atual, ganha há quase quinze anos do meu amigo Celestino, ressente alguns tombos esses anos todos. Passo pelo Obelisco, um enorme grupo de adolescentes, entre doze e quinze anos, está lá, bebendo refrigerante e paquerando (admito estranhamentompor não estarem bebendo algo alcoólico e fumando). Um grupinho comemora o beijo entre dois deles - entendo essa reação, eu mesmo tenho vontade de gritar gol nessas horas, mas não faço para não assustar a guria. Compro a cuia, e resolvo percorrer novamente a feira - passo por uma capoeira em adagio e por um jazz meio latino. Eu que já havia notado com surpresa que não trombara com nenhum conhecido, tendo percorrido as feiras da Recoleta e de San Telmo, cruzo com um conhecido, que ficou um tempo hospedado na casa da minha amiga Misson - ele não me enxerga. Meia quadra depois, encontro a barraca com o Rayuela - livro favorito da Misson -, e ele segue esperando comprador. Outra daquelas coincidências que tratei em outra série de crônicas. Tomo o caminho de volta, um monumento (creio que a Bolívar, pela estação de metrô junto a ele) de um herói sob um cavalo desponta com a claridade do pôr do sol de contra-luz. As paredes de uma igreja de um lado, prédios do outro, enquadram a figura e parece que vejo um quadro de De Chirico. Chego ao albergue com uma agradável sensação de estar em casa.

Buenos Aires, 23 de novembro de 2014.

sábado, 22 de novembro de 2014

Entre lembranças e coisas caras



São Paulo amanhece sob garoa, um convite para ficar em casa, bebendo chimarrão e lendo, quem sabe conversando. No ônibus Tatuapé-Guarulhos, o motorista desfia alguns preconceitos moralistas paulistanos. Chego ao aeroporto junto com a delegação do Paraná Clube - não vejo o Ricardinho. No avião, seguro o sono para poder ver a decolagem: ver a cidade viva diminuindo logo abaixo sempre me emociona - identifico o Museu do Ipiranga em meio a selva de pedra.
Mi Buenos Aires querida! Lembro de ter ouvido isso de um passageiro quando nos aproximamos, no vôo da TransBrasil, em 1999. Eu olhava pela janela, apreensivo e meio arrependido: vai saber o que poderia acontecer comigo na cidade grande? A capital portenha, ao menos no trecho que o avião percorre - claramente de classe alta - tem árvores, nas casas e nas ruas, além de piscina em cada quintal. Desço no Aeroparque, o responsável pela sua administração é o Aeropuertos Argentina 2000 - dá a sensação de modernidade ultrapassada, quando 2000 era o futuro. Vou caminhando até o albergue, pouco depois do obelisco. Logo na saída, vejo barcos, veleiros (meus conhecimentos náuticos não me permitem discriminar com propriedade) no rio da Prata e várias pessoas pescando - na beira do rio há banquetas de cimento com suporte para a vara. Eis aí registros que eu não possuía das minhas vindas anteriores. Há também pessoas ocupando a orla, assim como adiante haverá muitas ocupando as praças, e demoro para visualizar o primeiro conjunto de mate rodando os amigos que desfrutam a tarde de sábado na cidade.
Pelo que se noticia no Brasil, imaginava uma cidade decadente, ao contrário, sou obrigado a desviar de obras de melhoria urbana. Em certa altura, tenho a impressão de reconhecer o lugar. Viro à direita e passo defronte um parque, pouco depois... Sim! Foi ali que um pastor alemão e um doberman vieram correndo na minha direção (e da amiga que se escondeu atrás de mim). Não mordem, avisou o dono pouco depois, passando de bicicleta. Veio tarde o aviso, já tínhamos pulado a grade de proteção e eu estava com o cóccix doendo - ou, como costumo simplificar, o dia em que quase quebrei o cu. De diferente, o parque com grades e moradores de rua sob a ponte do trem - Buenos Aires a cada visita ganha mais ares de América Latina. Decadência eu senti ao entrar no shopping, ali perto - shopping onde eu e meu irmão compramos bananas e saímos chocando a comunidade da Recoleta por comê-las em público e sem pudor. Porta de entrada quebrada, escadas rolantes não sei se sujas de graxa ou de ferrugem, piso antigo que, fosse no Brasil, teria sido trocado. Por um instante achei que o que sobrara do shopping fora apenas o mercado, mas não: segue firme e forte. Ali minha segunda grande decepção do dia: empolgado com o peso fraco, planejava torrar um grana, principalmente em livros, ao dividir tudo por três (e não por cinco, como quando fui a Bernardo de Irigoyen, durante a copa). Descobri que após essa divisão eu me deparia com preços de São Paulo, ou mais caros! Entre seis e oito reais um café, por exemplo. Passo por Recoleta e Palermo, apesar dos pesares, a cidade insiste no seu ar europeu. Após mais de duas horas de caminhada, chego ao albergue. Busco na internet dança contemporânea e descubro que perdi o horário.

Buenos Aires, 22 de novembro de 2014

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Buenos Aires Paradiso



Faz muito tempo que assisti ao filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Tanto tempo faz que não sei se as imagens que recordo do filme são realmente dele, ou são de minhas vivências desde então, confundidas nos confusos cafundós da minha memória. Se não me equivoco, a viagem do protagonista à cidade natal, para o enterro do antigo funcionário responsável pelas projeções do cinema local, é mais do que uma viagem no espaço: se dá antes no tempo. E na cidade, ele ainda pode assistir à demolição do seu passado, o cinema Paradiso.
É com a impressão de que farei uma viagem no tempo mais que no espaço que arrumei a mala para a semana que passarei em Buenos Aires.
Fui a primeira vez à cidade em mil novecentos e noventa e nove, no ápice da crise pós fim do plano Real, dólar a dois e pouco para um, peso a um para um. A Argentina ainda era modelo de sucesso para Mirians Leitões da vida. Eu era um adolescente com a cara cheia de espinhas, aparelho nos dentes e vasta cabeleira a me preencher a cabeça. Era minha primeira viagem para o exterior e Buenos Aires não era exatamente meu desejo: planejara de início a Escócia (e olha que na época eu não conhecia Mogwai e Belle and Sebastian), mudara a rota para Brisbane, Austrália, e acabara não saindo do cone sul da América do Sul. Havia um pouco de decepção, é certo, que foi superada pelo encanto portenho: eu, um caipira de Pato Branco, que havia ido três ou quatro vezes a São Paulo e morria de medo da cidade grande (e da pequena também), pude descobrir o prazer de flanar anônimo e a esmo. Por três semanas bati perna pelo centro expandido e alguns locais mais distantes (como a San Isidro da guia do curso de espanhol, Mariana), tirando fotos feito um turista japonês. Ao voltar ao Brasil, Buenos Aires se tornara minha Pasárgada - ainda que eu não fosse amigo do rei.
Voltei à cidade em dois mil e seis, quando meu irmão ganhou de aniversário uma viagem de mochilão até a Patagônia e eu fui junto como guia e intérprete - era também a primeira viagem dele ao exterior (Ciudad del Este, Puerto Iguazu e Bernardo de Irigoyen não contam). Abatida pela crise, a cidade ganhava ar de América do Sul, naquilo que, infelizmente, há de negativo no subcontinente: pedintes nas ruas, crianças cheirando cola, prostitutas se oferecendo a turistas. Apesar dos pesares (que, sete anos antes, não eram inexistentes, mas permaneciam longe das vistas dos turistas, do lado de lá da ponte da Boca), Buenos Aires seguia como minha Pasárgada: já visitara cidades no velho mundo, como Barcelona e Lisboa, que me encantaram também, porém não tanto.
E agora, me pergunto enquanto soco cinco camisetas, uma toalha e um chinelo na mochila, que será dessa viagem? Que 'eu' encontrarei lá, perdido na avenida General Las Heras, a andar e andar pela cidade? Há quase três anos Buenos Aires perdeu o posto de Pasárgada: desde que me mudei para São Paulo passei a amar esta cidade insana, de violência simbólica intensa, e não tenho vontade de morar em outro lugar - ao menos dentre as cidades que já passei: guardo em algum canto vontade de morar em uma Nova Iorque ou Tóquio imaginada de minhas leituras. Há um receio nesse reecontro, reconheço, um medo de descobrir algo que perdi e não notara. Assim mesmo deixo tudo preparado para não perder o vôo.

São Paulo, 21 de novembro de 2014