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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.

 

domingo, 10 de março de 2019

Emergência negra no teatro [Diálogos com o teatro]

A arte negra, produzida por pessoas negras, sempre existiu, ainda que nem sempre visível aos detentores de capital cultural: uma arte de união e combate, que reúne povos diferentes emigrados para a América sob essa marca generalizante - "negros" -, que faz combate de guerrilha contra a opressão estatal e paraestatal, uma arte que resiste contra quem nega seu direito de existir e afirma sua potência de ser.
Presente e marcante na história brasileira, ainda que pouco reconhecida, essa arte e esses artistas quando valorizados - depois de muita luta - costumam ficar restritos aos rótulos de "tradicional" ou "popular", ou seja, para consumo de estrangeiros (nos quais se inclui nossa elite) ou expressão artística menor. Nosso carnaval de rua é um exemplo dessa desvalorização e dessa tática de guerrilha - diferentemente do bem adestrado carnaval do sambódromo, em sua estética rede Globo, por mais que tenha ousado algumas críticas nos últimos anos (algo que os entendidos no assunto dizem que é contingente). As denúncias do "verdadeiro carnaval" por parte de nosso presidente em seu Twitter é a assunção de que essa festa tão preta, tão periférica, tão pobre está sendo valorizada por frações da elite, ocupando bairros nobres, atraindo gente branca e endinheirada, e afrontando os valores da "família", as intenções de domesticação da população por outra parte da elite, que quer formar "cidadões" de bem, bem resignados a uma vida amarga de semi-escravidão.
Se afirmando na base da luta, a "cultura negra" ainda é olhada como tendo potencialidade se está na música, na festa, na dança - populares. Erudição teria a ver com pigmentação cutânea. Artistas que romperam essa barreira branca, não raro acabaram sendo branqueados pela história, como Machado de Assis. Músicos, atores de filmes ou novelas (afinal, é preciso alguém para fazer papel de empregada ou porteiro) que ganharam destaque, que rompera o asfalto como a flor de Drummond, parecem antes reforçar um discurso de que negro realmente está aquém do branco, e esses poucos seriam prova disso: um ou outro que tem a mesma qualidade de um branco.
Recentemente tem emergido uma impressionante "cena negra de teatro paulistano" (não sei em outras cidades). Algo que deve soar "Bichos escrotos", dos Titãs, para parte dos cidadãos de bem: "Bichos escrotos/ Saiam dos esgotos/ Bichos escrotos/ Venham enfeitar/ Meu lar, meu jantar/ Meu nobre paladar!". São dramaturgos, diretores, iluminadores, sonoplastas, cenógrafos, atores e atrizes negros que se juntam para fazer uma peça, invadir esse recinto tido por sagrado que é o teatro, invertendo completamente o "natural" das "artes superiores". 
Os racistas de plantão logo vão duvidar que saia algo que presta de um grupo todo (ou quase) negro (ouço as vozes de meus tios médicos nessas horas). A esses, nunca sei o que responder, minha vontade é de cuspir na cara e mandar beijar o presidente na banheira, enquanto jogam roleta russa com o tambor cheio. 
Mas mesmo os céticos poderiam questionar, legitimamente (movidos pelo preconceito que circula na nossa sociedade sem que percebamos), se essa escolha baseada na cor da pele não afetaria a qualidade da obra, já que se escolheria por critérios outros que artísticos. O que chamei de "cena negra de teatro paulistano" prova que em nada afeta uma escolha baseada na cor: há artistas e profissionais negros talentosos o suficiente para prescindir dos brancos (como iluminador cênico frustrado (e branco), admito que gostaria muito de trabalhar em algumas dessas peças, ao mesmo tempo que reconheço que não seria meu lugar ali, não nesse momento de afirmação positiva); inclusive, ela faz questionar o quanto não são as escolhas dos brancos baseadas na cor da pele e não no talento (exemplo mais evidente que me vem é a peça Branco: o cheiro do formol, do branco Alexandre Dal Farra, para falar do racismo sofrido pelo negro, escolhido pelos seus amigos da MITSP de 2017).
Outra linha de céticos poderia questionar se uma peça toda negra não viraria algo muito específico da realidade negra, periférica, e perderia a universalidade que a grande arte deve almejar. A ideia profundamente arraigada de que seria a humanidade, o universal humano, sempre branco, sempre europeu-ocidental, sempre judaico-cristão, sempre totêmico. Como se os dramas pequenos burgueses de um branquelo de Manhattan fossem universais, qualquer pessoa se identificaria (em maior ou menor grau), mas os de uma criança negra da periferia de São Paulo fosse um caso isolado, específico de negros periféricos de países subdesenvolvidos (da peça Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, de Jhonny Salaberg [bit.ly/cG180702]). O que tais peças tem deixado muito óbvio é que o negro é universal tanto quanto o branco (e tanto quanto o muçulmano, que desponta como o novo condenado da Terra): há especificidades, sim, como são muito específicos os dramas retratados por Woody Allen ou Luigi Pirandello. Já fui além, em afirmar, após assistir a Três pretos: valor de uso, de José Fernando Peixoto de Azevedo, que nestes tempos de ascensão neofascista os brancos podem muito bem se preparar para seu devir-negro junto de toda a humanidade [bit.ly/cG181125].
Todo esse preâmbulo para indicar a peça Gota d'Água {Preta}, dirigida por Jé Oliveira, em cartaz no Centro Cultural São Paulo até o fim do mês. Jé Oliveira que foi o primeiro dessa "cena negra do teatro paulistano" a que assisti, com seu Farinha com açúcar, em homenagem aos Racionais MC's [http://bit.ly/cG170721]. O texto de Chico Buarque e Paulo Pontes ganha uma montagem de impressionante qualidade, impecável em todos os aspectos (ok, para ser chato (ATENÇÃO, SPOILER!): eu tiraria a última cena, a que dá um gran finale, que me pareceu uma gordura desnecessária, e terminaria na cena anterior, deixando no ar o continuum da que a vida segue, com suas festas e lutos), dando cor (óbvia nestes Tristes Trópicos) aos personagens periféricos escritos por Chico Buarque, pondo em diálogo vivo 1975 e 2019, trazendo os Racionais MC's para um merecido lugar de destaque na crônica quotidiana do Brasil. Ao final da peça, resta o arrebatamento, o entusiasmo, e a única coisa a comentar é como foi bom, sempre seguido de palavrões entusiásticos, e tentar em vão decidir quem seria o melhor ator ou atriz (até mesmo Juçara Marçal, em sua estreia como atriz, que num primeiro momento parece estar ali para emprestar apenas sua voz a Joana, tem uma atuação primorosa)!
Mesmo sem saber dos detalhes, é de desconfiar que essa emergência negra em São Paulo não tenha surgido de repente, antes fruto de muita luta (e luto), com algumas frestas durantes os governos petistas nas esferas federal e municipal, que permitiram uma afirmação positiva do ser negro (e periférico) - mesmo dentro de valorações dadas por brancos. Parte de nossa elite e seus asseclas de classe média, ao verem as populações periféricas - bichos escrotos que vivem nos esgotos? - ocupando os mesmos ambientes,  como se fossem pessoas "normais", ganhando prêmios e editais que antes ficavam sempre com os brancos (este escriba teve sua peça na primeira suplência no edital em que Buraquinhos... foi contemplado, e reconhece que a escolha foi mais do que justa), mostrando que ou os brancos se esforçam de verdade ou serão devorados pelos valores meritocráticos que hoje defendem, superados por quem até ontem acusavam de inferiores (como tem sido o caso do rendimento dos cotistas nas universidades públicas), esboçam alguma reação - simbólica, política, estatal. Reação baseada no medo. Medo de perder privilégios - de ser branco, de ser o universal, de ser o melhor independente da qualidade -, medo de ter que se encarar no espelho sem máscaras, sem filtros do Instagram. Bolsonaro, Doria Júnior, Witzel, Zuma são algumas faces mais visíveis que esse medo ganhou. Ironicamente são o próprio espelho dessa classe que vê sua impotência diante da emergência negra - broncos, chulos, torpes, desqualificados, mas detentores do poder. Por isso, por causa do medo de ter sua impotência escancarada para os seus e para o mundo, a necessidade de um pacote anticrime que cala o negro com a morte, de cenas escatológicas a desmerecer o carnaval de rua, mirar na cabecinha negra e atirar, de acabar com a cultura, de trucidar com a educação (já tão capenga) e entregar as crianças às igrejas evangélicas (por mais precária que seja, a escola ainda é minimamente crítica, e permite a elaboração de rotas de fuga da normopatia que o poder deseja).
Gota D'Água {Preta}  é tragédia contemporânea nestes tempos trágicos; e se na cena os personagens caminham para seu destino implacável, o que o palco faz vibrar é o devir em aberto para as lutas que todos - negros e brancos, homens e mulheres, cis e trans, privilegiados e renegados - temos pela frente se desejamos de fato viver numa sociedade democrática, plural e igualitária.

10 de março de 2019

domingo, 15 de julho de 2018

A construção (e naturalização) da anti-cidade

Pelo (pouco) que conheço de Paulo Mendes Rocha, deve ter sido de caso pensado que a frente do Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo, seja apta para que personae non gratae do estabelecimento - mas assíduos viventes do entorno - pudessem se sentar. A primeira vez que me dei conta disso, o espaço era ocupado por humilhados do parque com os seus jornais - pedintes, moradores de rua - e imigrantes negros. Hoje, ao passar em frente, os imigrantes seguem ocupando parte do espaço, porém dividem-no agora com pessoas aparentemente inseridas na ordem produtiva, que ali descansam enquanto observam o movimento da rua Dom José de Barros - talvez seja por conta do horário que eu tenha passado. Com a prefeitura tendo retirado os bancos da quadra de baixo - além de toda a lógica (urbanística e ideológica) que marca as praças de São Paulo -, esse pequeno espaço se tornou um dos raros pontos de estar e não de circulação - de pessoa ou de dinheiro: pode-se sentar ali despreocupadamente, sem ser obrigado a consumir ou seguir para algum lugar. A ver quanto tempo o Sesc resiste antes de "enfeitar" o vão sob sua marquise com estacas ou grades, como sói acontecer na cidade, com exemplo da própria prefeitura (não nos esqueçamos das rampas anti-pobres do PSDB de Serra).
Por enquanto, quem dá o exemplo da "cidade linda" almejada pela nossa elite é o Metrô. Em comunhão com a prefeitura e o CCSP, o Metrô entrou na luta para limpar a região da Vergueiro de não-pessoas - esses homo sapiens que não tomam banho todo dia e não consomem o suficiente para terem direito à cidadania. O CCSP, ainda durante a gestão Haddad - dando continuidade ao que havia começado com Kassab -, limpara os seus espaços internos e corredores de quem está lá para usar o centro cultural sem promessas de consumo - mesmo que alhures. Acompanhei de perto o processo de limpeza social, do um real para assistir a um filme, passando pela exigência de RG para entrar na biblioteca, ao cerco da assistência social a todo morador de rua que se utilizava do local (para funções designadas, nada subversivo, nem mesmo desrespeitosa com outros usuários) - até fazer com que fossem para longe, ou trocassem de calçada, ao menos -, assim como os seguranças perseguiam negros desprovidos de crachá funcional (é certo que nada comparável aos atos de manutenção da "higiene e harmonia social" que presenciei próximo ao Colégio Bandeirantes, cinco quadras distante).
Ao lado da estação Vergueiro, entre o elevador e a construção privada mais próxima há uma mureta. Espaço para passagem de ninguém, costumava ser ocupado por alguns desses pobres expulsos do CCSP, além de grupos de amigos, pessoas sem nada para fazer e casais paquerando. Talvez por conta do perigo para a ordem pública que seja pessoas paradas em local (iluminado e visível) onde não se vai a lugar nenhum - ainda mais mendigos, sem poderem ser enxotados -, mal exemplo para as crianças pessoas se beijando (inclusive pessoas do mesmo sexo, olha a pouca vergonha!), o Metrô tratou de isolar o local. A questão é que um raro ponto público para se permanecer foi desativado, como um aviso: "este local é de passagem, esta cidade se presta unicamente à circulação e ao consumo. Quer ficar de boa? Fique em casa, consumindo programação televisiva".
A estação São Bento segue lógica semelhante, talvez menos explícita, porque "justificada" - conforme fomos adestrados a aceitar esse tipo de argumento como justificativa válida. Parte da estação vai se tornar um centro de compras, logo, "logicamente", precisa ser cercado - até para explicitar que ali agora é um local privado, aberto ao público por um ato de vontade do dono, não por direito dos cidadãos. Grades já foram fixadas nas entradas da estação. O quê mais perverso nesse processo do largo São Bento-transformado em metrô-transformado em shopping privado é o slogan da propaganda do futuro centro comercial: "um oásis no centro de São Paulo". Nada mais óbvio que a publicidade valorizar aquele que lhe paga para falar bem, e o faça muitas vezes depreciando concorrentes. O slogan do shopping do metrô São Bento, contudo, não apenas se diz melhor que a "concorrência": ele diz que o entorno, mais que desinteressante e pobre, é estéril, praticamente morto - mortal. E a tal concorrência a que ele se opõe não são outras lojas, é uma cidade, a cidade que abriga esse "oásis", garante seu funcionamento - e tolera ser desqualificado dessa maneira (imagino se a prefeitura passasse a fazer publicidade em termos parecidos, chamado shoppings de pulgueiros existenciais em favor dos parques e praças, isso nos próprios shoppings). Porque oásis, convém lembrar, não surge em meio à mata tropical, e sim em meio ao deserto, onde poucos seres vivos estão aptos a sobreviver - e o ser humano se encontra em situação extremamente vulnerável. 
Pode-se argumentar que se trata de força de expressão, o que estou totalmente de acordo: expressa uma concepção de cidade, preconceituosa e desqualificadora - e até um pouco desatualizada. Quem circula pelo centro sem preconceitos (e sem dar vacilo, é preciso admitir) sabe que São Paulo se parece com tudo menos um deserto: é rica arquitetonicamente (ainda que seja triste só haver construções recentes), é rica a "fauna" de tipos humanos, dos engravatados aos mendigos, é rica de situações banais a situações excêntricas, quase surreais - em compensação, é mais que conhecida a normopatia anódina que rege espaços privados de uso público como shoppings e Sescs, o que me faz perguntar se a propaganda não tenta justamente ocultar que se trata do exato contrário: o tal Pátio São Bento é, na verdade, um deserto em meio a uma abundante floresta tropical (de concreto e aço) que é o centro de São Paulo (nada diferente de golpistas que diziam, desde 2003, que o PT preparava um golpe). Em tempo: ainda que eu creia que um uso mais diversificado seria mais interessante - com comércio, área cultural (como salas de ensaio para teatro e dança), centros de referência a minorias ou migrantes, etc -, um uso comercial de todo aquele espaço da estação São Bento me parece muito melhor que o não-uso que dele era feito até pouco tempo atrás. O que questiono é cercar esse espaço público e ainda explicitar tal oposição com o entorno.
Cito esses exemplos - e o contraexemplo surpreendente do Sesc 24 de maio - da construção da anti-cidade, da cidade hypster, por serem mais facilmente visíveis - ainda que já estejam naturalizados. É possível a construção da anti-cidade de modo mais insidioso: a cidade hypster é essa cidade da pura positividade classe-média-alta que ofusca pelo brilho toda a sujeira que ela joga para debaixo do tapete - ou para as periferias. É a anti-cidade cuja assepsia social se faz (quase) sem grades e sem slogans toscos - basicamente com a força da grana e, vez ou outra, da polícia. 
É o processo que visualizo na Boca do Lixo, no centro de São Paulo, com seus novos barzinhos ajeitados se sobrepondo aos velhos botecos de gays de poucas posses e imigrantes que tentam a vida em SP, baladas descoladas fechando velhos puteiros, e novos edifícios para quem tem dinheiro - sem nenhuma contrapartida para quem trabalha nos serviços desvalorizados e não tem condições para pagar alugueis abusivos que filhinhos e filhinhas de papai podem. Crackeiros já foram expulsos da região, michês e travestis que faziam ponto por ali minguam - provavelmente porque os cliente se sentem intimidados diante dos conhecidos que agora frequentam o local, não porque essas pessoas encontraram empregos melhores. O ideal da anti-cidade hypster é Vila Madalena, Pinheiros, onde não fossem os porteiros, manobristas e pedreiros, poderia jurar que é Oslo, ou a novela da Globo: só gente branca com boas posses fazendo pose. Uma cidade que busca se ver limpa de diferenças sociais e raciais - não pelo fim das desigualdades, mas pela ocultação e exclusão dos diferentes não aceitos. 
A aceitação da anti-cidade hypster é um processo longo e permanentemente inculcado, via mídia e educação, segue à mesma lógica que nos anos 1980, 1990 e 2000 dizia que o centro da cidade era perigoso, porque habitado por pretos, pobres, putas, gays, drogados e gente "dessa raça", e chique era morar num condomínio fechado e passear nos fins de semana no shopping (porque a semana deve ser devotada ao trabalho em glória do deus dinheiro). Diante do fracasso desse tipo de vida - estreita, pobre e vazia -, volta-se para o centro da cidade - desde que ele seja limpo dos elementos perturbadores da harmonia social-racial, ou seja, desde que dada as condições para uma vida estreita, pobre e vazia, como a dos condomínios e shoppings. É exatamente a mesma lógica, que se não cativa exatamente os mesmos patos, cativa seus filhos, propondo basicamente a mesma solução. É a lógica da valorização do capital e exclusão dos sem-dinheiro-portanto-sem-direitos. Tão naturalizado que nós sequer vemos - quando não louvamos a "revitalização" do centro "degradado". E a anti-cidade vai se construindo com nossos aplausos, para usufruto apenas de alguns.


Reparem em como prejudicaria toda a cidade ter cinco ou seis seres humanos sentados nessa mureta recuada

15 de julho de 2018.